Formação Ética no contexto filosófico
da Educação Básica
Ethical Training in the philosophical context of Basic Education
Sandro Luiz Charnoski
Professor
mestre pela Universidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil.
sandrocharnoski@yahoo.com.br - https://orcid.org/0000-0002-6579-7335
Recebido em 10 de janeiro de 2022
Aprovado em 17 de maio de 2022
Publicado em 29 de agosto de 2022
RESUMO: O
objetivo deste artigo é apontar possibilidades de pensamento ético que possam
ser apropriados pela Educação Básica de forma concreta e que auxiliem os
processos de ensino e aprendizagem da Filosofia como momento ímpar da formação
ética das juventudes nas escolas. Desenvolvemos uma abordagem teórica da Ética
a partir conceitos fundamentais para a discussão atual, autenticidade e
responsabilidade, com uma releitura para aproximar o campo teórico conceitual,
próprio da filosofia, do campo vivencial tanto do professor da Educação Básica
quanto dos estudantes, dado que a apropriação da atividade filosófica está
estreitamente relacionada à significação da filosofia para o estudante.
Buscamos também uma compreensão de Ética que possa orientar os rumos do
trabalho com a Filosofia na Educação Básica, considerando para tanto, as
contribuições mais recentes da Filosofia, como Charles Taylor e o
desenvolvimento de uma ética para a autenticidade, corroborando para a formação
dos estudantes que estão numa fase importante de formação e conhecimento de si,
e Hans Jonas e a ética pensada enquanto princípio de responsabilidade para com
as coisas que garantem a existência e perpetuação da vida no planeta.
Palavras-chave:
Filosofia; Formação ética; Ética; Autenticidade; Responsabilidade.
ABSTRACT: The objective
of this article is to point out possibilities of ethical thinking that can be appropriated
by Basic Education in a concrete way and that help the teaching and learning
processes of Philosophy as an unique moment in the ethical formation of youth
in schools. We developed a theoretical approach to Ethics based on fundamental
concepts for the current discussion, authenticity and responsibility, with a reinterpretation
to bring the conceptual theoretical field, typical of philosophy, closer to the
experiential field of both the Basic Education teacher and the students, given that
the appropriation of philosophical activityis closely related to the meaning of
philosophy for the student. We also seek an understanding of Ethics that can guide
the directions of work with Philosophy in Basic Education, considering for
that, the most recent contributions of Philosophy, such as Charles Taylor and the
development of na ethics for authenticity, corroborating for the formation of
students who are in an important phase of formation and self-knowledge, and
Hans Jonas and ethics thought as a principle of responsibility towards the things
that guarantee the existence and perpetuation of life on the planet.
Key words: Philosophy;
Ethical training; Ethics; Authenticity; Responsibility.
Introdução
A
modernidade despertou as sociedades da técnica, com o predomínio
instrumental-operacional acentuando a dependência do tempo, que se tornou
imprescindível para a produção, de bens e capital, e caracterizando fortemente
a frieza da razão e o caráter impessoal nas esferas da vida social,
estabelecendo ações e relações no “modo automático”. A ética, pensada para este
artigo, considera a preservação do espaço humano, a situação ontológica para
pensar e “repensar” a regra, possibilitando o acolhimento, a aceitação, a
vivência ou não da mesma. Para Vasquez (2018, p. 11), “o valor da ética como
teoria está naquilo que explica, e não no fato de prescrever ou recomendar com
vistas à ação em situações concretas”, uma vez que, tanto a vida quanto a
ética, possuem configurações singulares e complexas que não aquelas comparadas
a pequenas caixas que são abertas conforme a necessidade momentânea. A
preocupação com a aplicação da regra e a exigência de sua observação cabe assim
à moral.
Embora
a formação ética seja uma tarefa que envolve diferentes entes sociais, nos
propomos pensá-la a partir da escola no nível da Educação Básica, num contexto bastante
específico, o da Filosofia. Propor um caminho para a formação ética na Educação
Básica é um desafio, pois a escola tem sido a depositária de todas as
expectativas sociais e a formação ética também fora creditada à escola. Uma
formação ética que esteja comprometida com os ideais da ética voltada para a
vida pública e para a constituição de uma sociedade democrática[1] e que, ao mesmo tempo,
possibilite o conhecimento de si e conhecimento e reconhecimento do outro. Esta visão democrática da ética aponta para o
princípio fundamental da democracia que é a ideia de bem comum.
Nesta
perspectiva a formação distingue-se de uma “formatação” ou de uma padronização,
embora nos pareça ser esta uma ideia bastante defendida nas entrelinhas dos
discursos oficiais do Estado e de todas as propostas de educação “empenhadas”
numa formação voltada para o exercício da cidadania. A formação não pode
abdicar das regras, ao contrário, é extremamente importante conhecê-las para
assumi-las ou não e também para que se possa construir as próprias regras. É,
portanto, a formação um processo humanizador num contexto cultural, político,
social, por exemplo. Neste sentido, a educação não é apenas procedimento
instrucional exigido e aplicado por uma instituição, o Estado, mas é o emprego
de recursos e esforços na formação humana, acentuando uma relação pedagógica no
nível pessoal que se desdobra numa relação social coletiva. É importante
salientar o empreendimento de esforços para compreender a partir deste ponto a
formação ética em dois contextos, o da autenticidade e o da responsabilidade
que, necessariamente, serão tratados distintamente, mas que ao final se
vincularão para concretizar o processo formativo agora inicialmente proposto.
Enfatizamos
o fato de que o discurso sobre a formação ética dos estudantes se dá a partir
da constatação de uma suposta “crise ética”, crise de valores, o que
justificaria fortemente as investidas renovações nos campos pedagógico e
metodológico da educação. Isso sem dúvida é necessário, porém “a ênfase na
renovação dos procedimentos didático-metodológicos parece situar a origem da
“crise” na obsolescência das práticas escolares “tradicionais”” (CARVALHO,
2013, p. 43).
No
entanto, o desafio da educação para a formação ética está centrado no caráter
político de formar cidadãos preocupados com a ideia de bem comum e não
meramente no desenvolvimento de práticas pedagógicas vinculadas à renovação
curricular. Ressaltamos que não é nosso propósito apresentar uma abordagem
histórica da formação no âmbito da filosofia em seu contexto, outrossim
destacar a constante preocupação da Filosofia, da Ética e da Filosofia Política
quanto à formação humana, enfatizando que a recente preocupação curricular e
suas apressadas “inovações” parecem desconsiderar este contexto que remonta
pelo menos ao início da Filosofia na polis
grega. Um debate não preocupado com uma metodologia ou com recursos
didático-pedagógicos, muito embora a filosofia os possua muito bem definidos,
mas um debate profundo na compreensão da natureza da questão, assim como o faz
Mênon ao perguntar a Sócrates se a virtude pode ser ensinada:
Podes dizer-me,
Sócrates: a virtude é coisa que se ensina? Ou não é coisa que se ensina, mas
que se adquire pelo exercício? Ou nem coisa que se adquire pelo exercício, nem
coisa que se aprende, mas algo que advém aos homens por natureza ou por alguma
outra maneira? (PLATÃO, 2001, p. 19).
O
questionamento de Mênon é fundamental para essa compreensão da natureza da
questão, ao que ele interroga a Sócrates pela possibilidade e não pela fórmula “como pode ser ensinada”. À resposta de Mênon, Sócrates contrapõe
seus argumentos conduzindo uma investigação aos princípios da virtude de forma
a “esclarecê-la”, tirando-lhe todas as sombras ao máximo e seguindo seu
propósito existencial de aperfeiçoar os homens, de “esclarecê-los” e de
ensiná-los a ver o que fazem e como fazem, ou seja, conduzindo-os à virtude, ao
conhecimento. O conhecimento socrático é caracterizado por um movimento que
parte do interior (da introspecção) para o exterior, baseado no conhece-te a ti mesmo. Assim, a virtude
só pode ser alcançada pelo máximo conhecimento de nossa realidade interior e o
homem não virtuoso é aquele que ignora a si próprio, que não conhece a si mesmo
e que se ocupa em acumular riquezas materiais que o desviam do caminho da
virtude. À radicalidade da pergunta socrática se é possível ensinar a virtude
não há oposição a uma metodologia de ensino ou a uma didática especializada,
elaborada para tal fim. Isto se justifica pelo próprio esforço de Sócrates
durante sua vida de avivar em seus compatriotas uma busca permanente pela
virtude. Como dito, a perspectiva socrática pela busca da virtude está no
sentido de sua natureza, desta forma
Sócrates obriga o
diálogo a se voltar para a própria natureza do problema da formação ética,
evitando tratá-lo como mera questão de recursos pedagógicos ou de procedimentos
didáticos eventualmente comuns ao ensino de informações, técnicas ou
capacidades (CARVALHO, 2013, p. 48).
À
ideia de formação, tanto no contexto socrático quanto no atual, persiste o
questionamento sobre quem é mestre em virtude ou quem é mestre em ética para
poder ensiná-la. Esse questionamento retoma o início do texto quando afirma que
a formação ética envolve diferentes entes sociais, diferentes sujeitos cujo
compartilhamento pragmático da ética ou das virtudes seja uma experiência comum
a todos e não capacidades desenvolvidas por um grupo determinado, tampouco seja
um privilégio de poucos. “Daí porque o ensino, a transmissão e o cultivo dessas
virtudes devem ser concebidos como responsabilidade simultaneamente pessoal e
coletiva, em uma sociedade política” (CARVALHO, 2013, p. 49).
A
formação ética é uma ação conjunta de esforços e não uma incumbência apenas de
“especialistas”. Embora cada professor seja um especialista em sua área de
atuação, comprometido com sua ação didático-pedagógica ele é também um agente
institucional, o que lhe confere atribuições e responsabilidades educativas
específicas e não pode recusar tal responsabilidade, pois “qualquer pessoa que
se recuse a assumir a responsabilidade coletiva pelo mundo não deveria ter
crianças, e é preciso proibi-la de tomar parte em sua educação” (ARENDT, 1978,
p. 239). Essa responsabilidade coletiva é permeada por vinculações subjetivas
que adquirem efetividade no estágio em que partilhada na ou com a pluralidade
como afirma SAVATER (1997, p. 15):
Porque lo propio del hombre no es tanto el mero
aprender como el aprender de otros hombres, ser enseñado por ellos. Nuestro
maestro no es el mundo, las cosas, los sucesos naturales, ni siquiera ese
conjunto de técnicas y rituales que llamamos “cultura” sino la vinculación
intersubjetiva con otras conciencias.
Essa
responsabilidade coletiva assume a forma de autoridade pelo fato de que os
adultos, pais e professores, habitam o mundo no qual a criança ou adolescente
estão adentrando e passam a assinar a coautoria da participação na construção
de um mundo comum a todos, assim, se tornam responsáveis pelos que nele
adentram. Embora seja a escola mais uma instituição responsável pela formação
ética ela conserva em si um fecundo potencial formativo que perpassa toda sua
constituição, pois é regida por um encadeamento de valores e princípios
consequentes de sua natureza e de seu encargo pedagógico que por sua vez não
está limitado ao simples fato de cumprir o currículo de sua atribuição,
Ao contrário, os
princípios e os valores característicos da instituição escolar estão contidos
nos próprios conteúdos aprendidos, nas próprias formas de conhecimento ensinadas
e, portanto, se encarnam nas atividades e práticas docentes que os materializam
como conteúdos didáticos. Assim, o cultivo de valores fundamentais pode – e
deve – estar presente no desenvolvimento de cada uma das disciplinas e
atividades de nosso ensino (CARVALHO, 2012, p. 53).
A
escola é, portanto, esse espaço de “materialização” de discursos e vivência de
valores a partir da ação pedagógica e é também a ponte entre o espaço
individual de cada estudante e o espaço comum compartilhado, que lhe permite perceber
que há um ethos, um hábito, na
vinculação ética dos indivíduos.
O
objetivo deste texto não é percorrer uma linha histórica sobre o pensamento
ético, mas sim apontar possibilidades de pensamento ético que possam ser
apropriados pela Educação Básica de forma concreta e que auxiliem os processos
de ensino e aprendizagem da Filosofia como momento ímpar da formação ética das
juventudes nas escolas. Desta forma, o que faremos na sequência, se constitui
numa abordagem teórica da Ética a partir conceitos fundamentais para a
discussão atual: autenticidade e responsabilidade. Buscamos, nessa
releitura conceitual, aproximar o campo teórico conceitual, próprio da
filosofia, do campo vivencial tanto do professor da educação Básica quanto dos
estudantes.
Ética no Ensino Médio: formação para a “autenticidade”.
A
proposta que ora fazemos, de uma formação ética na educação básica, é um
desafio deveras audacioso, posto o que já expomos até o momento, somado ao
também desafiador esforço de embasar esta formação no contexto tayloriano da
autenticidade. Mais do que desenvolver um referencial teórico que sustente
nossa proposta, intentamos desenvolver um referencial no contexto da
aplicabilidade conforme a etapa da educação básica. Antes de avançarmos é
mister que apontemos a razão da empreitada, pois é a partir da observação sobre
o modo de vida moderno e, de forma mais atenta, contemporânea que a filosofia
de Charles Taylor demonstra sua substancialidade. A busca da identidade e a
tentativa de entender o mundo são questões basilares da modernidade e
representam perspectivas singulares por vezes contraditórias, marcando assim o
território de um espaço-temporal que caracteriza as relações humanas num viés
político embalado também pela busca constante da cidadania. Neste fértil
contexto, entender a educação é tomar consciência da complexidade que significa
o período histórico que vivemos e no qual desenvolvemos ações educativas e se é
possível à Escola defender a autonomia e a liberdade, partilhando de
referenciais pedagógicos que não vertam de concepções já prontas ou dogmáticas
e sim de experiências e vivências, perfazendo um caminho formativo e não mera
finalidade.
É
importante ressaltar neste ponto que A
ética da autenticidade não é uma obra pensada e constituída especificamente
para a educação. O que ora fazemos é uma apropriação para pensarmos as
possibilidades de um processo formativo que leve em conta a Ética no contexto
da autenticidade, pensado por Taylor, pois a compreensão das relações atuais
dos indivíduos e de seus comportamentos constituem elementos extremamente
significativos para o campo da educação. A partir destas relações dos
indivíduos entre si e também com a cultura é possível perceber o que Taylor
chama de “mal-estares” da sociedade. Esses mal-estares da sociedade são
experimentados “enquanto a civilização se desenvolve” (2011, p. 11) embora nem
sempre a percepção do desenvolvimento[2] ou das alterações
culturais e sociais seja imediata.
Esse
desenvolvimento, provocado em grande medida pela modernidade, permitiu ao homem
moderno a experiência de outra, não nova, mas outra realidade que é a
liberdade, agora conquistada num movimento de fuga das entranhas de um sistema
no qual o indivíduo “fazia” parte de uma esfera superior a ele e “a liberdade
moderna surgiu pelo decréscimo de tais ordens” (TAYLOR, 2011, p. 12). A
liberdade conquistada avança alicerçada por verbos que traduzem o que Taylor
chama de individualismo: escolher a
forma como se quer viver; decidir
sobre as concepções que denominar acertadas para seguir; determinar a configuração da vida, diferentemente do que já se
experimentou no passado; controlar
essas situações demarcando assim o ponto de partida da nova vida social, o
próprio indivíduo.
É
importante destacar que o individualismo, bem como os outros dois mal-estares
não são tidos por Taylor numa ótica pessimista, como se fossem a razão da ruína
da sociedade. “Na verdade, o autor aponta que esses problemas representam uma
má fase da autenticidade, ou seja, um modo não correto de se interpretar esse
ideal e que, consequentemente, pode ser aprimorado, ou modificado” (GONDIM,
2014, p. 257). Esse afastamento da cadeia de coisas que potencializavam os
projetos humanos e seu inegável descrédito provocou um desencantamento do mundo
e das coisas que davam significado à vida social. Centrando na visão negativa
pela qual muitos tomaram esses mal-estares, Taylor (2011, p. 13) afirma que “as
pessoas perderam a visão mais abrangente porque se centraram na vida
individual”, pois não há mais nada além do indivíduo que o faça mover-se, que
lhe provoque reação em relação a um propósito social comum.
Esta
é uma perspectiva “relativista” e, podemos afirmar também que é “relativista
dogmática” uma vez que “não se deve contestar os valores dos outros” (TAYLOR,
2011, p. 23). O mundo individual é caracterizado pelo valor das coisas e da
relação que estas têm para com o indivíduo e assim também o são as relações com
os outros e sobre esses “valores” não se pode nem se deve discutir porque são
direitos garantidos pela modernidade. Se estes direitos estão garantidos
estamos tocando, indubitavelmente na dimensão política e, aqui, a política
compreendida na acepção clássica.
Ademais,
o relativismo de que fala Taylor não apresenta uma articulação com a vida
habitual nem mesmo com outra dimensão que a compõe, ou seja, não há
possibilidade nenhuma de transcendência do self
e sim um fechamento em si, a atomização do indivíduo. Antecipamos que “a
autenticidade não é inimiga das demandas que emanam além do self; ela supõe tais demandas” (TAYLOR,
2011, p. 50). É uma relação de si consigo mesmo sem contato com nenhum
“horizonte moral que ultrapasse a própria subjetividade do agente” (GONDIM,
2014, p. 258) o que conduz a uma perspectiva “autodeterminista” da vida onde a
moralidade é tão somente conduzida pela subjetividade e isso se desenvolve da
forma como o indivíduo julgar mais caro, “pois todo mundo tem o direito de
desenvolver a própria maneira de viver, fundamentada no próprio sentido do que
é realmente importante ou de valor” (TAYLOR, 2011, p. 23). Ressaltando que este
valor não se traduz em nenhuma forma de compartilhamento com o outro ou com os
outros. No entanto, no próprio individualismo que pode ser encontrada a
superação dessa condição, o que Taylor chama de “ideal moral”. Conforme afirma
Taylor (2011, 25),
O ideal moral por
trás da autorrealização é o de ser fiel a si mesmo (...). Um quadro de como
seria um modo de vida melhor ou mais elevado, onde “melhor” e “mais elevado”
são definidos não em relação ao que possamos desejar ou precisar, mas sim
oferecer um padrão do que devemos desejar.
O
‘ideal’ é o que se deseja, portanto, aquilo que ainda não foi alcançado ou que
se espera alcançar de alguma forma, um “padrão” a ser alcançado, por isso ainda
desejado. Este desejo, na perspectiva aqui tratada, é uma categoria que se
aplica ao indivíduo, não sendo estendida à coletividade. Ao mesmo tempo,
assemelha as estruturas do desejo e do valor moral e, para tanto, Taylor passa a usar o conceito de “autenticidade” no sentido de
autofidelidade e o individualismo pensado como autorrealização, o que para
Taylor não se configuram como categorias de equívoco. A autofidelidade
ancora-se no fato de que o relativismo é um ideal moral assentado na
neutralidade sobre as concepções da vida boa do pensamento grego clássico.
No
entanto, a autenticidade não só é um ideal moral, mas também a possibilidade de
debate sobre seus próprios ideais. O debate não se restringe ao campo da individualidade,
ao contrário, se estende à esfera da dialogicidade humana que, por sua vez, é
um fato condicionante na definição da identidade ou, de outra forma, a
aquisição de uma linguagem incorporada por outros significados. O que se
apresenta neste sentido é o fato de que a dialogicidade é uma condição para que
haja inteligibilidade, de forma que a escolha autônoma sobre os valores,
melhores ou piores para si, não são efetivadas numa base de neutralidade. O que
estamos dizendo é que é necessário um conjunto de valores morais
significativos, portanto, não são monológicas, no sentido de uma fala ou uma
linguagem apenas ou de falar sozinho porque as escolhas partem de algo já dado
e que se coloca como uma demanda relevante. A dialogicidade possibilita outra
categoria importante na obra de Charles Taylor que é o reconhecimento ou, em
outros termos, este ocorre como uma necessidade daquela. O reconhecimento é a
salvaguarda de que o indivíduo não irá pender para o atomismo ou algo
semelhante. Assim, “o reconhecimento é o modo de relacionamento recíproco que
possibilita a vida social. Ele implica no princípio da equidade, isto é, na
ideia de que todos devem ter as mesmas chances de desenvolver a própria
identidade socialmente” (GONDIM, 2014, p. 259), ou como afirma Taylor (2011, p
59), “unir-se em um reconhecimento mútuo de diferenças
exige que compartilhemos mais do que a crença nesse princípio; temos que
compartilhar também alguns padrões de valor que as identidades referidas
conferem como iguais”.
Há
que se enfatizar que a autenticidade permanece a mesma, ou seja, a fidelidade a
si mesmo não se corrompe na abertura ao reconhecimento advindo da
dialogicidade. “É, portanto, uma originalidade que se aliena no outro e retorna
para si com consciência do seu lugar no mundo e na sociedade” (GONDIM, 2014, p.
259). Sendo o reconhecimento importante para a autenticidade, as diferenças
estabelecidas nas relações sociais e também delas oriundas possuem significados
morais e revelam os traços da autofidelidade, pois
Há certo modo de ser
humano que é meu modo. [...]. Ser
fiel a mim significa ser fiel a minha própria originalidade, e isso é uma coisa
que só eu posso articular e descobrir. Ao articular isso eu também me defino.
Estou realizando uma potencialidade que é propriamente minha (TAYLOR, 2011, p.
38, 39).
O
perigo da subjetividade assumir caráter atomista é entendido como um ponto de
cisão entre a autenticidade e seu ideal moral, o que Taylor chama de primazia
da razão instrumental, ou seja, “o tipo de racionalidade em que nos baseamos ao
calcular a aplicação mais econômica dos meios para determinado fim. Eficiência
máxima, a melhor relação custo-benefício, é sua medida de sucesso” (TAYLOR,
2011, p. 15). É a relação custo-benefício para se alcançar determinada finalidade.
Essa ideia é também fortalecida com o rompimento com as antigas cadeias que
sustentavam a vida social no passado. E agora que a modernidade “dispensou”
esses arranjos não há mais a dimensão da sacralidade orientando o que fazer nem
o como fazer. Não é mais a “sacralidade” que determina a ação ou o valor da
ação. É a aplicação e potencialização das forças na realização das próprias
vontades, com a intenção de sempre obter vantagens.
A
preocupação se estende a todos os estratos sociais e situações e se acentua na
dimensão política da vida social. O relativismo atomizado provoca um
distanciamento significativo na vida social o que leva os indivíduos a se
posicionarem de acordo somente com suas razões particulares e dando vasão
apenas aos seus próprios interesses. Dessa forma os posicionamentos políticos
são afetados de forma que não há mais uma efetiva participação e/ou intervenção
dos cidadãos na vida política da sociedade. Isso caracteriza uma sociedade
fragmentada e dificulta o reconhecimento do indivíduo enquanto participante de
uma comunidade, de uma sociedade e, consequentemente, a participação política
ficará a cargo de uns poucos, originando um governo paternalista, o que não
deixa também de ser uma forma de despotismo moderno. Nesse ponto há uma inegável
perda da liberdade, uma vez que a tutela dos direitos e das decisões foram
outorgados a outrem. A esfera pública sofre como que uma alienação e uma perda
do controle político num mundo centralizado.
O que está ameaçada
aqui é a nossa dignidade de cidadãos. Os mecanismos impessoais mencionados
podem reduzir nossos graus de liberdade como uma sociedade, mas a perda de
liberdade política significaria que até mesmo as escolhas restantes não seriam
feitas por nós, mas sim pelo irresponsável poder tutelar (TAYLOR, 2011, p. 19).
Embora
a sociedade moderna seja concebida de forma fragmentada, apresentando uma
complexa dificuldade de compartilhamento, na concepção tayloriana, há uma
confluência dos mal-estares modernos naquilo que é o ponto fundamental da estrutura
da autenticidade, a cultura. Esta se caracteriza pela “liberdade” pautada na
posse ou construção dos nossos próprios valores, os quais são intocáveis e
irretocáveis pelo coletivo. A propositura da busca da autenticidade no campo
educacional implica em pensar a Escola como um espaço acolhedor de “culturas” e
do convívio das mesmas e, dessa forma, como um espaço também das diferenças. É
nesse campo vasto das diferenças que a busca pela autenticidade se torna
indispensável e faz sentido, segundo Taylor, pois o ideal moral não está na
mesma categoria do relativismo egoísta, mas na plena compreensão do self.
Portanto, o julgamento de um desejo ‘não moral’ demonstra confusão e
menosprezo pelo ideal moral da autenticidade. Mas isso não é porque pertencem à
cultura da autenticidade. Antes, porque vão de encontro as suas requisições.
Bloquear demandas emanadas além do self
é precisamente suprimir a condição de significado e, portanto, incorrer em
banalização (TAYLOR, 2011, p. 49). Isso remete à ideia de reconhecimento, já
apontada anteriormente, agora com outra implicação, não mais a da necessidade
do reconhecimento, mas das condições que podem levá-lo ao fracasso. Assim, “o reconhecimento se torna uma questão de “foro pessoal”, inevitável
e incontornável, que se impõe como uma realidade objetiva sentida por cada
indivíduo na vida moderna (MACIEL, 2017, p. 286).
Nesse
contexto, o reconhecimento tem grande importância para a formação da
identidade, seja do indivíduo ou de um grupo com interesses alinhados e comuns.
Ética no Ensino Médio: formação para a “responsabilidade”
O
caráter contínuo da formação humana é uma tarefa empreendida ao longo dos
tempos pela filosofia. Isso evidencia o surgimento constante de novas situações
e problemas que levam os filósofos a repensar o problema da ética na formação,
considerando o horizonte da justiça e das condições para o desenvolvimento da
vida humana, seja no plano individual ou social. Estas situações e problemas
que surgem de forma constante não implicam na negação da “universalidade” da
ética, mas reiteram que as mudanças sociais, econômicas, culturais, políticas e
as transformações tecnológicas se constituem em parâmetros para a reflexão
ética e corroboram para a orientação da vida humana e suas dimensões.
Nesse
contexto de constantes mudanças, urge a necessidade de “uma ética” capaz de
abranger essa demanda, considerando agora como elemento transformador
principal, o avanço tecnológico promovido e alcançado pela humanidade. “E, já
que a ética tem a ver com o agir, a consequência lógica disso é que a natureza
modificada do agir humano também impõe uma modificação na ética” (JONAS, 2006,
p. 29).
Se
na modernidade o parâmetro é antropocêntrico, na contemporaneidade ele é
tecnocêntrico. O homem, concebido pela antropologia e pelo pensamento moderno,
colocado como centro orientativo para tudo e todos, após se “libertar”[3] do julgo divino medievo,
assume agora papel marginal, deslocando-se para fora do centro da vida, dando
lugar à sua cria, que aqui denominamos avanço tecnológico. Todas as mudanças
ocorridas, consequentes dos avanços da técnica, provocaram significativas transformações
na vida de forma geral. Essas novas situações que se apresentam, impõe uma nova
reflexão sobre os processos de integração social, envolvendo a realidade atual,
para estabelecer novas discussões sobre a ética, especialmente no campo
educacional. Cabe ressaltar que esta nova reflexão ética no campo educacional,
que ora propomos com o pensamento de Hans Jonas, exige “um processo de desconstrução da racionalidade capitalista para que
possamos construir uma racionalidade que vise à conservação e ao equilíbrio
ambiental como essenciais para a continuidade da vida” (BATTESTIN, 2009, p. 11).
A
formação ética, como já mencionada, é responsabilidade de toda a sociedade, uma
vez que estamos inseridos num determinado contexto social e experimentamos as
vivências destes contextos. Desta forma, pensar e propor uma formação ética no
contexto da responsabilidade é um desafio deveras grandioso e extremamente
importante para o processo pedagógico educacional atual. É fundamental
atentar-nos para o conceito responsabilidade, que ora empenhamos esforços, numa
tentativa primeira de investigação e delimitação do mesmo, pois “a
Responsabilidade é possibilidade de
prever os efeitos do próprio comportamento e de corrigi-lo com base em tal
previsão” (ABBAGNANO, 2007, p. 1009 – grifo nosso).
O
conceito responsabilidade tem sido usado com frequência nos campos jurídico,
político, sociológico. No entanto, sua origem é bastante recente, aparecendo
pela primeira vez em 1787, em inglês e francês, conforme ABBAGNANO (2007).
Embora haja, com frequência, uso inadequado do conceito responsabilidade,
percebe-se que ocorre uma mudança substancial na modernidade sobre sua
compreensão. Há sempre uma ligação, quase instantânea, com a noção de dever, de
obrigação, de liberdade, devido à vagueza conceitual. Isso causa confusão
terminológica, levando ao uso da responsabilidade enquanto imputação, que se
aplica nas relações referidas aos atos de responder sobre obrigações, como no
campo político.
O termo imputação é
bem conhecido numa época em que o termo responsabilidade não tem emprego
reconhecido fora da teoria política (...). Imputar, dizem nossos melhores
dicionários, é atribuir a alguém uma ação condenável, um delito, portanto uma
ação confrontada previamente com uma obrigação ou uma proibição que essa ação
infringe (RICOUER, 2008, p.35-36).
Dessa forma, é importante reconhecer a
imposição de fundamentar a responsabilidade nos campos da ética e da moral, uma
vez que é extremamente relevante para as escolhas, funcionando como parâmetro
para elas. A responsabilidade no campo ético não pode ser forçada pela lei,
dado que esta é o resultado de uma vontade consciente e a responsabilidade
enquadra-se no campo da prospecção, ou seja, é sempre projetada ou, seguindo
Hans Jonas, em direção ao futuro, ao cuidado e à preservação. “A ética da responsabilidade corresponde ao ‘agir racional em
relação ao fim’ e é típica de quem se preocupa tanto com os meios capazes de
levar a obter determinados fins, quanto com os efeitos ligados à própria ação” (ABBAGNANO, 2007, p. 1009).
Assim,
a responsabilidade ética depende da relação que se tem com o outro e não
simplesmente do conhecimento que dela se tem. Ademais, a responsabilidade é uma
relação do sujeito consigo mesmo, pois é um princípio que não pode existir
externamente, senão intrinsecamente ao homem, não podendo este agir em
responsabilidade de outrem, “segundo a qual o meu dever é a imagem refletida do
dever alheio” (JONAS, 2006, p. 89). Desta forma, Jonas ratifica a
intrinsecabilidade da responsabilidade ao homem, uma vez que este só pode
reivindicar aquilo que tenha uma existência, ou seja, que já existe nele
próprio. Assim, a preocupação com o futuro deve estar sempre ligada ao respeito
e à responsabilidade pela humanidade e por seu zelo constante.
Zelar por isso, tal é
nosso dever básico para com o futuro da humanidade, a partir do qual podemos
deduzir todos os demais deveres para com os homens futuros. Esses deveres
substantivos podem então ser subordinados à ética da solidariedade, da
simpatia, da equidade e até mesmo da comiseração, de modo que, ao transpor os
nossos próprios desejos e medos, alegrias e tristezas, conferimos a esses
homens do futuro, numa espécie de simultaneidade fictícia, o direito que essa
ética também concede aos contemporâneos e que somos obrigados a seguir, e cuja
observância antecipada transforma-se aqui numa responsabilidade particular
nossa, por causa da causalidade inteiramente unilateral do nosso papel de
autores da sua condição (JONAS, 2006, p. 93).
A
Responsabilidade jonasiana, além do caráter racional que exige, está
intimamente ligada aos sentimentos e às emoções, pois há uma necessidade
constante de que o sujeito da ação seja “afetado” por ela, a responsabilidade,
ocupando por manter em suas ações o bem em si como um valor e não simplesmente
a obrigação do dever.
Não é o próprio dever
que é o objeto; não é a lei moral que motiva a ação moral, mas o apelo do bem
em si no mundo, que confronta minha vontade e exige obediência. (...). Para que
algo me atinja e me afete de maneira a influenciar minha vontade é preciso que
eu seja capaz de ser influenciado por esse algo. Nosso lado emocional tem de
entrar em jogo. E é da própria essência da nossa natureza moral que a nossa
intelecção nos transmita um apelo que encontre uma resposta em nosso
sentimento. É o sentimento de responsabilidade (JONAS, 2006, p. 156-157).
Neste
sentido, a ética apresenta dois aspectos, um objetivo e outro subjetivo. Assim,
o primeiro se alia à razão e o segundo à emoção, aos sentimentos. A ética
sempre foi compreendida com um aspecto singular da razão, até mesmo nas
definições que recebeu ao longo da história, atrelada à capacidade humana de
“pensar”. O que Jonas está propõe é um equilíbrio ontológico do sujeito ético,
uma vez que, na responsabilidade, não pode haver uma sobreposição dos aspectos
éticos, um em relação ao outro. O que há, na proposta jonasiana, é uma
indissolubilidade entre o racional e o emocional, entre o objetivo e o
subjetivo da vida ética. A emoção é um componente da ética e não um adereço
que, usado eventualmente, influencia a razão, atestando-lhe veracidade ou não.
“Os filósofos da moral sempre reconheceram que o
sentimento deveria se unir à razão, de modo que o bem objetivo adquirisse poder
sobre a nossa vontade; em outras palavras, a moral que supomos que deve se
impor às emoções necessita, ela própria, de emoções” (JONAS 2006, p. 159).
A
dimensão emocional, como dito, é concomitante à racional e esta relação fica
evidente quando a ética é compreendida no viés das relações do homem com o
outro e também consigo próprio. No entanto, para Jonas, é preciso ampliar o
horizonte de compreensão e percepção da ética, alcançando não apenas as
“relações humanas entre si”, mas considerando todo o universo humano. Universo
enquanto toda a realidade que compõe a vida humana. Parte significativa deste
universo é compreendida como a natureza que, ao longo de sua existência, tem
garantido sua sobrevivência e seu desenvolvimento. Outra parte é compreendida
enquanto o processo pelo qual a natureza tem passado pelas “mãos humanas”, no
sentido de extrair dela os recursos necessários (e muitas vezes, além do
necessário) para garantir a sobrevivência.
A
compreensão ética de Jonas depende fortemente da observação da relação humana
com a natureza e suas constantes transformações. Esta observação é
significativa para o desenvolvimento da ética da responsabilidade que parte,
também, da observância dos princípios éticos constituídos ao longo da história,
os quais são analisados por Hans Jonas em cinco momentos (2006, p. 35-36).
1. Todo o trato com o mundo extra-humano, isto é, todo o
domínio da techne (habilidade) era –
à exceção da medicina – eticamente neutro, considerando-se tanto o objeto
quanto o sujeito de tal agir. 2. A significação dizia
respeito ao relacionamento direto de homem com homem, inclusive o de cada homem
consigo mesmo; toda ética tradicional é antropocêntrica. 3.
Para efeito da ação nessa esfera, a entidade “homem” e sua condição fundamental
era considerada como constante quanto à sua essência, não sendo ela própria
objeto da techne (arte)
reconfiguradora. 4. O bem e o mal, com o
qual o agir tinha de se preocupar, evidenciavam-se na ação, seja na própria
práxis ou em seu alcance imediato, e não requeriam um planejamento de longo
prazo. 5. Todos os mandamentos e máximas da ética
tradicional, fossem quais fossem suas diferenças de conteúdo, demonstram esse
confinamento ao círculo imediato da ação.
A
ação humana não aspirava o cuidado, a dedicação para com o outro, por
considerar-se a técnica neutra, tanto o objeto quanto o sujeito. O
antropocentrismo caracteriza fortemente a ética tradicional, apresentando uma
visão individualista predominante da vida humana e um fechamento para a
coletividade e também para toda a realidade que cercava a vida. Jonas
compreende que a ação humana, considerando a ética nos princípios tradicionais,
não visava o futuro, de forma que houvesse preocupação com a preservação da
vida, do meio ambiente e com o desenvolvimento sustentável das tecnologias.
Embora
haja um processo educacional já bem formatado que busca atender as demandas
educacionais, no que tange à preservação, conservação do meio ambiente[4], por exemplo, com atitudes
básicas de boa educação e sanitárias, o que parece mover a ação humana[5] é o conceito de carpe diem. Aproveitar o dia, aproveitar
o momento, não deixar passar nada é a grande máxima que opera as consciências.
Isto não se torna um problema para a formação ética no contexto escolar.
A
responsabilidade jonasiana implica no cuidado, de si, do outro e da preservação
da vida. Como ética do “cuidado” a preocupação é não se deixar converter num
relativismo, assim como já discutido com Taylor. Uma noção imediatista do carpe diem pode rapidamente conduzir a
isto. Talvez este seja o fio que deve conduzir a responsabilidade e a educação,
ou uma educação para a responsabilidade: o cuidado com a pessoa no seu processo
de formação. A educação, enquanto formação, só tem razão se, intimamente, for
ética. Ou seja, a ética é a condição da qual a educação não pode abrir mão,
mesmo não sendo a responsabilidade, propriedade de nenhuma didática, processo
metodológico ou instituição de ensino, embora muitas destas possuam seus
valores e tentam evidenciá-los de toda forma, e também se constituam em
preocupação constante de governos na elaboração de “políticas públicas” que
atendam aos princípios de uma sociedade equilibrada, correta, humana e justa,
onde o exercício da cidadania seja assegurado pelas instituições educacionais[6].
A
escola, entendida como ambiente da responsabilidade ou no desafio de ser,
“(...) permite ao homem se colocar enquanto sujeito, como membro de um grupo,
como participante de um projeto comum” (GADOTTI, 1981, p.156). Neste sentido a
ética da responsabilidade se desenvolve como responsabilidade em relação a tudo
e a todos, pois “a responsabilidade moral terá como objeto o “outro”, o
“concreto”, o frágil. O “cuidado” que Jonas tanto recomenda em relação à
utilização dos recursos naturais tem como direção o “outro” (ZANCANARO, 1998,
p. 18).
Neste
sentido, a responsabilidade é intrinsecamente ontológica, uma responsabilidade
do ser para consigo e para com o outro, como afirmado anteriormente. “Jonas
quer dizer que o arquétipo de toda a responsabilidade é aquele do homem com o
homem, de guardião do seu próprio fim: o existir. Somos um para o outro,
objetos de responsabilidade no que respeita à reciprocidade ontológica:
A existência da
humanidade” é o primeiro mandamento, independente das barbáries e das
abordagens pessimistas ou do tratamento que o homem dispensou à natureza e a si
próprio, até o momento. Em suma, quem deve ser preservada é a existência. Esta
é a prioridade da ética do futuro, vinculada às ações inéditas das
modernizações tecnológicas cujo agir tornou-se coletivo e perigoso para sua continuidade”
(ZANCANARO, 1998, p. 134).
A
responsabilidade é a garantia de que a humanidade seja hoje e amanhã, numa
perspectiva de futuro, de preservação. E, uma vez sendo a responsabilidade
também política, acentua a preocupação de Jonas em relação ao bem comum, ao bem
público, o que evidencia a dimensão do poder. A forma como o poder foi
alcançado[7] é uma questão à parte,
pois o que importa é a forma como este será exercido na perspectiva pública. A
formação ética não pode abdicar da dimensão política no contexto da
responsabilidade, pois implica objetivamente o poder ser no mundo,
estabelecendo relações de cuidado com a existência através do exercício da
cidadania e da participação política de forma ativa.
A
ética no campo da educação está na perspectiva no “aqui” e “agora”, enquanto
processo de formação, mas também está imbricada num campo indeterminado que é o
futuro, uma vez que a responsabilidade jonasiana aponta para isto fortemente
quando afirma a necessidade de preservação da vida de forma geral. Isto implica
numa responsabilidade que também é política, como já afirmamos, pois está em
função do agir imediato, mas também de uma prospecção de futuro indeterminado.
Neste sentido, ser responsável é agir de forma a garantir a possibilidade de
vida, de continuidade e isso não se reduz a uma responsabilidade individual,
mas se lança em direção a um futuro mais longínquo. Assim, o desenvolvimento da
existência é uma responsabilidade que compreende o espaço e o tempo ampliados,
como um processo dialético multidirecional, possibilitando o desenvolvimento
contínuo da responsabilidade, incluindo o futuro como uma preocupação da
temporalidade.
Esta
consciência de temporalidade permite ao “homem” desenvolver infinitos
conhecimentos e capacidades para discernir os direitos e os deveres para
consigo, com o outro e com a natureza. Sendo um numa realidade múltipla,
(...) é o único ser
conhecido que pode ter responsabilidade, por isso, justamente, a tem. Uma
simples intuição nos diz que a presença de responsabilidade é melhor que sua
absoluta falta. (...). Que no futuro siga havendo responsabilidade se converte,
então, em um dever da responsabilidade. Isto só é possível se os seres que
podem ser responsáveis sigam existindo (JONAS, 2001, p.72).
Considerações
finais
As ética stayloriana e jonasiana, como dito,
não foram pensadas especificamente para o contexto da educação. O que fizemos
neste texto foi uma apropriação teórica que nos permitiu clarificar os
conceitos autenticidade e responsabilidade. A formação ética não pode
prescindir desses conceitos, principalmente quando pensada para a Educação
Básica. A autenticidade é a possibilidade de conhecimento de si ou
autoconhecimento, fundamental para o estabelecimento das relações, seja consigo
mesmo, seja com a coletividade. A responsabilidade como elemento formativo está
na base do reconhecimento e da consideração dos seres, das coisas, das
relações, do mundo.
A
sala de aula, espaço de formação, precisa ser entendida também como espaço de
liberdade ética, onde não são prescritas fórmulas ou receitas a serem fielmente
seguidas e das quais se espera sempre resultados positivos, mas espaço de
construção, por isso “formação”, de experiências pessoais, sociais, culturas,
religiosas, filosóficas que permitam aos estudantes e professores a percepção
de mundo de cada um e seja possível fazer escolhas conscientes, além das
imposições sistêmicas que invadem as escolas tolhendo liberdades.
A
discussão até aqui apresentada é fundamental para seguirmos pensando a formação
ética a partir da concepção de ensino presente na legislação educacional,
principalmente dos PCN[8] e da BNCC[9], e as possibilidades de um
ensino a partir de uma metodologia filosófica.
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Notas
[1] Este princípio está
explícito na LDB, Lei 9.394/96, no Art. 2º: “... tem
por finalidade o pleno desenvolvimento do educando, seu preparo para o
exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”.
[2] É preciso ressaltar
que o “desenvolvimento” é aquele aprimorado e impulsionado pela modernidade. O
desenvolvimento tecnológico, de produção, das ciências e também o
desenvolvimento das relações do ‘homem” com o mundo. Note-se aqui o acentuado
deslocamento do ‘homem” para o centro da vida social, o que, aos poucos, será
compartilhado pelas tecnologias.
[3] Libertar no sentido de passagem, de
transição de um período, de uma forma de pensamento para outra. Isso não
significa que houve uma extinção do formato antigo, ao contrário, eles passam a
conviver e nem sempre o convívio será tranquilo. No entanto, essa transição é
fundamental para o desenvolvimento das ciências e para o avanço tecnológico.
[4] Vale ressaltar a
visão exclusivamente econômica que se tem em relação à preservação ou não do
meio ambiente. Isto ficou bastante evidente nas palavras do ministro do meio
ambiente quando, em reunião com o presidente da república e demais ministros,
afirmou, num dos momentos mais graves da pandemia da COVID-19, e que, devido à
atenção da mídia estar voltada para a pandemia, este era o momento de “ir
passando a boiada e mudando todo o regramento”. https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-a-boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml. Não é possível
negar que haja nas palavras do ministro um “desejo” de carpe diem, um gozo monetário assegurado pela ação eficiente do
pensamento liberal, sob a falsa preocupação com o desenvolvimento sustentável.
[5] A abordagem parte de
uma análise simples, considerando as experiências oriundas do “chão da escola”,
manifestadas nas ações dos estudantes com os quais eu trabalho.
[6] A ética como
exercício da cidadania é tema do capítulo seguinte que parte de uma análise da
concepção de “ensino” de filosofia apresentado pela nova Base Nacional Comum
Curricular.
[7] Embora a forma como se chega ao poder
já revele muito do que está por vir, aqui não trataremos dela, uma vez que nos
interessa acentuar, neste momento, a responsabilidade que se deve ter em
relação ao bem comum na dimensão pública da vida.
[8]
Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio. Brasília: Ministério da
Educação/Secretaria da Educação Média e tecnológica. 2000. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/blegais.pdf.
Acesso em: 02/03/2021.
[9] BRASIL. Base Nacional Comum Curricular. Ensino
Médio. Brasília. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/wp-content/uploads/2018/04/BNCC_EnsinoMedio_embaixa_site.pdf. Acesso em:
03/02/2021.
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