Universidade Federal de Santa Maria

Gutenberg - Revista de Produção Editorial, Santa Maria, RS, Brasil, v. 2, n. 1, p. 50-67, 2022

Submissão: 14/07/2021 • Aprovação: 22/05/2022 • Publicação: 30/11/2022

Artigo publicado sob uma licença CC BY-NC-SA 4.0

Artigo

Notas sobre o filme “essencialmente brasileiro”: Embrafilme e o cinema de qualidade

Notes on the “essentially Brazilian” film: Embrafilme and quality cinema

Apuntes sobre el cine “esencialmente brasileño”: Embrafilme y cine de calidad


Leonardo Gomes EstevesI Antonio Celso de Castro Cuyabano Jr.II

IUniversidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MG, Brasil
IIUniversidade Federal de Mato Grosso, Cuiabá, MG, Brasil


Resumo

Neste artigo, pretende-se investigar a importância da materialidade do livro para o público juvenil. Por meio de uma investigação qualitativa feita com jovens leitoras, verificamos que o uso do objeto-livro pode refletir também necessidades sociais, como o pertencimento a um grupo. Como ponto de partida teórico, esse artigo traz os conceitos de sociabilidade e identidade próprias ao universo juvenil, além de refletir sobre as características culturais atribuídas a um objeto, sob a teoria da Cultura Material.

Palavras-chave: Livro; Juvenil; Sociabilidade; Cultura Material


Abstract

In this paper we intend to present a bibliographical study of the novel Morenga, by the German writer Uwe Timm. Taking as object two editions of the work, the first, from 1978, and the third, from 1983, and starting from some questionings about the changes engaged in the presentation of the material to the readers, we will seek to understand how the editing process and the external construction of the two editions of the book connect to its content: the colonial conflict in the region of Colonial Namibia, between 1904 and 1907. To this end, we will briefly present the editions and scrutinize how, by constituting a pre-reading imaginary about the editions, their material elements can help us trace their reception.

Keywords: Brazilian cinema; Embrafilme; Nationalism; SRTV


Resumen

A partir de una entrevista con el entonces director de la Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilmes), Roberto Farias, este artículo busca indagar en la cuestión del “cine de calidad”, responsable de la producción de películas “esencialmente brasileñas”, planteada por él como institución institucional. activista. Abordaremos el tema a partir de tres ejes de discusión: sobre la constitución del concepto de calidad en el cine brasileño de la época; sobre la falta de calidad; y, finalmente, sobre las tensiones entre el extranjero y el nacional. Como conclusión, se advierte que el discurso presentado por Farias tiene grandes contradicciones.

Palabras llave: Cine brasilero; Embrafilm; Nacionalismo; SRTV


Introdução

Em 06 de agosto de 1974, Roberto Farias é nomeado diretor da Empresa Brasileira de Filmes (Embrafilme, 1969-1990) pelo então ministro da Educação e Cultura, Ney Braga. Com vasta filmografia como diretor e produtor, contendo dezenas de produções no currículo, o cineasta teria se tornado uma escolha aprovada pela classe1 e iria consolidar a integração entre o regime militar e os egressos do Cinema Novo2. Em sua defesa para o cargo, constata-se a realização de uma consistente filmografia com inegável tino comercial. Dos trabalhos marcadamente influenciados pelas chanchadas às incursões pelo gênero policial, passando pelas aventuras musicais com Roberto Carlos, Farias era um exemplo bem-sucedido de cinema com vocações industriais. A aproximação com o grupo do Cinema Novo nos anos 19603 vai tornar o cineasta um interlocutor viável para conduzir a empresa na administração militar sem, contudo, enfraquecer a participação da parcela cinemanovista mais politicamente engajada. Roberto Farias permanece no cargo até 1979. Sua gestão frente à Embrafilme será apontada como pertencente ao período mais próspero de desenvolvimento do órgão e expansão de suas atividades4.

Já no final de 1976, ano importante no âmbito da política cinematográfica institucional com a criação do Concine5, Farias dá uma entrevista6 para o SRTV (Setor de Rádio e Televisão de N° 4027, da própria Embrafilme. Em seu depoimento, de cerca de 20 minutos, o diretor celebra o ano de 1976 como um marco para a empresa. Discorre sobre o então projeto de mostra comemorativa previsto para o próximo ano8 e coloca de forma afirmativa suas intenções: “Me sinto na Embrafilme como fazendo um grande filme, com uma equipe cada vez melhor, oferecendo ao público brasileiro a melhoria de qualidade, índices de aceitação de público cada vez mais altos; e vencendo, esmagadoramente, a chamada pornochanchada”.

Em sua fala assertiva, a todo tempo enaltecendo um “cinema brasileiro de qualidade”, que irá gerar o filme “essencialmente brasileiro”, Farias está defendendo um modelo industrial. A presente prospecção visa propor um debate crítico sobre tal modelo, tomando como fonte maior a entrevista para o SRTV, disponível aparentemente como o registro bruto – incluindo perguntas de um entrevistador que não vemos, e cuja captação de áudio é inferior; e passagens do entrevistado no qual ele se dirige à equipe de filmagem. Nossa hipótese é a de que o discurso do “essencialmente brasileiro” implicará em uma visão elitista de cinema, que irá apresentar brechas equivocadas quanto à compreensão do nacional no âmbito de uma proposta que se quer apresentar. O faz sob os auspícios do regime militar e amparado por uma leitura histórica seletiva.

Para esta análise, serão debatidos três eixos de reflexão. O primeiro corresponde à questão da qualidade no cinema brasileiro. Neste trecho, apresentaremos as metas por trás do discurso da qualidade, aprofundando um paralelo ao que vinha sendo proposto pela política de financiamento da Embrafilme. O segundo eixo, complementar ao primeiro, propõe debater a pornochanchada enquanto modelo defenestrado pelo discurso de Farias e suas implicações em torno de um cinema popular, mas fora do âmbito oficial. E, finalmente, no terceiro eixo, discutiremos a questão da identidade nacional e o cinema estrangeiro tomando como parâmetro, novamente, o depoimento ao SRTV. Para iniciar o percurso, propomos uma contextualização da Embrafilme no período em que Farias fala ao SRTV, de forma a apresentar o quadro próspero do órgão e do modelo a ser aprofundado pela direção nos anos seguintes.


A EMBRAFILME, o ano de 1976 e arredores

Esta eventualmente apontado como início de uma segunda fase na história da Embrafilme, 1974 marca o ingresso de Farias e sua gestão no comando da estatal. Desse período, 1976 vai se notabilizar pela implementação de direcionamentos que serão aprofundados nos anos seguintes, levando Amancio (2000) a discorrer sobre uma “época de ouro”, restrita à fase de 1977-1981. Na ocasião de sua entrada para a diretoria, o então recém-empossado Farias defende “um cinema livre que reproduza a imagem de um povo cada vez mais estimulado pelas oportunidades de objetivar sua autoafirmação”9. Como se verá, a ideia de um “cinema livre” não corresponderá aos resultados mais expressivos oriundos do período. A sombra do regime militar e suas ferramentas de controle vão impor o tom do discurso, encaminhando os investimentos mais volumosos da estatal a projetos de certa forma comprometidos com determinados direcionamentos.

O ano de 1976, por sua vez, comporta uma série de progressos no que concerne ao desenvolvimento do cinema brasileiro em âmbito legal/ institucional. Oscilando entre 84 e 98 dias de exibição obrigatória para produções nacionais por sala ao longo da primeira metade da década, em 1976 a taxa de reserva de mercado pula para 112 dias (chegando a 140 em 1979)10. O horizonte da ocupação de telas será ainda favorecido pela “lei da dobra”, que garantia mais uma semana em cartaz para o filme brasileiro que arrecadasse renda superior ou igual à média da sala.

Estabelecido em março, mas colocado em operação em agosto de 1976, o Concine é criado a partir do esvaziamento e extinção do INC, absorvendo uma parte de suas funções e complementando tarefas de auxílio a Embrafilme em pleno ritmo de expansão. Uma das finalidades normativas do Concine, que já vinha sendo anunciado desde 1974, contempla a fiscalização quanto à exibição das produções, o que outorga ao órgão um “poder de polícia”11. Entre os projetos que o Conselho irá desenvolver está a regulação de bilheterias e bilhetes, já estabelecidos pelo INC em 1974 como uma diretriz para o controle de rendas12 . O Sistema Mecanizado de Ingressos Padronizados passa a ser divulgado em filmes curtos distribuídos nas salas do circuito comercial já no segundo semestre de 1974. Nas demais prioridades iniciais do Conselho está justamente a questão do aumento de dias da taxa de reserva de mercado.

Outro aspecto importante que merece ser lembrando, embora não tenha sido uma vitória almejada em 1976, mas no ano anterior, é a copiagem compulsória. A medida obriga todos os distribuidores estrangeiros a produzir no Brasil as cópias a serem comercializadas13. Com tal providência, os laboratórios saem fortalecidos – parte importante, embora hoje praticamente extinta, da cadeia de produção – e, no macro, o desenvolvimento do panorama industrial cinematográfico no Brasil.

No que se refere ao campo de ações para a divulgação do cinema brasileiro postas em prática pela Embrafilme em 1976 está ainda a criação do SRTV, do qual a entrevista de Farias faz parte14. Em funcionamento até 1980, o projeto reuniu um acervo de centenas de reportagens e entrevistas em 16mm (hoje depositados no CTAV – Centro Técnico Audiovisual, no Rio de Janeiro). A divulgação de boa parte desse material tinha como destino programas veiculados na TVE (hoje TV Brasil). Eram eles: Cinemateca Rio, exibido quintas-feiras às 22h; 1978, às quartas-feiras às 22:30; Coisas nossas, programa dedicado aos curtas-metragens exibido às segundas às 23h com reprise no sábado, no mesmo horário. O material era empregado também no programa Cinemateca Brasília, exibido na TV Nacional, em Brasília, e conformado a partir de conteúdos de Cinemateca Rio. Como se vê, a televisão pública garantia um bom espaço para a cobertura jornalística da produção brasileira, tendo uma programação noturna semanal em boa parte dedicada ao cinema. Sem dúvida uma estratégia incisiva para garantir o bem-sucedido escoamento da produção, o que vai de fato apresentar resultados contundentes a partir de 1976.

É preciso apontar também no período e em âmbito administrativo a presença de Gustavo Dahl, trazido para a Embrafilme como Gerente Geral de Distribuição por Roberto Farias em sua gestão. Dahl terá uma influência significativa no sucesso dos filmes trabalhados nesse artigo. Certos posicionamentos, explicitados em 1977 no artigo “Mercado é cultura”, estão em sintonia com o projeto industrial encampado por Farias. Trata-se de um forte elo institucional que irá afirmar o protagonismo do Cinema Novo na estatal.

Há, portanto, a construção de um cenário positivo que irá alicerçar as bases de um projeto agressivo de afirmação do cinema brasileiro no mercado interno levado à frente durante a gestão de Farias. Tal quadro justifica a euforia em torno dos números conquistados a partir de 1976 com obras ditas “de qualidade” e irá impulsionar a produção com base no binômio mercado/cultura.


O filme de qualidade

A questão da qualidade como argumento para a conquista do mercado nacional surge enquanto uma meta maior na fala de Farias para o SRTV. Ao que tudo indica, a entrevista parece ter se dado na própria Embrafilme, talvez em uma sala de espera, na qual se vê um sofá; uma poltrona; uma pequena mesa ao lado com dois telefones; e uma mesinha baixa central, repleta de anotações. As paredes, contudo, estão saturadas, preenchidas por cartazes de filmes da empresa, realçando quatro produções dos últimos dois anos. Atrás de Roberto há um pôster de Lição de amor (1975), de Eduardo Escorel, cujo título, sobre a cabeça do entrevistado, é de fácil leitura. E, mais acima, na parede ao lado, privilegiados como início de uma tomada que logo se projeta para baixo e torna a enquadrar Farias, há os cartazes de Xica da Silva, de Carlos Diegues, Dona Flor e seus dois maridos, de Bruno Barreto, ambos lançados em 1976, e O rei da noite (1975), de Hector Babenco. Neste cenário fechado, sem profundidade de campo e outros recursos que provoquem variações expressivas, estes títulos assumem um papel de destaque, um complemento ilustrativo documental de primeira ordem. Para a política institucional da Embrafilme, Lição de amor, O rei da noite, Xica da Silva e Dona Flor são exemplares para se pensar a questão da qualidade.

Em seu depoimento, Farias, contudo, não cita nenhum filme pelo título. Não há exemplos nominais proferidos ao longo de toda a entrevista, o que pode fortalecer o argumento da homogeneidade da produção, responsável por uma linha estável de resultados bem-sucedidos, que não justifique protagonismos. Em um determinado momento, contudo, o diretor chega a tecer um comentário que estabelece uma distinção entre a produção de 1976. O assunto é trazido a partir do projeto da mostra a ser realizada no ano que vem e sob o argumento de que quanto menos filmes brasileiros em cartaz menor seria o interesse do público nacional. Farias prossegue: “neste ano de 76 que acaba de passar, foi desmentido (o argumento do desinteresse do brasileiro por seu cinema) com dois filmes essencialmente brasileiros. E os filmes, através dos anos, que mais fizeram sucesso foram, justamente, aqueles que tratavam de temas brasileiros15 (grifos nossos).

Tomando essa fala como destaque, um dado é revelado: o filme “essencialmente brasileiro” trata de temas brasileiros e (possivelmente por essa razão) é popular, sucesso de público. A partir dessa direção, que par de filmes estaria habilitado para figurar como exemplo no depoimento de Farias? Tudo, inclusive a câmera do SRTV, aponta para Dona Flor e seus dois maridos e Xica da Silva. Vemos os cartazes dessas obras em cena, no único trecho em que o entrevistado não está fisicamente em quadro.

Em termos econômicos, a fala de Farias é muito consistente. Dona Flor foi durante muitos anos a maior bilheteria computada da história do cinema brasileiro, com mais de 10 milhões de espectadores. Será desbancada apenas nesse século por Tropa de elite 2(2010), de José Padilha. O sucesso é institucionalmente justificado: a Embrafilme destinou a maior verba de distribuição no ano de 1976 para a produção de Luiz Carlos Barreto16. Já Xica da Silva foi coproduzido pela empresa estatal, que fez aportes financeiros à produção durante três anos (1974-76), a maior até então já realizada por ela no âmbito da coprodução17, e fez público de mais de três milhões. Trata-se, segundo Gatti (1999, p. 33), dos “primeiros blockbusters da história da distribuidora”.

Outro dado importante é situar esse par de filmes, privilegiado por investimentos generosos, como um demonstrativo da influência da parte mais politicamente articulada dos egressos do Cinema Novo: Luiz Carlos Barreto e Carlos Diegues. Mais tarde, já próximo ao encerramento da Embrafilme, tal procedimento de clientelismo, indicando um “favoritismo” entre os beneficiados, vai figurar na lista de críticas à empresa18. Este episódio, Dona Flor/Xica da Silva, pode ser considerado como marco consolidado de uma política voltada para a ação entre amigos dentro da estatal.

Mas quanto à natureza desses projetos, e tomando a meta explicitada por Farias de trazer à tona “temas brasileiros”, o que eles teriam a acrescentar?

Dona flor é baseado no best seller de um autor baiano consagrado, Jorge Amado. Quando fora adaptado ao cinema, o livro já havia sido traduzido em diversos idiomas e lançado em países como Alemanha, Argentina, Estados Unidos, França, Inglaterra, Portugal e Rússia19. Trata-se, portanto, de uma produção com ambições talvez ainda maiores do que a de ocupar apenas o mercado nacional. Já a questão da adaptação literária surge na Embrafilme como um incentivo anterior à gestão de Farias, mas com grande influência do diretor. O Prêmio Embrafilme, sugerido pelo então Ministro Jarbas Passarinho e que passa a disponibilizar verbas a partir de março de 1974, é baseado na questão da adaptação. Ou ainda, como consta na ata da diretoria, pretende-se distribuir “no primeiro trimestre de cada ano, (para) dois filmes de longa-metragem baseados em obra-literária de escritor brasileiro consagrado” (AMANCIO, 2000, p. 37) a quantia de CR$ 100.000,0020. Tal episódio é flagrante para se compreender a influência do governo militar na produção cinematográfica apoiada pelo Estado, resultando na “primeira vez (que) o Estado brasileiro direcionava a produção temática de filmes” (GATTI, 1999, p. 19). Dona Flor, contudo, não é agraciado pelo prêmio, mas outro longa-metragem, do mesmo produtor e com o mesmo diretor (o filho de Luiz Carlos, Bruno Barreto) finalizado e distribuído comercialmente em 1973: Tati, a garota, baseado em conto de Aníbal Machado. O outro escolhido é Sagarana, o duelo (1974), de Paulo Thiago, adaptado de Guimarães Rosa e distribuído pela Embrafilme. Roberto Farias, enquanto Presidente do Sindicato Nacional da Indústria Cinematográfica, e Luiz Carlos Barreto, representando a Associação dos Produtores Cinematográficos, chegam a propor a mudança do nome do prêmio em fevereiro daquele ano para Prêmio Jarbas Passarinho21. Como se vê, a aproximação entre as partes é considerável e o momento é promissor para os protagonistas desse enredo.

Já em Xica da Silva, o diretor Carlos Diegues aborda a questão da escravidão no panorama histórico brasileiro também a partir da literatura. Retoma a parceria com o escritor João Felício dos Santos, iniciada em Ganga Zumba (1963) e continuada em Quilombo (1984). Aqui deve se acrescentar a questão histórica como mais um atrativo em direção ao que poderá ser considerado como um filme “essencialmente brasileiro”, valorizada pela Embrafilme e formalizada como um programa especial da estatal posto em prática em 1977. A ascendência literária e histórica são, portanto, sintomas da orientação política que é colocada em ação na Embrafilme com a chancela dos militares.

No que ainda diz respeito a Xica da Silva, a polêmica em torno dele acaba ganhando uma envergadura crítica de fôlego. Mesmo premiado e respaldado por uma sólida bilheteria, recebeu duras críticas que podem ser encaminhadas para o âmbito cultural de forma a abalar a ideia do filme de qualidade e a credibilidade dos “temas brasileiros”22.


“Vencendo, esmagadoramente, a chamada pornochanchada”: o filme sem qualidade

Não se pode dizer que Roberto Farias fora discreto ao manifestar a falta de apreço pelas pornochanchadas frente a Embrafilme. Não o é na entrevista para o SRTV e tampouco o teria sido no ano anterior pela imprensa. É preciso primeiramente observar a separação que o diretor faz entre pornochanchada e comédia erótica: “‘o Brasil deve assumir sua comédia erótica, que é gênero válido’, mas não ‘o filme debochado, que se utiliza da publicidade suja, predatória e cínica, e que procura levar o público ao cinema como a convidá-lo para uma imoralidade’”, informa em matéria23. Dois meses mais tarde, em um relatório da empresa, irá esboçar um recuo e de certa forma reconhecer a validade da produção no que tange à ocupação do mercado: “Todo gênero de filme é necessário para a conquista do mercado. A Embrafilme não se opõe a que esses filmes – as pornochanchadas – sejam feitos, nem a distribuí-los caso passem pela censura. Mas não pode produzi-los”24. Insuficiente enquanto produto de qualidade, alijada do orçamento da produção, mas válida na luta que a estatal trava contra o ocupante, o que representa a pornochanchada em termos de um cinema popular e contra o filme “essencialmente brasileiro”? É preciso, primeiro, recuar.

Os anos que precederam os 1960 são marcados por uma nova visão de mundo. Trata-se de um globo bipolarizado, marcado pela política da Guerra Fria. Como consequência desse contexto, a juventude embalada por novos movimentos (beatnik, hippie, rock) emplaca uma liberdade na forma de viver que acarreta na abertura de padrões sociais. As discussões sobre sexo e corpo, anteriormente não explicitados, passam a ser comumente colocados em pauta. O cinema como instrumento que registra ideias e hábitos a cada tempo, enreda diversas narrativas que ilustram a vontade de emancipação contra o conservadorismo.

O cinema brasileiro moderno durante os anos 1960 é caracterizado, entre outros aspectos, por uma busca incansável pelo público. Não bastava atraí-lo com a comédia exacerbada e as grandes paródias, características das chanchadas, mas sim a partir de situações do cotidiano, que buscavam representar uma identidade brasileira. Nesse cenário era possível visualizar uma quantidade de filmes estrangeiros modernos com estilísticas que buscavam romper com o classicismo cinematográfico sendo exibidos em cineclubes. Influenciados pela Nouvelle vague e pelo Neo-realismo italiano, as produções que ocupam as salas de cinema na década de 60 haviam em seu interior um sentimento jovem. A partir de debates e discussões surge um movimento cinematográfico a partir de cineastas como Joaquim Pedro de Andrade, Paulo Cézar Saraceni, Leon Hirzsman, entre outros. Seguindo esse movimento de origem carioca, vemos representações no Nordeste, com Linduarte Noronha e o nome mais expressivo do movimento, Glauber Rocha. A troca de informações entre esse grupo de jovens realizadores foi resultado da busca de uma linguagem cinematográfica que retratasse a realidade do povo. A forma concreta na qual o cotidiano deformava a liberdade era o caminho da real identidade brasileira e suas distorções sociais. Com a ambição de modificar o cinema brasileiro, o episódico Cinco vezes favela (1962) emplaca como uma espécie de marco dos primeiros anos do Cinema Novo.

Na meta modernizadora, os cinemanovistas buscavam esquecer o passado das chanchadas, não mantendo qualquer relação com essas obras, tidas, como o próprio nome sugere, como produtos mal feitos.

A Chanchada, para apenas citar um exemplo, é especificamente falante, exagerada. Grita, não fala. Salta aos olhos. Aboliram-se na Chanchada os conceitos de mise-en-scène e de linha narrativa contínua e pode-se notar com facilidade que o falar é independente do agir: os personagens posam para falar e estão sumamente preocupados com a clareza de suas palavras (NEVES, 1966, p. 14 -15).

O movimento, portanto, cresceu com a ideia de combater as chanchadas e colocar o público brasileiro na esfera de seu contexto social.

Durante os anos 60, o Cinema novo era, portanto, o centro das discussões e reflexões acerca do cinema brasileiro. O surgimento dessa nova produção é fomentado em parte no sentido de encerrar o “complexo de inferioridade cinematográfico”, expressão definida por Walter Hugo Khoury (apud NEVES, 1966 p. 14).

No entanto, a intelectualidade promovida nos filmes pertencentes ao movimento cinemanovista afastava o público de suas reais pretensões, a de um cinema com maior repercussão popular. Já na segunda metade da década de 60 e mesmo dentro do escopo modernista e seus nomes, testemunha-se iniciativas apartadas do fôlego progressista e identificadas com um apelo comercial. Essas fitas apoiavam-se na comédia e nas situações cotidianas que abordassem a conquista amorosa, a libertação sexual e a relação matrimonial em contraste com a vida livre. Produções como Os paqueras (1969), de Reginaldo Faria, e Toda donzela tem um pai que é uma fera (1966), de seu irmão, Roberto Farias, colocam na tela uma narrativa que agradava a juventude e era suportada pela crítica da época (ABREU, 2006).

No filme de Roberto Farias é possível destacar o desconforto dos personagens em torno do casamento e a propensão à vida de “libertinagens”. O caminho que a câmera percorre durante as cenas demonstra o interesse do realizador em notar as formas femininas com um viés sexual, além de criar no roteiro jogos de palavras que apresentam ambiguidades ao tratar do tema erótico. Determinadas características nessas fitas, que estavam emergindo em um tempo de controle do audiovisual e julgamento dos respectivos subtextos fílmicos, são adotadas por conta da receptividade do público e o restabelecimento da comunicação com o espectador. Com essas produções, Farias talvez estivesse definindo os limites da comédia erótica enquanto “gênero válido”, como propõe em seu argumento reproduzido acima, mantendo um suposto distanciamento do que caracterizaria como “filme debochado”. Os efeitos que esses filmes irão causar serão um aumento de produções não tão bem-acabadas e realizadas em curto tempo.

Assim, a comédia, como também outros gêneros, irá se encaminhar para a proposta do erótico. Essa tendência irá originar a pornochanchada. Será possível também notar correspondências em títulos do Cinema Novo posteriores, como Xica da Silva (1976), de Carlos Diegues. É o que aponta, de forma crítica o cineasta Carlos Frederico (1976, p. 17) ao escrever sobre o filme: “De certa forma a pornochanchada é a herdeira legítima do cinema-novo (sic), embora neguem-se mutuamente. Mas foi no cinema-novo que a pornochanchada procurou buscar os seus ‘modelos’ e ‘modismos’. Mais do que nas chanchadas italianas da Atlântida”. Entre os argumentos trazidos por Frederico para sustentar a comparação, destacamos: personagens estereotipados, sem profundidade; verbalização constante; utilização do cinema como veículo para algum fim e nunca um “fenômeno em si” (Ibidem, p. 17).

Os argumentos de Frederico podem ganhar ainda um respaldo muito particular se contextualizados na filmografia de Farias. Mas é importante observar que outros aspectos serão influentes nesse processo. A censura, enrijecida com a proclamação do AI-5, em 1968, irá afetar o cinema, provocando prisões, exílios e uma rarefação do modernismo. Nesse esvaziamento, abre-se um espaço que será preenchido pelas já citadas comédias eróticas, impactando em cheio o público. Tal quadro influenciará a estética que será apresentada nas pornochanchadas. Um bom exemplo para esse argumento está na interferência da censura sobre os fotogramas que exibiam nudez, acrescentando bolas pretas sobre genitálias e cenas com conteúdo erótico.

[...] Nasceram (as “comédias grosseiras”) no momento da Censura dita dura, no momento em que o governo, como um todo, agia como todo-poderoso serviço de censura. Nasceram aí, cresceram e se alfabetizaram aí, e aprenderam a falar a mesma língua. O princípio que levou um censor a cobrir os nus com bolas pretas é o mesmo que levou um produtor de filmes a cobrir o sexo masculino com eufemismos como Dedo de Deus, ou Pauzinho de Picolé, ou Banana Mecânica, ou Vara de Pescar, ou ainda Lingüiça de Porco (AVELLAR, 1979, p. 67).

Ainda que temporalmente fora do escopo da censura e seus meios de interdição, a tática apontada por Avellar está presente nas comédias eróticas citadas acima e dirigidas pelos Farias nos anos 60.

Tal característica, por sua vez, será marcante nos filmes paulistas. No centro de São Paulo, localizado próximo à estação da Luz, destaca-se o polo que possibilitou o surgimento de várias produções durante mais de 20 anos, a Boca do Lixo. O nome pejorativo imposto aquele espaço se dá devido a circulação de drogas e prostituição. Assim sendo, por conta de sua proximidade à estação ferroviária, ainda se trata de um local estratégico. Diversas distribuidoras se instalaram ali devido à facilidade em escoar suas produções para salas de cinema em todo Brasil por um custo menor e em curto espaço de tempo. O crescimento do volume de filmes produzidos na Boca do lixo teve grande influência sobre o momento político. Como vimos, a inclinação do governo para uma política de cotas de telas contribuiu para que o longa-metragem brasileiro tivesse maior espaço de exibição.

A partir do ano de 1970, a Boca do Lixo se assemelharia a um patamar proto-industrial, com orçamentos menores e produções ligeiras. Em seu repertório, as pornochanchadas evidenciam histórias de liberação sexual. Desde uma jovem que exerce sua dominação frente aos homens em busca do prazer sexual em A mulher que inventou o amor (1979), até o fetiche de um personagem em ver sua companheira vestida de freira, causando um efeito contrastante à imagem de castidade em Pornô! (1981). A expressão popular ganhava espaço na tela. Como consequência, várias salas eram frequentadas por um público que encontrava nas comédias eróticas brasileiras uma forma de fuga bem-humorada da realidade, distante da seriedade pretendida outrora pelos cinemanovistas. “[...] Nos filmes do cinema-novo (sic), o cinema era veículo para ‘mensagens e ‘ideias’ de olho na consagração intelectual (e internacional). Nas pornochanchadas é veículo de piadas e grossuras, de olho na bilheteria” (FREDERICO, 1976, p. 17). Essa ideia de concatenar a comédia com situações do cotidiano e erotismo colocava a pornochanchada como um gênero que, a partir de paródias, exercia índole de “vampira de gêneros” (ABREU, 2006, p. 149):

[...] Apoiada no humor e na exploração da nudez como apelo erótico, constrói suas tramas satirizando filmes de aventura, de história infantis, as formas aculturadas do western – os filmes de cangaço ou garimpo – e, principalmente, filmes americanos de grande repercussão – por óbvias razões de mercado (Ibidem., p. 149).

Em 1976, com direção de Adriano Stuart, Bacalhau (1976) ocupa as salas de cinema fazendo clara referência paródica ao filme de Steven Spielberg, Tubarão (1975). Nesta produção da Boca, destaca-se o peixe gigantesco que assombra os banhistas do interior de São Paulo (Ilhabela). Conta com uma narrativa engraçada; exemplifica a forma e as condições do que foi o universo cinematográfico da Boca do Lixo em realizar produções pensando diretamente na reação dos espectadores, que almejavam naquele tempo ver um Tubarão à moda brasileira. O filme norte-americano, com título original Jaws, ganha uma representação paródica em Bacalhau enquanto tradução de um suposto título original, Bacs. Tomando Bacalhau como exemplo, pode-se afirmar que a pornochanchada estava ligada a qualquer tipo de história, conquistando os olhares do público em diversos gêneros fílmicos, como aponta Bernadet (2009, p. 141): “Contrariamente ao que se considera em geral, falando globalmente da pornochanchada, nem todas as pornochanchadas são iguais”. Tal comentário se faz pertinente mesmo entre os filmes da Boca.

O longa-metragem estrangeiro nem sempre tinha como competir com o sucesso das pornochanchadas, colocando sempre em discussão o contexto nacional e a identidade do povo atrelada ao subdesenvolvimento. No entanto, o fim do ciclo da pornochanchada, tão desejado por seus detratores, adeptos do “cinema de qualidade”, foi sentenciado pela invasão de produções estrangeiras que continham sexo explícito. Com Império dos sentidos (1976) e Calígula (1979), perde-se o horizonte do erotismo, proporcionando a entrada no mercado brasileiro de obras pornográficas oriundas de outros países. A pornochanchada possibilitou o diálogo com uma juventude popular anestesiada em relação a um cinema com pretensões estilísticas e sociais, que não conversava diretamente com temas como a sexualidade. Extremamente criticado por Roberto Farias, o gênero foi consequência de um período de abertura, da quebra de tabus em torno do sexo. Ainda assim, a genealogia estética da pornochanchada não deixa de exibir traços da filmografia pregressa de quem mais tarde irá recusar o vínculo com certos filmes eróticos.


O cinema brasileiro e o estrangeiro

Chegamos agora ao último eixo de discussão proposto neste artigo, no debate entre o nacional e o estrangeiro. Para o SRTV, Farias aponta a questão da identificação entre o brasileiro e seu cinema como consolidada. Trata-se, contudo, de uma fase histórica, de superação de um velho modelo: “Até há pouco tempo, o brasileiro que entrava num cinema se sentia, ao ver um filme brasileiro, vendo uma coisa estrangeira, um produto estrangeiro para ele”, observa o diretor da Embrafilme. Como grande contribuinte para o novo estágio de aceitação, Farias discorre sobre uma influência positiva exercida pela televisão. Pois esta, ao preencher o horário nobre com produções brasileiras, relegando o produto estrangeiro a horários periféricos, teria estimulado positivamente sua audiência em direção ao cinema brasileiro.

A mostra então comentada por Farias para o SRTV, que se chamará Nosso cinema 80 anos, provavelmente ainda em estágio embrionário quando do depoimento, terá uma função estratégica: demonstrará ao público que o filme “essencialmente brasileiro”, de qualidade, não seria uma novidade, sustenta Roberto. E aí, na defesa dessa árvore genealógica da produção histórica, diga-se, superior, surge um velho argumento: o da padronização/ valorização internacional.

Em 1950, em 1920, em 1930, o cinema brasileiro já tinha atingindo um nível de qualidade internacional. Há 20 anos atrás, há 15 anos atrás, o Brasil já ganhava a Palma de Ouro em Cannes. O cangaceiro foi feito em 1950, ganhou a Palma de Ouro e estourou no mundo inteiro com um tema essencialmente brasileiro.

A fala entusiasmada, que vê o nível de qualidade a partir da ressonância internacional, tomando como referência o bom desempenho em vitrines fora do país, implica em outras questões. Pode-se concentrar esse debate nos dois exemplos contemplados no discurso de Farias: O cangaceiro (1953), de Lima Barreto, que venceu em Cannes na categoria de filmes de aventura25; e O pagador de promessas (1962), de Anselmo Duarte, citado indiretamente por Farias, única produção brasileira a conquistar a láurea máxima no festival francês até os dias de hoje. Os dois títulos estarão na mostra Nosso cinema 80 anos.

O filme de Lima Barreto é uma produção da Vera Cruz, importante episódio do cinema paulista que irá bater na questão da qualidade também a partir de padrões internacionais. O estúdio de São Bernardo do Campo, em uma iniciativa inédita, trará para o Brasil um número considerável de técnicos que seria responsável por produzir um cinema ecumênico, partindo de temas e identidades brasileiras, como é o caso de O cangaceiro. Nele, temos a fotografia de um inglês (Chick Fowle), a cenografia de um italiano (Pierino Massenzi) a edição de um esloveno (Oswald Hafenrichter), um engenheiro de som dinamarquês (Erik Rasmussen), e por aí vai. É sem dúvida um momento promissor no que tange a formar uma mão de obra qualificada no Brasil a partir da experiência estrangeira26. O reconhecimento em Cannes talvez seja um indicativo de que o “tema essencialmente brasileiro” possa ser o chamariz para uma produção vinda do Brasil. Mas a forma como esse tema é apresentado necessitaria ainda de uma carpintaria internacional. Não apenas a importação de técnicos, mas, sobretudo, das técnicas que estes dominam e que culminarão em padrões dominantes na indústria cinematográfica mundial27. Ainda estamos, portanto, fora da guinada modernista, que irá apresentar resultados embrionários no cinema independente dos anos 1950 (Nelson Pereira, Roberto Santos) e assumirá um protagonismo na década seguinte.

O pagador de promessas surge em um momento diferente. É difícil, entretanto, pensar em seu êxito em Cannes sem a cumplicidade do olhar estrangeiro, que está disposto a reconhecer no filme os traços de um entendimento lacunar sobre uma realidade tida por ele como exótica, um tanto incompreensível. E tampouco desconsiderar motivações do próprio diretor, Anselmo Duarte, em estabelecer um diálogo com as plateias internacionais28. O longa-metragem apresenta de forma simplificada uma história que amalgama personagens de matizes muito diversas. Leva Viany (1993, p. 143) a observar que “ainda que baseado na famosa peça de Alfredo Dias Gomes, um dos mais modernos teatrólogos brasileiros, (O pagador) não deixava de apresentar alguns macetes rançosos que relembravam os tempos da produção hollywoodiana da Vera Cruz”. O fato é que O pagador de promessas é um filme esteticamente popular em uma época na qual a orientação do cinema jovem e moderno tendia a ousadias maiores sem, contudo, recusar o tema do povo – paradoxo esmiuçado de forma contundente por Bernardet (2007).

A partir desses dois exemplos salientados por Farias, temos como referência um par bem-sucedido de produções em Cannes e que apresenta temática brasileira. Mas em sua entrevista para o SRTV, Roberto Farias acaba entrando em uma discussão que irá adensar a compreensão do que seria o filme “essencialmente brasileiro” a partir do paralelo com o cinema estrangeiro. O argumento agora tem como ponto de partida a opção histórica por comprar títulos estrangeiros ao invés de produzi-los por aqui mesmo – uma virada econômica na indústria cinematográfica que está na compreensão do fim da chamada bela época do cinema brasileiro, no início do século passado. A maior demanda pelo filme estrangeiro teria sido responsável pelo arrefecimento da aceitação do produto nacional. O entrevistado prossegue:

Isso foi modificando o comportamento do público brasileiro e até mesmo, com exceção de cineastas de mais personalidade, como Humberto Mauro, como Mário Peixoto [....] (os diretores) se deixaram influenciar pelo produto estrangeiro. Ainda hoje é comum ver-se no cinema brasileiro filmes cujos cineastas mostram uma realidade que tem como parâmetro o que ele vê no cinema estrangeiro. Então ele procura apresentar ao público brasileiro, achando que o público brasileiro vai gostar mais do filme [...] faz parte mesmo de um processo do inconsciente [...] se esse filme mostrar uma aparência mais de filme estrangeiro do que de filme brasileiro.

O argumento da “aparência mais de filme estrangeiro do que de filme brasileiro” não seria conveniente para O cangaceiro, ou mesmo para O Pagador de promessas? Não poderia, inclusive, explicar em parte o êxito em Cannes e o reconhecimento artístico pelo olhar estrangeiro? No caso dos dois diretores apontados como exceção por Farias, Humberto Mauro e Mário Peixoto, estariam suas obras totalmente livres da “aparência” de filme estrangeiro? Peixoto figura em sua época como um forte representante da influência europeia, avant-garde, no Brasil29. Poderíamos ver Limite sem inscrevê-lo nas inquietações estéticas do cinema europeu dos anos 1920? O mesmo serve para Humberto Mauro em sua fase regional, valorizado pelo grupo de Cinearte30 justamente pelo seu poder de comunicação alinhado à estética clássico-narrativa da produção americana. Seria prudente desvincular uma obra como Braza dormida (1928), distribuído em sua época pela major Universal, dos artifícios recorrentemente empregados por Griffith e pelo cinema americano dominante (flashback, clímax, montagem paralela)31?

Esse debate todo não poderia deixar de passar também pelo próprio trabalho do cineasta Roberto Farias. Isto é, pela forma como os “temas brasileiros” perpassam sua obra e se ele se deixou ou não “influenciar pelo produto estrangeiro”, entregando trabalhos com “aparência mais de filme estrangeiro do que de filme brasileiro”. Sobre este aspecto, Assalto ao trem pagador (1962) assume um protagonismo inquestionável em sua filmografia. Embora não seja sequer o primeiro enredo policial rodado pelo diretor, é reconhecidamente o ápice de sua maturidade no ofício de cineasta. É, portanto, tomando esse título como um paradigma das intenções estético-culturais de Farias que poderemos direcionar algumas reflexões.

Assalto aborda temas relevantes à época, como a vida em comunidades, o racismo, a desigualdade social e a violência urbana. É muito eficiente ao cooptar o thriller como opção estético-narrativa para contar a história de um assalto ambicioso e a forma como a relação de seus executores se degrada mediante a administração partilhada do dinheiro roubado. Surge em um momento no qual o Cinema Novo já está direcionando suas câmeras para as favelas, como se vê em Cinco vezes favela (1962), mas o faz no diapasão do espetáculo, do cinemão. Trabalha temas sociais na chave do entretenimento sem proporcionar nenhum alinhamento a um projeto político consistente, de reflexão. Vai, logo, na contramão do engajamento cinemanovista e, de certa forma, mantém paralelos consistentes com o que está manifestado em O Pagador de promessas32 . No esforço de aprimorar uma narrativa motivada por intenções dramatúrgicas, chega a momentos absolutamente irreais. Destacamos uma cena no fim, na qual o delegado (Jorge Dória) diz ao encarregado para preparar o caixão para o líder da quadrilha do assalto, Tião Medonho (Eliezer Gomes), recém-falecido, se comprometendo a arcar com os custos. Ao propor uma compaixão pouco crível entre um delegado e um contraventor negro, favelado, que fora baleado pela polícia, constata-se que o longa-metragem de Farias está empenhado em revelar um mundo ficcional. Um mundo entregue a uma representação falseada do Brasil, que evidencia de forma incompatível as fraturais sociais que o acomete. É, ao fim, um tanto indiferente à desigualdade social e ao racismo que ele próprio denuncia de forma unilateral – a questão surge entre os integrantes da quadrilha, mas parece não se aplicar, por exemplo, à força policial, que ainda se preocupa em dar um enterro digno aos indignos que executa no dever do ofício entre eventuais abusos de autoridade. Aqui a crítica social não pode ser desvinculada do entretenimento, não atinge a contundência necessária à empresa modernista. Ainda podemos destacar, no empenho de aprimorar a ficção e sublimar a artificialidade, o tratamento musical empregado no filme por Remo Usai – trilheiro que estudou nos Estados Unidos com Miklós Rózsa, compositor húngaro que fez escola em Hollywood, assinando trilhas para Hitchcock, William Wyler, George Cukor, entre outros.

Sobre Roberto Farias, e considerando Assalto como o filme mais bem-sucedido do diretor, Glauber observa em sua revisão crítica: “Quando despedir as influências americanas, libertar-se da câmera, do efeito mecânico e preocupar-se mais com os personagens, com o homem e seu meio social, contribuirá progressivamente para um novo cinema” (ROCHA, 2003, p. 138). Como se vê, é o próprio cineasta Farias, talvez como “parte mesmo de um processo do inconsciente”, quem parece ter sucumbido às críticas que ele mesmo formulará, anos mais tarde, como diretor da Embrafilme. Seu longa-metragem de maior sucesso comercial irá resultar, entre outras coisas, no exercício de fazer o “filme mostrar uma aparência mais de filme estrangeiro do que de filme brasileiro”. Assalto ao trem pagador também fará parte da mostra Nosso cinema 80 anos.


Considerações

Como buscamos apontar ao longo desse artigo, não se pode prospectar sobre a campanha de exaltação do filme “essencialmente brasileiro”, proferida por Farias ao SRTV e tornada protocolar pelas ações da Embrafilme, sem descortinar um quadro de grandes paradoxos. Se já é relativamente comum a compreensão dos entraves que balizam o campo prático da estatal – a adoção da “qualidade” obedece a metas estipuladas pelo regime militar –, faz-se necessário se deter sobre as ambiguidades que problematizam a campanha em outras direções. Se há um conservadorismo visível, alinhado ao programa governamental, este irá se manifestar também a nível de discurso, endossando pautas que irão repetir padrões já antigos. A reprovação da pornochanchada e sua desarticulação da esfera popular é um dado problemático que faz emergir um elitismo cultural na postura de Farias. O investimento em um certo viés nacionalista que se utiliza de exemplos históricos não tão contundentes à questão, e que imprime a subserviência ao reconhecimento internacional ao longo do tempo, será igualmente problemático. O depoimento de Farias enfatizado nesse artigo exprime de forma significativa os impasses que vigoram naquele projeto de cinema, talvez mais celebrado pelos resultados que conquistou do que confrontado criticamente pela linha editorial adotada.

Alguns meses mais tarde à entrevista de Roberto Farias, Gustavo Dahl dá outro passo concreto para consolidar o modelo do filme “essencialmente brasileiro” no já citado artigo “Mercado é cultura”. O texto, que enfatiza a distribuição (cargo de Dahl na Embrafilme), faz um tracejo histórico similar ao de Farias. Cita o Humberto Mauro da fase de Cataguases e pula para a Vera Cruz, sem tecer nenhum comentário sobre, por exemplo, a Cinédia ou a Atlântida (antes da associação com o exibidor Luiz Severiano Ribeiro33) – igualmente exemplares no que concerne a problemas na distribuição, mas criticamente avaliados pela geração de Dahl. Termina o panorama no Cinema Novo dos anos 1960. Como exemplo atual de bonança, cita dois títulos: Dona Flor e seus dois maridos, segundo ele, uma síntese de todos os sucessos ao longo dos 80 anos do cinema brasileiro; e Xica da Silva, apontando para uma identificação entre o proletário e o filme em uma sala lotada na zona norte do Rio de Janeiro. Faz um recorte muito particular da história em sua defesa do cinema industrial e termina com uma afirmação questionável: “O cinema reencontra afinal, na sociedade, a posição que havia perdido” (DAHL,1977, p. 127). O nacional e o popular ganham uma envergadura particular na associação institucional celebrada entre militares e cinemanovistas.


Referências

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ADAMATTI, Margarida Maria. Crítica de Cinema e repressão. São Paulo: Alameda, 2019.

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AMANCIO, Tunico. Artes e manhas da Embrafilme. Cinema estatal brasileiro em sua época de ouro (1977-1981). Niterói: Ed. UFF, 2000.

AUTRAN, Arthur. O pensamento industrial cinematográfico brasileiro. São Paulo: Hucitec, 2013.

AVELLAR, José Carlos. Teoria da relatividade. In: BERNARDET, Jean-Claude; AVELLAR, José Carlos; MONTEIRO, Ronald F. Anos 70 – vol. 7: cinema. Rio de Janeiro: Europa, 1979. p. 63-95.

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DAHL, Gustavo. Mercado é cultura. Revista Cultura, v.VI, n.24, p. 125-127, jan./mar. 1977.

FIGUEIRÔA, Alexandre. Cinema Novo: a onda do jovem cinema e sua recepção na França. Campinas: Papirus, 2004.

FREDERICO, Carlos. Abacaxica. Opinião, Rio de Janeiro, n. 205, p. 17, 8 out. 1976

GATTI, André Piero. Cinema brasileiro em ritmo de indústria (1969-1990). São Paulo: Secretaria Municipal de Cultura, 1999.

GOMES, Paulo Emílio Salles. Humberto Mauro, Cataguases, Cinearte. São Paulo: Perspectiva, 1974.

NEVES, David. Cinema novo no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1966.

PONTES, Igor Andrade. Investigação e catalogação da coleção SRTV do Centro Técnico Audiovisual do Ministério da Cultura. Recine – Revista do Festival Internacional de Cinema de Arquivo, Ano 10, n° 10, p. 150-157, nov. 2013.

ROCHA, Glauber. Revisão crítica do cinema brasileiro. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

SCHETTINO, Paulo B. C. Diálogos sobre a tecnologia do cinema brasileiro. São Paulo: Ateliê Editorial, 2007.

VIANY, Alex. Introdução ao cinema brasileiro. Rio de Janeiro: Revan, 1993.

XAVIER, Ismail. Sétima arte: um culto moderno. São Paulo Edições SESC, 2017.


Contribuição do autor

1 - Leonardo Gomes Esteves

Prof. Dr. do Curso de Cinema e Audiovisual da Universidade Federal de Mato Grosso

Orcid: https://orcid.org/0000-0001-8540-2823

Email: leonardogesteves@gmail.com


2 - Antonio Celso de Castro Cuyabano Jr.

Graduando em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal de Mato Grosso

Orcid: https://orcid.org/0000-0002-4597-084X

Email: antonio.dcastro@outlook.com


1 Gatti (1999) observa que a escolha para a direção da estatal na ocasião fora originalmente o produtor Luís Carlos Barreto. Mas seu nome teria sido vetado pelo SNI (Serviço Nacional de Informações) dias antes da posse. Barreto chega a dar uma entrevista para a imprensa como Diretor-Geral. O autor observa também que Farias não teria o respaldo total da classe. Entre o Cinema Novo, cita Glauber como quem “não concordava totalmente com a indicação” (GATTI, 1999, p. 20). Mas aponta outras personalidades favoráveis à posse de Farias, como Jarbas Barbosa, Herbert Richers e Jece Valadão.

2 Como uma referência para a Embrafilme enquanto ferramenta de aproximação entre o grupo do Cinema Novo e o governo militar, reproduzimos um trecho do depoimento de Nelson Pereira dos Santos para Amancio (2000, p. 42): “Leandro (Tocantins, escritor eleito Diretor Operacional da Embrafilme em março de 1973) assumiu e disse que queria conversar com o Cinema Novo, considerado subversivo e contra quem havia uma clara discriminação dos caras da Embrafilme. O Ministro deu a ele, segundo o que ele nos contou, e parece que era verdade, autoridade para negociar. Ele nos chamou e disse: eu quero fazer filmes com o Cinema Novo. (Dissemos) tudo bem! Em contrapartida nós queremos uma política de cinema; não é fazer o filme de fulano ou do sicrano, isto não basta, seria interessante ter uma definição, uma política de defesa do cinema brasileiro”.

3 Farias chega a se associar ao grupo cinemanovista na criação da distribuidora Difilm, em 1965. Mas seu ímpeto mais comercial o fará abandonar a empreitada pouco tempos depois e fundar a Ipanema filmes.

4 Como se vê nos estudos de Gatti (1999), Amancio (2000) e Autran (2013).

5 O Concine (Conselho Nacional de Cinema, 1976-90) foi criado para normatizar e fiscalizar a atividade cinematográfica no Brasil. Surge logo após a dissolução dos conselhos deliberativo e consultivo do INC (Instituto Nacional do Cinema, 1966-75).

6 O material físico original, em 16mm, desse registro está depositado no CTAV (Centro Técnico Audiovisual). Digitalização disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=j18D2-I470w&t=402s. Último acesso em 20.06.2020.

7 No registro on line disponibilizado no You Tube está constado como de N° 56, mas a numeração correta é 402. Agradecemos a Igor Andrade Pontes por apontar essa incorreção.

8 Trata-se da mostra Nosso cinema 80 anos, que passou por diversas capitais com duração de duas semanas e 28 títulos de diversas épocas do cinema brasileiro em cópias novas. Destacamos entre a lista os seguintes filmes: Ganga bruta (1933), Os cafajestes (1962), O pagador de promessas (1962), Terra em transe (1967), Os paqueras (1969), O cangaceiro (1953), Assalto ao trem pagador (1962), Amei um bicheiro (1952), Macunaíma (1969), Vidas secas (1963), Bonequinha de seda (1936), Menino de engenho (1965), O ébrio (1946), O bandido da luz vermelha (1968), Alô, alô carnaval (1936) e Roberto Carlos em ritmo de aventura (1968).

9 NOVOS dirigentes: INC e Embrafilme. Filme Cultura. Ano VIII, Nº 26, Setembro 1974, p. 1.

10 Para esses dados, ver tabela da reserva de mercado para longa-metragem em Amancio (2000, p. 57).

11 O primeiro presidente do Concine, Alcino Teixeira de Mello, emprega a expressão “poder de polícia” ao defini-la: “O Concine [...] terá o poder de polícia que não pode ser exercido por uma empresa de economia mista [...] Imediatamente expediremos carteiras de fiscalização para os agentes, pois o abandono da função fiscalizadora a partir da extinção do INC só trouxe prejuízos. ALENCAR, M. Mais filmes, menos filmes. Jornal do Brasil. 12.04.1976, Caderno B, p. 1.

12 “Por considerar fundamental o controle das rendas de bilheteria, no interesse das empresas produtoras, distribuidoras e exibidoras, o Conselho Deliberativo do INC baixou a Resolução 94/74 tornando obrigatório o uso de máquinas registradoras, controladoras e de roletas em todos os cinemas existentes no território nacional, para a venda de ingressos padronizados [...] O borderô-padrão e os ingressos padronizados, cujas emissões são privativas do INC, terão utilização obrigatória e exclusiva em todos os cinemas do território nacional, segundo a resolução 93, de 19 de fevereiro de 1974”. Ver INC – novas resoluções. Filme Cultura, Rio de Janeiro, ano VIII, Nº 26, Set. 1974, p. 2.

13 A medida se aplica apenas para as produções em cor, que correspondem à maioria das produções estrangeiras comerciais.

14 Todas as informações neste parágrafo referentes ao SRTV foram extraídas de Pontes (2013).

15 Importante observar que há um corte que antecede o trecho destacado, o que causa uma ruptura no raciocínio de Farias. Mas entendemos que isso não importa, pois não altera as palavras reproduzidas aqui, pronunciadas sem cortes.

16 Dona Flor e seus dois maridos teve um aporte de distribuição no valor de Cr$ 1.585.750,00 em 1976. Ver o “Apêndice H – Distribuições” em Amancio (2000, p. 162).

17 Cr$ 273.300,00 em 1974, com aditamentos de Cr$ 513.939,10, em 1975, e Cr$ 200.000,00, em 1976. Ver “Relatório co-produções Embrafilme” em Amancio (2000, p. 152).

18 “Boa parte da opinião pública e setores orgânicos da cinematografia apoiaram publicamente a ação empreendida (de fechamento da Embrafilme) pelo poder central, porque, na sua fase final, a Embrafilme era acusada, entre outras coisas, de inoperância, má gestão administrativa, favoritismo e também de não cumprir compromissos anteriormente assumidos” (GATTI, 1999, p. 57).

19 Informações sobre o livro extraídas do site do autor: www.jorgeamado.com.br. Último acesso em 13.06.2020.

20 Não foi possível encontrar registros na imprensa de que o prêmio tenha se repetido novamente, como estava previsto.

21 Ainda que a mudança não tenha sido oficializada, o prêmio chega a ser noticiado como “Prêmio Ministro Jarbas Passarinho” na coluna de Zózimo Barroso do Amaral, em 29.03.1974, no Jornal do Brasil.

22 O episódio se dá no periódico Opinião e destacamos em especial a crítica “A senzala vista da casa grande”, de Beatriz Nascimento. O caso é abordado com clareza em Adamatti (2019).

23 DIRETOR da Embrafilme diz que pornochanchada serve a inimigos do cinema nacional. Jornal do Brasil, 12.08.1975, 1º caderno, p. 7.

24 PORNOCHANCHADA não verá Cr$ 20 milhões da Embrafilme. Jornal do Brasil 19.10.1975. 1º Caderno, Nacional, p. 15.

25 O vencedor da Palma de Ouro naquele ano foi Salário do medo (1953), de Henri-Georges Clouzot.

26 O assunto será tema do trabalho de Schettino (2007), que concentra uma série de entrevistas com técnicos que vieram de fora ou se beneficiaram da aprendizagem com os estrangeiros chamados pela Vera Cruz ou pelos desdobramentos do cinema industrial paulista dos anos 1950 (Maristela, Multifilmes).

27 Apontamos esses comentários do crítico Salviano Cavalvanti de Paiva (apud VIANY, 1993, p. 105), que também incluem a inadequação do projeto de Lima Barreto sob a perspectiva da descentralização regional: “Os erros mais flagrantes de O cangaceiro são: a tentativa infeliz de fazer passar a paisagem altiplana paulista – de relevo e vegetação completamente diversos – pela paisagem do sertão nordestino; e, numa obra que, mesmo sem intenções sociológicas, pelo tema escolhido, inevitavelmente é tomada como elemento de documentação verística (ou, no mínimo, interpretação verística de uma realidade), a hibridização dos tipos e dos costumes, apresentando um cangaceiro que toma atitudes de vaqueiro do Texas, atirando de metralhadora no serrote, entrando a cavalo na casa alheia [...], não aparece um só cangaceiro de gibão, e, a despeito de a cearense Raquel de Queiroz haver escrito algumas falas, estas são ditas com inflexões mineiras e gaúchas”.

28 “As afirmações de Duarte, segundo as quais ele teria feito um filme especialmente para agradar aos europeus, não foram, no entanto, bem recebidas por certos críticos. Com efeito, ele teria utilizado a experiência adquirida durante sua estada em Paris para, supostamente, dominar a fórmula ideal para conquistar os júris dos festivais internacionais. Pode-se duvidar da existência de tal fórmula, porém, o filme foi bem acolhido em vários países em eventos do gênero” (FIGUEIRÔA, 2004, p. 40, 41).

29 Ao lado dele poderíamos colocar São Paulo: sinfonia da metrópole (1929), de Adalberto Kemeny e Rudolf Rex Lustig, na esteira do filme de Walter Ruttman, Berlim: sinfonia da metrópole (1927).

30 Sobre a revista Cinearte e seu projeto editorial, Xavier (2017, p. 180, 181) observa: “Aos olhos de seus responsáveis, a atitude de Cinearte é progressista e patriótica. No seu repetido slogan – ‘o progresso de um país mede-se pelo número dos seus cinemas’ – está cristalizada a ideia de que, lutando pelo desenvolvimento do comércio cinematográfico, a revista estaria prestando grande serviço à nação. Sua preocupação é evidenciar o ‘grau de civilização’ alcançado pelos brasileiros, do qual ela própria seria um documento, ao lado da nossa importância do nosso mercado para a indústria americana. É com muita satisfação que Cinearte recebe, entrevista e elogia os representantes das grandes empresas de cinema, principalmente quando estes não esquecem de ressaltar o progresso da exibição do Brasil; e é com muita mágoa que a revista se queixa de qualquer má vontade ou manifestação de desprezo pelos brasileiros, fatos que a deixam perplexa pela quebra da ‘delicadeza proverbial do americano cinematográfico’ e pela desconsideração demonstrada em relação a tão ‘bons fregueses’”.

31 A associação entre o nacional e o estrangeiro não estaria apenas na gramática empregada em Braza dormida, mas também na caracterização, como apontam esses comentários do crítico Jorge Martins Rodrigues para o Diário da noite: “Convém, pois, que ao se filmarem scenas brasileiras, não se afaste, pelo intuito rastacuerista de ostentar um ‘standard de vida’ que infelizmente não temos, da verdade brasileira [...] Não queriam os srs. cinematographistas, por um narcisismo à Affonso Celso, assemelhar o retrato do Brasil e o retrato de U.S.A.” (apud GOMES, 1974, p. 274). Para um relato detalhado da participação da distribuidora Universal em Braza dormida e a repercussão crítica do filme de Humberto Mauro, ver Gomes (1974).

32 Viany (1993, p. 143) vai considerar Anselmo Duarte, Roberto Farias e ele mesmo, enquanto cineasta, como casos “fronteiriços”, situados “na fronteira entre o velho e o novo cinema”. Sobre Farias, em específico, escreve: “Seu sexto filme, O assalto ao trem pagador (1962), colocou-o entre as melhores promessas do novo cinema; mas Farias não cumpriu a promessa em Selva trágica (1964), retornando à comédia irresponsável com o sucesso comercial de Toda donzela tem um pai que é uma fera (1966); e abandonando outros projetos mais promissores, ele agora volta a buscar um sucesso comercial fácil através de uma comédia musical estrelada pelo ídolo da juventude iê-iê-iê, Roberto Carlos” (VIANY, 1993, p. 143, 144) – escrito em maio de 1968.

33 Dahl menciona a Atlântida mais à frente no texto, assim como os produtores-exibidores da bela época. O faz em meio a um quadro que explica o monopólio da cadeia de produção a partir de exemplos estrangeiros que dominaram o tripé produção-distribuição-exibição.