Contribuições da ética do cuidado de si (Michel Foucault) para o ensino de filosofia através de problemas filosóficos

 

Contributions of the care of the self (Michel Foucault) to the teaching of philosophy oriented by philosophical problems

 

Douglas João Orben

Professor doutor na Faculdade Palotina, Santa Maria, RS, Brasil.

douglasorben@hotmail.com - http://orcid.org/0000-0002-5245-7630

 

Marta Rocha

Especialista pela Universidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil.

martta.rocha@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0002-0583-750X

 

Recebido em 16 de outubro de 2022

Aprovado em 11 de setembro de 2022

Publicado em 26 de outubro de 2022

 

RESUMO: O presente artigo expõe, inicialmente, um panorama da sociedade contemporânea, a qual se apresenta como programada para o consumo e é marcada pelas exigências de um mercado capitalista e neoliberal, visando demonstrar de que forma tais características influenciam e determinam a construção da subjetividade dos indivíduos. Nesse contexto, o texto analisa as consequências das referidas configurações sociais no campo educacional, em especial no ensino de filosofia. Ademais, busca-se ressaltar o modo como são desenvolvidas as relações de poder, pautadas essencialmente pelo caráter opressivo. Como proposta para o desenvolvimento de práticas de ensino nesse cenário, de modo a não reproduzir o modelo vigente, cujo objetivo é a construção de um sujeito eficiente em termos de produção, é apontado o ensino de filosofia a partir do eixo problemático. Esse modelo, na concepção do filósofo Sílvio Gallo, é uma das formas mais adequadas de propiciar aos estudantes a experiência do pensar crítico, fugindo de um ensino mecanicista, reprodutor de um sistema de controle e normatização. Por fim, é apresentada a ética do cuidado de si ou a estética da existência, a partir dos estudos de Michel Foucault. À luz dessa concepção, busca-se analisar as suas possíveis contribuições para o ensino de filosofia, entendido como uma forma de resistência às práticas criadas pelos estados modernos com o objetivo de domesticar, subjugar e controlar os indivíduos. Entendemos que o ensino de filosofia torna-se uma práxis libertadora, que desperta nos sujeitos o pensar crítico, criativo e reflexivo, de modo a se tornar uma forma de resistência contra as lógicas de controle e alienação das subjetividades.

Palavras-chave: Michel Foucault; Cuidado de Si; Ensino de Filosofia; Problemas Filosóficos.

 

ABSTRACT: In this article, we initially address a panorama of the contemporary society, which presents itself as programmed for consumption and marked by the demands of a capitalist and neoliberal market. We aim to demonstrate how such characteristics influence and determine the construction of individuals' subjectivity. In this context, we analyze the consequences of these social configurations in the educational field, especially in the teaching of Philosophy. Furthermore, we seek to emphasize the way in which power relations are developed, essentially based on the oppressive character. As a proposal for the development of teaching practices in this scenario, so as not to reproduce the current model, whose objective is the construction of an efficient subject in terms of production, the indication is for a teaching of Philosophy by means of philosophical problems. This model, according to the philosopher Sílvio Gallo's conception, is one of the most adequate ways to provide students with the experience of critical thinking, thus escaping from a mechanistic teaching, which reproduces a system of control and normalization. Finally, we present the ethics of the Care of the Self, or the aesthetics of existence, based on the studies of Michel Foucault. In the light of this conception, we seek to analyze its possible contributions to the teaching of Philosophy, understood as a form of resistance to the practices created by modern States with the objective of domesticating, subjugating and controlling individuals. We understand that the teaching of Philosophy becomes a liberating praxis, one that awakens the subjects’ critical, creative and reflective thinking, so as to become a form of resistance facing the logic of control and alienation of subjectivities.

Keywords: Michel Foucault; Care of the Self; Teaching of Philosophy; Philosophical Problems.

 

Introdução

O objetivo inicial deste trabalho consiste em promover uma reflexão sobre o sistema educativo atual, no qual está inserido o ensino de filosofia, considerando que esse panorama é um reflexo da sociedade moderna, uma sociedade de consumo, capitalista e neoliberal, que traz para esse ambiente uma série de implicações que afetam diretamente a construção da subjetividade dos sujeitos. Nesse contexto, a característica principal desse ser humano contemporâneo é a incapacidade de pensar criticamente, de avaliar o mundo que o rodeia, de fazer escolhas conscientes. A partir dessa reflexão, é apresentada a ética do cuidado de si de Michel Foucault, como uma proposta para avaliar as suas possibilidades e contribuições no ensino de filosofia através de problemas filosóficos.

Esse estudo será norteado pela pesquisa bibliográfica, a partir de alguns pensadores e teóricos que tratam do assunto em questão e, especialmente, o filósofo Michel Foucault, na sua abordagem da ética do cuidado de si, como um exercício, um olhar crítico, uma autorreflexão que o sujeito deve fazer em relação aos seus comportamentos e a sua maneira de encarar o mundo, considerando que o cuidado de si tem por objetivo uma reelaboração das próprias atitudes, uma transformação de si mesmo, de modo a promover um novo olhar para as questões existenciais. Nesse sentido, o presente trabalho busca investigar o surgimento dessa nova atitude em relação a si mesmo, e de que forma isso pode ser despertado nos(as) estudantes através dos pressupostos da ética do cuidado de si, aplicada ao ensino de filosofia através de problemas filosóficos.

Na primeira parte do texto, serão abordadas as configurações da sociedade moderna e suas consequências no campo da educação a partir da ótica de alguns pensadores: Zygmunt Bauman, Michel Foucault, Hannah Arendt, entre outros - críticos ferrenhos da sociedade moderna e contemporânea. Ao lado disso, será lançado um olhar sobre o poder das estratégias dos Estados modernos na construção da subjetividade das pessoas, domesticando-as a tal ponto que a cegueira se instala e tira a sua singularidade e individualidade.

Na segunda parte do artigo, serão explorados os aspectos positivos da opção do ensino de filosofia através de problemas filosóficos, como uma forma de capacitar os(as) estudantes a compreenderem a filosofia como experiência do pensamento. E, assim, possibilitar que eles possam desenvolver o próprio pensamento acerca das questões do mundo e de si mesmos a partir de pensamentos e ideias que os filósofos desenvolveram ao longo da história.

Na terceira parte do texto, será revisitado o conceito do cuidado de si a partir da obra A Hermenêutica do Sujeito, de Michel Foucault, e a sua trajetória até a Modernidade. Por fim, será feita uma reflexão sobre possibilidades e contribuições dessa estética da existência no ensino de filosofia através de problemas filosóficos.

 

A sociedade moderna e suas características como reprodutora do sistema educativo

A sociedade contemporânea configura-se como uma sociedade de consumo      dentro de uma modernidade líquida (BAUMAN, 2008), na qual tudo é muito fluído e descartável. Esse formato surgiu em decorrência dos novos meios de produção de capital e isso deu lugar a novos comportamentos, dentre eles o consumismo. De acordo com Bauman (2011, p. 162), “nessa sociedade de consumidores, a busca da felicidade tende a ser redirecionada do fazer coisas ou adquirir coisas para descartar coisas”. Isto é, as relações humanas caracterizam-se por uma lógica onde impera o custo-benefício e as ações de descarte são a principal característica.

Dessa forma, esses consumidores podem ser caracterizados como indivíduos que abdicaram, de certa forma, da sua capacidade crítica, delegando a terceiros as escolhas que deveriam ser pessoais. Na construção dessa subjetividade, há influência da mídia, da economia global, de modismos, e de influenciadores: religiosos, artistas, políticos; figuras públicas que povoam o imaginário das pessoas, os quais são utilizados como modelos para conduzir os sujeitos nessa construção da subjetividade, nessa homogeneização do ser. Há aqui a clara intenção de produzir um jogo neurótico de espelhos, de modo que cada um replica o comportamento do outro.

Essas estratégias arquitetadas pelos Estados modernos visam à configuração dos indivíduos de tal forma que adquiram características que se ajustem às necessidades do mercado de trabalho. Há um condicionamento, uma adequação, uma espécie de docilização dos corpos, como diz Foucault na sua obra Vigiar e Punir (1987); há uma perda da pluralidade, como característica do mundo humano. Dessa forma, os corpos são condicionados de tal forma que sejam incapazes de reagir ao sistema e, muito menos, pensar criticamente sobre ele. O sujeito esquece de si e do próprio esquecimento. É uma prática que faz dele um objeto através de mecanismos disciplinares. De acordo com Foucault (1987, p. 29):

 

[...] o corpo também está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder têm alcance imediato sobre ele; elas o investem, o marcam, o dirigem, o supliciam, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimônias, exigem-lhe sinais. Este investimento político do corpo está ligado, segundo relações complexas e recíprocas, à sua utilização econômica; é, numa boa proporção, como força de produção que o corpo é investido por relações de poder e de dominação; mas em compensação sua constituição como força de trabalho só é possível se ele está preso num sistema de sujeição (onde a necessidade é também um instrumento político cuidadosamente organizado, calculado e utilizado); o corpo só se torna força útil se é ao mesmo tempo corpo produtivo e corpo submisso.

 

Seguindo esse enredo, a educação moderna é fruto de uma práxis pedagógica que acompanha um modelo de governamentablidade neoliberal. Estando atrelada à lógica econômica, a práxis educacional funciona em consonância com a governamentabilidade e, ao mesmo tempo em que reproduz esse discurso, também é sustentada por ele. É nesse contexto e seguindo essa metodologia que está inserido o ensino de filosofia e as demais disciplinas do currículo escolar; todas submetidas e, por que não dizer, subjugadas a esse mecanismo pedagógico de controle. Esse formato contém subliminarmente parâmetros ideológicos que determinam o quê, como e quem deve ter acesso ao conhecimento e para que fins ele se destina. Estando aqui incluído o caráter utilitário da educação, pelo qual algumas disciplinas são mais relevantes que outras, obedecendo às regras e exigências do mercado de trabalho. Isso pode ser comprovado pela não obrigatoriedade do ensino de filosofia nas séries iniciais do Ensino Básico, pela redução de períodos semanais no Ensino Médio e pela diluição nas demais séries como Ciências Humanas, de acordo com a BNCC e os PCNs/2021.

Devemos considerar também que existe na escola um caráter disciplinador que rotula, enquadra e classifica os sujeitos desde a mais tenra idade. O filósofo Immanuel Kant (1999, p. 13) percebeu essa característica da escola moderna como forma de controle, ao dizer: […] “as crianças são mandadas cedo à escola, não para que aí aprendam alguma coisa, mas para que aí se acostumem a ficar sentadas tranqüilamente e a obedecer pontualmente àquilo que lhes é mandado [...]”.

Nessa perspectiva, a partir de Foucault (1987), pode-se entender por poder uma ação sobre ações, e todas as relações de poder institucionais, como escolas, prisões, manicômios são caracterizadas pela disciplina. Pois, a disciplina torna-se um mecanismo pelo qual atuam opressor e oprimido; uma força que comanda e outra que é comandada, sendo também um dispositivo através do qual podem ser observadas e reguladas essas estratégias de poder e dominação.

Portanto, a partir desse cenário, a questão central é como abordar o ensino de filosofia no contexto escolar sem que ele esteja atrelado a essa lógica de dominação. Perante esse contexto, torna-se fundamental adotar estratégias para que o exercício da práxis pedagógica se constitua em uma forma de possibilitar a reflexão e o pensar crítico do(a) estudante. Dessa maneira, capacitando-os a atuar politicamente como uma forma de exercício pleno da sua cidadania. E que essa produção de pensamento não seja apenas reflexo da ótica de um terceiro e que não se continue a dar respostas mecanicistas, baseadas nesse aparato de controle.

Mais importante e relevante é que essa homogeneização, disciplinarização dos comportamentos dos sujeitos não seja mais uma prévia do conceito de banalidade do mal, utilizado por Hannah Arendt (1999) na sua obra Eichmann[1] em Jerusalém. Esse termo é utilizado pela autora na obra para retratar o funcionário nazista: o tenente Eichmann era um homem comum, um servidor público eficiente em obedecer normas, mas desprovido de pensamento crítico, incapaz de avaliar e pensar sobre os próprios atos, tendo sido capaz de organizar todo o processo de deportação dos judeus para as zonas de comando nazista (guetos, campos de concentração e campos de extermínio). Para Arendt, de acordo com Colem (2018, p. 32), “a ação é condição humana quando é pensada, carregada de discurso.” Isto é, o simples fato de o indivíduo agir representa apenas que ele detém um conhecimento técnico de fazer algo. “Com a era moderna, vê-se a extinção do indivíduo de ação e a predominância do indivíduo de massa, incapaz de pensar e agir”.

Seguindo o pensamento de Arendt, o comportamento de Eichmann se mostra um exemplo, mesmo que extremo, de como o sistema educacional pode contribuir e reproduzir indivíduos dóceis e laborais, “um burocrata, um reprodutor de frases feitas, uma mera peça do sistema, fruto de uma sociedade de massa; apenas um animal laborans – aquele que não pensa, apenas trabalha e consome” (COLEM, 2018, p.32).

A respeito de Eichmann, Bauman (1998, p. 195) tece um comentário estabelecendo uma relação com o comportamento da grande maioria dos homens que, em certa medida, cotidianamente, se comportam como tal, havendo uma grande propensão a aceitar leis, ideias, ordens, sem ao menos questioná-las. Segundo ele, tal fato “levou alguns observadores a supor que na maioria das pessoas, se não em todas, vive um pequeno SS esperando para vir à tona [...]” uma espécie de “‘Eichmann latente’ escondido no homem comum”.

Essa construção de identidades que são forjadas nos espaços sociais trazem para escola e para o(a) educador(a) um imperioso chamado para a reflexão: até que ponto estamos conscientes disso? Em que medida isso afeta a nossa prática pedagógica? Essas são questões que devem ser avaliadas e precisam de uma resposta de cada educador(a), pois é a partir dessa postura que se darão os desmembramentos da ação pedagógica em sala de aula.

Nesse sentido, é necessário que a atividade docente, em relação ao ensino de filosofia, esteja comprometida em se tornar um caminho para ampliar e estimular a reflexão nos estudantes, possibilitando que eles consigam ressignificar e enriquecer a própria experiência no mundo, mesmo sabendo que ela não tem a prioridade merecida nos currículos escolares. Por isso a importância de uma postura responsável de tal forma que, em sala de aula, seja capaz de produzir tais reações, a despeito de todas as adversidades. Uma postura de resistência contra um mundo cada vez mais desertificado da capacidade de pensar.

 

O ensino de filosofia como problema filosófico

Existem muitas ideias do que seja o ensino de filosofia e de que forma ele pode ser levado à sala de aula, bem como se realmente é possível ensinar alguém a filosofar. Para discorrer a respeito disso, primeiro é preciso que se volte a atenção para os principais atores do sistema educacional: o(a) educador(a) e os(as) estudantes. A posição do(a) educador(a), como ele concebe o ensino de filosofia e como é norteada a sua prática pedagógica, é essencial para definir o resultado do seu trabalho em sala de aula. Caso inexista essa reflexão, a sua práxis não passará de um mecanismo reprodutor de alguma instância de poder, da ótica não refletida de um terceiro.

Portanto, é necessário que o(a) educador(a) estabeleça uma imbricação direta entre filosofia, como reflexão, e a sua práxis (entendida como ação consciente), pois a associação desses fatores se torna uma grande força motriz como alternativa a uma ensino inócuo, mero mecanismo que tenta adaptar os indivíduos aos ditames nocivos da sociedade. Partindo do pressuposto que a escolha da práxis esteja voltada ao objetivo de proporcionar esclarecimento, emancipação e autonomia, pode-se considerar, a partir de Gallo (2010, p. 164), que existem três eixos (histórico, temático, problemático) para orientar a construção de um currículo para o ensino de filosofia. Desse modo, ele aponta os prós e contras na escolha do eixo histórico, temático e/ ou problemático.

No eixo histórico, a organização dos conteúdos é feita a partir de uma ordem cronológica. Existe uma prioridade quanto ao conteúdo, em detrimento do exercício do pensar enquanto atividade. O ponto crítico na escolha desse eixo é que existe uma grande probabilidade de se “cair num ensino enciclopédico, apresentando um desfile de nomes de filósofos, pensamentos e datas. E, no contexto de um currículo já muito conteudista, a filosofia é vista como apenas um conteúdo a mais” (GALLO, 2010, p. 164).

Pode-se acrescentar também que, ao aplicar essa e somente essa metodologia, se estará limitando a filosofia a uma coleção de dados, datas, autores, obras e fatos de forma isolada e sem ligação com a realidade vivenciada pelos estudantes. Ou, pelo menos, sem estabelecer um paralelo ou explorar as teses filosóficas de modo reflexivo e contextualizado.

Já no eixo temático, são escolhidos temas de natureza filosófica, tais como a liberdade, a morte, ética, moral, razão, etc., e apresentados de tal forma que o(a) estudante possa identificar a sua proximidade com a própria realidade. Tais temas também podem ser tratados a partir da abordagem histórica ou não. Para Gallo (2010, p. 164), essa abordagem é mais apropriada que a anterior, pois “os conteúdos são apresentados de forma temática, numa tentativa de torná-los mais próximos da realidade vivida pelos jovens” (GUIDO; GALLO, KOHAN, 2013, p. 109).

O eixo temático também é alvo de críticas, pois ele pode reduzir-se a uma mera transmissão de conteúdos filosóficos. Isso porque a organização do conteúdo por temas não é garantia de um ensino ativo de filosofia, no qual o(a) estudante tenha a possibilidade de por si mesmo fazer a experiência filosófica, “pensar filosoficamente, em lugar de apenas assimilar o que foi pensado por outros” (GUIDO, GALLO, KOHAN, 2013, p. 120).

E, por fim, no eixo problemático, de acordo com Gallo (2010, p. 165):

 

Os conteúdos são organizados em torno dos problemas tratados pela filosofia, que por sua vez se recortam em temas e podem ser abordados historicamente. [...] essa abordagem abarca as duas anteriores, na medida em que permite tanto o acesso aos temas filosóficos mais relevantes quanto à história da filosofia. Mas também avança para além delas, pois toma a filosofia como uma ação, uma atividade, posto que se organiza em torno daquilo que motiva e impulsiona o filosofar, isso é, o problema.

 

Gallo (2010, p. 165) acrescenta que a escolha mais satisfatória como forma de organização curricular dos conteúdos de filosofia recairia no eixo problemático, pois esse formato se alinha ao objetivo de “oportunizar a experiência do pensamento conceitual, uma vez que os conceitos são produzidos a partir de problemas”.

O pensamento conceitual, para Gallo (2006, p. 23), seria uma das principais características da filosofia, apresentando-se como “uma experiência de pensamento que procede por conceitos, que cria conceitos, à diferença da ciência e da arte”. E, mais ainda, ele a define como “a atividade de criação de conceitos”, na ótica de Deleuze e Guattari (2014), para os quais a filosofia não se restringe ao papel de uma reflexão da realidade. Salientando que conceito aqui não deve ser entendido na sua forma usual, tal como conceito científico, não como uma definição, mas “uma forma racional de equacionar um problema ou problemas, exprimindo uma visão coerente do vivido; isto é, o conceito é uma forma de lançar inteligibilidade sobre o mundo” (GALLO, 2006, p. 24).

Dessa forma, todo conceito refere-se e tem sua origem a partir de um problema. E o trabalho do filósofo vai ser orientado por um plano de imanência. E o que seria esse plano de imanência? Para entendê-lo, de acordo com Gelamo (2008, p. 131), pode-se traçar um paralelo com o ato de pesquisar. Tal ato consistiria em efetuar recortes na realidade e problematizá-la, com o objetivo de compreender que problemas podem ser extraídos de tal realidade, a fim de se ter um tema a ser pensado. Justificando-se assim a necessidade de efetuar tais recortes e idealizar planos que deem condições aos objetivos almejados.

Dessa forma, o plano de imanência seria um território habitado pelo caos, como um lugar de inúmeras possibilidades, em constante movimento. Ao traçar um plano de imanência é feito um recorte nesse caos, desacelerando esse movimento e estabelecendo um ponto onde o conceito pode ser pensado. Ou seja, é a partir desse plano que o filósofo vai experienciando o problema, recolhendo elementos, ideias e conceitos já existentes e, desse modo, vai estabelecendo conexões que possibilitem fazer frente a esse problema. O conceito não é uma resposta ao problema, mas uma maneira a partir do qual podemos construir respostas para o problema.

Nesse sentido, Gallo (2006, p. 25) propõe um ensino de filosofia a partir de oficinas de conceitos, enfatizando o seu caráter prático “para além de uma mera transmissão de conteúdos da história da filosofia ou de um mero treinamento de competências e habilidades supostamente identificadas com o pensamento filosófico”. Nessa metodologia,

 

[...] a aula de filosofia assim concebida importa mais o processo criativo, a experimentação, fazer o movimento de pensamento, do que o ponto de chegada, a solução do problema, a veracidade do conceito criado. Importa que cada estudante possa passar pela experiência de pensar filosoficamente, de lidar com conceitos criados na história, apropriar-se deles, compreendê-los, recriá-los e, quem sabe, chegar mesmo a criar conceitos próprios. (GALLO, 2006, p. 26)

 

Dessa forma, incluir a problematização nas aulas de filosofia apoia-se no objetivo prioritário de desenvolver nos estudantes a capacidade de problematizar, como uma forma de fazer filosofia, e conduzir esse processo de forma mais dinâmica, colocando-os em uma posição que exija mais criticidade e capacidade de identificar, formular problemas e, além disso, levá-los a buscar e propor soluções para as problemáticas apresentadas.

Deve-se considerar também que essa metodologia precisa contar com uma relação dialógica entre educador e estudante, pois de acordo com Freire & Faudez (1985, p. 24), tanto o professor como o aluno esqueceram-se das perguntas. Sendo que, para eles, todo conhecimento começa pela pergunta. Nesse esquecimento estaria contida a “castração da curiosidade”. O que ocorre “é um movimento unilinear, vai de cá para lá e acabou, não há volta, e nem sequer há uma demanda: o educador, de modo geral, já traz a resposta sem se lhe terem perguntado nada”

Nessa proposta, Freire aposta na educação problematizadora em oposição à educação bancária, como uma forma de quebrar os esquemas verticais e nocivos na relação entre educador e educando. Essa concepção de ensino, pautada no diálogo, como uma prática de libertação é caracterizada por um movimento de troca entre educador e educando, de modo que o primeiro, ao ensinar, também esteja aprendendo. Esse movimento corta o caráter de autoritarismo presente na educação bancária, que reprime e inibe a capacidade de perguntar dos estudantes. Uma vez que “a natureza desafiadora da pergunta tende a ser considerada, na atmosfera autoritária, como provocação à autoridade” (FREIRE; FAUDEZ, 1985, p. 24).

Por isso, a força propulsora das transformações ocorre entre o educador e educando a partir do diálogo, através do qual ambos se tornam sujeitos de um processo onde não prevalece a autoridade, porque ambos reconhecem que não têm o domínio completo dos acontecimentos do mundo.

 

A ética do cuidado de si: conceitualização, trajetória e possíveis contribuições no ensino de filosofia através de problemas filosóficos

A ética do cuidado de si faz parte dos últimos trabalhos de Michel Foucault, onde ele reflete e retrata de que modo o sujeito se constitui a partir da relação consigo mesmo. Trata-se de uma investigação da subjetividade, ao mesmo tempo em que ele questiona através de quais tipos de sujeição o indivíduo se reconhece e se afirma. Foucault tem interesse nas práticas de si, porque nelas estão os jogos de verdade, através dos quais o indivíduo busca transformar-se para desvelar a verdade sobre si mesmo.

Nesse movimento, Foucault faz uma busca entre os pensadores antigos, nas culturas grega e romana, pois nessas sociedades o tema do cuidado de si era muito importante para várias escolas filosóficas. Ele ressalta que o provérbio grego “conhece-te a ti mesmo” (gnôthiseautón[2]), foi um marco para estabelecer as relações entre sujeito e verdade. Nessa busca estavam incluídas as tecnologias de si, muito embora o que essa máxima continha “não era o conhecimento de si, nem como fundamento da moral, nem como princípio de uma relação com os deuses”, mas apenas um princípio do conhecimento de si (FOUCAULT, 2006, p. 5-6); a base a partir do qual se justificaria o “conhece-te a ti mesmo”.

Na obra A Hermenêutica do Sujeito (2006, p. 4), o pensador menciona que o cuidado de si perdurou longamente em toda a cultura grega. De acordo com Foucault (2006, p. 12):

 

[...] a epiméleiaheautoû (o cuidado de si e a regra que lhe era associada) não cessou de constituir um princípio fundamental para caracterizar a atitude filosófica ao longo de quase toda a cultura grega, helenística e romana. Noção importante, sem dúvida, em Platão. Importante nos epicuristas, uma vez que em Epicuro encontramos a fórmula que será tão frequentemente repetida: todo homem, noite e dia, e ao longo de toda sua vida, deve ocupar-se com a própria alma [...]. Entre os cínicos a importância do cuidado de si é capital.

 

Isso equivale a dizer que, para os filósofos antigos, essas práticas, denominadas de artes da existência, tinham por objetivo despertar no ser humano uma reflexão sobre a forma como ele conduzia a sua existência e, através dessa conscientização, transformar e modificar a sua conduta de modo a tornar a sua vida mais feliz, bem como capacitá-lo ao domínio dos seus instintos. Havendo aqui uma estreita relação com a liberdade, pois ser livre é não ser escravo dos seus instintos, é ser dono de si mesmo (autodomínio). Paralelamente a isso, o indivíduo ao cuidar de si, também estaria cuidando do outro.

Foucault (2006, p. 59) enumera algumas práticas do cuidado de si, definindo-as como muito antigas, anteriores a Platão e a Sócrates, manifestadas na Grécia arcaica e, de resto, em uma série de civilizações, as quais tinham por objetivo a transformação do sujeito por meio do acesso à verdade. Dentre elas, estava a prática da purificação, constituindo-se em um ritual necessário e prévio ao contato, não só com os deuses, mas com aquilo que se poderia reconhecer como verdadeiro. Isto é, “sem purificação não há relação com a verdade detida pelos deuses” (FOUCAULT, 2006, p. 59).

Já as técnicas de retiro consistiam em uma forma de o indivíduo desligar-se do mundo, ausentar-se mentalmente, sem sair do lugar, não deixando se envolver pelas sensações. Nesse sentido, “trata-se de uma técnica [...], de uma ausência visível. Permanece-se ali, é-se visível aos olhos dos outros. Mas se está ausente, alheado” (FOUCAULT, 2006, p. 60).

Na prática de resistência o objetivo era capacitar o sujeito para “suportar as provações dolorosas e difíceis, ou ainda, resistir às tentações”. Ela estava vinculada à concentração da alma e ao retiro em si mesmo. (FOUCAULT, 2006, p. 60). Ademais, existia também a prática purificadora para o sonho, pois para os pitagóricos sonhar era entrar em contato com o mundo divino, da imortalidade - que seria também o mundo da verdade. Portanto, antes de dormir o indivíduo deveria realizar algumas práticas (rituais) com o objetivo de purificar a alma, tais como escutar música, aspirar perfumes e praticar o exame de consciência. Isso tudo com a finalidade de, ao entrar em contato com o mundo divino, “compreender suas significações, mensagens e verdades, reveladas sob uma forma mais ou menos ambígua” (FOUCAULT, 2006, p. 61). 

Foucault (2006, p. 66-68) segue com a descrição de mais algumas práticas, umas mencionadas por Platão e outras utilizadas pelos estoicos, pitagóricos, epicuristas, no estoicismo romano, dentre outros. Todas caracterizadas por um movimento ritualizado do sujeito, uma ocupação consigo mesmo, em direção a uma transcendência de si, a uma superação, a uma transformação de si.

É importante ressaltar que o ponto de partida para o estudo de Foucault sobre o cuidado de si é a obra Alcebíades, de Platão. Para iniciar o entendimento desse conceito, no período socrático-platônico, deve-se invocar a figura de Sócrates no contexto ateniense, onde os jovens aristocratas eram destinados a exercer certo poder político sobre a cidade e os seus concidadãos. Nesse cenário, Sócrates problematiza essa ambição dos jovens pelo poder e a sua capacidade. E, em seu diálogo com Alcebíades, o induz a refletir se apenas o seu “status” como cidadão pertencente à aristocracia lhe confere a capacidade para governar. Orienta-o, então, constatada a sua ignorância, a cuidar de si mesmo para obter a sabedoria necessária. Ressalte-se aqui que a necessidade desse cuidado de si está vinculada ao poder, com o desejo de exercer o poder político sobre os outros. Sendo que não se pode governar bem os outros, “não se pode transformar os próprios privilégios em ação política sobre os outros, em ação racional, se não se está ocupado consigo mesmo” (FOUCAULT, 2006, p. 48).

Nesse sentido, surge outra questão: Alcebíades sabe que quer governar a cidade, mas não sabe como isso será feito, “não sabe qual é o objeto do bom governo”, então, ele se pergunta: “qual é pois o eu de que é preciso cuidar quando se diz que é preciso cuidar de si?” (FOUCAULT, 2006, p. 49-50). A resposta: “é a alma, como sujeito da ação, se utilizando da linguagem e dos instrumentos do corpo e do raciocínio”. (FOUCAULT, 2006, p. 67-70). Desse modo, o corpo é considerado um instrumento da alma, cuja função é servir aos propósitos desta.

A partir dessa concepção, em Alcebíades, essas práticas perduram ao longo do tempo, apenas modificaram a sua forma, finalidade e a sua razão de ser. Se, para Alcebíades, a prática do cuidado de si era destinada ao exercício do poder, nos séculos I e II, ela foi destinada a todos que quisessem empreender a compreensão de si, e não apenas aos que estavam destinados a governar. Da mesma forma, Foucault também constatou que esse cuidado de si foi ignorado e esquecido ao longo da história. Segundo o pensador, as artes da existência perderam importância e autonomia ao serem integradas, com o advento do cristianismo, ao “exercício de um poder pastoral e, mais tarde, em práticas do tipo educativo, médico ou psicológico” (FOUCAULT, 1984, p. 14). No cristianismo há uma rejeição da noção do retorno a si, já que o “ascetismo cristão afinal tem como princípio fundamental que a renúncia a si constitui o momento essencial que nos permitirá aceder à outra vida, à luz, à verdade e à salvação. Só pode salvar-se quem renunciar a si” (FOUCAULT, 2006, p. 304).

Tendo percorrido e estando presente em toda a filosofia antiga, a noção do cuidado de si apresenta uma transformação com base nos princípios morais influenciados pelo cristianismo - que a considerava imoral, uma vez que a religião em pauta deveria garantir que o indivíduo renunciasse a si em favor da salvação. Dessa maneira, as artes da existência perderam importância e autonomia em função de um poder pastoral e, mais tarde, de práticas educativas, médicas e psicológicas. Com isso, foi concedido, a um terceiro, a função de ordenar essa subjetividade.

O tema do cuidado de si retorna a partir do século XVI, na cultura moderna, tendo sido reconstituído “por fragmentos, por migalhas - em sucessivas tentativas que jamais se organizaram de modo tão global e contínuo quanto na Antiguidade helenística e romana” (FOUCAULT, 2006, p. 305). Em um sentido geral, deve-se ressaltar que a obra de Foucault revisita as tradições antigas do cuidado de si, ao mesmo tempo em que faz uma reflexão e aponta para algumas características que se mostraram essenciais no seu trabalho, a saber: a) as práticas do cuidado de si são para a vida toda; se constituem em uma forma de vida. “É preciso ser para si mesmo, e ao longo de toda a sua existência, seu próprio objeto” (FOUCAULT, 2006, p. 601); b) “a prática de si é concebida como um combate permanente. Não se trata simplesmente de formar, para o porvir, um homem de valor. É preciso fornecer ao indivíduo as armas e a coragem que lhe permitirão lutar durante toda sua vida” (FOUCAULT, 2006, p. 602).

É esse aspecto do olhar do sujeito sobre si, com a finalidade de uma autoavaliação, uma reelaboração dos seus comportamentos e da sua relação com o mundo e com o outro, que torna importante essa retomada do assunto sob a ótica de Foucault. Importante salientar também que nessa caminhada, nessas práticas do cuidado de si, a verdade sempre estava em jogo. Isso equivale dizer que a verdade não estava acessível ao sujeito pelo simples ato do conhecimento, mas que esse sujeito deveria se modificar, se transformar a fim de estar apto a ter acesso a essa verdade.

 

Panorama do cuidado de si no mundo moderno

O que realmente importa na transposição da ética do cuidado de si para o ensino de filosofia é o seu caráter regenerador ou a reconstrução de uma subjetividade dos sujeitos, que foi obscurecida pela interferência de correntes ideológicas, culturais e de outros agentes. Em especial, o legado deixado pela religião, quando esta determinou como fato imperioso, na vida dos sujeitos, a salvação da alma e a negação do corpo. Dessa forma, o indivíduo através dessa lógica deveria concentrar-se unicamente na sua salvação. Por isso, a partir

 

[...] do século XVII em diante a disciplina e a normatização dos corpos e indivíduos tornou-se um fato social e político fundamental típico da modernidade, necessário fazer notar que todo esse processo foi antecipado pelo poder pastoral, já nos séculos XV e XVI, numa prática confessional impingida aos fiéis pela Igreja Católica. Mais do que isso, era importante salientar que tal prática era oriunda, talvez, daquele importante período vigente entre os séculos II e IV em que o cuidado vinculava-se à verdade: o conhecimento acerca do que os indivíduos pensam e o controle sobre suas atividades apareciam como duas faces de uma mesma moeda (MIZOGUCHI, 2016, p. 76-77).

 

Outro fator que contribuiu para um esquecimento e também uma desvalorização de tais práticas, de acordo com Mizoguchi (2016, p. 74), foi que o sujeito de ação reta, presente na Antiguidade, foi substituído, no Ocidente moderno, pelo sujeito do conhecimento verdadeiro. Esse momento foi chamado, por Foucault, de momento cartesiano, numa alusão a René Descartes e à atmosfera que pairava, nos séculos XVI e XVII, juntamente com outras mudanças marcantes para a história da humanidade, pelas quais “anunciava-se a plena desvinculação entre o conhecimento e o cuidado - notadamente em nome da qualificação do conhece-te a ti mesmo e desqualificação do cuida-te a ti a mesmo” (MIZOGUCHI, 2016, p. 74-75). Ou seja, o princípio filosófico do cuidado de si foi apagado na modernidade para dar lugar a um modelo de conhecimento puro de acesso à verdade, através da supervalorização da consciência, concedendo a ela as características de tudo poder saber e conhecer, inclusive o conhecimento de si mesmo.

Nesse sentido, o que ocorreu na modernidade, e o que nos interessa aqui, é o fato de que houve uma valorização do conhecer a si mesmo sobre o cuidado de si, estando o indivíduo sujeito a novas formas e modelos de jogos de verdade, impostos pelos dispositivos de poder estabelecido. As várias instâncias do saber organizado (medicina, psiquiatria, economia, religião, etc.) atuam sobre os indivíduos, através dos seus discursos de poder, com a finalidade de disciplinar, normatizar e controlar. Todas essas formas devidamente institucionalizadas e avalizadas pelos dispositivos legais.

Nesse novo modelo de adequação dos sujeitos ao mundo moderno, há um aspecto da terceirização das consciências, que Foucault chama de “confissão”, de modo que essas estratégias de poder têm por objetivo, mediante um saber institucionalizado (como no caso dos religiosos, dos médicos, dos professores), fazer com que os indivíduos se desnudem perante essas autoridades. Permanentemente, ele tem que dizer quem é e mostrar, através dos parâmetros desses discursos, se ele é alguém apto ou inapto ao sistema: aqui ocorrem as estratégias de classificação, rotulação, exclusão e inclusão. Há um padrão ao qual todos devem se adequar, tanto na maneira de ser como de agir, tanto no público como no privado.

O ser humano do contexto atual encontra-se subjugado e cerceado por essas práticas de produção de verdade, manipuladas por essas tecnologias de poder, perdendo-se nesse emaranhado de narrativas e discursos que buscam seduzi-lo na construção da sua subjetividade, tornando-o dócil e manipulável, através de dispositivos de disciplina e controle. Pode-se entender que a ética do cuidado de si, na ótica de Foucault, pode ser vista como um caminho para orientar ações de resistência, pois existe um espaço entre o sujeito e o mundo; e é nesse lugar que a consciência pode atuar, através das práticas do cuidado de si, especialmente nas práticas educativas, na prática docente, como um canal orientador dessas práticas de resistência.

 

Contribuições da ética do cuidado de si no ensino de filosofia através de problemas filosóficos

O conceito do cuidado de si é analisado aqui como um elemento norteador para a reflexão e para a práxis educacional do ensino de filosofia. Constituindo-se em um mecanismo para conceber e criar formas de resistência crítica frente aos desafios da sociedade contemporânea, nos seus aspectos éticos e políticos, refletidos no campo educacional.

Essa noção do cuidado de si também é pensada, no contexto educacional, a partir da problematização em torno da ética da construção da subjetividade dos indivíduos, onde prevalecem as relações de poder existentes na escola. Ou seja, as instituições escolares funcionam como um meio de produzir sujeitos. E, nesse sentido, o trabalho de Foucault, como um pensador da ética e dos processos de subjetivação, fornece subsídios para análise de como são construídos tais processos nos jogos de saber-poder e quais as suas consequências na produção desses sujeitos.

A partir da análise dessa estética da existência, com base nas ideias de Foucault, a crença oriunda do Iluminismo sobre o poder da racionalidade, do progresso e do sujeito autônomo, passou a ser contestada e direcionada para o campo educacional, abrindo-se em algumas vertentes e ressignificando os sujeitos da práxis educativa.

Nesse contexto, deve-se considerar também que a interrupção das práticas do cuidado de si, em função do momento cartesiano, acarretou como consequência um empobrecimento da atitude filosófica. Isso porque a filosofia passa a ser considerada como uma prática dissociada da noção de autotransformação. Desse modo, o acesso à verdade se restringiu ao domínio dos objetos e a crença em um sujeito cognoscente, não estando mais atrelado o cuidado de si como forma do sujeito acessar a verdade. Esse desfecho repercutiu em todo cenário da modernidade, especialmente no contexto educacional.

Considerando o propósito deste trabalho, será analisado o enfoque de Sílvio Gallo, que direciona as suas reflexões éticas e políticas em torno do cuidado de si, formulando o conceito de educação menor em relação à educação maior. Para ele, “uma educação menor é um ato de revolta e de resistência. Revolta contra os fluxos instituídos, resistência às políticas impostas”. Dessa forma, para o(a) educador(a) a sala de aula se transforma em um local onde é possível traçar as próprias estratégias e estabelecer a própria militância, criando um “presente e um futuro aquém ou para além de qualquer política educacional” (GALLO, 2002, p. 173).

Já a educação maior “é aquela dos planos decenais e das políticas públicas de educação, dos parâmetros e das diretrizes, aquela da constituição e LDB, pensada e produzida pelas cabeças pensantes a serviço do poder” (GALLO, 2002, p. 173). Pode-se dizer, então, na ótica de Gallo (2002, p. 173) que “a educação maior é produzida na macropolítica, nos gabinetes, expressa nos documentos”, e a educação menor é construída na sala de aula e se manifesta nas ações do cotidiano de cada um, portanto se enquadra no âmbito da micropolítica.

Nesse sentido, as relações que são estabelecidas em sala de aula, para Gallo, devem ser pensadas a partir da consciência do educador de que todos estão sujeitos aos jogos de verdade, impostos pela cultura, e a sua função não estaria predeterminada por um papel social mas, ao contrário, essa condição deveria estar sustentada pelo próprio trabalho do cuidado de si. Sem o qual não seria possível o cuidado do outro (o aluno). Essa relação de reciprocidade seria o ponto central da educação menor, compreendida como:

 

[...] uma ação ética baseada num cuidado de si e num cuidado do outro, em que o jogo da construção da liberdade só pode ser jogado como um jogo coletivo, de mútuas interações e relações, em que as ações de uns implicam em ações de outros. Um jogo em que uns se fazem livres aprendendo da liberdade dos outros; em que uns se fazem livres na medida em que ensinam a liberdade aos outros (GALLO, 2006, p.188).

 

 Dessa maneira, na medida em que esse cuidado de si se torna uma prática na vida do educador, como princípio ético-político, ele projeta-a para a sua práxis pedagógica, transformando-a em elemento norteador para o cuidado com o outro. E, nesse sentido, a escolha, os objetivos, o planejamento e as construções que são feitas acerca dos usos dos conteúdos, das práticas e dos direcionamentos que são dados à disciplina de filosofia, vêm amparados por essa pedagogia ética - que é pensada a partir do caráter dialógico.

Nesse contexto, a educação, de acordo com Freire (1987, p. 58), não se dá de um sobre o outro, mas de um com o outro, educador e educando “mediatizados pelo mundo”, de modo que, juntos, problematizam as questões da realidade. E, nessa problematização, na ótica de Gallo, buscam através de um plano de imanência criar e utilizar conceitos, como um elemento mediador acerca dessa realidade. Esse movimento possibilita não só a criação, mas a ampliação e a transformação desses conceitos, à medida que através desse processo de captação e entendimento da realidade o educando vai ampliando a sua capacidade de ver, compreender e interagir com o mundo e as suas demandas.

Essa estética da existência, o cuidado de si, aplicado ao ensino de filosofia, adquire uma função essencial, na medida em que pode oferecer ao educador e ao educando uma visão mais ampla do mundo, da vida, enxergando a si mesmo      como alguém no mundo e não como centro do mundo. E, quanto ao papel do educador, pode-se associar ao que diz Foucault (2006, p. 73): “o que define a posição do mestre é que ele cuida do cuidado que aquele que guia pode ter de si mesmo.” Isso significa que não basta apenas ensinar, mas colocar o educando/o discípulo como meta principal, dedicando a ele, como diz Foucault, um amor que inclua a possibilidade de cuidar do cuidado que o discípulo tem de si próprio.

Contudo, para que essa prática tenha sucesso, é preciso que o próprio educador exerça um cuidado para consigo mesmo, de modo que ela se torne uma norma orientadora para o seu trabalho pedagógico, para que dele resulte o modo de como governar os outros (no caso os educandos) e a si mesmo. Essa postura, aliada ao conhecimento de si, pode propiciar aos educandos, no ensino de filosofia através de problemas filosóficos, uma relação com o conhecimento ancorada em uma perspectiva crítica e ao mesmo tempo desconstrutivista de crenças, como produto da manipulação e criação de subjetividades.

A partir dessa reflexão, pode-se concluir que o educador tem papel fundamental no ensino de filosofia, na medida em que compreende a sua práxis pedagógica e a governabilidade de si em sua plenitude, pois isso pode dar um novo significado às relações entre teoria e prática, possibilitando uma interrupção nas ações pedagógicas mecanicistas. De acordo com Dalbosco (2010, p. 99-100), quando a práxis pedagógica se orienta pela mecanização da rotina, ela perde o seu potencial reflexivo que lhe é intrínseco. E, dessa forma, ela se torna refém de todas as imposições externas, seja a burocracia da escola e até mesmo as imposições de uma sociedade consumista. Como forma de evitar esse cenário, o(a) educador(a), orientando-se pela ação reflexiva e a consciência ética da inclusão do outro, práticas características do modelo de governabilidade de si, “pode pensar a organização de sua ação sem ter de restringi-la exclusivamente ao modelo estratégico baseado no cálculo sobre vantagens e desvantagens, custo e benefício de seu agir pedagógico” (DALBOSCO, 2010, p. 99-100).

 

Considerações finais

O que pôde ser analisado neste trabalho foi a contribuição da estética da existência, como uma perspectiva inovadora, contestadora e, por que não dizer, subversiva, porque questiona e põe em xeque os discursos, narrativas e experiências formativas que ocorrem na escola, em decorrência do modo como funciona a sociedade contemporânea. Consiste basicamente em um exercício de reflexão, luta e resistência contra a submissão das subjetividades a que todos estão expostos e suscetíveis. É um movimento contrário aos mecanismos que tentam nos impor identidades com propósitos e fins aliados à lógica neoliberal.

É importante ressaltar que o ensino de filosofia, nesse contexto, no decorrer dos últimos 50 anos, tem passado por um processo de inclusão e exclusão dos currículos escolares ou redução da sua carga horária, o que denota o seu desprestígio. Ou melhor, essa trajetória está implicada diretamente com o contexto político, econômico e sociocultural do país. Nesse sentido, é importante ressaltar que os direcionamentos e ações que são implementadas no sistema educacional são determinadas de acordo com a ordem política vigente e, de acordo com Romanelli (1978, p. 188), [...] “a legislação é sempre o resultado da proposição dos interesses das classes representadas no poder”.

Então, dessa forma, a inserção e a exclusão da filosofia no currículo escolar pode ser verificada de acordo com os momentos da trajetória política no Brasil. Nos dias atuais,  há um retorno às medidas excludentes, que podem ser comprovadas pela diminuição da carga horária da disciplina no Ensino Médio e a não obrigatoriedade no Ensino Fundamental.

 

[…] a presença da filosofia como disciplina acadêmica em uma conjuntura histórica na qual a cultura geral e humanística eram a tônica, que caracteriza o período anterior ao regime militar e que persiste, em grande medida, até 1968; um segundo período em que o regime militar prioriza a formação técnica e que se elimina o lugar que seria destinado à filosofia no Ensino Médio, e que se estende para além da década de 1990; e um terceiro momento, no qual se constrói o retorno do ensino de filosofia e se debate sua contribuição para a formação crítica do jovem no Ensino Médio (CARVALHO; SANTOS, 2010, p. 15).

 

Em função do panorama da sociedade atual, a qual tem como características indivíduos desprovidos de senso crítico e muito receptivos às pressões de demandas de consumo - o cuidado de si como cuidado do outro, no contexto educacional, surge como uma alternativa positiva para interromper o fluxo dessa construção de subjetividades, desse assujeitamento dos indivíduos apenas e exclusivamente a serviço do mercado de trabalho, a serviço do capital. E, onde o Estado se curva às exigências deste, torna-se refém, estendendo essas práticas mercadológicas para o sistema educacional. A escola se torna uma empresa, a educação um produto a ser vendido, e os estudantes: os pretensos consumidores.

Tem-se, aqui, uma tentativa de demarcar um território fragilizado e engessado historicamente por práticas e relações de poder disciplinadoras e, ao mesmo tempo, iluminar as consciências através do cuidado de si. Promover o cuidado de si ou o “ocupar-se consigo não é pois, uma simples preparação momentânea para a vida: é uma forma de vida” (FOUCAULT, 2006, p. 446). Uma práxis pedagógica aliada a essa estética da existência traz para a sala de aula a filosofia como experiência da espiritualidade, como:

 

[...] esta forma de pensamento que se interroga, não certamente sobre o que é verdadeiro e sobre o que é falso, mas sobre o que faz com que haja e possa haver verdadeiro e falso, sobre o que nos torna possível ou não separar o verdadeiro do falso. Chamemos "filosofia" a forma de pensamento que se interroga sobre o que permite ao sujeito ter acesso à verdade, forma de pensamento que tenta determinar as condições e os limites do acesso do sujeito à verdade (FOUCAULT, 2006, p. 19).

 

Dessa forma, o princípio do cuidado de si requer a apropriação do conhecimento de uma forma diferente. Com isso, a prática pedagógica em relação ao ensino de filosofia precisa estar pautada pela identificação, correção e mudança de hábitos enraizados, e não apenas na transmissão de conhecimentos. É a reflexão sobre a ação.

Pode-se dizer que hoje as lutas que são travadas na sociedade se constituem em lutas pela subjetividade. Vive-se uma sociedade disciplinadora que atua através de instituições, empresas, grupos com posições de poder, especialmente econômico, que utilizam a mídia para captação de informações sobre seus usuários e, através destas, criam estratégias para direcionar e criar uma espécie de normatização da subjetividade. Desse modo, criam-se subliminarmente hábitos, comportamentos e práticas de consumo nos indivíduos, destituindo-os e desrespeitando-os na sua capacidade autonomia e reflexão.

Portanto, é necessário que o educador tenha uma atitude crítica, adote uma prática do cuidado de si para consigo, como uma forma de enfrentamento a essas estratégias de dominação que têm a pretensão de determinar e equiparar os indivíduos a um único modelo de identidade: um sujeito docilizado que atenda apenas a uma finalidade mercadológica e, ao mesmo tempo, incapaz de refletir sobre as suas escolhas, de fazer uso de sua razão sem a direção e a tutela de outrem.

Concluindo, é importante ressaltar mais uma faceta do cuidado de si, apontada por Foucault, que pode muito bem contribuir para a prática pedagógica do ensino de filosofia. Segundo ele, nos séculos I e II, a relação consigo mesmo era concebida no sentido de que deveria estar apoiada na relação com um outro (mestre, diretor), “em uma independência cada vez mais marcada no que diz respeito à relação amorosa” (FOUCAULT, 2006, p. 603). Isso porque era consenso que essa ação de ocupar-se consigo não poderia ser realizada sem a ajuda de outro. Nesse mesmo sentido, “Sêneca dizia que ninguém é tão forte para se livrar por si mesmo do estado de stultitia[3] no qual se encontra: É preciso que se lhe estenda a mão e que se o puxe para fora" (FOUCAULT, 2006, p. 603). Essa característica vem reforçar a necessidade de uma relação dialógica entre educador e educando, pela qual ambos aprendem e se constroem como sujeitos através da interação desse cuidado de si aliado à prática pedagógica.

 

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Notas



[1] Otto Adolf Eichmann foi um tenente coronel da SS do partido nazista durante o Terceiro Reich; a sua função consistia em organizar todo o processo de deportação dos judeus para as zonas de comando nazista: guetos, campos de concentração e campos de extermínio. Casado e pai de quatro filhos, Eichmann era um típico homem de família de classe média da tradicional sociedade alemã.

 

[2] [...] O sentido dado e atribuído no culto de Apolo ao preceito délfico "conhece-te a ti mesmo", [...] quando este preceito délfico, o gnôthiseautón, aparece na filosofia, no pensamento filosófico, aparece, como sabemos, em tomo do personagem de Sócrates. [...] no texto de Platão, A apologia de Sócrates”. Sócrates apresenta-se como aquele que, essencialmente, fundamental e originariamente, tem por função, oficio e encargo inciter os outros a se ocupar em consigo mesmos, a terem cuidados consigo e a não descurarem de si (FOUCAULT, 2006, p. 7).

 

[3] A stultitia é o avesso do cuidado de si. Aquele que se tem como stultus é o que não pratica o cuidado de si.

 

 

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