Uma reflexão butleriana acerca do sujeito do ensino de filosofia

 

A butlerian reflection about the subject of philosophy teaching

 

Albérico Araújo Sial Neto

Graduado pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.

neto120997@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-0493-2580

 

Reginaldo Clecio dos Santos

Professor mestre pela Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil.

regiscleciosantos@gmail.com - https://orcid.org/0000-0002-7406-5224

 

Recebido em 29 de junho de 2021

Aprovado em 16 de março de 2022

Publicado em 18 de abril de 2022

 

RESUMO: O presente trabalho tem por objetivo dissertar sobre a noção de “formação para a cidadania”, entendida como uma das finalidades, segundo alguns documentos oficiais, do ensino de Filosofia no Educação Básica, à luz da noção de “enquadramento” elaborada pela filósofa Judith Butler. O enquadramento, a partir da conceituação da filósofa, está estritamente relacionado com a noção de operações de poder. Assim, os esquemas de reconhecimento e inteligibilidade de alguém são entendidos como valorações sociais que permitem a intelecção de alguns sujeitos em detrimento de outros. Com isso, levando em conta a argumentação da filósofa, pretende-se mostrar que o sujeito formado pela filosofia para a cidadania não passa de um sujeito subalterno às valorações sociais. Entretanto, ao que tudo indica, não são todos os sujeitos que estão aptos ao vir a ser cidadão, pois nem todos são reconhecidos como vida. Esse fenômeno da não universalidade do reconhecimento revela os mecanismos nos quais uma vida é produzida.

Palavras-chave: Enquadramento; Formação para a Cidadania; Judith Butler; Operações de Poder.

 

ABSTRACT: The present work aims dissertation on the notion of “education for citizenship,” understood as one of the purposes, according to some official documents, of Philosophy teaching in Basic Education, in light of the notion of “framework” developed by the philosopher Judith Butler. The framework, from the philosopher’s conceptualization, it is closely related to the notion of power operations. Thus, someone's recognition and intelligibility schemes are understood as social valuations that allow the intellection of some subjects to the detriment of others. With this, considering the philosopher's argument, it is intended to show that the subject formed by the philosophy for citizenship is nothing more than a subordinate subject to social valuations. However, not all subjects are able to become citizens, as not all are recognized as life. This phenomenon of the non-universality of recognition reveals the mechanisms by which a life is produced.

Words-key: Framework; education for citizenship, Judith Butler; power operations.

 

Breve introdução ao conceito de enquadramento

A filósofa Judith Butler, é amplamente reconhecida por seus estudos de gênero. A partir desses estudos, foram desenvolvidas a noção de performatividade e paródia, sendo a primeira noção aquela que denota que o gênero é uma construção social envolvendo o fazer, no lugar de ser ou ter. Muito embora suas reflexões sobre gênero sejam demasiadamente relevantes, e ainda estejam em constante elaboração pela filósofa, a partir dos anos 2000, especificamente após os atentados de 11 de setembro, há o direcionamento das investigações para a análise da guerra e das políticas neoliberais. Desse modo, tal movimentação da filósofa explicita a elaboração teórica de uma crítica aos esquemas normativos de reconhecimento de uma vida, que parece circundar o âmbito da ordem simbólica.

De antemão, é importante esclarecer que, quando o termo crítica é mencionado, compreende-se o termo sendo “crítica de alguma prática institucionalizada, um discurso, uma episteme[1], uma instituição” (BUTLER, 2013, p. 159). Com isso, a crítica não é entendida como algo básico ou prática generalizável, mas sim, como sendo capaz de colocar fundamentos em questão, de desnaturalizar hierarquias sociais e políticas, de estabelecer perspectivas a partir das quais se deve olhar o mundo natural (BUTLER, 2013).

Ademais, uma das consequências da crítica é perceber que “a reivindicação ética é inerente à distribuição política da precariedade, e não à condição ontológica da precariedade – uma distinção crucial em Quadros de Guerra” (KRAMER, 2015, p. 32)[2]. Ou seja, a crítica dos enquadramentos mostra “que o problema ético é colocado pelas estruturas que moldam antecipadamente nossa capacidade de responder à reivindicação ética feita a nós pela precariedade ou vulnerabilidade” (KRAMER, 2015, p. 33)[3].

Voltando a discussão acerca da inteligibilidade da vida, Butler elabora o conceito de esquemas de reconhecimento, noção que está intrinsecamente relacionada ao conceito de reconhecimento[4] (Anerkennung) hegeliano. Ademais, esses esquemas são entendidos como valorações sociais que permitem a intelecção de alguns sujeitos em detrimento de outros. Assim, é possível dizer que Judith Butler se pergunta incansavelmente pelas condições do representável, por signos que, linguísticos ou não, acabam por se referir a signos de outras naturezas. Tal busca revela, por conseguinte, a necessidade e o valor ético-político da representação semiótica (SANTO, 2015, p. 29). Vale ressaltar que a matriz de inteligibilidade, ou seja, aquela que permite que alguns humanos sejam codificados como tal, é moldada e se apresenta inelutavelmente diante dos nossos olhos a partir de um dualismo excludente.

É por causa dos enquadramentos que determinados posicionamentos políticos relacionam a vida às proposições individualistas, antropocêntricas e liberais. Esses enquadramentos colocam a dimensão não apenas de uma militância política fechada em um círculo de identidade[5], mas a dimensão ética da existência do “Outro” em sua radical alteridade, sobretudo esse outro precário.

Ademais, Butler atribui primazia ao reconhecimento em detrimento da apreensão. Esse movimento ocorre porque este último conceito, a apreensão, é entendido como um modo de conhecer que não engloba a reciprocidade. Assim, segundo a filósofa, “nem todos os atos de conhecer são atos de reconhecimento, embora não se possa afirmar o contrário: uma vida tem que ser inteligível como uma vida, tem de se conformar a certas concepções do que é a vida, a fim de se tornar reconhecível” (BUTLER, 2018, p. 21).

Assim, Butler argumenta que o processo subjetivo de reconhecimento depende, em princípio, de um conjunto de normas expostas pela ordem social e política. Com isso,

 

Se o reconhecimento caracteriza um ato, uma prática ou mesmo uma cena entre sujeitos, então a “condição de ser reconhecido” caracteriza as condições mais gerais que preparam ou modelam um sujeito para o reconhecimento – os termos, as convenções e as normas gerais “atuam” do seu próprio modo, moldando um ser vivo em um sujeito reconhecível, embora não sem falibilidade ou, na verdade, resultados não previstos. Essas categorias, convenções e normas que preparam ou estabelecem um sujeito para o reconhecimento, que induzem um sujeito desse tipo, precedem e tornam possível o ato do reconhecimento propriamente dito. Nesse sentido, a condição de ser reconhecido precede o reconhecimento (BUTLER, 2018, p. 19).

 

A percepção de que algumas vidas são concebidas como representáveis está intrinsecamente relacionada com o conceito de operações de poder, mais especificamente, operações de poder estatal. A utilização desses conceitos, assim como a distinção entre operações de poder e operações de poder estatal, explicita o diálogo da pensadora para com as proposições foucaultianas. Segundo Foucault (2001), as operações de poder não fazem alusão a detentores de poder, sendo elas mutuamente exercido por todos, ou seja, deve-se considerá-las “como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância negativa que tem por função reprimir” (FOUCAULT, 2015, p. 44). Assim, “não há poder que não seja exercido por uns sobre os outros – ‘os uns’ e ‘os outros’ não estando nunca fixados num papel, mas sucessivamente, e até simultaneamente, inseridos em cada um dos polos da relação” (REVEL, 2005, p. 67). Por sua vez, Foucault (2009) afirma que as “operações de poder estatal” se relacionam com a noção de soberania, que é o poder do soberano em decidir quais súditos tem direito à vida, e, ao mesmo tempo, com a noção de governamentalidade, que é um modo de governar cuja racionalidade tem por princípio a manutenção e o funcionamento do Estado.

Judith Butler compreende que a exclusão de determinadas pessoas é realizada por determinados dispositivos. Ademais, é possível descrever esses dispositivos sendo o grupo heterogêneo que aglomera o dito e o não dito: discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas, voltados, nesse caso, à exclusão de pessoas.

Desse modo, é evidente que o grau de inteligibilidade de uma vida não é dado a priori, “mas produzido no interior de relações de poder, práticas discursivas, normas, organizações sociais e políticas” (SILVA, J., 2017, p. 299). Esses enquadramentos atuam para diferenciar as vidas que podemos apreender daquelas que não podemos (BUTLER, 2019). Vale ressaltar que o ato de ver é compreendido como algo relacionado à tomada de uma posição, tácita ou não, do próprio sujeito que “também está sob os efeitos dos enquadramentos de poder” (SILVA, J., 2017, p. 301). Consequentemente, vida é aquilo que, dentro dos limites do representável, é tida como tal. Entretanto, o estatuto de inteligibilidade é efeito de normas que produzem e deslocam os termos por meio dos quais os sujeitos são reconhecidos (BUTLER, 2019). Assim, há sujeitos reconhecíveis como vida e sujeitos que nunca serão reconhecidos como tal.

 

O cidadão e o ensino de Filosofia

Referente às operações de poder que estabelecem as molduras de determinados enquadramentos, ou seja, aquilo que possibilita ou rejeita a apreensão de determinadas vidas como representáveis, a educação como um todo e, mais especificamente, as disciplinas de Filosofia da Educação Básica, podem ser facilmente percebidas como suas reprodutoras. Isso porque, no que diz respeito às diversas molduras que possibilitam o reconhecimento, em diversos lugares do mundo, o ensino de filosofia tem por traço distintivo “uma vocação generalista que visa à formação do ‘cidadão esclarecido’” (SARDÁ, 2018, p. 197)[6]. Um exemplo contundente é o caso da OCEM.[7] Nesse documento, em reminiscência do Inciso III do § 1° do Artigo 36 da Lei de Diretrizes e Bases, “o educando ao final do ensino médio deve demonstrar o ‘domínio dos conhecimentos de Filosofia e de Sociologia necessários ao exercício da cidadania’” (OCEM, 2006, p. 21).

No que diz respeito às molduras da educação, conforme Tedeschi e Pavan (2007, p. 05), “ainda circulam, nas escolas, discursos que remetem à concepção de um sujeito moderno, portanto, universal, como se houvesse uma essência humana definida que, pela educação, pudesse ser desenvolvida e aprimorada”. Dessa forma, o ensino de Filosofia estaria em extrema consonância com tal arsenal discursivo, ou melhor, assertiva acerca dos conhecimentos necessários para a cidadania revela uma concomitância da Filosofia para com as molduras de reconhecimento.

Dessa forma, referente ao fragmento da OCEM posto acima, é possível perceber que a Filosofia é tida “como um instrumental para a cidadania” (OCEM, 2006, p. 25), ou, melhor dizendo, “a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (lei n. 9.394/96) dispõe uma perspectiva instrumental para a filosofia no ensino médio” (GALLO, 2012, p. 20). Ademais, se for levado em conta que “os sujeitos são constituídos mediante normas que, quando repetidas, produzem e deslocam os termos por meio dos quais os sujeitos são reconhecidos” (BUTLER, 2018, 17), então, é possível inferir que a Filosofia não é um instrumental qualquer, mas sim, um instrumental que auxilia na fundação das molduras de reconhecimento.

A fundação das molduras de reconhecimento ocorre, em sua maioria, a partir dos efeitos de expressões discursivas performativas. Isso porque,

 

Por um lado, o corpo é uma coisa simplesmente linguística e, por outro, que não influencia a linguagem. Ele [o corpo] carrega a língua o tempo todo. A materialidade da linguagem, ou, mais precisamente, o próprio sinal que tenta denotar "materialidade", sugere que nem tudo, incluindo a materialidade, é desde sempre linguagem. Pelo contrário, a materialidade do significante (a "materialidade" que compreende os dois sinais e sua eficácia de significação) implica que não pode haver nenhuma referência a uma pura materialidade exceto via materialidade (BUTLER, 2019, p. 124).

 

Com isso, a filósofa está dizendo que,

 

Não é que não se possa obter fora da linguagem a compreensão da materialidade em si e de si mesma, mas que todo esforço para se referir à materialidade ocorre mediante um processo de significação que, em sua fenomenalidade, é desde sempre material. Nesse sentido, então, linguagem e materialidade não se opõem, pois a linguagem é e se refere ao que é material, assim como o que é material nunca escapa por completo ao processo pelo qual é significado (BUTLER, 2019, p. 124).

 

Desse modo, é possível inferir que o corpo está diretamente mergulhado num campo político; as relações de poder, os enquadramentos, operam sobre ele um efeito imediato: investem-no, marcam-no, controlam-no, suplicam-no, sujeitam-no a trabalhos, obrigam-no a cerimonias, exigem-lhe sinais. Este investimento enquadrante está ligado, segundo relações complexas em demasia e recíproca na mesma intensidade, à submissão: o corpo só pode ser considerado útil se for simultaneamente corpo produtivo e corpo submisso.

Ademais, esses enquadramentos atuam para diferenciar as vidas que podemos apreender daquelas que não podemos (BUTLER, 2019), dado ao fato de que os enquadramentos

 

Requer e institui um "exterior constitutivo" – o indizível, o inviável, o inenarrável que assegura (e que, portanto, fracassa em assegurar) as próprias fronteiras de materialidade. A força normativa da performatividade – seu poder de estabelecer o que se qualifica como um "ser" – é exercida não só por meio de reiteração, mas também de exclusão (BUTLER, 2019, p. 314).

 

Com isso, ressalta-se que o ato de ver é compreendido como algo relacionado à tomada de uma posição, tácita ou não, do próprio sujeito que “também está sob os efeitos dos enquadramentos de poder” (SILVA, J., 2017, p. 301). Entretanto, o estatuto de inteligibilidade é efeito de normas que produzem e deslocam os termos por meio dos quais os sujeitos são reconhecidos (BUTLER, 2019). Assim, há sujeitos reconhecíveis e sujeitos que nunca serão reconhecidos.

Assim, parece que o ensino de Filosofia não só está em concomitância com a instituição de sequestro que é a escola, mas também, parece ser um dos mecanismos pelo qual são fabricados sujeitos, seja “por intermédio de práticas pedagógicas que funcionam como aparatos de subjetivação” (SILVA, E., 2020, p. 10), ou a partir de aparatos de “normalizações que se naturalizam mediante a uma iterabilidade discursiva” (SILVA, E., 2020, p. 10). Assim, isso significa dizer que o ensino de Filosofia contribui positivamente para com a instituição escolar na fabricação de “corpos submissos por meio de práticas disciplinares” (SILVA, E., 2020, p. 10). Tal percepção, como é possível intuir, se distancia de uma espécie de romantismo que percebe “a filosofia como um domínio crítico da cultura ocidental” (GALLO, 2012, p. 20).

Com isso, fica perceptível também que, sem determinados conhecimentos de Filosofia, os educandos não podem ser reconhecidos como cidadãos. Ademais, assumindo que, muito provavelmente alguns alunos das disciplinas de Filosofia não têm conhecimento prévio de uma vasta quantidade de conteúdos próprios à matéria, então, é possível inferir que, por consequência, tais alunos são vir-a-ser cidadãos, que podem, como toda possibilidade, não-vir-a-ser.

Desse modo, ao que parece, os cidadãos são fabricados pelas instituições disciplinares que “segregam um maquinismo de controle que funciona como um microscópio [do] comportamento” (FOUCAULT, 2013, p. 201). Ou seja, o Ensino de Filosofia, em conjunto com toda a instituição escolar, tem a obrigação de fabricar cidadãos, corpos normalizados.

Ademais, parece haver um indicativo, a partir da própria ideia de que a filosofia, nas instituições de ensino básico, contribui para a construção da cidadania, de que, a priori, já está estabelecida a universalidade do que seria humano. Dessa forma, tal humano precisa apenas ser lapidado para se tornar pleno, para se tornar cidadão. Entretanto, como se sabe, tal universalidade é, paradoxalmente, limitada, não passando de operações de poder emoldurantes.

A este respeito, um exemplo contundente que põe em evidência a seletividade da moldura do que é humano são as experiências pedagógicas de Fernand Deligny (2018a, 2018b). Tal pedagogo foi responsável por dirigir um centro com um “grupo de uns cem jovens etiquetados de anormais, a maioria resíduos de centros de reeducação ou lares da Assistência Pública” (DELIGNY, 2018a, p. 25).

Em acréscimo, no centro pedagógico de Deligny, era possível encontrar algumas crianças dentro do espectro autista, que, obviamente, também eram etiquetadas como anormais. Tais crianças, ao que parece, não recebiam nem o próprio estatuto do que eram. Conforme Deligny, em paráfrase dos discursos correntes que o circundava, “crianças, elas quase não o são, embora tenham cinco ou dez anos de idade. São ‘autistas’, como se diz. Vivem aí, próximas, sendo aí uma ou outra das áreas de estar de uma pequena rede” (DELIGNY, 2018b, p. 159).

Tendo em vista isso, é possível perceber, tanto a partir da categoria de “anormais”, quanto a partir da categoria de “autistas”, que os educandos de Deligny não eram tidos como humanos. Eram menores que isso. As molduras de reconhecimento não englobavam tais pessoas. Assim, Deligny tentou traçar métodos que não se submetessem aos enquadramentos excludentes do que é humano, tentou traçar métodos que conseguissem expandir infinitamente as molduras de enquadramentos.[8]

Entretanto, conforme o próprio pedagogo assume,

 

Eu sabia bem (sem um pingo de vaidade) que estava fazendo papel de palhaço. A prova? Os únicos alunos que “saíram” durante aquele ano e que não voltaram pela porta lateral algumas semanas depois, seja por terem estuprado sua irmã mais nova, seja por estarem fartos da monotonia exagerada do trabalho cotidiano e da vida em família, foram aqueles que se engajaram voluntariamente na Legião Negra ou, melhor ainda, nas SS (DELIGNY, 2018a, p. 26-27).

 

O caso não é o pedagogo ter fracassado, o caso é o pedagogo ter tentado expandir as molduras do que seria humano. De fato, Deligny não era professor de Filosofia, muito menos estava imerso no contexto educacional brasileiro. Entretanto, seria um disparate assumir que não há educandos, no Brasil, nas mesmas posições que os educandos da instituição de Deligny.

Como exemplo contundente da similaridade supracitada, é possível ressaltar as questões de gênero. Segundo Elder Silva, tais questões sofrem, abertamente, pressões de determinados setores parlamentares com o intuito de sua erradicação do âmbito escolar, em outras palavras,

 

Os atores conservadores em ascensão no Congresso Nacional criaram uma rede para divulgação e ampliação de versões distorcidas sobre os materiais do programa [Escola sem Homofobia]. Na principal argumentação desenvolvida, alertava-se do perigo que a escola se tornasse um lugar de aliciamento para o homossexualismo e lesbianismo, e que crianças de 6 a 8 anos estavam sendo expostas a conteúdos pornográficos (SILVA, E.,2020, 139).

 

Ao que parece, para determinados setores do parlamento brasileiro, questões de gênero e escola não combinam. Ademais, no que se refere à Filosofia no Ensino Básico, a diversidade de gênero não parece ser um assunto a ser tratado nas aulas. A saber,

 

Ela [a diversidade de gênero] não é mencionada diretamente nenhuma vez na seção “Conhecimento de Filosofia” das Orientações curriculares para o ensino médio – ciências humanas e suas tecnologias (BRASIL, 2006), que pode ser considerado o documento do MEC mais detalhado na apresentação dos conteúdos e das competências e habilidades a serem trabalhados nas aulas de Filosofia do ensino médio (GABOARDI, 2014, p. 15).

 

Como se pode ver, “a diversidade de gênero é uma daquelas temáticas que ainda não tem lugar garantido na escola” (GABOARDI, 2014, p. 16). Outrossim, o ensino de Filosofia espelha essa dinâmica dentro de seu cosmos educacional. Pela omissão, é como se as molduras de reconhecimento do que seria um cidadão não englobassem pessoas que fogem à díade macho-fêmea.

Nesse caso, levando em consideração eventuais, mas inegáveis, semelhanças, uma questão se sobressai, a saber: Como fazer com que determinados estudantes adquiram o conhecimento necessário para serem reconhecidos como cidadãos, se eles nem possuem o estatuto de humanos? Essa questão, ao que tudo indica, é demasiadamente mais relevante que a questão sobre se “não é possível ensinar a filosofia, mas sim a filosofar” (ASPIS, 2004, p. 306), que existe desde Kant.

É evidente que colocar a questão sobre o estatuto de humano dos estudantes de filosofia não significa revolucionar a educação, e, menos ainda, não quer dizer cravar o fim das molduras. Entretanto, colocar em questão o estatuto de sujeito dos alunos de Filosofia se mostra como um valor de possibilidade para a ampliação das molduras de reconhecimento. Conforme o próprio Deligny afirma,

 

Não se trata de rejeitar obrigatoriamente o canto durante a marcha, em fileiras de quatro, a admiração pelo chefe, a disciplina silenciosa, os berros coletivos e as bugigangas decorativas amarradas nas juntas, sem falar nas que enfeitam os bustos, as cinturas e os chapéus. Uma criança pode tirar proveito de tudo. Momentos místicos, momentos fascistas, sarampo, escarlatina, caxumba, homossexualidade, esse tipo de coisa não se evita, não se guarda em segredo no fundo do coração ou da espinha, mas se vomita, vem à tona para ser lavado, queimado consumido. Os piores hábitos são aqueles que não ousamos ter, pois o balanço da vida, em seu magnífico e frágil vaivém, corre o risco de ficar preso nessa vegetação monstruosa que é o privilégio misterioso das aparências conformes (DELIGNY, 2018a, p. 27).

 

Com isso, fica explícito que a questão não é fracassar, a questão é não tentar. Se, de fato, os processos de subjetivação passam por diversas práticas discursivas que produzem formas de vidas, sujeições, visualidades normativas, e se, também, “o processo dessa produção nunca está completo e nas resistências das relações de poder, fissuras constitutivas produzem efeitos inesperados, corpos que não mimetizam o normativo” (SILVA, R. 2020, p. 10), então há sempre a possibilidade da expansão das molduras de reconhecimento.

 

Considerações Finais

Como se pôde perceber com o texto que se seguiu até aqui, a princípio, formar cidadãos parece ser algo singelo e virtuoso. Todavia, é possível destacar que há um universo de complexidades que deve ser abordado com cautela, quando analisamos tal fenômeno sob a óptica dos enquadramentos. Isso porque, o ensino de Filosofia com o objetivo supracitado implica, em primeiro lugar, que os alunos envolvidos com a aprendizagem da Filosofia não sejam cidadãos, afinal, parece ser extremamente dispensável aprende a ser aquilo que já se é.

Assim, levando em consideração que esses alunos passam por um processo de subjetivação, um processo de emolduramento, a fim de se tornarem cidadãos, é cabível indagar quais os recortes que são feitos para o estabelecimento dessas molduras, ou melhor, quais os mecanismos pelo qual está se fabricando sujeitos. Ademais, as questões se tornam ainda mais delicadas quando se percebe que há entes humanos que não são passíveis de serem assujeitados, pois não são nem considerados vida.

Com isso, o presente texto, apesar de não oferecer soluções para os problemas aqui apresentados, almeja ressaltar aos olhos a necessidade de um pensamento crítico acerca dos termos que circundam o ensino de Filosofia no Brasil, pois esses termos podem estar indo de encontro à ética inclusivista, aquela ética que busca dimensionar existência do “Outro” em sua radical alteridade, ressaltando o que há de precário nesse outro.

 

Referências

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Notas:



[1] Ao que tudo indica, Butler utiliza a noção de epistemeno sentido foucaultiano. Esse conceito designa “um conjunto de relações que liga tipos de discursos e que corresponde a uma dada época histórica” (REVEL, 2005, p. 41).

 

[2]The ethical claim inheres in the political distribution of precarity, rather than ontological condition of precariousness – a crucial distinction in Frames of War”.

 

[3][...] that the ethical problem is posed by the frames that shape in advance our ability to respond to the ethical claim made on us by precariousmess or vulnerability”.

 

[4] O reconhecimento é um dos conceitos mais abrangentes da filosofia hegeliana. De forma geral, ele envolve não apenas a identificação intelectual da coisa como um indivíduo ou como pertencente a um certo tipo de grupo de indivíduos, mas também, conota a essa coisa um valor positivo e, inclusive, a expressão dessa atribuição (INWOOD, 2013). Dessa forma, ao que parece, na filosofia hegeliana a luta pelo reconhecimento não está relacionada ao problema da existência de outras mentes, ou do direito epistemológico a ver o outro como pessoas, mas sim, está intrinsecamente relacionada ao “problema de como nos tornamos uma pessoa plenamente desenvolvida pela obtenção do reconhecimento de nosso status por parte de outros” (INWOOD, 2013, p. 345).

 

[5] Butler entende a identidade como sendo “um efeito de práticas discursivas” (2017, p. 45). Em Problemas Gênero (2017), por exemplo, a filósofa parece vincular o processo de assumir um sexo ou gênero com a questão da identificação e com os meios discursivos através dos quais o imperativo heterossexual possibilita determinadas identificações sexuadas e impede ou nega outras identificações.

 

[6] Isso no que se refere ao ensino de Filosofia no Ensino Básico Francês.

 

[7] Orientações Curriculares para o Ensino Médio. Vale ressaltar, apesar da OCEM ser um documento que “caiu em desuso” oficialmente, como se sabe, muitos estados e municípios ainda se baseiam em tal documento para formular suas orientações, haja vista que a BNCC é um documento recente e muito ainda se discute acerca de suas pontuações. Ademais, a reflexão aqui proposta se torna comprometida na medida em que a BNCC “não exclui a filosofia nem dá diretrizes rígidas para a sua configuração no Ensino Médio. Ela mesma afirma explicitamente não constituir-se no currículo dessa fase formativa, mas apenas na definição das suas aprendizagens essenciais” (FILHO et al.).

 

[8] A este respeito, ver Œvres (DELEGNY, 2018c).

 

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