“Exercícios emancipatórios” para uma aprendizagem
da filosofia no ensino médio a partir de O mestre ignorante de Jacques Rancière1
“Emancipatory exercises” for an apprenticeship of philosophy in high school from
a reading of Jacques Rancière’s1 The Ignorant Schoolmaster
Joildo Dutra de Medeiros
Professor na Secretaria de Educação do Estado da Paraíba, Riacho dos Cavalos, Paraíba, Brasil.
padrejoildo@hotmail.com - https://orcid.org/0000-0001-8567-7536
Recebido em 19 de junho de 2020
Aprovado em 24 de agosto de 2020
Publicado em 28 de outubro de 2020
RESUMO
Tomamos emprestado o termo “exercícios emancipatórios” de Walter Kohan (2003) para pensar a aprendizagem na Filosofia a partir de O Mestre Ignorante de Jacques Rancière (2002). Desse modo, o presente artigo analisa os temas “exercícios espirituais” em Pierre Hadot (2014), seus desdobramentos na Hermenêutica do Sujeito de Michel Foucault (2006) e “igualdade e emancipação” em O Mestre Ignorante para, a partir dessa última obra, se perguntar: como e quais “exercícios de pensamento” podem ser “exercícios emancipatórios” no qual a aprendizagem na Filosofia desperta o aluno para aquilo de que ele é capaz?
Palavras-chave: Exercícios; Aprendizagem; Emancipação; Filosofia.
ABSTRACT
We borrow the term “emancipatory exercises” from Walter Kohan (2003) in order to perform a reflection about apprenticeship in philosophy rooted in Jacques Rancière’s The Ignorant Schoolmaster (2002). Thus, the present article analyses the themes of “spiritual exercises” in Pierre Hadot (2014), their unfolding in Michel Foucault’s Hermeneutics of the Subject (2006), and “equality and emancipation” in The Ignorant Schoolmaster, so, from a reading of that work, to raise the question: how and which “exercises of thought” can be “emancipatory exercises” in which philosophy wakes the student up to perform that of which she or he is capable?
Keywords: Exercises; Apprenticeship; Emancipation; Philosophy.
Considerações iniciais
O presente artigo parte da seguinte pergunta: como e quais “exercícios de pensamento” podem ser “exercícios emancipatórios” no qual a aprendizagem na Filosofia desperta o aluno para aquilo de que ele é capaz? Para responder tal questionamento o artigo divide-se em três partes fundamentais e utiliza um esquema e bibliografia básica que visa indicar a partir dos autores citados, principalmente Pierre Hadot, Michel Foucault e Jacques Rancière uma proposta sobre aprendizagem na Filosofia que a considere como um “exercício de pensamento” e a Filosofia como um “modo de vida” e não como matéria e conteúdo prontos a serem repassados pelo professor ao aluno.
Assim, na primeira parte, o artigo apresenta a Filosofia como um “modo de vida” a partir do conceito “exercícios espirituais” em Hadot (2014) interpretados por Foucault (1985) como “cuidado de si”. Na segunda parte, porém, o estudo entende “exercício” como “exercício de pensamento”, ou seja, como um modo de propiciar a professores e estudantes a Filosofia como “experiência de pensamento” (KOHAN, 2009). A terceira e última parte, por sua vez, analisa o pensamento de Jacques Rancière em O Mestre Ignorante (2002) no intuito de compreender como a reflexão do autor em questão propicia a elaboração de “exercícios emancipatórios” no qual a aprendizagem na Filosofia desperta o aluno para aquilo de que ele é capaz.
A filosofia como um “modo de vida”: os “exercícios espirituais” e o “cuidado de si”
Hadot e Foucault consideram as “técnicas de si” como noção essencial para a leitura da Filosofia antiga, porém é necessário compreender que Hadot faz algumas críticas à Foucault a esse respeito2. A partir de uma perspectiva em que a Filosofia é entendida como um modo de vida, o pensamento hadotiano observa algo que deve ser primeiramente interior, iniciado em si mesmo, ou seja, ele considera primeiramente que as teorias filosóficas da antiguidade, mais precisamente as desenvolvidas a partir de Sócrates, estão ligadas intrinsecamente a uma escolha sobre determinados estilos de vida. Hadot enxerga que o agir filosófico é exercido por meio dos “exercícios espirituais”, que são práticas filosóficas que não devem ser reduzidos a meros “exercícios religiosos”, ao contrário, são esses que bebem do pensamento antigo. Encontra-se mais que visível esse agir filosófico espiritual nos epicuristas e também na escola estoica que propiciam modelos de vida nos quais se pode ver a relação de “exercícios espirituais” e Filosofia. Embora o pensamento seja tomado, de algum modo, “[...] como matéria e busca modificar a si mesmo” (HADOT, 2014, p. 20), o termo “pensamento” seria entendido como insuficiente, segundo Hadot, para intervir nesses “exercícios”: “A Palavra ‘Pensamento’, porém, não indica de uma maneira suficientemente clara que a imaginação e a sensibilidade intervêm de uma maneira muito importante nesses exercícios”. (HADOT, 2014, p. 20, grifo do autor).
Esses “exercícios” em questão, muito mais do que meros “exercícios de pensamento”,
[...] correspondem a uma transformação da visão de mundo e a metamorfose da personalidade. A palavra “espiritual” permite entender bem que esses exercícios são obra não somente do pensamento, mas de todo o psiquismo do indivíduo e, sobretudo, ela revela as verdadeiras dimensões desses exercícios: graças a eles, o indivíduo se eleva à vida do Espírito objetivo, isto é, recoloca-se na perspectiva do Todo [...] (HADOT, 2014, p. 20, grifo do autor).
Para entender os “exercícios espirituais” como prática e modo de vida deve-se beber da fonte dos Antigos, pois é lá que está a explicação da verdadeira origem e do verdadeiro significado da noção de “exercício espiritual”, mas o estudo de Hadot vai além disso, conforme o mesmo especifica (2014, p. 21):
Nosso presente estudo não gostaria somente relembrar a existência de exercícios espirituais na Antiguidade greco-latina; ele gostaria, sobretudo, de especificar todo o alcance e a importância desse fenômeno e mostrar as consequências que dele decorrem para a compreensão do pensamento antigo e da própria filosofia.
Segundo Hadot, “exercícios espirituais” são:
[...] práticas que podem ser de ordem física, como regime alimentar; discursiva, como o diálogo e a meditação; ou intuitiva, como a contemplação, mas que são todas destinadas a operar modificação e transformação no sujeito que as pratica [...] (2004, p. 21).
A Filosofia praticada no período helenístico foi marcada pelo espírito socrático. Havia praticamente quatro escolas em Atenas: a Academia de Platão, o Liceu de Aristóteles, o Jardim de Epicuro e a Stoa de Zenão. Mas iremos nos debruçar um pouco somente sobre esta última, visando que parte do argumento de Foucault fundamenta-se sobre os preceitos do estoicismo.
Os estoicos entendem a Filosofia como uma “[...] arte de viver, numa atitude concreta, num estilo de vida determinado, que engloba toda a existência” (HADOT, 2014, p. 22) e não como algo que está distante de nós, abstrato. O ato de filosofar se expressa no fato do ser humano ser melhor e progredir atingindo a verdadeira consciência cósmica, que é o conhecimento verdadeiro de si e do mundo em que vive. O homem sofre por causa das suas paixões que são “[...] desejos desordenados, medos exagerados” (HADOT, 2014, p. 22), medos de seus sofrimentos e por sua ignorância. A Filosofia auxiliará a acabar ou ao menos amenizar essas paixões, diz Hadot (2014, p. 23): “Os exercícios espirituais terão precisamente como objetivo a realização dessa transformação”. E continua: “A Filosofia vai então educar o homem para que busque alcançar apenas o bem que pode obter e busque evitar apenas o mal que pode evitar” (HADOT, 2014, p. 23).
Assim, a Filosofia para os estoicos resumia-se a uma vigília permanente de si e do momento presente. Vejamos como Pierre Hadot (2014, p. 31) resume o que constitui o filosofar para os estoicos:
Para o estoico, filosofar é então exercitar-se a ‘viver’, isto é, a viver conscientemente, ultrapassando os limites da individualidade para se reconhecer como parte de um cosmos animado pela razão; livremente, renunciando a desejar o que não depende de nós e que nos escapa, para se ater apenas ao que depende de nós – a ação reta conforme a razão.
Dentro do pensamento de Hadot, portanto, encontramos que a Filosofia para os Antigos era tida como “exercício espiritual”, ou seja, é um “exercício” que tem como fim nos fazer ir além do que enxergamos e podemos captar com nossos sentidos, fazendo-nos enxergar a nossa realidade particular e as coisas a partir de um olhar cósmico e ilimitado abrangendo todo o universo:
A verdadeira filosofia, portanto, na Antiguidade, é exercício espiritual. As teorias filosóficas são ou explicitamente postas a serviço da prática espiritual, como é o caso no estoicismo e epicurismo, ou tomadas como objetos de exercícios espirituais, isto é, de uma prática da vida contemplativa que é ela própria, em última instância, nada além de um exercício espiritual. (HADOT, 2014, p. 59).
Podemos dizer que a distinção principal entre as escolas filosóficas se dá no modo como tratam a Filosofia, isto é, como uma escolha de modo de vida. A forma usada pelas escolas filosóficas antigas para romper com o seu cotidiano, com as suas paixões são os “exercícios espirituais”. Eles visam, segundo Hadot, buscar a transformação de si e dos outros, pois “[...] os filósofos antigos tiveram em grande medida a preocupação com os outros [...]” (2016, p. 138). Cada escola filosófica define o modo como ocorrerá os seus “exercícios espirituais” de tal forma que, a sua escolha, isto é, a de aderir a uma ou a outra escola, reflete um modo de vida, uma opção existencial escolhida pela pessoa, pois “[...] a escolha inicial, própria a cada escola, é a escolha de um tipo de sabedoria [...]” (HADOT, 2004, p. 154). Segundo Hadot, não podemos desconcentrar o pensamento na Filosofia enquanto um “exercício” a ser praticado constantemente. A esse respeito, destaca o referido autor:
Na antiguidade, a filosofia é um exercício a ser praticado a cada instante; ela convida a se concentrar sobre cada instante da vida, a tomar consciência do valor infinito de cada momento presente se ele é colocado na perspectiva do cosmos, pois o exercício da sabedoria comporta uma dimensão cósmica. Enquanto o homem comum perdeu o contato com o mundo, não vê o mundo enquanto mundo, mas trata o mundo como o meio de satisfazer seus desejos, o sábio não cessa de ter o Todo constantemente presente ao espírito (HADOT, 2014, p. 272).
Segundo o filósofo francês, o pensamento antigo como modo de vida é “[...] um convite para cada homem transformar a si mesmo. A filosofia é conversão, transformação da maneira de ser e da maneira de viver, busca da sabedoria” (HADOT, 2014, p. 274).
A espiritualidade não basta para o conhecimento de si, revela-nos Foucault. Ela se vincula ou praticamente se identifica com a noção mais ampla e mais fundamental de “cuidado de si”. Em A Hermenêutica do Sujeito, Foucault introduz na primeira aula do Curso de 1982, o tema central que é a noção de “cuidado de si”, que inclui o que se pode chamar de práticas. O cuidado, porém, segundo Foucault, inclui “práticas” ou “exercícios” que ele denomina, explicitamente, de “exercícios espirituais”.
Para Foucault, a Filosofia praticada nos primeiros séculos do Império Romano retomou o cuidado de si difundido por Sócrates. Foucault (1985) identifica três “exercícios” para o cuidado de si da era imperial romana: “procedimentos de provocação”, “exame de consciência” e o “trabalho do pensamento sobre si mesmo”. Segundo Foucault (2006), é sobre o terceiro “exercício” que é iniciada a hermenêutica de si cristã. Trata-se de uma nova técnica de si, em que o mestre controla integralmente a conduta do discípulo, o qual confessa a este não só os seus pensamentos, como também os movimentos mais íntimos de sua consciência, reforçando o ideal cristão que considera que a revelação só pode ser concebida mediante a renúncia de si.
O terceiro “exercício”, que Foucault (1985) denomina “trabalho do pensamento sobre si mesmo”, trata-se de um trabalho constante de filtragem das representações. Assim, quando surge uma representação em nossa mente, devemos aplicar o cânon estoico que separa o que depende e o que não depende de nós. Devemos ter um cuidado especial com a nossa alma a fim de não aceitarmos o que nos é dado primeira e superficialmente. Segundo Foucault (1985), a espiritualidade cristã busca a origem profunda das ideias e o estoicismo, por sua vez, busca a relação entre si e o que é representado pelo si, concedendo importância somente ao que depende da escolha do sujeito.
Percebemos, assim, com Foucault que as práticas de si da era imperial romana possuíam significações sensivelmente diferentes das propostas por Sócrates. Trata-se de uma trajetória que deve ser observada a fim de entendermos até que ponto tudo isto influenciou na formação da moral cristã. Segundo Foucault (1985, p. 72):
É no quadro dessa cultura de si, de seus temas e de suas práticas que foram desenvolvidas no primeiro século de nossa era, as reflexões sobre a moral dos prazeres; é preciso olhar para esse lado a fim de compreender as transformações que puderam afetar essa moral. [...] o campo daquilo que podia ser proibido, em nada se ampliou e não se procurou organizar sistemas de proibições mais autoritárias e mais eficazes. A mudança concerne muito mais à maneira pela qual o indivíduo deve se constituir como sujeito moral.
Para Foucault (1985), o desaparecimento da estrutura dialética é uma das grandes diferenças entre a época de Platão e a era imperial romana. Nesta última, o indivíduo passa a ter a obrigação de ouvir o seu mestre e de ficar em silêncio e, por outro lado, praticar a escuta de si próprio como instrumento para o descobrimento da verdade. Para Platão, a verdade está escondida no próprio indivíduo. Já para os estoicos, a verdade passa a ser descoberta no preceito dos mestres. Segundo Foucault (1985), a memória tem valor crucial no estoicismo na medida em que possibilita a conversão do que o mestre disse em regra de conduta.
A Filosofia é, portanto, para Foucault, um trabalho sobre si mesmo, para tornar-se diferente do que se é, espaço de liberdade que se realiza por meio do “êthos”. O cuidado de si como modo de vida se faz cada vez mais necessário nas relações educacionais. Atualmente, no contexto de uma sociedade individualista, o termo cuidado de si pode aparecer como sinônimo de egoísmo. Para Foucault (1985), foi a partir do cristianismo que o cuidado de si tornou-se algo suspeito e denunciado como uma forma de amor a si próprio, como egoísmo, uma contradição com o interesse que se deve ter em relação com outros, ou ainda, com o sacrifício que é preciso ter de si mesmo. No entanto, apropriando-se do sentido grego, o cuidado de si, segundo Foucault (1985), torna possível um outro modo de se relacionar consigo, pois ao mesmo tempo em que se constitui uma ferramenta de formação indispensável para resistir e se libertar do empobrecimento de si provocado pela experiência moderna, também torna-se um fundamento para o acolhimento do outro. Sendo assim, torna-se ainda cada vez mais necessário pensar a formação de si, na qual o cuidado de si é indispensável para cuidar do outro e conviver com as diferentes formas de vida.
A proposta de Foucault (1985) é a de que os “exercícios espirituais” praticados pelos gregos constituam um instrumento positivo na formação de um novo indivíduo. Por mais que o cuidado de si seja também um cuidado dos outros, Foucault propõe que nos comportemos como um grego, independente do contexto histórico e cultural no qual estejamos imersos.
Tanto Foucault como Hadot, em momentos diferentes, propiciaram uma atualização para os dias de hoje da concepção filosófica presente na Antiguidade, seja no Cuidado de Si (FOUCAULT, 1985) como nos Exercícios Espirituais e Filosofia Antiga (HADOT, 2014). Ambos propiciaram uma noção de Filosofia que exercita a formação de si, ou seja, através do “diálogo socrático” e dos “exercícios espirituais”, todos poderiam cuidar da transformação de si. Pensar “exercício” como “exercício de pensamento” é o que veremos a seguir no decorrer da escrita. É importante frisar antes que não se tratava de avaliar as propostas dos dois filósofos, mas pensar a Filosofia como uma atividade ou como um modo de viver que implica a vida dos que a cultivam, muito mais do que um conjunto de saberes a serem repassados e adquiridos. Essa atividade é pensada como um “exercício”. Embora Hadot tenha preferido muito mais o termo “espiritual” para especificar esse “exercício”, iremos seguir a proposta de pensar com Kohan (2003) a Filosofia como um “exercício de pensamento” e será o que vamos especificar a seguir.
A filosofia como exercício e experiência de pensamento
Como Kohan (2003) também compreendemos que “exercício” deve ser entendido como “exercício de pensamento” e para nós isso indica tanto que o “exercício” provém do “pensamento” quanto que a “matéria” do “exercício” é o “pensamento” (2003). Noutro momento, Kohan (2012, p. 30) diferencia uma Filosofia que pode ser propiciada a professores e estudantes “[...] não como saber ou conteúdo, mas como experiência de pensamento [...]”. Para aprofundar essa temática vamos partir da exploração do conceito de “exercício de pensamento”.
A ideia de experiência também rodeia a própria prática da Filosofia, nos diz Kohan (2012). A Filosofia tem discutido muito esta questão ao longo da história. Nesse sentido procura não só saber a realidade das coisas, mas procura ter uma postura que tem como resultado uma ação reflexiva dentro da própria realidade que a cerca:
De modo que a filosofia é este exercício ou experiência de pensamento em que a forma e o conteúdo se confundem na busca de pensar sempre de outra maneira, de não consagrar ou legitimar o que já se pensa e se sabe, mas de buscar sempre outras formas de pensar e saber. (KOHAN, 2012, p. 39).
No momento em que nos deparamos com o cenário de uma educação na qual os nossos jovens não se interessam em problematizarem acerca de si mesmos e da realidade que os cerca, é preciso pensar como Foucault, nos diz Kohan, que o professor em sua sala de aula para a sua prática pedagógica deve fazer acontecer a relação entre transmitir verdades, mas também “[...] problematizar a relação que se tem com a verdade” (KOHAN, 2012, p. 38).
O porquê dessa resposta é a crença de que um dos principais papéis da Filosofia é desenvolver em suas atividades de reflexão a expressão da diversidade das potencialidades humanas. Isso não se faz apenas com a aquisição de informações, mas, sobretudo, com o desenvolvimento de atitudes, com uma reflexão acerca da compreensão da realidade. A Filosofia deve promover a autonomia crítica dos educandos; esse deve ser o papel dela na educação dos indivíduos que estão inseridos nos vários ambientes escolares e acadêmicos. A Filosofia deve promover também a capacidade do indivíduo de ouvir, ler, compreender e escrever, para ter os subsídios necessários para argumentar com clareza, seja para sustentar uma posição, para questioná-la ou mesmo suspendê-la, segundo o “exercício” pleno e responsável da liberdade de pensamento. De Foucault, aprendemos também, continua Kohan, a valorizar os diversos tipos de “exercício” que lá existem e também a desconfiar das “boas intenções” que não atendem a esses “exercícios” que nas instituições de ensino se praticam:
De Foucault aprendemos também a olhar a escola como um dispositivo moderno disciplinar, a estar atentos aos diversos modos de exercício de poder que nela se praticam, a desconfiar das evidências e das boas intenções que parecem desatender os modos instituídos de exercer o poder. Aprendemos também que somos constituídos pelas relações de poder que estamos exercendo e que a filosofia, como exercício e experiência, talvez possa nos ajudar nisto: a compreender o que estamos sendo para podermos ser de outra maneira (KOHAN, 2012, p. 39).
A Filosofia enquanto auxilia na compreensão da realidade, analisa a realidade e não pode fugir da discussão criadora; e nós, docentes, principalmente enquanto professores de Filosofia no Nível Médio, devemos atuar de forma motivadora promovendo nos educandos as condições necessárias para a reflexão filosófica na compreensão da realidade.
O ensino e a aprendizagem podem propiciar uma maneira de se chegar a uma transformação. O que nos propomos a fazer é buscar em nós mesmos nos relacionando com os outros e com o mundo esse desejo de realidade, que não é diferente do desejo de experiência da vida que cada indivíduo traz consigo ao longo da sua existência. E a Filosofia tem esse papel com a transformação do pensamento. Assim nos sugere Sócrates, segundo Kohan (2009, p. 83, grifo do autor):
Sócrates sugere que a filosofia tem um compromisso com a transformação do pensamento. É certo que às vezes fracassa (como no Eutífron), não só porque o outro continua pensando da mesma maneira, mas também porque ele mesmo continua situado no mesmo lugar no pensamento. Mas, quando funciona plenamente, abre um espaço de transformação para uns e outros, em relação com o pensamento que se tem e a vida que se leva.
Dessa forma, Kohan continua sugerindo que “[...] ensinar e aprender filosofia são uma oportunidade para transformar o que pensamos e com isso o modo em que vivemos e somos [...]” (2009, p. 83). A experiência dá sentido à educação transformando a realidade e a vida dos indivíduos. Segundo Kohan (2009), esta discussão surge no momento em que o ensino ou a educação deve ser concebido como algo decisivo na formação da construção do diálogo crítico, autônomo e transformador:
Não define a forma específica da transformação para além de um sentido que afirma para ela. Simplesmente, abre a oportunidade de poder pensar e viver de outra maneira. Do mesmo modo, a filosofia não transforma uma ordem social para instituir outra, mas transforma o que somos e o modo como pensamos em uma ordem social dada para abrir a possibilidade de pensar e viver uma nova ordem. Isso a faz revolucionária, ainda que não esteja a serviço de nenhuma revolução social específica (KOHAN, 2009, p. 83).
Como vimos, o caminho que percorremos partiu da leitura que Kohan (2012) e no fato de que para ele a Filosofia pode ser propiciada como uma “experiência de pensamento”, pois o termo “exercício” aqui deve ser interpretado como um “exercício de pensamento”. Porém, para esclarecer essa abordagem fomos buscar a ideia de “exercícios espirituais” em Hadot (2014) quando sugere que a noção de Filosofia Antiga como ascese seja disponibilizada para todos como uma alternativa ao discurso filosófico moderno e Foucault (1985) que, por sua vez, oferece uma alternativa em que a vida individual passa a ser definida com um cuidado permanente de si.
A seguir, analisaremos o pensamento de Jacques Rancière “[...] como o exercício de um mestre que se interroga a si mesmo [...]” (KOHAN, 2003, p. 224). A partir de O Mestre Ignorante pretendemos compreender os “exercícios emancipatórios” nos quais aprendizagem da Filosofia desperta o aluno para aquilo de que ele capaz.
Os “exercícios emancipatórios” e a aprendizagem em filosofia
Tomamos emprestado o termo “exercícios emancipatórios” de Kohan (2003, p. 224) quando o autor pensa a obra O Mestre Ignorante de Jacques Rancière como exercício emancipatório “[...] de leitura que nos força a pôr em questão o modo e o sentido com que ensinamos, as forças que nos movem a fazê-lo, as apostas políticas que, conscientemente ou não, afirmamos em nossa prática [...]”. Para aprofundar essa temática vamos partir da exploração do conceito de “igualdade e emancipação” em O Mestre Ignorante de Jacques Rancière.
Sabemos que o ensino e a aprendizagem de Filosofia no Nível Médio deve estar profundamente interligado ao cotidiano dos jovens alunos de modo a contribuir para uma educação fundada num processo criativo capaz de ser verdadeiramente emancipatória. Enquanto aliado e, por essa razão, possível contribuinte à construção da identidade e da autonomia dos discentes como sujeitos que possam assumir suas próprias histórias, em vez de aceitarem tudo como lhes é oferecido (GHEDIN, 2009, p. 62), a aprendizagem de Filosofia - compreendida como parte de um processo educativo que caminha de modo a proporcionar a construção de uma consciência crítica dos alunos envolvidos - certamente contribuirá para uma abrangência maior da compreensão de si mesmos e, por conseguinte, da visão de mundo que trazem consigo, uma vez que tal visão diverge, geralmente, de modo considerável da postura indagadora e problematizadora da Filosofia.
Para explicitarmos melhor a respeito dessa visão de mundo que os alunos do Ensino Médio trazem consigo, com raras exceções, ajuda-nos Rodrigo (2009, p. 57), que “[...] Imersos em uma visão comum de mundo, seus horizontes são delimitados por certezas cristalizadas e um conjunto de crenças pouco fundamentadas que, contudo, quase nunca são postas em questão [...]”. Partir da própria realidade dos alunos, portanto, como possibilidade para a instauração de uma postura indagadora é conduzi-los a perceberem aquilo que não conseguem ver por conta própria. Nesse sentido, o ensino de Filosofia tem muito a contribuir, pois o universo da problemática filosófica é o universo das possibilidades (CAMPANER, 2012, p. 27).
O fato é que quando pegamos a pensar sobre a necessidade ou utilidade da Filosofia, como quem deseja justificativa a respeito de sua presença no currículo do Ensino Médio, sempre nos fica mais evidente que é fundamental elaborar uma proposta de aprendizagem de Filosofia para jovens discentes que tenha relação estreita com a vida cotidiana deles na perspectiva de colocar em prática, pela radicalidade do interrogar filosófico, o manejo das habilidades argumentativas desse saber em busca de uma compreensão, por parte dos alunos, de si mesmos e, consequentemente, de suas inserções na realidade atual conduzindo-os a serem protagonistas de suas histórias. Desse modo, urge-nos sustentar uma aprendizagem de Filosofia que possa contribuir, assim, para o desenvolvimento pessoal dos alunos e para o enfrentamento dos desafios a eles apresentados para saberem conviver e interagir efetivamente nas mais diversas realidades que se descortinam na sociedade contemporânea.
Contrário a essa concepção – aqui aparecerá a problemática por nós vivenciada enquanto professor de Filosofia - o processo educacional proposto, no qual a própria Filosofia faz parte, muitas vezes não acontece de modo a contribuir para instaurar aquilo que Ghedin (2009, p. 61) destaca como sendo necessário para superar as mentalidades dominantes que, historicamente, tem sido condicionantes das diversas sociedades e, por consequência, do processo escolar proposto no nosso educandário de ensino, ou seja, uma visão crítica que procure “[...] ler e interpretar o sentido e o significado da concepção de mundo predominante em nossa sociedade para encontrar e erigir caminhos de possibilidades na construção de um sujeito cidadão e autônomo”. Julgamos que a realidade vivenciada por nós enquanto professor de Filosofia no Nível Médio, pode nos dizer muito a respeito da compreensão de Filosofia sob a qual é erigido o ensino de Filosofia e de contributos possíveis desse saber para um fazer educativo que possa vir a ser um caminho aberto para pensar a si mesmos e a própria realidade, como deve ser no Ensino Médio.
Mas, se nos perguntarmos sobre o porquê da Filosofia tomar para si as preocupações acima elencadas, poderemos nos convencer de que é fundamental que o ensino se aproxime das questões reais do cotidiano do alunado e, desse modo, logo cedo serão despertados para o horizonte filosófico. A esse respeito, ajudam-nos Aspis e Gallo (2009, p. 76):
É importante pensar que o que poderá, desde o início, trazer o interesse dos alunos para as aulas é a aproximação que se possa fazer das questões a serem tratadas e nossas vidas, nossa realidade. Certamente se conseguirmos logo no começo mostrar aos alunos que a filosofia trata das questões humanas mais fundamentais e que estas são exatamente aquelas com as quais nos debatemos quando não estamos por demais tomados pelo corre-corre do cotidiano, isto aumentará seu interesse [...].
Nesse sentido, para tratar acerca dos contributos do ensino e aprendizagem de Filosofia como parte integrante de um processo educacional no qual possa contribuir para o desenvolvimento da emancipação dos educandos será pretensão nossa seguir de perto Jacques Rancière, a partir de O Mestre Ignorante (2002), na busca da reflexão e possibilidade de prática de uma educação emancipadora que surja do próprio aluno e o coloque como protagonista do seu próprio processo de aprendizagem. Ao opor-se aos métodos pedagógicos tradicionais, isto é, àqueles que ensinam um conhecimento e não um caminho de aprendizagem, a experiência de J. Jacotot descrita no texto de Rancière (CAMPANER, 2012, p. 42) ajudar-nos-á na problematização aqui proposta, a saber, naquilo que se refere à aprendizagem na Filosofia no Ensino Médio: “No que se refere ao ensino de Filosofia, a reflexão de Rancière nos permite afirmar que é possível um ensino nesses termos, ou seja, que um mestre desperte o aluno para aquilo de que é capaz” (CAMPANER, 2012, p. 42).
A novidade trazida por Jacques Rancière em sua obra O Mestre Ignorante, ao enfatizar a experiência do “método do ensino universal” do pedagogo francês do século XIX Joseph Jacotot que se opôs aos métodos pedagógicos tradicionais, foi a afirmação de que o aprendiz pode tanto quanto pode o mestre e o que liga um ao outro é à vontade (CAMPANER, 2012, p. 42). Na verdade, a única condição para que aconteça o processo de ensino e de aprendizagem é a de que “aquele que não sabe deve ser emancipado intelectualmente, o que significa ter a consciência de quem é o outro, compreender que o outro é igual a si” (CAMPANER, 2012, p. 42).
Segundo Rancière (2002, p. 122), é necessário colocar em questão as pedagogias baseadas na lógica da explicação: “Com efeito, sabemos que a explicação não é apenas o instrumento embrutecedor dos pedagogos, mas o próprio laço da ordem social”. Segundo ele, a lógica da explicação contribui para ampliar a distância entre o aprendiz e a matéria a aprender e não para reduzi-la. A explicação é a “arte da distância”, diz Rancière, entre o aprender e o compreender e
[...] comporta, assim, o princípio de uma regressão ao infinito: a reduplicação das razões não tem jamais razão de se deter. O que detém a regressão e concede ao sistema seu fundamento é, simplesmente, que o explicador é o único juiz do ponto em que a explicação está, ela própria, explicada. (RANCIÈRE, 2002, p. 18).
Portanto, nesse sentido o segredo do mestre explicador é reconhecer que existe esta distância e aboli-la do seu meio:
O segredo do mestre é saber reconhecer a distância entre a matéria ensinada e o sujeito a instruir, a distância, também, entre aprender e compreender. O explicador é aquele que impõe e abole a distância, que a desdobra e que a reabsorve no seio de sua palavra (RANCIÈRE, 2002, p. 18, grifo do autor).
No contexto proposto pelo nosso artigo, a saber, de que é preciso repensar o ensino e a aprendizagem de Filosofia no Nível Médio acerca das contribuições que esse saber pode dar à formação dos nossos jovens, a compreensão de emancipação intelectual de O Mestre Ignorante nos servirá como um verdadeiro “exercício” de Filosofia para nos perguntarmos acerca do por que e para que aprender Filosofia no Nível Médio. Além disso, será possível repensar a respeito do que esse ensino tem feito conosco mesmos e com os outros no ambiente de sala de aula, a partir do que Rancière (MASSCHELEIN, 2003, p. 283) compreende “vontade” como potência de se mover, de se pôr a caminho, de ir ver e de falar por si próprio.
Sobre a relação entre a vontade e o Mestre Ignorante podemos perguntar:
O que é um mestre ignorante? É um mestre que não transmite seu saber e também não é o guia que leva o aluno ao bom caminho, que é puramente vontade, que diz à vontade que se encontra a sua frente para buscar seu caminho e, portanto, para exercer sozinha sua inteligência, na busca desse caminho (VERMEREN; CORNU; BEVENUTO, 2003, p. 188).
No momento em que nos deparamos com o cenário de uma educação na qual os nossos jovens não se interessam em problematizar acerca de si mesmos e da realidade que os cerca, o pensamento de Rancière nos instiga a tentar vislumbrar um processo educacional no qual os próprios alunos se encontrem no espaço da Escola através de uma postura de quem demonstre que é capaz de se compreender e entender o meio no qual estão inseridos apesar da lógica de uma educação impositiva que teima a figurar nos Educandários de nosso país.
Portanto, nesse sentido uma
[...] educação emancipadora seria aquela que, invertendo a lógica do sistema explicador, demonstrasse ao aluno que ele é capaz de compreender por si só, pelo poder da sua própria inteligência. E uma tal subversão só é possível a partir de um postulado de base: a igualdade das inteligências. Partindo-se desse princípio, verdadeiro pivô filosófico da descoberta feita por Jacotot, seria possível tornar-se de fato um mestre emancipador (NETTO, 2003, p. 277).
A partir de sua crítica à lógica da explicação e ao modelo socrático, Rancière extrai como princípio necessário do ensinar a igualdade das inteligências. No terceiro capítulo de O Mestre Ignorante, “A razão dos iguais” (2002, p. 55-82), Rancière argumenta sobre o que se pode fazer a partir desta suposição. Para ele, é suficiente que essa opinião seja possível, que nenhuma verdade ao contrário seja demonstrada. Ali também argumenta contra quem afirma que é evidente que as inteligências são desiguais. O argumento básico é que na idade mais tenra dos seres humanos não existem tais diferenças, produzidas por um diferente “exercício das inteligências” ou por uma atenção maior ou menor nesse “exercício”.
Pode-se, assim, sonhar com uma sociedade de emancipados, que seria uma sociedade de artistas. Tal sociedade, repudiaria a divisão entre aqueles que sabem e aqueles que não sabem, entre os que possuem e os que não possuem a propriedade da inteligência. (RANCIÈRE, 2002, p. 80).
E, nesse sentido, continua Rancière (2002, p 81-82, grifos do autor):
A inteligência não é potência de compreensão, que se encarregaria ela própria de comparar seu saber a seu objeto. Ela é potência de se fazer compreender, que passa pela verificação do outro. E somente o igual compreende o igual. Igualdade e inteligência são termos sinônimos, assim como razão e vontade. Essa sinonímia que funda a capacidade intelectual de cada homem é também aquela que torna uma sociedade em geral possível. A igualdade das inteligências é o laço comum do gênero humano, a condição necessária e suficiente para que uma sociedade de homens exista.
A emancipação intelectual não pode institucionalizar-se, mas sim pode ser praticada: “[...] é preciso aprender qualquer coisa e a isso relacionar todo o resto, segundo esse princípio: todas as inteligências são iguais” (RANCIÈRE, 2002, p. 107, grifos do autor).
Segundo o autor de O Mestre Ignorante, “Seu método [de Jacotot] era próprio para formar homens emancipados [...]” (2002, p. 108, grifo nosso). Rancière e Jacotot não se preocuparam com algumas especificidades. Por exemplo, não se interessam por saber se a emancipação intelectual é aplicável a qualquer saber; também não se preocuparam pela aplicação da emancipação e aprendizes de diversas idades ou pela sua tradução pedagógica – ainda fora das instituições – da emancipação universal.
Essa é a única vantagem, a vantagem única da emancipação intelectual: cada cidadão é também um homem que realiza uma obra, com a pluma ou qualquer outro instrumento. Cada inferior superior é também um igual, que narra e faz com que o outro narre o que viu. É sempre possível trabalhar essa relação consigo mesmo, reconduzi-la à sua veracidade primeira, para despenar no homem social o homem razoável (RANCIÈRE, 2002, p. 114, grifo do autor).
Portanto, nesse sentido, diz Rancière, Jacotot sabia que a emancipação universal não se engrenaria em qualquer sistema, porém, também sabia que ela nunca iria morrer, pelo menos como possibilidade e ousadia do pensamento. “Para ele, emancipar queria dizer substituir as trevas pela luz [...]” (RANCIÈRE, 2002, p. 121). E continua: “[...] a desordem do embrutecimento deixava espaço para a emancipação” (RANCIÉRE, 2002, p. 124). No entanto:
Bastaria aprender a ser homens iguais em uma sociedade desigual – é isto que emancipar significa [...]. A tarefa à qual as capacidades e os corações republicanos se consagram é construir uma sociedade igual com homens desiguais, reduzir indefinidamente a desigualdade (RANCIÈRE, 2002, p. 138, grifos do autor).
A partir de Rancière (2002) retomamos a ideia de “igualdade e emancipação” e a crítica que o mesmo faz às pedagogias baseadas na lógica da explicação. Para nós isso significa que a Filosofia não pode ser aprendida numa lógica da explicação, ela precisa de uma outra lógica. Expressa nos “exercícios emancipatórios”, essa “outra lógica” da aprendizagem da Filosofia na Escola, portanto, deve se sustentar na “emancipação intelectual”, segundo O Mestre Ignorante, e numa relação com a Filosofia na qual se privilegie não a transmissão ou o “passar” e o “reter” saberes e conteúdo da tradição, inócuos para a vida do aluno, mas na experiência do pensar que leve professores e alunos a uma transformação da relação com a própria Filosofia, com a Escola e com a Vida.
Considerações finais
O presente artigo quis mostrar que o ensino e aprendizagem da Filosofia no Nível Médio concebe-se como uma disciplina decisiva na formação da construção do diálogo crítico, autônomo e transformador, sempre procurando despertar no aluno o desejo por um conhecimento diferenciado de todo o currículo escolar. O artigo procurou focar também na hipótese de que é preciso repensar o ensino e a aprendizagem de Filosofia a partir da nossa própria prática enquanto docentes e avaliar as nossas metodologias em sala de aula, dedicando especial ênfase a um verdadeiro “exercício” para a reflexão sobre o próprio ensino de Filosofia no Nível Médio, mas, além disso, de um estudo aprofundado a partir do que temos feito num ambiente escolar específico.
Assim, procurou-se compreender os “exercícios espirituais” tratados na Filosofia do francês Pierre Hadot, que foi interpretado também pelo francês Michel Foucault como “cuidado de si”. Aqui, procurou mostrar o ensino de Filosofia como modo de vida, em que fosse possível compreender seu (des) aprender como uma experiência singular, no qual a tarefa da Filosofia como problematização e transformação de si é condição para a vivência de diferentes experiências e formas de vida. Neste sentido, procuramos analisar Kohan que nos trouxe a oportunidade de pensar “exercício” como “exercício de pensamento”, nos proporcionando a enxergar a Filosofia como “experiência de pensamento”.
Finalmente, tivemos a lição da emancipação de um mestre que se emancipa a si próprio, que ensina que a emancipação não tem a ver com um conteúdo, que ninguém pode emancipar ninguém, que o aprendiz pode tanto quanto o mestre, mas não sem o mestre. Afinal, aprendemos com a experiência de um pedagogo do século XIX que só há uma única educação que vale a pena: a que emancipa. Quem não deixa que os outros se emancipem, embrutece.
Assim, a aprendizagem da Filosofia no Ensino Médio deve acontecer por meio de “exercícios emancipatórios”. Aqui é a oportunidade para retomar a noção de que a Filosofia é uma atividade do pensamento, ou seja, um “exercício” e uma “experiência”; retomar o conceito de emancipação de Rancière e esclarece a relação entre “exercício” e “emancipação” como proposta para pensar a aprendizagem na Filosofia.
Os “exercícios emancipatórios”, se de fato forem emancipadores, não é uma didática para o professor ensinar, mas um caminho de pensamento para o aluno aprender. É isso que a Filosofia propicia a quem dela se aproxima, seja ele professor ou aluno: “[...] a Filosofia é este exercício ou experiência de pensamento em que a forma e o conteúdo se confundem na busca de pensar sempre de outra maneira [...]” (KOHAN, 2012, p. 39).
Portanto, deveremos repensar a ideia que a Filosofia “contribui” para a consciência crítica; para uma visão crítica; para um pensamento crítico; para fazer do aluno um cidadão autônomo; para o desenvolvimento pessoal do aluno; para enfrentar desafios... tudo isso a Filosofia pode fazer, mas o que ela deve fazer é levar alunos e professores a “pensar sempre de outra maneira” ou “buscar sempre outras formas de pensar e saber”. Talvez aqui esteja o sinal de igualdade entre professor e aluno, pois sempre se deve buscar outra maneira de pensar e saber.
Referências
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RANCIÈRE, Jacques. O Mestre Ignorante: Cinco lições sobre a emancipação intelectual. Trad. Lílian do Valle. Belo Horizonte: Autêntica, 2002. (Série: Educação, Experiência e Sentido).
RODRIGO, Lídia Maria. Filosofia em sala de aula: teoria e prática para o ensino médio. Campinas: Autores Associados, 2009.
VERMEREN, Patrice; CORNU, Laurence; BENVENUTO, Andrea. Atualidade de O Mestre Ignorante. Entrevista concedida por Jacque Rancière. Educação & Sociedade, vol. 24, n. 82, p. 185-202, 2003. Disponível in: http://www.scielo.br/pdf/es/v24n82/a09v24n82.pdf. Acesso em 24 de setembro de 2018.
Notas
1 Artigo apresentado no VI Encontro do GT Filosofar e Ensinar a Filosofar, ligado à Anpof – Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia. O evento foi realizado no período de 15 a 17 de outubro de 2019 na UFMA, em São Luís-MA.
2 “Um outro ponto de divergência entre mim e M. Foucault se situa a propósito da questão: a partir de que momento a filosofia deixou de ser vivida como um trabalho de si sobre si (seja para realizar uma obra de arte ou para se ultrapassar na totalidade)? De minha parte, penso que essa ruptura deve se situar na Idade Média, no momento em que a filosofia tornou-se auxiliar da teologia e no qual os exercícios espirituais foram integrados à vida cristã e tornaram-se independentes da vida filosófica: a filosofia moderna redescobriu pouco a pouco e parcialmente a concepção antiga. Foucault, ao contrário, faz de Descartes o responsável por essa ruptura: ‘Antes de Descartes, um sujeito não podia ter acesso à verdade a menos que primeiramente realizasse sobre si um certo trabalho que o tornasse capaz de conhecer a verdade’. Segundo Descartes, porém, ‘para alcançar a verdade, basta que eu seja um sujeito capaz de ver o que é evidente’. ‘A ascese é substituída pela evidência’. Não estou completamente seguro de que isso seja exato. Descartes escreveu Meditações: a palavra é muito importante. E, a propósito das Meditações, ele aconselha seus leitores a empregar alguns meses ou, ao menos, algumas semanas para ‘meditar’ a primeira e a segunda, nas quais fala da dúvida universal, depois da natureza do espírito. Isso mostra bem que, para Descartes, também a evidência só pode ser percebida graças a um exercício espiritual. Penso que Descartes, como Espinosa, continua a se situar na problemática da tradição antiga da filosofia concebida como exercício da sabedoria. Veem-se as dificuldades que haveria para escrever uma história da concepção que os filósofos fizeram para si mesmos da filosofia. Essas poucas reflexões mal tocam os problemas que a obra de Foucault coloca, e eu tenho a intenção de voltar a ela um dia de uma maneira mais detalhada e mais aprofundada. Gostaria somente de dizer o quanto lamento que nosso diálogo tenha sido interrompido” (HADOT, 2014, p. 279-280, grifo do autor).
Correspondência
Joildo Dutra de Medeiros – Rua Pedro Velho, 108, Emboca, CEP: 59324-000, Jardim de Piranhas, Rio Grande do Norte, Brasil.
DOI: http://dx.doi.org/10.5902/2448065747459.