O ‘não lugar’ epistemológico da Filosofia Africana nos livros didáticos de filosofia para o ensino médio aprovados pelo Programa Nacional do Livro e Material Didático – PNLD 2012

The epistemological ‘non-place’ of African Philosophy in philosophy textbooks to High School approved by National Program for Teaching Material and Textbooks – PNLD 2012 

 

Josadaque Martins Silva

Professor mestre no Instituto Federal de Educação Ciência e Tecnologia de Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil.

josadaque.silva@cba.ifmt.edu.br – https://orcid.org/0000-0001-9739-5616

 

Recebido em 07 de outubro de 2020

Aprovado em 31 de maio de 2021

Publicado em 23 de junho de 2021

 

RESUMO: O artigo pretende analisar a questão do ‘não lugar’ epistemológico da Filosofia Africana nos livros didáticos de filosofia aprovados pelo Programa Nacional do Livro e Material Didático – PNLD de 2012. Parte-se do pressuposto de que o cerne deste problema é o racismo epistêmico/eurocêntrico, engendrado no período da modernidade e que corrobora o estatuto do nascimento da filosofia na Grécia antiga. O objetivo é apresentar certo viés do pensamento filosófico moderno e contemporâneo, notadamente Kant e Hegel, que caracterizam os africanos como primitivos, não reconhecendo neles a capacidade estética e filosófica; descrever, sucintamente, o processo histórico/legal que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira no currículo oficial da rede de ensino e a filosofia como disciplina obrigatória nos currículos do ensino médio no Brasil e explicitar a relação entre o conteúdo de Filosofia Africana e o livro didático, tendo como cerne o Guia do PNLD de 2012. Para tanto, a metodologia aplicada pauta-se, fundamentalmente, na pesquisa bibliográfica, tendo como aporte teórico os seguintes pensadores: o filósofo congolês Théophile Obenga, o filósofo sul-africano Mogobe B. Ramose, o filósofo afro-estadunidense Molefi Kete Asante, o filósofo britânico-ganês Kwame Anthony Appiah e os filósofos brasileiros Renato Noguera e Wanderson Flor.

Palavras-chave: Filosofia Africana; Racismo Epistêmico; Livro Didático; PNLD 2012.

    

ABSTRACT: This paper aims to analyze the question about the epistemological “non-place” of African Philosophy in philosophy textbooks approved by the National Program for Teaching Material and Textbooks – PNLD 2012. It is based on the assumption that the problem is the epistemic/eurocentric racism, created in the period of modernity and which corroborates the birth status of philosophy in Ancient Greece. The objective is to present a certain bias of modern and contemporary philosophical thought, notably Kant and Hegel, which characterize Africans as primitive, not recognizing in them the aesthetic and philosophical capacity; describe, briefly, the historical/legal process that established the mandatory teaching of “Afro-Brazilian History and Culture”, in the official curriculum of the education network and in philosophy as a mandatory subject in high school curricula in Brazil; explicitly a relationship between the content of African Philosophy and the textbook, using the PNLD of 2012 as a reference. To that end, an applied methodology is fundamentally based on bibliographic research, having as reference the following thinkers: the Congolese philosopher Théophile Obenga, the southern philosopher African Mogobe B. Ramose, African-American philosopher Molefi Kete Asante, British-Ghanaian philosopher Kwame Anthony Appiah and Brazilian philosophers Renato Noguera and Wanderson Flor.

Keywords: African Philosophy; Epistemic Racism; Textbook; PNLD 2012.

 

Introdução

A inserção de conteúdos de história e cultura africana e afro-brasileira nos currículos é fruto de muita negociação e luta política por parte dos movimentos negros brasileiros. Um exemplo documentado é a carta aos dirigentes do país e a todos os membros da Assembleia Nacional Constituinte de 1987, resultado do “Congresso Nacional do Negro pela Constituinte” (CNN), realizado na cidade de Brasília-DF, nos dias 26 e 27 de agosto de 1986, que faz a seguinte reivindicação sobre a educação:

 

O processo educacional respeitará todos os aspectos da cultura brasileira. É obrigatória a inclusão nos currículos escolares de I, II e III graus, do ensino da História da África e da História do Negro no Brasil (CNN, 1986, p. 4).

 

Igualmente no que concerne à cultura, a carta também reivindica que o dia 20 de novembro, data da morte de Zumbi dos Palmares, seja declarado feriado nacional como o Dia Nacional da Consciência Negra (CNN, 1986). Percebe-se que tais demandas assemelham-se ao teor da Lei nº 10.639.

 

Em 2001, com a “Terceira Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Conexas de Intolerância”, organizada pela UNESCO e realizada na cidade de Durban, África do Sul, surgia a histórica Declaração e Plano de Ação de Durban que, no âmbito da educação, insta os Estados sobre a necessidade da promoção e plena inclusão da história e da contribuição dos africanos e afrodescendentes no currículo educacional (DECLARAÇÃO DE DURBAN, 2001), abarcando, no caso específico, o legado da Filosofia Africana1.

Como consequência da resistência política dos movimentos negros brasileiros e da orientação da Declaração de Durban (2001), o Brasil, por meio da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003, que altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, estabelece a obrigatoriedade do ensino de “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da Rede de Ensino, dispondo em seu artigo 79-B que “o calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’” (BRASIL, 2003). De modo complementar, a Lei nº 11.645, de 10 de março de 2008, inclui, no currículo oficial da rede de ensino, a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena” (BRASIL, 2008). Devido à mobilização intensa de professores e professoras de filosofia, a Lei nº 11.684, de 2 de junho de 2008, foi sancionada, tornando a filosofia e a sociologia disciplinas obrigatórias nos currículos do ensino médio.

A obrigatoriedade da filosofia nas escolas públicas e privadas, por sua vez, coloca o problema do conteúdo programático a ser ensinado pelos (as) docentes. As Orientações Curriculares para o Ensino Médio – Ciências Humanas e suas Tecnologias (BRASIL, 2006), para a área de filosofia, exorta à coerência entre a prática escolar e os princípios estéticos, políticos e éticos, valorizando a política de igualdade no contexto educacional, embora, no escopo de conteúdo, enfatize a filosofia de tradição europeia.

Consoante Lídia Maria Rodrigo (2009), quanto ao conteúdo, o ensino de filosofia deve conferir centralidade ao texto filosófico, mediante o contato direto com a estrutura argumentativa que fundamenta o pensamento do autor. Do ponto de vista formal, o método de acesso aos conteúdos deve proporcionar a aquisição de competências lógico-discursivas, tais como problematizar, conceituar e argumentar, sendo que tal especificidade é plausível se exercitada sobre conteúdos de história da filosofia (RODRIGO, 2009). Em vista disso, Rodrigo (2009) prioriza a história da tradição filosófica ocidental, corroborando a ideia do nascimento da filosofia na Grécia antiga; por consequência, propõe um conjunto de unidades didáticas, abarcando pensadores como Sócrates, Platão, Aristóteles, René Descartes, Francis Bacon, John Locke, Ernst Cassirer, Jean-Paul Sartre e Karl Marx (RODRIGO, 2009), sem menção aos filósofos africanos.

Assim, a despeito da filosofia ser obrigatória nas escolas de ensino médio e da implementação das leis 10.639 e 11.645, percebe-se que a Filosofia Africana ainda é um tema quase ausente no processo de ensino de filosofia no Brasil. O cerne desse problema tem dois aspectos que se complementam: histórico e epistemológico.

 

Eurocentrismo: o modus operandi do colonizador europeu

Conforme Betts (2010), após a Primeira Guerra Mundial, o empreendimento colonial na África foi promovido a partir do ideal superior de civilização, ou seja, era mister a subalternidade e a exploração dos colonizados, tendo em vista que eram “primitivos”. Dessa forma, foi instaurada uma colonização permanente e predatória do continente africano, embasada na ideia de supremacia cultural e racial do ethos branco, formada nos séculos XVIII e XIX. Essa supremacia europeia abrangeu vários âmbitos como a educação, política, economia e propriedade (BETTS, 2010).

Esse modus operandi histórico do colonizador europeu também está centrado em um discurso epistêmico/eurocêntrico sobre a África, forjado pelo pensamento filosófico da modernidade e reafirmado na contemporaneidade. O discurso fundamenta-se na inferiorização do africano, pautando-se em ideias como crença, pensamento, espaço e identidade humana. Nessa linha de raciocínio, teremos filósofos como Kant e Hegel.

 

Kant e Hegel: o racismo epistêmico/eurocêntrico no pensamento filosófico moderno e contemporâneo

Immanuel Kant, o filósofo de Königsberg, na estrutura do seu livro Observações sobre o sentimento do belo e do sublime, aborda as “diferenças entre os caracteres das nações” (KANT, 1993, p. 65 apud PRAXEDES, 2008)2, a fim de “esboçar traços que neles exprimem os sentimentos do sublime e do belo” (KANT, 1993, p. 65 apud PRAXEDES, 2008). Nesse sentido, Kant (1993, p. 65 apud PRAXEDES, 2008) escreve que, “entre os povos do continente europeu, os italianos e os franceses são aqueles que se distinguem pelo sentimento do belo; já os alemães, os ingleses e espanhóis, pelo sentimento de sublime”. De outro modo, na concepção kantiana,

 

O espanhol é sério, reservado e sincero [...] O francês possui um sentimento dominante para o belo moral. É cortês, atencioso e amável [...] No início de qualquer relação o inglês é frio, mantendo-se indiferente a todo estranho. Possui pouca inclinação a pequenas delicadezas; todavia, tão logo é um amigo, se dispõe a grandes favores [...] O alemão no amor, tanto quanto nas outras espécies de gosto, é assaz metódico, e, unindo o belo e o nobre, é suficientemente frio no sentimento de ambos para ocupar a mente com considerações acerca do decoro, do luxo ou daquilo que chama a atenção. (KANT, 1993, p. 65-70 apud PRAXEDES, 2008).

 

Em seguida, baseando-se na ignorância pura, Kant (1993) critica os povos “selvagens”, mostrando a incapacidade racional de tais para o belo e para o sublime, para a arte e para a ciência. Assim, Kant (1993, p. 75-76 apud PRAXEDES, 2008) descreve os (as) africanos (as), com o aporte do filósofo escocês David Hume,

 

Os negros da África não possuem, por natureza, nenhum sentimento que se eleve acima do ridículo. O senhor Hume desafia qualquer um a citar um único exemplo em que um Negro tenha mostrado talentos, e afirma: dentre os milhões de pretos que foram deportados de seus países, não obstante muitos deles terem sido postos em liberdade, não se encontrou um único sequer que apresentasse algo grandioso na arte ou na ciência, ou em qualquer outra aptidão; já entre os brancos, constantemente arrojam-se aqueles que, saídos da plebe mais baixa, adquirem no mundo certo prestígio, por força de dons excelentes. Tão essencial é a diferença entre essas duas raças humanas, que parece ser tão grande em relação às capacidades mentais quanto à diferença de cores. A religião do fetiche, tão difundida entre eles, talvez seja uma espécie de idolatria, que se aprofunda tanto no ridículo quanto parece possível à natureza humana. A pluma de um pássaro, o chifre de uma vaca, uma concha, ou qualquer outra coisa ordinária, tão logo seja consagrada por algumas palavras, tornam-se objeto de adoração e invocação nos esconjuros. Os negros são muito vaidosos, mas à sua própria maneira, e tão matraqueadores, que se deve dispersá-los a pauladas.

 

Semelhantemente, Hegel (1999, p. 83 apud PRAXEDES, 2008), um dos principais filósofos do período contemporâneo, asseverou:

 

a principal característica dos negros é que sua consciência ainda não atingiu a intuição de qualquer objetividade fixa, como Deus, como leis, pelas quais o homem se encontraria com a própria vontade, e onde ele teria uma ideia geral de sua essência.

 

Ora, na “história universal” hegeliana,

 

o negro representa, como já foi dito, o homem natural, selvagem e indomável. Devemos nos livrar de toda reverência, de toda moralidade e de tudo o que chamamos sentimento, para realmente compreendê-lo. Neles, nada evoca a ideia do caráter humano [...] A carência de valor dos homens chega a ser inacreditável. A tirania não é considerada uma injustiça, e comer carne humana é considerado algo comum e permitido [...] Entre os negros, os sentimentos morais são totalmente fracos – ou, para ser mais exato inexistentes. (HEGEL, 1999, p. 83-86 apud PRAXEDES, 2008).

 

Então, segundo Kant (1993 apud PRAXEDES, 2008), as dinâmicas socioculturais da África se explicam pelo caráter bizarro dos negros, o que legitima a violência contra eles – é preciso tratá-los a pauladas porque são matraqueadores, asseverará a “razão” kantiana. Hegel, por seu turno, ressalta que a essência do “ser” africano coaduna-se com o primitivismo e a barbárie, por isso a ausência de uma axiologia humana e o empobrecimento antropológico e epistemológico desse povo (MANGANA; CHIZENGA, 2016).

Desse modo, o discurso epistêmico/eurocêntrico moderno e contemporâneo atesta a inexistência de uma Filosofia Africana, tendo em vista que, ontologicamente, os africanos são inferiores e, por conseguinte, incapazes de produzirem um pensamento abstrato.

 

O ensino de filosofia e a legitimidade da Filosofia Africana

Atestada a “inferioridade” africana, o ethos branco pode propagar com “legitimidade” a sua crença comum, a saber: que a filosofia surge com os gregos. Aliás, no contexto acadêmico ocidental eurocêntrico, segundo o filósofo Renato Noguera (2013, p. 140), este é um assunto que “parece não ser alvo de controvérsias e divergências”. Nesse sentido, rememorando a sua formação intelectual no período de graduação, o filósofo congolês Théophile Obenga (2004, p. 1) mostra que, no contexto acadêmico, havia uma postura de negação da Filosofia Africana e, por consequência, a corroboração da ideia que a filosofia tem identidade grega:

 

a posição era marcadamente diferente no que diz respeito à Filosofia Africana. Os departamentos de filosofia tendiam a não ter a impressão de que havia algo assim. Eu me formei na Universidade de Gana em 1958, após pelo menos cinco anos de estudo na graduação. Em todos esses anos, eu nunca fui exposto ao conceito de Filosofia Africana.

 

Conforme o filósofo afro-estadunidense Molefi Kete Asante (2014), essa ideia é tão comum que a maioria dos livros didáticos sobre filosofia inicia-se com os gregos, como se eles precedessem todos os demais povos em termos de articulação conceitual. Esse dogma é hegemônico no mundo acadêmico ocidental, incluindo as universidades e academias africanas, exemplificado, assim, por Asante (2014, p. 117): “A filosofia é a maior de todas as disciplinas. Todas as outras disciplinas se derivam da filosofia. A filosofia é uma criação dos gregos. Os gregos são brancos”.

Na perspectiva desse dogma, os “primitivos” podem até contribuir com o pensamento, como os chineses e os africanos, tendo religião e mitos, mas não filosofia. Dessa forma, os gregos são os criadores da filosofia, a mais alta expressão das ciências (ASANTE, 2014).

Outro argumento “sofisticado” para suplantar a legitimidade da Filosofia Africana é a ideia da tradição oral. Comumente, o pensamento filosófico ocidental assevera que os “primitivos” não podem produzir filosofia, pois não são povos da escrita. Mas, conforme bem ressalta o filósofo britânico-ganês Kwame Anthony Appiah (1998), é irônico que o grande filósofo da tradição ocidental, no caso Sócrates, seja conhecido exatamente por argumentos orais, imputados a ele por seu discípulo Platão. Nesse sentido, esse argumento da escrita é equivocado, porque muitos argumentos encontrados nos escritos filosóficos tradicionais, em ética, política, metafísica, epistemologia e estética, dizem respeito a questões sobre as quais falaram muitos povos em muitas culturas (APPIAH, 1998). Dessa maneira, encontramos em cada cultura humana pensamentos sobre algumas das principais questões da filosofia ocidental, o que demonstra o equívoco em afirmar a filosofia como uma criação grega e estritamente associada à escrita (APPIAH, 1998). O filósofo sul-africano Mogobe B. Ramose (2011, p. 8) é taxativo nesse aspecto, expondo o conceito de pluriversalidade da filosofia:

 

Todos os seres humanos adquiriram, e continuam a adquirir sabedoria ao longo de diferentes rotas nutridas pela experiência e nela fundadas. Neste sentido, a filosofia existe em todo lugar. Ela seria onipresente e pluriversal, apresentando diferentes faces e fases decorrentes de experiências humanas particulares. De acordo com este raciocínio, a Filosofia Africana nasceu em tempos imemoriais e continua florescendo em nossos dias.

 

Em outras palavras, no pensamento ramosiano, “a pluriversalidade é o reconhecimento de que todas as perspectivas devem ser válidas; apontando como equívoco o privilégio de um ponto de vista” (NOGUERA, 2012, p. 64).

 

O guia do PNLD 2012 e o ‘não lugar’ epistemológico da filosofia africana nos livros didáticos de filosofia3

O discurso histórico e epistemológico eurocêntrico que deslegitima a Filosofia Africana tem consequências na esfera educacional. Isso porque, se a filosofia é grega, não há razoabilidade para ensinar outras filosofias. Em outros termos, a condição de “primitivismo” da Filosofia Africana, na epistemologia ocidental, é reverberada na estrutura acadêmica tradicional e o documento institucional que expressa essa condição é o currículo. Essa ausência da Filosofia Africana nos currículos e, por conseguinte, nos livros didáticos de filosofia, mesmo com a obrigatoriedade legal, para além do discurso eurocêntrico, é reforçada pelos silenciamentos de uma filosofia que se afirma universal e neutra (FLOR DO NASCIMENTO, 2012), embora ensine que a verdadeira filosofia é grega, portanto, europeia.

Partindo dessas constatações é que se justifica este artigo sobre “O ‘não lugar’ epistemológico da Filosofia Africana nos livros didáticos de filosofia aprovados pelo Programa Nacional do Livro e Material Didático - PNLD 2012”. Urge, ante o contexto anteriormente apresentado, suscitar algumas indagações: no contexto brasileiro, os livros didáticos de filosofia para o ensino médio reverberam esse quadro, que consiste na deslegitimação histórica e epistemológica da Filosofia Africana? Reproduzindo o quadro descrito, qual é o lugar da Filosofia Africana nesses livros didáticos?

Ora, à época da avaliação de livros didáticos de filosofia do PNLD 2012, já chamava atenção o imperativo, consequência da história de formação da comunidade acadêmico-filosófica brasileira4, de que os livros didáticos de filosofia se voltassem estritamente para o ensino de conteúdos concernentes à tradição filosófica ocidental. Perspectiva esta que ganha força desde os anos 1980 com a publicação dos primeiros livros didáticos de filosofia e com a corroboração da tese já superada de que a filosofia ocidental deve ter primazia porque a filosofia nasceu na Grécia5 e, consequentemente, os demais povos, tidos como primitivos, não possuem filosofia ou um pensamento abstrato. Logo, coloca-se a imprescindibilidade de se analisar a presença da Filosofia Africana nos livros didáticos de filosofia numa perspectiva filosófica afrocêntrica e pluriversal que reconheça a legitimidade da Filosofia Africana e demarque o seu lugar nos livros didáticos e, sobretudo, o seu ensino na rede pública e privada.

Analisemos, então, o primeiro “Guia de Livros Didáticos do PNLD 2012 para a área de filosofia, [...] resultado de um longo processo de avaliação, que envolveu diversos atores” (BRASIL, 2011, p. 7), sendo que três obras foram selecionadas, a saber: “Filosofando – introdução à filosofia, de Maria Lúcia de Arruda Aranha e Maria Helena Pires Martins; Iniciação à filosofia, de Marilena Chauí; Fundamentos de filosofia, de Gilberto Cotrim e Mirna Fernandes” (BRASIL, 2011).

Preliminarmente, o Guia apresenta um sucinto panorama histórico sobre “o ensino de filosofia no Brasil e o livro didático” (Brasil, 2011, p. 7), mostrando que

 

desde 1663, ano em que a filosofia foi pela primeira vez inserida nos currículos das escolas brasileiras, tratava-se então da primeira escola de ensino secundário da Companhia de Jesus, na Bahia, a presença da filosofia na escola brasileira se deu de forma descontínua e frágil. (BRASIL, 2011, p. 7).

 

Em outros termos, foi mais recentemente que

 

a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9.394/96) incorporou os conhecimentos de filosofia como parte dos conteúdos a serem dominados pelos estudantes ao longo do ensino médio enquanto “necessários ao exercício da cidadania”. (BRASIL, 2011, p. 7).

 

E mais,

 

em 1999, ano em que são publicados os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Médio (1999), os conteúdos de Filosofia mencionados na LDB de 1996 passam a ser mais bem especificados: são aqui  considerados como de natureza transversal e, além disso, as áreas de Ética e Cidadania, que se encontravam no âmbito comum das Ciências humanas e suas tecnologias, são especialmente enfatizadas. (BRASIL, 2011, p. 7).

 

Embora as leis e os parâmetros garantissem

 

a presença da filosofia na Educação Básica, a comunidade filosófica nacional começou imediatamente a perceber que o caráter transversal dos conteúdos filosóficos excluía, de fato, dois protagonistas essenciais, sem os quais o ensino de filosofia não poderia acontecer e encontrar seu lugar no interior da oferta didática, cada dia mais ampla e complexa, do currículo do ensino médio: o professor e o livro. (BRASIL, 2011, p. 7-8).

 

Isso porque, na prática curricular, o que comumente sucedia é que o (a) professor (a) era de áreas “afins”, sendo o responsável por desenvolver esses conteúdos transversais, partindo “de uma oferta didática não organizada, isto é sem um livro que o auxiliasse neste sentido” (BRASIL, 2011, p. 8).

Este problema do

 

ensino de filosofia sem professor e sem livro didático, que, graças ao movimento da comunidade filosófica brasileira e à sensibilidade do poder público, conseguiu reverter-se com o parecer nº 38/2006, que foi aprovado por unanimidade pelo Conselho Nacional de Educação em 7 de julho de 2006. (BRASIL, 2011, p. 8).

 

Por conseguinte, tendo como base este parecer,

 

foi aprovada recentemente a Lei 11.684, assinada pela Presidência da República em junho de 2008, que prevê a obrigatoriedade do ensino de filosofia (e sociologia) nos três anos do ensino médio. (BRASIL, 2011, p. 8).

 

Isto possibilitou “que desde o ano de 2010, concluído o período de implantação e adequação dos sistemas de ensino à referida lei, a disciplina de filosofia está finalmente presente em todas as escolas” (BRASIL, 2011, p. 8), ensejando, assim, a necessidade da oficialização de determinados livros didáticos, o que determinou o primeiro Guia do PNLD de 2012 na área específica da filosofia (Brasil, 2011).

Quanto à definição “de princípios e critérios de avaliação de livros didáticos de filosofia” (BRASIL, 2011, p. 9), o PNLD 2012 teve “como eixo norteador aquilo que denominamos de história da filosofia” (BRASIL, 2011, p. 10), seguindo a máxima de “que estudar filosofia é fazer, ao mesmo tempo, história da filosofia” (BRASIL, 2011, p. 10). Destarte,

 

como os temas e problemas (o bem, o mal, a verdade, a justiça, o poder etc.) pensados no presente têm por de trás deles uma longa história, é com o retorno à tradição e a partir dela que novas respostas podem ser encontradas, que novos conceitos serão criados, que mais uma página na história desse saber é acrescentada. (BRASIL, 2011, p. 10).

 

Então, dentre os objetivos elencados pelo PNLD, está o estímulo à “criação de enunciados rigorosos e críticos a partir do legado da tradição sobre temas contemporâneos” (BRASIL, 2011, p. 11). Ora, fica nítido, no decorrer do Guia, que tal tradição refere-se à filosofia ocidental/eurocêntrica.

A partir dessa tradição supracitada, o PNLD 2012 inicia o procedimento de avaliação6 e, posteriormente, a resenha dos três livros didáticos de filosofia previamente selecionados, ressaltando que a comissão de avaliadores analisou quinze obras, inscritas no PNLD de 2012 (BRASIL, 2011). Por outro lado, é importante salientar que a comissão de avaliadores não contemplou especialistas em Filosofia Africana e Afrodiaspórica, dentre eles os professores Renato Noguera (UFRRJ), Wanderson Flor (UnB), Eduardo David de Oliveira (UFBA) e outros (as).

Doravante, analisemos as resenhas concernentes às três obras selecionadas pela comissão de avaliação do Guia. Quanto ao livro Filosofando: introdução à filosofia, de Aranha e Martins, a comissão declara, em resumo,

 

que a obra proporciona uma razoável formação em história da filosofia, de modo a estabelecer, através desta, um diálogo entre a filosofia e outras áreas da cultura (especialmente a arte). (BRASIL, 2011, p. 20).

 

Além disso,

 

a exposição da história da filosofia também é feita integrando elementos textuais e contextuais, a saber, combinando aspectos da história, da biografia dos autores e da cultura da época, com uma discussão de sistemas e noções filosóficas apoiada em textos clássicos e de intérpretes da filosofia. (BRASIL, 2011, p. 20).

 

 Sobre o livro Fundamentos de filosofia, de Gilberto Cotrim e Mirna Fernandes, a comissão salienta que referente

 

à metodologia de ensino/aprendizagem, a obra valoriza de modo suficiente a diversidade temática própria da especulação filosófica ocidental, oferecendo ao aluno uma efetiva possibilidade de contato com um bom número de fragmentos selecionados de textos clássicos de filósofos e de comentadores relevantes. (BRASIL, 2011, p. 24-25).

 

Ora, de modo contraditório, a comissão endossa que há uma valorização da “diversidade temática” no livro, porém reduzida à filosofia ocidental eurocêntrica. E mais, essa visão é corroborada quando a comissão elogia a maneira como é estruturada a unidade 3 do livro,

 

a Unidade 3, cujo título é “A Filosofia na História” apresenta, em seis capítulos, importantes problemas, autores e ideias da filosofia ocidental. Os capítulos são organizados em sequência histórica, qual seja: dois sobre Filosofia Antiga, sendo um sobre o período pré-socrático (a passagem do mito ao logos, mitologia grega, pólis e razão, os pensadores de Mileto, Pitágoras, Heráclito, a Escola de Eleia, Empédocles, Demócrito) e outro que trata de Sócrates, dos Sofistas, de Platão, de Aristóteles e das filosofias helenísticas (Epicurismo, Estoicismo, Pirronismo, Cinismo); um sobre a Filosofia Medieval, destacando em seus três tópicos a relação entre Filosofia e Cristianismo (fé versus razão), a Patrística (Santo Agostinho) e a Escolástica (Santo Tomás de Aquino); dois capítulos sobre a Filosofia Moderna sendo que o primeiro aborda a novidade da ciência moderna e o racionalismo (o Renascimento, Francis Bacon, Galileu, René Descartes, Espinosa, Pascal) e o segundo, o Empirismo (Hobbes, Locke, Berkeley, Hume) e o Iluminismo (Montesquieu, Voltaire, Diderot, D’Alembert, Rousseau, Smith, Kant); dois sobre a Filosofia Contemporânea, sendo um dedicado à filosofia no século XIX (a expansão do capitalismo e os novos ideais, Augusto Comte, o Idealismo Alemão, Karl Marx, Friedrich Nietzsche) e o outro ao século XX (uma era de incertezas, o Existencialismo de Husserl, Heidegger e Sartre, a Filosofia Analítica de Russell e Wittgenstein, a Escola de Frankfurt, com Adorno, Horkheimer, Walter Benjamin, Marcuse e Habermas, e a Filosofia pós-moderna, com Michel Foucault, Jacques Derrida e Jean Baudrillard). (BRASIL, 2011, p. 23).

 

Nota-se o nítido elogio à “diversidade” filosófica ocidental, sem menção à historicidade da Filosofia Africana.

Quanto à obra Iniciação à filosofia, de Marilena Chauí, a comissão mostra “que o Livro do Aluno é organizado em duas partes, ‘A atividade teórica’ e ‘A atividade prática’, cada uma com seis unidades” (BRASIL, 2011, p. 27). Tratando, especificamente, da Unidade I, cuja “a primeira parte inicia-se com o tema ‘A filosofia’” (BRASIL, 2011, p. 27), a comissão elogia o modo como o livro expõe

 

preliminarmente a atitude filosófica, o significado geral da filosofia, sua origem, seus períodos, os campos da investigação filosófica ocidental, seu nascimento na Grécia clássica, os principais períodos da história da filosofia e as linhas de força do discurso filosófico contemporâneo. (BRASIL, 2011, p. 27-28).

 

Novamente, observa-se a ênfase na filosofia de matriz ocidental e a demarcação do nascimento da filosofia na Grécia, impedindo, assim, qualquer concepção epistemológica fora do eixo eurocêntrico.

Na verdade, a comissão avaliadora do PNLD confirma o que está escrito nas obras didáticas de filosofia: a primazia é da filosofia ocidental, pois ela é grega. Por exemplo, as autoras Aranha e Martins (2016) asseveram que o pensamento filosófico surgiu na Grécia, no século VI a.C., embora reconheçam a importância de outros sábios que viveram no Oriente durante o mesmo período; de modo que na visão delas as suas doutrinas ainda não eram propriamente filosóficas. Assim, a diferença entre os sábios orientais e os pensadores gregos está no fato de que os sábios orientais não se aprofundaram em questões abstratas (ARANHA; MARTINS, 2016), ou seja, não produziram filosofia. Para Cotrim e Fernandes (2016), na história do pensamento ocidental, a filosofia nasceu na Grécia por volta do século VI (ou VII) a.C. Em outras palavras, a filosofia grega nasceu promovendo a passagem do saber mítico ao pensamento racional (COTRIM; FERNANDES, 2016), demonstrando ser o saber racional uma herança estritamente grega. Igualmente, Chauí (2013) salienta que para os historiadores da filosofia a própria filosofia tem data e local de nascimento determinados: fim do século VII a.C. e início do século VI a.C., na cidade de Mileto, uma colônia grega no território da atual Turquia, sendo que o primeiro filósofo foi Tales de Mileto.

 

Considerações finais

A partir de uma análise crítica do Guia do PNLD de 2012, é patente que as três obras didáticas de filosofia, selecionadas pela comissão avaliadora, coadunam-se com a tradição filosófica ocidental, corroborando o estatuto do nascimento da filosofia na Grécia antiga. Em outros termos, a avaliação da comissão do PNLD 2012 é apenas um atestado do ‘não lugar’/não ser epistemológico da Filosofia Africana nos livros didáticos da área de filosofia para o ensino médio no Brasil.

Percebe-se que tais livros não enfocam o problema da legitimidade e historicidade da Filosofia Africana no âmbito educacional, evidenciando que temos ainda, no contexto da tradição filosófica ocidental, um racismo epistêmico arraigado, que tem como consequência a quase ausência da Filosofia Africana nos currículos e nas obras didáticas de filosofia. Isso atesta que há uma invisibilidade e também uma postura de silenciamento da Filosofia Africana no discurso acadêmico brasileiro, demonstrando deste modo a necessidade e a continuidade da resistência epistemológica por um currículo e livros didáticos de filosofia afrocentrados. Para tanto, entendemos que é imperativo a tarefa de explicitação e desconstrução do discurso filosófico moderno e contemporâneo, engendrado no continente europeu, que não reconhece a epistemologia africana como filosofia, com vistas a demarcar o lugar epistemológico da Filosofia Africana na história da filosofia e, por consequência, nos livros didáticos.

 

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Notas

1 É importante aqui esclarecer o que designa a expressão Filosofia Africana, utilizada na estrutura desse artigo. Conforme Outlaw Jr. (2004, p. 90), “‘Africana Philosophy’ é um conceito bastante heurístico - isto é, um conceito que sugere orientações para empenhos filosóficos de filósofos profissionais e outros intelectuais dedicados a questões pertinentes aos povos e indivíduos africanos e descendentes de africanos. ‘Africana Philosophy’, então, destina-se a facilitar a organização do passado, presente e futuro de articulações e práticas ‘filosóficas’ por descendentes de africanos e a partir de seus interesses”.

2 Tal artigo, Eurocentrismo e racismo nos clássicos da filosofia e das ciências sociais, de Walter Praxedes, sempre que citado não constará paginação porque o original não possui.

3 O aporte teórico que fundamentou a avaliação e a seleção dos três livros didáticos do PNLD de 2012 foi a tradição filosófica ocidental, que corrobora e propaga a tese de que a filosofia nasceu na Grécia no século VII a. C. e que silencia qualquer tipo de filosofia fora do eixo histórico eurocêntrico. Essa tese e, por conseguinte, o modus operandi teórico do PNLD de 2012 encontra-se no cerne do processo de avaliação e seleção de livros didáticos de filosofia dos guias do PNLD de 2015 e 2018. Nesse sentido, esclarecemos que o recorte proposto no artigo, circunscrito ao guia do PNLD de 2012, justifica-se porque não há a superação do PNLD de 2012 pelo de 2015 e 2018. Os três livros do PNLD de 2012 estão nas edições de 2015 e 2018, e mesmo com a inclusão de mais dois livros no PNLD de 2015, a saber, as obras de Meier (2014) e Gallo (2016), o fundamento teórico é o mesmo. Sílvio Gallo concorda com a tese supracitada, inclusive apresentando as razões do por que o modo filosófico de pensar, com a recusa de verdades prontas e a elaboração de novos conceitos, surgiu exclusivamente na Grécia: “A civilização grega antiga construiu uma cultura pluralista; os gregos eram estimulados a pensar por si mesmos; os gregos gostavam de discutir e polemizar” (GALLO, 2016, p. 16-17, grifo do autor). De igual modo, Celito Meier deixa transparecer a sua concordância com aquilo que denomina de ‘o grande consenso entre os pensadores’, que atribui aos gregos a origem do pensar filosófico, e assim afirma: “Enquanto as civilizações orientais permanecem muito ligadas à dimensão religiosa, com a temática da vida pós-morte e das vias de purificação da alma, a civilização grega é a primeira a elaborar um pensamento que se afasta das explicações míticas e religiosas em direção às investigações científicas” (MEIER, 2014, p. 83).

Quanto aos livros didáticos do PNLD de 2018, acrescentados aos de 2012 e 2015, excetuando o de Meier (2014), temos a inserção de mais quatro obras: Savian (2016), Melani (2016), Figueiredo (2016) e Vasconcelos (2016). A novidade é que, pela primeira vez, na comissão de avaliação de 2018, teremos a participação do professor Wanderson Flor do Nascimento, da Universidade de Brasília (UnB), um especialista em Filosofia Africana e Afrodiaspórica, bem como a seleção do livro de Vasconcelos (2016), baseada em um conceito pluriversal da filosofia e que proporciona dois capítulos de filosofias não europeias. Contudo, tal novidade, a despeito de ser um fato histórico, não impediu a continuidade da hegemonia teórica eurocêntrica nos processos avaliativos do PNLD e, por consequência, nas obras avaliadas e selecionadas. Juvenal Savian Filho, por exemplo, defende a tese de que a Filosofia surgiu na Grécia no século VII a. C., embora assevere que isso “não pretende significar que em outros povos e culturas inexistiram elementos filosóficos” (SAVIAN, 2016, p. 371). Ele entende que na Ásia e na África, por exemplo, há várias reflexões e atitudes filosóficas, e mesmo nas culturas indígenas latino-americanas, há elementos filosóficos (SAVIAN, 2016). Contudo, Savian conclui o seu argumento ressaltando que do ponto de vista técnico, a prática que se autodenominou filosófica ou que se auto intitulou de Filosofia é algo que, da perspectiva histórica, nasceu na Grécia (SAVIAN, 2016, grifo do autor).

Ricardo Melani, por sua vez, demonstra interesse em uma tendência engendrada por historiadores que levam em consideração as contribuições externas à Grécia e, ao mesmo tempo, destacam os aspectos originais do pensamento grego (MELANI, 2016). No que concerne à origem da filosofia, essa tendência entende que as elaborações dos gregos não são mera continuidade da sabedoria oriental, marcada pela religião, e sim uma forma de pensamento que tem como cerne a investigação racional (MELANI, 2016). Nesse sentido, “apesar de todas as influências, a filosofia teria surgido na Grécia com os pensadores jônios” (MELANI, 2016, p. 25). O interesse de Melani por essa tendência é ratificada na medida em que o autor organiza a sua obra a partir de uma ordem cronológica da história da filosofia que demarca o seu princípio na Grécia no século VII a. C. (MELANI, 2016, 417-418).

No livro Filosofia: temas e percursos, organizado por Vinicius de Figueiredo, não há uma abordagem específica sobre a origem da filosofia, tendo em vista que a obra não adota o frequente recorte entre as áreas da filosofia ou uma ordem cronológica da história da filosofia. Ao contrário, o livro se estrutura segundo temas essenciais comuns a diversas áreas da pesquisa filosófica (FIGUEIREDO, 2016, p. 403, grifo do autor) e enfatiza, fundamentalmente, filósofos da tradição ocidental.

O livro Reflexões: filosofia e cotidiano, de José Antonio Vasconcelos, é a única obra nas três edições do PNLD que apresenta, por meio de dois capítulos, outras filosofias que não europeias, dentre elas a filosofia islâmica, as filosofias da Índia, as filosofias da China e as filosofias africanas. Vasconcelos (2016) aponta uma dificuldade para o estudo dessas filosofias, a saber: o não reconhecimento, por parte da tradição filosófica ocidental, de outras filosofias fora do seu eixo histórico. Nesse caso, Vasconcelos (2016) pauta-se num conceito pluriversal da filosofia, ou seja, a filosofia está em todo lugar, sendo um equívoco a demarcação da filosofia como herança grega.

Assim ressaltamos que o livro de Vasconcelos ser o único que abarca conteúdos de filosofias não europeias nas edições do PNLD demonstra o poder e a força da tradição filosófica ocidental no contexto brasileiro.

4 Quanto à história de formação da comunidade acadêmico-filosófica brasileira é importante salientar que ela é, predominantemente, fundamentada na forma de ensinar filosofia no Brasil, que foi principiada a partir de 1934 com o trabalho de uma missão francesa, composta por Jean Maugüé, Martial Guéroult e Victor Goldschmidt, que aportaram aqui para fundar o departamento de filosofia da Universidade de São Paulo (USP). Em um artigo de 1955, Jean Maugüé propõe as diretrizes para o ensino de filosofia na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, dentre elas a seguinte: “A leitura deve ser uma regra de vida para o estudante. Este não deve ler naturalmente senão os bons autores. É mais seguro ler aqueles que o tempo já consagrou. A filosofia começa com o conhecimento dos clássicos” (MAUGÜÉ, 1955, p. 14). Entende-se conhecimento dos clássicos como clássicos da filosofia ocidental, tendo em vista que os filósofos mencionados por Maugüé no artigo, como Tales de Mileto, Platão, Santo Tomás de Aquino, Descartes, Espinosa e Leibniz, pertencem a essa tradição filosófica. E para instrumentalizar metodologicamente essa estratégia de ensino, é proposto o método dogmático estrutural de análise textual, apresentado por Goldschmidt (1963) no texto Tempo histórico e tempo lógico na interpretação dos sistemas filosóficos, que consiste, fundamentalmente, na análise do pensamento filosófico seguindo a ordem própria de suas razões internas. Estavam lançadas as diretrizes do que seria o ensino de filosofia no Brasil até hoje.

5 No que concerne ao nascimento da filosofia, temos a tese do milagre grego, de Burnet (1994), que argumenta ser a filosofia grega nascente um rompimento com a narrativa mítica. Por outro lado, há a tese da filosofia como filha da polis (VERNANT, 2008), que relaciona o nascimento da filosofia com o advento da polis. Entretanto, essas teses já há muito foram criticadas e superadas, embora ainda defendidas por considerável parcela da comunidade acadêmico-filosófica brasileira, por importantes estudos como o de Bernal (1993) e Goody (2008). Bernal (1993, 48) demonstra historicamente que “os gregos extraíram a maior parte de sua filosofia dos egípcios”. Goody (2008, p. 12), por sua vez, assevera que depois de uma permanência de vários anos em “tribos” africanas e em um reino em Gana, se viu questionando “a pretensão europeia de ter inventado formas de governo (como a democracia), formas de parentesco (como a família nuclear), formas de troca (como o mercado) e formas de justiça, quando, pelo menos embrionariamente, tais formas já estavam presentes em outros lugares”.

6 Vale ressaltar que a equipe de avaliadores foi composta por docentes de diferentes instituições, dentre eles: Dennys Garcia Xavier (UFU), Erick Calheiros de Lima (UnB), Fernando Eduardo de Barros Rey Puente (UFMG), Henry Martin Burnett Junior (UNIFESP), João Epifânio Regis Lima (UMESP), Juvenal Savian Filho (UNIFESP), Lia Levy (UFRGS), Luiz Damon Santos Moutinho (UFPr), Marcelo Senna Guimaraes (Colégio Pedro II, RJ), Marco Antonio Valentim (UFPr), Maria Isabel de Magalhães Papaterra Limongi (UFPr), Maurício de Carvalho Ramos (USP), Pedro Ergnaldo Gontijo (UnB), Rodnei Antônio do Nascimento (UNIFESP), Silvia Faustino de Assis Saes (UFBA) e Vinicius Berlendis de Figueiredo (UFPr) (Cf. BRASIL, 2011, p. 3).

 

DOI: http://dx.doi.org/10.5902/2448065761350