Universidade
Federal de Santa Maria
Gutenberg
- Revista de Produção Editorial, Santa Maria, RS, Brasil, v. 1, n. 1, p. 40-54,
jan./jun., 2021
Submissão:
31/12/2020 • Publicação: 23/07/2021
Artigo
publicado sob licença CC BY-NC-SA 4.0
Artigo
A presença social do livro: cultura
material e público juvenil
The social presence
of the book: material
Culture and youth audiences
Livia França SallesI
I Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Departamento de Comunicação Social, Rio de Janeiro, RJ, Brasil
lifsalles@gmail.com
RESUMO
Neste artigo, pretende-se investigar a importância da materialidade do livro para o público juvenil. Por meio
de uma investigação qualitativa feita com jovens leitoras,
verificamos que o uso do objeto-livro pode refletir também necessidades sociais, como o pertencimento a um grupo. Como ponto de partida teórico, esse
artigo traz os conceitos de
sociabilidade e identidade próprias ao universo juvenil, além de refletir sobre as características culturais atribuídas a um objeto, sob a teoria da Cultura Material.
Palavras-chave: Livro; Juvenil; Sociabilidade; Cultura Material
ABSTRACT
This article aims to investigate the importance of the materiality of the book for the youth public. Through a qualitative investigation made with young readers, we found that the use of the book can also reflect social needs, such as belonging to a group. As a theoretical starting point, this article brings the concepts of sociability and identity proper to the juvenile universe, besides reflecting on the cultural characteristics attributed to an object, using the theory of Material Culture.
Keywords: Book; Juvenile; Sociability; Material Culture
1 INTRODUÇÃO
Em um dos contos mais conhecidos de
Machado de Assis, “O espelho”, o personagem Jacobina relembra um
episódio curioso de sua juventude. Depois de dias sendo reconhecido e muito bem
tratado pelos empregados como Sr. Alferes, posição de prestígio da Guarda Nacional,
Jacobina descobre-se sozinho na casa de sua tia depois de uma fuga dos
escravos. Após dias de solidão e desamparo, só pôde se manter inteiro ao final
da estadia por meio de um objeto familiar: a farda de alferes. Jacobina conta
que reencontrou sua alma, sua identidade construída aos olhos de outros, ao se
ver usando a farda em frente ao espelho.
Essa pequena
história pode ser um bom exemplo de como um objeto significa mais do que a sua
utilidade prática, estando muitas vezes imbuído de valores e significados. E
como Machado tem razão ao afirmar que nossa busca por alguma identidade passa
muitas vezes por um objeto inanimado. Neste artigo, pretende-se abordar como um
objeto, o livro físico, é significativo para um grupo social específico, os
jovens leitores, e como o uso do livro pode ser um reflexo de uma necessidade
juvenil: a procura por identidade, que passa por questões de sociabilidade e
pertencimento, conforme descrito pelas teorias da Cultura Material e da Cultura
Juvenil.
Iremos
verificar que o livro impresso possui características sociais, como
visibilidade e circularidade em um grupo, que o livro digital ainda não possui
ou não lhe foi atribuído. Logo, este artigo também busca explicar o porquê de o
público juvenil ainda ser uma parcela pequena de consumidores de livro
eletrônico em comparação aos livros impressos.
2 metodologia
Este artigo é baseado em uma pesquisa
qualitativa, feita em 2017, com um grupo de jovens frequentadoras de um clube
de leitura na Livraria da Travessa, na zonal sul da cidade do Rio de Janeiro.
As perguntas, demonstradas no texto a seguir, foram feitas de forma igual a
cada uma das participantes e de forma coletiva. (Por coincidência, o grupo era
formado apenas por leitoras, do gênero feminino.) A partir dessa pequena pesquisa,
foram analisados e aplicados os conceitos pertinentes à teoria da Cultura
Material e da Cultura Juvenil, baseados principalmente nas noções dos
pesquisadores Daniel Miller e José Machado Pais, respectivamente.
Como forma de delimitar o grupo juvenil
de modo etário, de acordo com a lei brasileira, especificamente o Estatuto da
Criança e do Adolescente, de 1990, o período da adolescência vai dos 12 aos 18
anos e, em casos excepcionais, o estatuto é aplicável até os 21 anos de idade.
A noção de “jovem”, conforme veremos a seguir, é um conceito
forjado em uma base não muito sólida, funcionando mais como um contraponto a
tudo o que não é considerado “adulto” ou “infantil”.
Contudo, para fins de investigação, o grupo representado pela definição de
adolescente é o que compõe a definição de jovem nesta pesquisa.
3 JUVENTUDE E SOCIABILIDADE
Para esta
pesquisa, é importante estabelecer a relação entre juventude e adolescência ou
puberdade. O período da puberdade é reconhecido quase como universal na espécie
humana, mas a juventude é, sobretudo, uma categoria social e não uma
característica natural do indivíduo. Na modernidade, a juventude tende a ser
uma categoria derivada da interpretação sociocultural dos significados da
puberdade, este sim, um fenômeno natural e universal que, no entanto, pode
adquirir pouca importância conforme a sociedade em que ocorre (GROPPO, 2004, p.
11-12).
Para o
pesquisador Luiz Antonio Groppo
(2004), a moderna estrutura das faixas etárias, incluindo aí a juventude, é
apenas um de muitos outros produtos da modernidade. A juventude, como categoria
social, é usada para classificar indivíduos, normatizar comportamentos, definir
direitos e deveres. “É uma categoria que opera tanto no âmbito do
imaginário social, quanto é um dos elementos ‘estruturantes’ das
redes de sociabilidade” (GROPPO, 2004, p. 12). Groppo
ainda compara a estrutura de classes da modernidade com a estrutura de faixas
etárias, também fruto dessa modernidade, pois, deste modo, é possível orientar
e prever o comportamento social de determinado grupo de forma homogênea.
Não à toa
que o conceito de juventude foi altamente explorado pela indústria cultural no
período pós-guerra: “A idade contada sob o rígido critério do tempo
absoluto torna-se a melhor forma de reduzir todas as diferenças sociais e
individuais reais a um denominador comum e universal” (FORTES apud
GROPPO, 2004, p. 17).
Para Edgar
Morin (2011, p. 148), a adolescência surge como classe de idade na civilização
no século XX. O autor esclarece que, durante os anos 1960,
[...] produziu-se um fenômeno histórico
extremamente importante: a autonomização da adolescência. [...]. No nosso caso
[em nossa sociedade], a adolescência se desenvolve como um corpo autônomo e se
constitui numa cultura. Essa cultura não é apenas o rock, nem apenas
agrupamentos em torno de uma música, mas também um modo comum de se vestir,
hábitos comuns, quase as mesmas buscas, as mesmas aspirações. [...] Que
aspirações são essas? Mais autonomia e mais comunidade. Duas coisas que parecem
contraditórias: de um lado, o desejo de ser livre; do outro, o desejo de uma
comunidade calorosa (MORIN, 2008).
Percebe-se que há uma aparente contradição entre busca de autenticidade e
integração na sociedade por parte dos jovens. Como afirma Morin, na adolescência,
a “personalidade” social ainda não está cristalizada. De forma mais
simbólica, Morin ao definir cultura, esclarece que uma cultura fornece
“pontos de apoio imaginários à vida prática, pontos de apoio práticos à
vida imaginária; ela alimenta o ser semirreal, semi-imaginário
que cada um secreta no interior de si (sua alma), o ser semirreal, semi-imaginário que cada um secreta no exterior de si e no
qual se envolve (sua personalidade)” (MORIN, 2011, p. 5).
É inclusive Edgar Morin quem afirma que há uma necessidade de identidade
do público jovem, o que ele denomina de “cultura juvenil”, e a sua
necessidade de criar laços e estabelecer grupos. A questão do grupo, do vínculo
com o outro, é fundamental para a socialização juvenil, pois o grupo é o lugar
simbólico onde se realiza a repartição da experiência: “[o grupo] é onde
os jovens retiram boa parte de seu sentido de solidariedade e onde encontram o
suporte necessário para a complicada negociação coletiva dos valores que giram
em torno da construção das identidades singulares” (ROCHA; PEREIRA, 2014,
p. 28).
Esses grupos juvenis, denominados de “instâncias de
socialização”, ajudam a criar uma realidade social em que indivíduos com
a mesma idade pensam e se comportam de modo semelhante. Para Groppo (2014, p. 14), é justamente desta “convivência
forçada que nasce a possibilidade destes indivíduos criarem identidades,
comportamentos e grupos próprios e alternativos às versões oficiais”.
Para os jovens, essas formas de sociabilidade parecem responder às suas
necessidades de autonomia, liberdade e trocas afetivas (SOUZA, 2004), conforme
estabeleceu Morin (2008; 2011). Berger e Luckmann
(apud GROPPO, 2004, p. 13) afirmam que a criação de grupos etários homogêneos
acontece em sociedades que possuem uma esfera social “pública” mais
elaborada, uma parte da vida social separada das relações de parentesco, ou
seja, nestas sociedades exige-se uma “segunda socialização”, secundária,
que ensina o indivíduo a viver em esferas sociais não organizadas a partir da
família ou do parentesco.
Essa “segunda socialização” (o grupo) pode ser entendida como
um terceiro espaço de socialização. A partir da visão do sociólogo Eisenstadt, Groppo (2004) aponta
três tipos de grupos juvenis no mundo moderno: o primeiro seria a escola; o
segundo, os grupos controlados pelos adultos; e o terceiro os grupos juvenis
informais, aqueles com espaço de socialização autônoma por parte dos jovens. O espaço então onde os jovens se
mostram como gostariam de ser ou ao menos ser vistos. Essa autonomia juvenil
está atrelada ao tempo livre dos jovens (tempo fora da obrigação
escola-família), um tempo que, “entre os jovens, só tem valor se for
útil, promovendo a sociabilidade” (ROCHA; PEREIRA, 2014, p. 23).
O tempo do
lazer juvenil deve ser entendido como um tempo e um espaço social. Mais do que
diversão ou simples fuga ao tédio, é um tempo dedicado ao escape do controle do
universo adulto. É no domínio do lazer, do que fazer com o seu tempo livre das
outras obrigações, como a escola, que as culturas juvenis adquirem maior
visibilidade e poder próprio de constituição como grupo.
Esse tempo e
espaço de lazer é um tempo que almeja ser compartilhado, um “tempo
coletivo de que jovens desfrutam, em grupo, é sentido como um tempo mais
apropriado que qualquer outro à realização dos seus desejos e interesse de
marca especificamente mais juvenil” (PAIS, 1993, p. 94). José Machado
Pais propõe ainda que as culturas juvenis, como processo de comunicação,
produzem signos culturais, que ajudam a afirmar o grupo. Estes signos podem ser
divididos em dois tipos: geracionais e grupais.
Os signos
juvenis geracionais são os signos comuns aos jovens como coletivo: é a
juventude em toda a sua extensão. É o diferencial com a geração anterior,
oferecendo um polo agregador de sociabilidades juvenis (PAIS, 1993, p.
103-104).
Como exemplo
de signo juvenil geracional, Pais cita a “música”. O apreço dos
jovens pela música (e por todos os movimentos que ela representa) seria um
indicativo de que a música, tal como é configurada pela mídia de massa, é um
poder de atração a esses jovens. Entretanto, é preciso ter cuidado para não
cair no senso comum de que o interesse na música (de massa) seja exclusiva dos
jovens. O aspecto que queremos destacar é que esse interesse deve ser entendido
como um tempo maior dedicado pelos jovens ao objeto-valor “música”
do que um afeto ou apreciação maior por ela. Esse dado nos ajuda a entender o
status dado à literatura juvenil para o público-leitor jovem, por exemplo.
Um outro signo
juvenil geracional, para José Machado Pais (1993), seria o tempo livre das
instituições escola/trabalho/família –, que seria uma das principais
características das culturas juvenis. Conforme dito, nesse tempo livre, os
jovens acabam por desenvolver formas genuínas de participação social,
“através da efetiva adesão a determinadas atividades e da construção de
fachadas reforçativas da coesão de grupo” (PAIS, 1993, p. 94):
[...] os tempos livres podem considerar-se como uma
das mais importantes dimensões da vida cotidiana dos jovens no que respeita à
definição e compreensão das culturas juvenis, quer o usufruto desses tempos
seja considerado como meio de ajustamento ao meio social envolvente, quer como
fator de integração geracional. (PAIS, 1993, p. 111).
O tempo fora
do domínio adulto, o “tempo juvenil”, seguiu ocupado pelo
entretenimento mercadológico da indústria cultural. Transformado em tempo de
lazer, a cultura de massa ofereceu ao espírito juvenil o consumo como forma de
entretenimento, como os best-sellers da literatura juvenil.
A partir dessas características, é natural supor que os jovens tenham uma
afinidade com as novas formas e formatos de entretenimento e lazer, sendo
alçados a uma “posição privilegiada a partir de seu ‘capital
tecnológico’” (ROCHA; PEREIRA, 2014, p. 32). Era de se esperar, portanto, que o público
juvenil fosse um grande consumidor de livro digital, mas a tendência das vendas
de livros impressos da categoria juvenil não acompanha a versão eletrônica. O
que falta então ao livro digital para o público adolescente? Uma pista pode ser
uma das características juvenis mais intrínsecas a esse grupo, que é a
sociabilidade. O livro impresso parece não ter tido problemas em corresponder a
esses anseios juvenis. Há todo um aparato estabelecido de bienais, feiras, noites
de autógrafos, clubes do livro, encontros em livrarias em que o livro físico
exerce um papel protagonista.
4 O LIVRO E A CULTURA MATERIAL
Toda criação
humana é produção de cultura, seja ela de qual ordem for. Para o antropólogo
Daniel Miller (2002), um dos mais expoentes estudiosos da cultura material,
objetos [artefatos] são produtos do desejo humano, logo, regido sob suas
regras. Estudar essa lógica nos ajuda a compreender que regras são essas e que
tipo de sociedade é capaz de produzi-las. Cultura material, portanto, pode ser
entendida como a materialização dela mesma. Podemos afirmar que “os
objetos criados por uma civilização tanto constituem quanto refletem a natureza
de uma civilização” (DANT, 2006, p. 115-116).
Entender como
os objetos estão inseridos em um grupo desvenda o jogo de valores e sentidos
que permeia um grupo social. No caso desta pesquisa, o uso do objeto livro nos
permite revelar que tipo de classificações e valores são importantes para um
grupo específico, os jovens. Importante frisar que essa cultura material vai
além dos objetos. Talvez fosse mais correto compreendê-la como todo repertório
usado pelo homem para a expressão de sentido. Mas a questão material, física,
tem um peso importante para esse estudo, pois a fisicalidade parecer exercer um
apelo mais imediato, concreto.
Daniel Miller
(2002) explica que os objetos tendem a ter um ar de natural, afinal não vemos a
sua fabricação. Curioso pois quando pensamos em objetos, pensamos neles como
artifícios humanos, coisas fabricadas. A naturalidade sobre a qual Miller fala
se deve à circulação dos objetos na sociedade. Com frequência esquecemos que os
artefatos são fabricados de acordo com códigos culturais preexistentes. Para
Miller (2002, p. 417), os objetos são um meio de socialização, que já possuem
um sistema de categorização desde o processo de sua fabricação, e as pessoas se
inserem no processo de socialização a partir desses objetos. O objeto livro é
um exemplo significativo. Historiadores conseguem deduzir que características sociais,
culturais e econômicas possuem uma sociedade que consegue produzir um artefato
como o livro.
Um dos
exemplos mais curiosos é a definição de Roger Chartier
(2014, p. 108) para o medo do homem culto na Idade Média. Conta o historiador
que desde antes da invenção de Gutenberg, o homem medieval já se preocupava com
a quantidade de cópias que circulavam no incipiente mercado e o que elas
representavam socialmente. O resultado desse medo é mais bem explicado por Barbier:
[...] os manuscritos em língua vulgar, que se
multiplicaram a partir do século XIII, veem seus formatos variar, sobretudo em
função de seu conteúdo e da qualidade do proprietário – o formato
torna-se um indicador de distinção social: grandes formatos das cópias
monumentais executadas para os reis e os personagens mais poderosos, formatos
menores para os leitores de menor qualidade (BARBIER apud GONÇALVES, 2010, p.
169).
De acordo com
Miller (2002, p. 403), todos os objetos e classificação material evocam
distinção social. E, segundo Chartier, o livro sempre
foi um objeto dotado de grandes poderes, “tanto desejados quanto
temidos”, e cita um dos objetos mais sagrados e adorados por parte da
civilização ocidental: “Por toda a cristandade, a Bíblia era o objeto de usos propiciatórios que pouco tinham a
ver com a leitura de seu texto e muito a ver com sua presença em proximidade
com o corpo” (CHARTIER, 2014, p. 118-119).
Esse culto ao
livro é, na verdade, ao que o livro pode representar, assim como o que o livro
impresso representa para os jovens em contraponto ao que o livro digital pode
ou deixa de representar.
5 O LIVRO SEGUNDO O PÚBLICO JUVENIL: PESQUISA
QUALITATIVA
O livro é uma forma esteticamente agradável, uma
obra de arte com seu mérito próprio, com uma capa elegante e um design atraente,
que é gratificante segurar, abrir e possuir. É também excepcionalmente amigável
ao usuário: não há nada mais fácil do que virar as páginas de um livro e ler um
texto claro em papel branco. A vista não cansa e pode-se ir para trás e para
frente em com facilidade. Não precisa de bateria, não trava e não quebra se for
derrubado (THOMPSON, 2013, p. 344).
Não podemos
negar que esse apelo físico do livro impresso é tentador. Mas isso é para a
geração descendente de Gutenberg, que não se arrisca em uma das mais
controversas invenções editoriais: o livro digital.
Como vimos, o
público juvenil é o que teria mais potencial em se interessar pelo livro
eletrônico[1], mas essa conexão não é tão orgânica.
Para ajudar a entender a dinâmica
entre jovens e livros impressos e digitais, foi feita uma pesquisa qualitativa
com um grupo de leitura juvenil. A pesquisa foi realizada durante o encontro
mensal do clube, que atende pelo nome peculiar de #JovensLeitoresLoucosPorLivrosPraCaramba, claramente
uma alusão ao universo digital, hoje dominado pelas hashtags. No dia do
encontro, compareceram oito meninas entre 12 e 16 anos, com exceção da
mediadora de 21 e de uma participante de 22 anos[2]. Ao serem questionadas sobre o que caracterizava uma
literatura juvenil, se é o contexto juvenil na literatura ou a faixa etária de
leitores que consomem esta literatura, elas foram categóricas em afirmar que
entendem a literatura juvenil como aquela que traz a temática jovem em seus
livros. Curioso que, de forma espontânea, as frequentadoras do grupo corroboram
com a ideia de que a juventude é mais próxima de uma identidade, ou seja, uma
construção cultural e/ou social, do que uma rígida formalização etária.
Foi questionado às jovens leitoras se
elas liam ou consumiam livro digital. A resposta foi negativa. Importante
frisar que a falta de uso ou de leitura de livro digital não significa que não
há leitura de conteúdo digital. Todas as frequentadoras afirmaram ler, com
bastante frequência, até fan fictions[3]. Perguntadas sobre o fato de o porquê não consumirem
livro digital, foi possível enumerar, de forma pontual, as seguintes respostas:
1. Levar
(mobilidade, circulação, visibilidade)
2. Mostrar aos
amigos (pertencimento, visibilidade)
3. Colocar na
estante (classificação, visibilidade)
4. Possibilidade
de objetos anexos (complementariedade)
5. Preço (fator
econômico)
6. Autógrafo
(exclusividade)[4]
Percebam que
das seis respostas, podemos inferir que três fazem menção mais explícita ao
fator visibilidade. “Levar, mostrar”, a portabilidade do objeto foi
mencionada de relance. Talvez por perceberem que o livro digital seja muito
mais adequado à facilidade de transporte do que o livro físico. Mas a segunda
fala, que se seguiu logo em sequência, é fundamental para entendermos que tipo
de portabilidade é essa. “Mostrar” talvez seja o sentido
complementar de “Levar”. É poder levar o livro a qualquer lugar
desde que este objeto seja visto. É o
poder de circulação do objeto.
Já ficar na estante é um lembrete físico e
visual de que o livro está ali. É na força da presença, física, do objeto que
se apoia o real sentido de “ter o livro”, pois é visível e passível
de classificação. Mas também é uma referência externa e visível a uma outra
pessoa. A questão dos autógrafos
também faz referência a um objeto físico. Uma reverência talvez fosse o termo
mais exato. Algo que consagra aquele objeto e o transforma em único. É um
marcador de exclusividade, uma vez que, por mais apreço que um leitor possa ter
por seu livro impresso, ele é apenas mais um na tiragem.
Sobre essa
questão, o antropólogo Appadurai (2010, p. 64)
contribui ao afirmar que “conforme a tecnologia possibilita a
multiplicação de objetos de prestígio, instaura-se um crescente e irônico
diálogo entre a necessidade de critérios de autenticidade [...] De uma forma
geral, podemos sugerir que [...] a questão da exclusividade dá lugar à questão da autenticidade”. E possivelmente passível de ser mostrado a
outros, mesmo que esse não seja a razão principal. O encontro com o autor, com
o conteúdo e com a magia do livro estão representados no objeto físico.
Contudo,
apesar de as leitoras terem dito que obter o autógrafo seria importante, o que
mais vemos em feiras, bienais e lançamentos de livro, é sim a continuação da
cultura do autógrafo, mas que hoje divide espaço com as fotos tiradas com os
autores, que não sacraliza nenhum objeto, mas também serve ao propósito de
“mostrar”, tornar a sua lembrança visível a outros, principalmente
nas redes sociais.
A possibilidade de outros objetos gerados
pelo livro não precisaria estar atrelada ao livro impresso. Mas a associação se
dá, provavelmente, devido ao fator físico dos objetos. Esse movimento pode ser
explicado pelo conceito do antropólogo Grant McCracken
(2003), chamado de Efeito Diderot, em que há objetos que se aproximam por
pertencerem a uma mesma categoria cultural. Por exemplo, comprar o livro na
capa original, depois com a capa do livro gerada pelo filme ou ainda uma caneca
com a representação do livro/filme. Tudo faz parte de uma mesma unidade
cultural. Exercem, portanto, a mesma função: eles ajudam a complementar e
reforçar o sentido social atrelado àquele objeto.
Nota-se que a
visibilidade parece ser um fator importante a este grupo, mas ela não deve ser
entendida como um conceito vazio ou superficial. O “tornar visível”
torna possível o contato com o outro: o que aqui chamamos de sociabilidade, tão
fundamental para os jovens, José Machado Pais chama de natureza identitária: as
buscas de si através do outro. Segundo Pais:
De fato, a consciência da identidade individual
somente é possível pelo reconhecimento do outro. Muito do que está fora de nós
pertence à essência do eu que se revela no outro. [...] A procura de contato é
também uma busca de si, uma vez que as identidades individuais se constituem
como resultado de experiências individuais, embora surgidas de ritualizações
próprias de identidades coletivas (PAIS, 2006, p. 18).
Em relação ao preço do livro, quem
trabalha nesse ramo já ouviu o argumento de que livro digital não vende pois o
preço não é atraente se comparado com o livro impresso. Pode ser verdade, mas
não parece ser o suficiente para explicar o limite de vendas do livro digital
ou ainda um aparente desinteresse por determinada faixa de público. O que nos
parece mais evidente é que as classificações simbólicas referentes ao livro
impresso, tais como visibilidade, circularidade e exclusividade ainda não
pertencem ao universo do livro digital.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Com a chegada do livro digital,
estudiosos e profissionais do livro apontaram suas expectativas de que seria um
mercado facilmente explorado pelos adolescentes, afinal a proximidade com a
linguagem digital, como baixar arquivos, pesquisar online, era bem dominada por
eles. Mas o que não poderiam prever é que talvez careça ao livro eletrônico uma
das características mais buscadas pelos jovens: sociabilidade. Aqui,
compreendida como resultado de uma necessidade de pertencimento, que é a
incessante busca por uma identidade, um encontro com o “eu”.
O livro impresso circula e é visível,
ou seja, tem presença social. Ainda
muito inerente à sua materialidade, o impresso circula no grupo de modo mais
dinâmico do que o livro digital. Como bem afirma Thompson, o livro é um objeto
social, pois pode ser compartilhado com outros, tomado emprestado, e devolvido,
acrescentado a uma coleção, exposto em uma prateleira, “acalentado pelo
proprietário como uma preciosidade e visto como um sinal de quem ele é e o que
é importante para ele, um sinal de identidade de seu próprio
proprietário” (THOMPSON, 2013, p. 345).
O livro impresso traz identidade ao
seu dono, pois o seu poder de circulação e visibilidade permite deduzir onde o
seu leitor pertence ou não pertence. Sob os olhos da cultura material, seria
correto dizer que os objetos legitimam, afinal “o que é consumido não
pode ser tratado apenas pelo aspecto funcional mas sim como parte de um
processo cultural, que define um status social e uma identidade
individual” (DANT, 2006, p. 14). Essa relação tem caráter classificatório
e, internamente, agregador. A função do livro aqui é permitir que seu dono se
reconheça no grupo e marque uma distinção entre outros grupos.
Já
Thompson ainda sugere que o livro eletrônico não consegue reproduzir a materialidade
do livro, pois é conteúdo puro. Ou seja, falta ao digital a legitimidade física
do livro, que no sentido simbólico se traduz em valores sociais já
estabelecidos e aceitos dentro de um grupo. Aqui, o livro se transforma na
mediação entre a expectativa do pertencimento e o real reconhecimento dentro de
um grupo.
Voltando ao Jacobina, do conto de
Machado de Assis, deixamos a longa mas poética passagem do narrador sobre estar
no mundo e sua relação com os objetos:
Cada criatura humana traz duas almas consigo: uma
que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para dentro [...]. A alma
exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto,
uma operação. Há casos, por exemplo, em que um simples botão de camisa é a alma
exterior de uma pessoa; e assim também a polca, o voltarete, um livro, uma
máquina, um par de botas, uma cavatina, um tambor. Está claro que o ofício
dessa segunda alma é transmitir a vida, como a primeira; as duas completam o
homem, que é, metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades,
perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a perda
da alma exterior implica a da existência inteira.
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mercado editorial no século XXI. São Paulo: Unesp, 2013.
[1] Diferentemente do mercado, a academia já começa a diferenciar os termos digital e eletrônico para livro. Livros digitais são aqueles criados em versões .html, .txt ou .pdf disponíveis para visualização na Internet. Podem ser também cópias digitais de livros impressos, por meio do escaneamento de páginas. Livros eletrônicos são aqueles disponíveis nos formatos epub, mobi, azw e ios, entre outras. Em suma, em formatos comerciais. Para este artigo, eles serão considerados sinônimos: o livro como produto vendido em sua forma digital/eletrônica ou impressa/física. Ver mais em Oddone (2013).
[2] O encontro ocorreu em 27 de abril de 2017 na Livraria da Travessa (Botafogo) no Rio de Janeiro. Interessante notar que nunca houve a presença de meninos nesse clube; e a participante mais velha assumia a postura dominante no grupo (mais até que a mediadora) e trazia à lembrança algumas vezes o fato de sua idade “avançada” para o grupo. Era, portanto, uma exceção.
[3] Fan fictions ou apenas fanfics são novas narrativas para os personagens de histórias já consagradas em diversas mídias, como livros ou filmes. São enredos inventados por autores amadores, geralmente fãs da história original.
[4] Para a pergunta “Por que vocês não consomem livro digital?”, as respostas foram múltiplas e foram ditas basicamente da seguinte forma: “levar o livro; mostrar aos amigos; colocar na estante; o livro impresso é mais barato; dá para assinar o livro; o livro possui brindes como marca-texto”.