Universidade Federal de Santa Maria
Gutenberg - Revista de Produção Editorial, Santa Maria,
RS, Brasil, v. 1, n. 1, p. 178-184, jan./jun., 2021
Submissão: 18/03/2021 • Publicação: 23/07/2021
Resenha publicada sob licença CC BY-NC-SA 4.0
Resenha
Tinha um editor no meio do caminho, de José de Souza Muniz Jr.
Mário Vinícius Ribeiro GonçalvesI
I Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas
Gerais, Belo Horizonte, MG, Brasil
Dando
prosseguimento à publicação de Em busca
do texto perfeito, de Ana Elisa Ribeiro (2016), e Quem mexeu no meu texto?, de Luciana Salazar Salgado (2017), o
livro Tinha um editor no meio do caminho,
do professor e pesquisador José de Souza Muniz Jr., lançado pelo selo Artigo A,
da Gulliver Editora (Divinópolis-MG), vem para
completar a trilogia que inaugura a série “Questões contemporâneas de
edição, preparação e revisão textual”. Trata-se de coleção bibliográfica
cuja meta é acompanhar e abastecer de forma aprofundada, acessível e atual o
debate e reflexão sobre as diversas práticas, atividades e processos
editoriais. Esses aspectos, muitas vezes negligenciados em função do privilégio
usualmente atribuído às noções de “obra” e “autoria”,
são aqui tratados enquanto protagonistas de uma trama que, embora seja
geralmente encenada “nos bastidores”, tem papel fundamental ao
insuflar vida em textos e discursos, colocando-os em movimento sob as mais
diversas atualizações – inclusive aquelas que, um tanto ironicamente,
conservam a aparência coadjuvante dessas mesmas práticas, atividades e
processos. Mas isso também não é por acaso, como Muniz Jr. procura demonstrar.
O livro é
dividido em cinco capítulos, sendo o primeiro uma introdução. Os demais foram
publicados, “em versões preliminares” (p. 130), em anais e atas de
congressos nacionais e internacionais. O prefácio, de Luciana Salazar Salgado,
é especialmente interessante ao chamar a atenção justamente para como o
processo de dar unidade, na forma de livro, a artigos anteriormente publicados
em outros contextos, faz com que esses textos não sejam mais os mesmos. Com
efeito, a reconfiguração que cada retomada editorial ocasiona ao conjunto de
nódulos intercomunicantes do ciclo de práticas sociais por meio das quais
textos são escritos, lidos e publicados, é “pedra fundamental”
(para nos servirmos do título do prefácio) na argumentação que Muniz Jr. tece
no decorrer dos capítulos, sem que, no entanto, o autor caia na tentação de
distorcer acriticamente os objetos de que se ocupa para poder encaixá-los em
modelos teóricos preestabelecidos. Ao contrário: Muniz Jr., sem abrir mão de
sólida fundamentação e do respeito pelo que estuda, não hesita em promover
rupturas epistemológicas quando avalia que determinado referencial não dá conta
de abarcar a complexidade e especificidade de cada caso.
Na
introdução, “Sobras do publicar, dobras do dizer”, Muniz Jr. situa
a perspectiva adotada em suas reflexões. O autor traça um paralelo entre a
noção de “ciência das sobras” – apelido que a antropologia
havia recebido em seus princípios – e a atividade de editores, revisores
e outros profissionais do texto, já que deles é frequentemente exigido um
grande esforço para invisibilizar os traços de seu trabalho, a fim de, segundo
essa lógica, realçar os elementos que realmente importariam no caminho da
produção de sentido textual: a figura autoral e – mais recentemente
– as diferentes formas de recepção dos objetos culturais. Sem
desconsiderá-los, Muniz Jr. propõe uma terceira via possível: “o que é
que existe, quem é que está e o que é que se faz no meio do caminho?” (p.
15). Para responder essas perguntas, o autor, de forma dialética, lança mão de
uma “Análise de Discurso que pensa a produção editorial como trabalho, ou
seja, como atividade humana situada no conflito entre o prescrito e o
real” (p. 15-16) e da sociologia de Pierre Bourdieu, que, interessado em
depurar as noções de “obra” e “autor” de qualquer
misticismo a fim de compreender a dinâmica social a elas subjacente, propõe uma
verdadeira “ciência das obras”. Em sua síntese desses dois eixos
teóricos, Muniz Jr. redireciona o foco da sociologia bourdieusiana
da dimensão macro para o que se dá nas coxias do trabalho editorial. Segundo o
autor, o convite que se pode depreender ao longo da leitura é o de,
utilizando-se, como metáfora, do tsuru – origami que representa uma ave célebre no
Japão –, partir das sobras para as dobras:
“um desdobrar, eis o exercício proposto” (p. 19).
No capítulo
seguinte, “Os desafios da palavra compartilhada”, o autor inicia
sua reflexão contrapondo a perspectiva linguístico-discursiva – que toma
a enunciação, por natureza, como processo polifônico –, à prática efetiva
de produção simbólica dentro da “indústria da língua” – que
procura extrair do enunciado quaisquer marcas prévias de processualidade
e multivocidade para, em seguida, estabelecer o
texto: objeto autorizado a circular socialmente em sua pretensa univocidade. Ao
analisar as múltiplas operações de retextualização,
Muniz Jr. constata que, na realidade do mercado editorial, as nuances e
fronteiras desses procedimentos nem sempre são bem definidas. O autor propõe,
então, a via de mão dupla entre distanciamento crítico-teórico e a consideração
atenta ao cotidiano dos trabalhadores para que possam ser depreendidas, em toda
sua historicidade, as relações entre as dimensões micro e macro da atividade
editorial. O capítulo é então encaminhado para um estudo de caso em que, com
base em conversas do autor com duas profissionais distintas envolvidas na
produção de um livro didático – a autora e sua editora assistente
–, conduzidas segundo um roteiro de autoconfrontação
simples, é evidenciado o momento em que “a percepção de estilhaçamento da autoria a partir de
fora (de um sujeito a quem a autoria não pertence) se converte na construção dessa mesma autoria, agora a
quatro mãos” (p. 39). O binômio linguagem-trabalho, viés a partir do qual
Muniz Jr. pretende assinalar sua contribuição ao debate das questões aqui
levantadas, permanecerá fundamental para as reflexões dos capítulos
subsequentes.
É justamente
no terceiro capítulo, “O revisor na labuta: linguagem e/é trabalho”
– criteriosamente posicionado no meio do caminho do livro –, que o
binômio acima referido atingirá nova dimensão teórica, uma vez que é a partir
desse ponto central que – de forma cruzada com a perspectiva linguística
– a perspectiva ergológica será diretamente acionada, irradiando-se em
direção às reflexões dos capítulos anteriores e posteriores, enriquecendo-as.
Se para a ergologia a relação homem-natureza é mediada pelo trabalho, este
ocupando efetivamente a lacuna que existe entre prescrição e realidade, é por
intermédio da linguagem que os homens se relacionam entre si. Assim, os
revisores de texto – uma vez que lidam tão explicitamente com a própria
materialidade discursiva –, ao fazerem qualquer tipo de emenda, põem em
movimento toda uma cena enunciativa em que são agenciadas uma pluralidade de
vozes que precedem a intervenção e também aquelas que lhe são prospectivas. Dentro
dessa perspectiva, é difícil não pensar no revisor como um coenunciador
dentro de uma cenografia mais ampla: “textos não são fruto de um sujeito
em cuja consciência muitas vozes se cruzam em polifonia. Temos um problema mais
complexo: vários sujeitos incidem sobre o texto, a partir de seus respectivos
repertórios, valores, condições.” (p. 53). Desse ponto do capítulo em
diante, Muniz Jr. serve-se do instrumental teórico apresentado para refletir
sobre o que chama de “vozes da prescrição”, isto é, manuais
elaborados por editoras, jornais ou outras empresas, com o objetivo de orientar
a atividade dos profissionais do texto em relação a padrões de revisão,
redação, estilo etc. Embora tais publicações sejam frequentemente
caracterizadas por um discurso em comum a favor de ideais de
“clareza”, “unidade” e “racionalidade”, a
realidade profissional muitas vezes exige que esses princípios sejam
transgredidos em nome do “bom senso” – outro valor
recorrentemente mencionado nesses documentos. Muniz Jr. ilustra esse argumento,
já adentrando nas considerações finais do capítulo, por meio de um caso em que
uma preparadora de originais, ao confrontar o arquivo que utilizara durante o
trabalho em um livro, reconhece ter recorrido a uma estratégia de esquiva de
uma norma para não ter de burlá-la, já que acatá-la, no momento de transição em
questão – em que passava a vigorar o Novo Acordo Ortográfico
–, poderia perturbar a percepção dos leitores.
O quarto
capítulo, “Da edição-metáfora à edição-objeto”, abre com
considerações a respeito da diferenciação que se faz, em inglês, entre editor e publisher: aquele se ocupa do
trabalho em si de produção editorial – frequentemente envolvendo a
manipulação direta da materialidade textual –, ao passo que este lida com
os diversos aspectos econômicos da publicação enquanto negócio. Em países de
língua portuguesa essa distinção sistemática é inexistente, podendo o
profissional denominado “editor” realizar tarefas de ambas as
naturezas. Feitas essas observações, Muniz Jr. procede à análise de Art Worlds (1982), obra do sociólogo
estadunidense Howard S. Becker. A noção de “mundos da arte” é
definida por Becker (citado por Muniz Jr.) como “a rede de pessoas cuja
atividade cooperativa, organizada através de seu conhecimento conjunto dos meios
convencionais de fazer coisas, produz o tipo de trabalhos artísticos que
caracterizam o mundo da arte” (p. 75). Para Becker todo trabalho
artístico apresenta, em maior ou menor grau, indícios de sua natureza coletiva,
que podem dizer respeito tanto à atuação direta de profissionais de apoio de
determinado mundo da arte quanto a presunções e projeções que os artistas fazem
do público e da crítica e que podem influir no próprio processo de criação.
Tendo situado as linhas gerais das ideias de Becker, Muniz Jr. debruça-se sobre
o sétimo capítulo de Art Worlds, intitulado “Editing”, no qual o sociólogo define como momentos editoriais todos aqueles que,
durante a criação, envolvem tomadas de decisões com base no agenciamento tanto
do conhecimento prévio que se tem do mundo artístico, quanto das referidas
projeções acerca da recepção da obra. Por fim, Muniz Jr. contrapõe o conceito
de mundo, de acordo com Becker, ao de campo, segundo Pierre Bourdieu. Apesar
dessas noções se aproximarem no sentido em que “designam espaços sociais
de produção simbólica” (p. 85), ambas comportam diferenças fundamentais:
“se na obra de Becker a análise dos mundos artísticos recai sobre as interações sociais, com ênfase nos modos
de cooperação e trabalho conjunto, nas pesquisas de Bourdieu o objeto central
são as relações sociais, com ênfase
nas disputas pelo acúmulo de capitais” (p. 88). Feita essa advertência,
Muniz Jr., ao retomar as considerações que abrem o capítulo, encerra-o com uma
interessante hipótese: “não seria possível dizer que a ‘teoria dos
mundos’ de Becker é mais adequada para investigar o microuniverso do editing, ao passo
que a ‘teoria dos campos’ de Bourdieu cai como uma luva ao estudo
do macrouniverso do publishing?” (p. 89) Aqui
novamente, ao propor a convergência de diferentes perspectivas teóricas sem
deixar de levar esclarecidamente em conta tanto as
potencialidades quanto limitações inerentes a cada uma delas, Muniz Jr. é bem sucedido em sua proposta de abertura para uma maior
pluralidade epistemológica.
No quinto e
último capítulo, “‘São editores’: um retrato de grupo”,
Muniz Jr. reflete sobre o imaginário e as representações que procuram apreender
a atividade editorial e seus agentes. Para tanto, o pesquisador analisa A versão do autor (2004), livro organizado
por Jonathan Busato, Laura Moreira e Milton Nakanishi e publicado pela Com-Arte.
A obra reúne textos de vinte escritores literários convidados a exporem seus
pontos de vista sobre a relação entre autor e editor. Inicialmente, Muniz Jr.
contextualiza os textos que compõem o volume a partir de variáveis como, por
exemplo, a faixa etária dos colaboradores, atividade profissional que exercem
paralelamente à literatura, o gênero literário pelo qual ficaram célebres, os
estados brasileiros em que nasceram e o gênero literário da colaboração
enviada. Descrito o panorama diversificado de colaboradores, Muniz Jr. analisa
caso por caso, pinçando exemplos de como “essa multiplicidade de
perspectivas produz imagens da relação autor-editor que vão da harmonia ao conflito”
(p. 98). Na subseção final do capítulo, o pesquisador empreende análise
detalhada da colaboração enviada por Fernando Bonassi, o poema “São
editores”, texto intensamente polifônico no qual as diferentes vozes se
impõem sobretudo por justaposição e acúmulo, aparentando uma relação mais
arbitrária do que necessariamente lógica. Porém, trata-se “de um vozerio
não totalmente arbitrário, porque […] o ritmo impresso ao poema impõe uma
organização mínima do campo esboçado, na forma de afinidades e oposições que
orientam o olhar para determinadas relações de força e sentido” (p. 117).
Assim, para Muniz Jr., o poema “São editores” exerce função
estratégica em A versão do autor, já
que nesse texto “Bonassi amarra polifonicamente as outras vozes do livro,
plasmadas finalmente na contradição entre os caracteres sagrado e mundano da
atividade editorial” (p. 121). De forma homóloga, se a abordagem de Muniz
Jr. neste capítulo – cuja subseção final converte-se em verdadeiro estudo
literário – é levemente destoante em relação à dos capítulos anteriores,
ela está não obstante inscrita com êxito no propósito maior do autor de, em
respeito à própria natureza pluridisciplinar do mundo editorial, realizar um
levantamento de possíveis afinidades epistemológicas para, em seguida, ensaiar
a resolução de teses por vezes conflitantes.
Diante de
tantas publicações voltadas a profissionais das áreas de edição, preparação e
revisão textual caracterizadas por viés predominantemente normalizador e
prescritivo, pode-se afirmar que Tinha um
editor no meio do caminho se configura como obra oportuna e bem-vinda para
o estímulo – raro porém vital – da reflexão por parte desses
profissionais acerca da atividade que exercem. Para isso, além da clareza
argumentativa e da fiabilidade metodológica de Muniz Jr., apontadas ao longo
desta apresentação, são especialmente profícuas as subseções “Vamos
pensar em edição” que, posicionadas no fim de cada capítulo, fornecem
pistas para o prosseguimento da discussão em pauta na forma de indicações
bibliográficas complementares e de novas questões a serem (re)colocadas
em perspectiva. José de Souza Muniz Jr., sem perder de vista em sua análise a
incessante mão dupla entre produtos e processos editoriais, dedica igual
atenção tanto aos seus aspectos mais intelectualmente densos como àqueles
tomados por simples ou naturais – e que por isso mesmo arriscam desviar
nossa atenção da verdadeira complexidade subjacente às aparências –,
fazendo com que a leitura de seu livro seja desafiadoramente proveitosa tanto
para profissionais experientes quanto para iniciantes, independentemente do
estágio do caminho em que se encontram.
Referência
MUNIZ JÚNIOR, José de Souza. Tinha um
editor no meio do caminho: questões contemporâneas de edição, preparação e
revisão textual. Divinópolis: Artigo A, 2018.