Universidade Federal de Santa Maria

Gutenberg - Revista de Produção Editorial, Santa Maria, RS, Brasil, v. 1, n. 1, p. 117-149, jan./jun., 2021

Submissão: 20/12/2020 • Publicação: 23/07/2021

Artigo publicado sob licença CC BY-NC-SA 4.0

 

Artigo

A revisão de textos nos ritos genéticos editoriais

The proofreading in editorial genetic rites

Luciana Salazar SalgadoIÍcone

Descrição gerada automaticamente

I Universidade Federal de São Carlos, Departamento de Letras, São Carlos, SP, Brasil

lucianasalazar@ufscar.br

RESUMO

O objetivo deste artigo é abordar a revisão de textos como coração do processo editorial. As bases discursivas da noção de ritos genéticos editoriais são detalhadas, e daí se desdobram os conceitos de código linguageiro, regimes de genericidade e ethos discursivo, operacionalizando análises de materiais revisados e jogando luz sobre o ofício de editar textos. Trata-se de apresentar uma metodologia para o trabalho e a pesquisa, possivelmente também como percurso de formação de revisores.

Palavras-chave: Ethos discursivo; Interlíngua; Regimes de genericidade; Revisão de textos

ABSTRACT

The aim of this article is to understand proofreading as the heart of the editing process. The discursive bases of the notion of editorial genetic rites are detailed, and then unfolded the concepts of langagière code, genericity regimes and discursive ethos in order to analyze some materials while shedding light on the proofreader’s activity. It is about a methodology for work and research, maybe also for a training course for text editors.

Keywords: Discursive ethos; Interlanguage; Genericity regimes; Proofreading

1 INTRODUÇÃO

Este artigo retoma aspectos abordados em diversos trabalhos que circularam nesta última década, nos quais se considera que a revisão de textos faz parte de processos editoriais que são constitutivos dos materiais textuais postos em circulação. Em todo caso, não proporei uma listagem ou um levantamento do que já se disse. Trata-se, aqui, de apresentar uma síntese de reflexões que delineiam uma abordagem discursiva do tratamento dado aos textos que serão publicados.

Em linhas gerais, propomos avançar no entendimento das manobras de leitura e escrita envolvidas no preparo de um texto autoral destinado a circulação pública. Mais especificamente, valemo-nos da noção de ritos genéticos editoriais para designar uma série de processos desencadeados pela leitura profissional definidora da revisão de textos, uma atividade linguageira que institui um lugar complexo, de atribuições opacas, condicionado e condicionante na dinâmica interlocutiva que revela. Por isso, essa leitura profissional, com suas manobras técnicas específicas, instaura um antes e um depois na relação com o material textual, afetando toda a cadeia de trabalhos sobre um texto que se prepara para uma vida pública.

Considerado, então, esse ponto de partida, a noção de ritos – gestos reiterados e consagradores – genéticos – gestos que produzem um caminho de formulação a partir dos materiais dados e herdados numa conjuntura – editoriais – gestos que têm a ver com variadas instâncias da edição – está assentada numa tríade conceitual que tem valor metodológico, na medida em que permite organizar uma forma de análise e também critérios que podem balizar o ofício de editar textos. A saber, entende-se, dessa perspectiva, que toda textualização (isto é, todo texto se tecendo) estabelece-se na relação de um código linguageiro mobilizado por um dado regime de genericidade com o ethos discursivo que daí se produz.

Para proceder à síntese a que nos propusemos, faremos uma breve contextualização da designação ritos genéticos editoriais no quadro teórico convocado; em seguida, faremos apontamentos sobre cada um dos elementos da tríade conceitual indicada.

Por fim, importa registrar que estas formulações se baseiam fundamentalmente no corpo teórico desenvolvido pelo linguista Dominique Maingueneau, dedicado aos estudos discursivos de dispositivos comunicacionais. Cito aqui apenas algumas passagens de alguns de seus estudos, mas de fato todo o raciocínio se apoia no conjunto orgânico desenvolvido pelo pesquisador desde 1984, a partir da publicação de Gênese dos discursos, quando delimita como objeto de interesse as práticas discursivas, instituídas num quadro de coerções conjunturais materialmente verificável na superfície textual e estabelecidas no interdiscurso.[1]

2 A FUNÇÃO AXIAL DA REVISÃO DE TEXTOS

Desde 2007, propusemos referir como ritos genéticos editoriais as práticas do mercado editorial nas suas formas de tratamento dos textos destinados a publicação, as quais implicam diretamente aspectos da constituição da autoria, uma vez que permitem apontar em um texto as marcas do trabalho de um autor, que é sempre um interlocutor.

          No âmbito dos estudos da linguagem, essa circunscrição marca uma posição teórica que supõe considerar a língua constitutivamente opaca e polissêmica, os sujeitos como cindidos, e as conjunturas de interlocução como marcadas por lugares sociais definidos na sobreposição de temporalidades de que se faz a história. Noutros termos, define-se o estudo do material linguístico na ordem do discurso ao se considerarem, nas práticas institucionalizadas de textualização, as marcas da heterogeneidade e da alteridade constitutivas de todos os dizeres – e, portanto, dos lugares de fala que eles animam e que, assim, os avalizam.

Para estudar esse funcionamento discursivo no caso dos textos que são preparados para ir a público, é preciso considerar que estão compreendidas aí tanto as práticas generalizadas nas casas editoras quanto outras, menos oficiais embora igualmente generalizadas, de instituições que editam seus próprios materiais e mesmo dos próprios autores, que frequentemente tomam a iniciativa de procurar o tratamento editorial de textos antes de submeter seu material à apreciação institucional. E é preciso levar em conta também que, se esse tipo de trabalho se intensificou recentemente e tem cada vez mais características peculiares ao nosso tempo (como as tecnologias digitais, a aceleração de processos decorrentes e as urgências de produtividade e competitividade que impelem a alimentação desse ciclo), é também herança de uma longa história que remonta a práticas copistas anteriores até mesmo ao formato códex moderno, na medida em que revela o quanto o original de um autor, no longo processo que o transforma em publicação, movimenta-se, passando por diferentes olhares e cuidados.

No caso do lugar que define as atividades de edição de um texto (como um preparador, um copidesque ou um revisor), um outro do autor vai tecendo, no fio do texto autoral, certos sentidos e, embora não imponha ao autor um texto que não é o seu, interfere na sua tessitura. Faz isso guiado por um conjunto de procedimentos, os ritos genéticos editoriais, designação que tem base na proposta de Maingueneau para a abordagem dos ritos como procedimentos sistemáticos destinados a consagrar certas práticas, e da gênese, em termos discursivos, como convergências históricas que se condicionam estabelecendo uma orientação semântica.

Desse modo, os ritos genéticos são gestos conjuradores, na medida em que constroem um lugar – o de autor – que, espera-se, deve legitimar essa construção:

Esses ritos constituem, na verdade, o único aspecto da criação que ele [autor] pode controlar, a única maneira de conjurar o espectro do fracasso. Em matéria de criação, o êxito é profundamente incerto: como se assegurar de que se fez uma obra de valor quando nem mesmo a aprovação do público imediato é um critério seguro? Não resta ao autor senão multiplicar os gestos conjuradores, mostrar a si mesmo e ao público os sinais de sua legitimidade (MAINGUENEAU, 2006b, p. 156).

Especificando essa noção, propusemos entender que se trata de ver a revisão de textos como uma das atividades conjuradoras, sem jamais perder de vista que se trata dos ritos de uma gênese discursiva, ou seja, sem perder de vista que o trabalho de editar textos é uma co-enunciação editorial que segue ditames – manuais de escrita, regras institucionais, condicionamentos dos campos etc. – e também os reinventa em alguma medida nos processos de textualização, conforme demandas não antecipáveis.

Examinando-se as práticas profissionais de tratamento de textos em vigor hoje, pode-se dizer que são uma co-enunciação que busca, por meio de marcações pontuais, participar da textualização – portanto da discursivização –, facultando ao autor uma leitura de seu texto. Trata-se de uma alteridade que se explicita conforme critérios discrimináveis, com os quais o autor poderá dialogar, firmando a versão que irá a público.

Em todo caso, verifica-se que, no mercado editorial, ainda não se definiram distinções entre o que fazem um revisor e um redator, por exemplo, muitas vezes lugares ocupados por um mesmo profissional, que pode ser do corpo fixo da editora, um prestador de serviços ou um freelancer. Muito comumente, nos créditos de expediente mais acurados e nos cursos de formação oferecidos por entidades ligadas ao livro, o preparador de textos e o copidesque aparecem como atividades distintas, embora conexas, e o revisor trabalha na leitura final do material já diagramado, supostamente pronto para ser enviado à gráfica. Mas, na rotina dos trabalhos, nem sempre essas etapas ou esses termos são discriminados.[2]

Seja como for, se consideramos toda essa cadeia de lugares e atividades de trabalho que os definem como partícipes dos ritos genéticos editoriais, podemos falar de uma gênese editorial, que, entre os originais de um autor e o texto público, um processo – frequentemente longo – se dá, e a revisão de textos tem papel central, mesmo que não lhe seja atribuída (ou reconhecida) essa função[3]. É que o trabalho com o material linguístico abre para um antes e um depois dos registros do revisor de textos, convocando outros lugares e etapas de trabalho (como diagramação, ilustração, cartografia, organização de paratextos, entre outros) a dialogar com os registros dessa leitura profissional que deixa seus rastros. Rastros que dão notícia das leituras que soam mais autorizadas naquele arranjo textual, das demandas que suscita, das possibilidades que projeta.

Com vistas a examinar dados que indiciam essa função axial da revisão de textos nos ritos genéticos editoriais, retomamos sinteticamente o que nos parece pautar uma metodologia de análise e também do trabalho de edição, a saber:

·     a materialização desse funcionamento exige considerar o que se diz também no modo como se diz; os “conteúdos” enunciados estabelecem-se nas relações entre o léxico de um campo, a sintaxe de uma comunidade, os vetores semânticos em uma conjuntura histórica, as relações intersemiótias de uma página etc., numa língua própria ou, melhor, numa língua apropriada;

·     que se define, então, no jogo de coerções característico de um regime de funcionamento dado por práticas socialmente estabelecidas, socialmente valorizadas, isto é, um funcionamento genérico;

·     e disso resulta um tom, evocativo de uma identidade que afiança o que se diz, isto é, ao mesmo tempo que é resultado do trabalho com um certo código linguageiro em um dado funcionamento genérico, uma instância fiadora avaliza o que se diz.

3 UM CÓDIGO LINGUAGEIRO ESTABELECIDO NA INTERLÍNGUA

Na maior parte dos trabalhos em análise do discurso, um fundamento permanece: a autonomia relativa da língua. Isso significa que a língua não é um código simplesmente, nem neutra, nem fixa. A língua é viva, transforma-se no tempo e no espaço conforme a comunidade de falantes a mobiliza. Por isso costuma-se referir como propriedade discursiva fundamental das línguas naturais sua opacidade: os sentidos se produzem nos usos e partilhas, nas relações parafrásticas que se organizam conforme convenções e insubordinações, numa atividade linguageira, na qual diversos registros linguísticos se formulam num jogo de forças histórico.

A língua em uso delimita lugares e, necessariamente, dizeres e modos de dizer mutuamente implicados. E o modo como uma língua é ativada, é atualizada, é textualizada está sempre calcado nos modos de existência dessa língua, e a todo tempo se tocam, se chocam, ignoram-se ou subsumem-se.

Pensar o estilo dessa perspectiva – que considera a “forma” como uma expressão produzida conjugadamente àquilo que “formata” (conforme as condições de produção) e “formaliza” (constituindo uma materialidade que ganha circulação no mundo) – permite ver nos usos da língua, nas atividades linguageiras, um ponto de ancoragem: o estilo de um texto está sempre ligado a uma cena enunciativa, que pede certos usos linguísticos e repele outros. Nessa dinâmica, é possível provocar efeitos textuais inesperados ou considerados peculiares por uma dada comunidade discursiva, mas isso só é possível porque as marcas de um estilo apontado como singular existem em contraste com o que é apontado como ordinário.

Com base nisso, creio que se pode dizer que o estilo é um fato formal que contribui para a construção de uma cenografia[4]. Desde sua emergência, um texto supõe uma certa cena de enunciação que, de fato, valida-se progressivamente por essa mesma enunciação:

A cenografia é, ao mesmo tempo, aquela de onde o discurso vem e aquela que ele engendra; ela legitima um enunciado que, por sua vez, deve legitimá-la, deve estabelecer que a cena de onde a fala emerge é precisamente a cena requerida para enunciar como convém... (MAINGUENEAU, 2005, p. 77). 

Se assim for, o estilo tem a ver com a construção cenográfica, ou seja, com o jogo que prometem os elementos que lhe são impostos pelo tipo de discurso e pelo gênero que ele encarna: pode-se produzir um manual de instruções claro e útil ou um memorial acadêmico organizado, por exemplo, e o que se cumpre na progressão textual resulta em um manual sisudo, solene ou amigável, porque engendra um certo tom; o memorial pode soar submisso às praxes ou ousado etc. As manobras que produzem esses efeitos têm a ver com o trato da língua, com a assunção de um código linguageiro. Nos termos de Maingueneau:

Associam-se estreitamente nessa noção as acepções de “código” como sistema de regras e de signos que permite uma comunicação e de “código” como conjunto de prescrições: por definição, o uso da língua que a obra implica se apresenta como a maneira pela qual se tem de enunciar, por ser esta a única maneira compatível com o universo que ela [a obra] instaura (2006b, p. 182).

Assim, é tanto mais possível construir uma cenografia consistente quanto melhor se manobra um dado código linguageiro. Não é difícil ver que as formas preferenciais de uma atividade linguageira são constitutivas dos dizeres que a caracterizam e lhe dão identidade. Os exemplos mais corriqueiros disso são as gírias ou preferências de grupo e os jargões profissionais. Taquicardia, aceleração dos batimentos cardíacos, palpitações e coração disparado não são apenas formas diferentes de referir uma mesma coisa. De um certo ponto de vista, poderíamos dizer que não há aí exatamente “uma mesma coisa”: taquicardia parece ser mais corrente entre médicos e enfermeiros; aceleração dos batimentos cardíacos, típico entre esportistas; palpitações, entre mães preocupadas; coração disparado entre poetas e apaixonados. Para dizer o mínimo sobre cada uma dessas expressões.

Os usos da língua estão direta e necessariamente ligados às coerções genéricas – e por isso são códigos linguageiros. Há códigos preferenciais num manual; outros, diferentes, num memorial; outros num fanzine. Essa dinâmica de tessitura da linearização de discursos, sempre em relação uns com os outros, sempre inscritos em uma cena enunciativa, permite delimitar a noção de interlíngua, que supõe que não há um uso ou usos “da” língua. A norma culta ou a norma padrão, aquilo que se considera default ou o que se define como idioma oficial não estão à disposição de usuários que, tomando essas referências, podem desdobrá-las conforme sua vontade; a língua não é exterior e posterior à formulação de um algo a dizer: ela é constitutiva dos dizeres.

Portanto, em seu trabalho, um escritor (como um tradutor, um revisor etc.) nunca é confrontado com uma língua plenamente estabilizada, mas com uma interação de registros e usos. Seu dizer é tecido numa dada conjuntura em que se entrecruzam as relações entre as variedades de uma mesma língua, e também entre essas variedades e as de outras línguas, passadas e contemporâneas:

Essa gestão da interlíngua pode ser concebida em seu aspecto de plurilinguismo exterior, isto é, na relação das obras com “outras” línguas, ou em seu aspecto de plurilinguismo interior, em sua relação com a diversidade de uma mesma língua. Essa distinção, de resto, tem apenas uma validade limitada, uma vez que são as obras que decidem em que ponto passa a fronteira entre interior e exterior de “sua” língua (2006b, p. 182).

Os profissionais da escrita e da leitura sempre trabalham uma língua numa língua e, assim, escavam um hiato irredutível, trafegando entre as perilínguas, perímetros delineáveis apenas como orientações possíveis de cada enunciação. Maingueneau assim descreve essas fronteiras: uma delas, a infralíngua (ou hipolíngua), é uma pretendida origem, difusa, uma espécie de instância primeva, personalizante; a outra, a supralíngua (ou hiperlíngua), vai na direção inversa, é uma utópica representação ideal do pensamento, suposta estabilidade racional e transparente dos sentidos, institucionalizante:

A infralíngua está voltada para uma origem que seria uma ambivalente proximidade do corpo, pura emoção: ora inocência perdida ou paraíso das infâncias, ora confusão primitiva, caos de que é necessário se desprender. Do lado oposto, a supralíngua acena com a perfeição luminosa de uma representação idealmente transparente ao pensamento (2006b, p. 191).

Trafegando entre as perilínguas, que pressupõem usos menos ou mais polissêmicos conforme autorizam os quadros cênicos, “o autor não situa sua obra numa língua ou num gênero. Não há, de um lado, conteúdos e, do outro, uma língua já dada que permitiria transmiti-los; em vez disso, a maneira como a obra gera a ‘interlíngua’ é uma dimensão constitutiva dessa obra” (MAINGUENEAU 2006b, p. 180). Isso quer dizer que tudo aquilo que define “o jeito de escrever” de um autor – que define, portanto, uma figura de autor – tem a ver com um certo modo ou certos modos de usar a língua, ou seja, com os códigos linguageiros que se forjam.

Escavar um hiato é, então, o próprio enunciar. Não é buscar adequação formal para um enunciável prévio, pois o enunciar participa da semântica do enunciado, constitui seu modo de coesão, uma totalidade da qual relevam os sentidos, sempre negociados entre interlocutores: sujeitos históricos, heterogêneos, constitutivamente dialógicos, que textualizam certos discursos em certos códigos linguageiros.

4 REGIMES DE GENERICIDADE: PRÁTICAS GESTORAS DA INTERLÍNGUA

No Dicionário de Análise do Discurso (CHARAUDEAU; MAINGUENEAU, 2004), o verbete gênero de discurso remonta à Antiguidade, depois cita o uso na tradição da crítica literária, que “assim classifica as produções escritas segundo certas características”, e o uso corrente, como “um meio para o indivíduo localizar-se no conjunto das produções textuais”, e afirma que há usos variados nas análises de discurso e nas análises textuais, agrupamentos propostos por diferentes teorias, metodologias e recortes (pp. 249-251). Há um farto debate em torno da designação.

Maingueneau propunha já em Gênese dos Discursos (1984) que “o gênero da prática discursiva impõe restrições que se relacionam com o contexto histórico e com a função social dessa prática” (2004b, p. 47). Em Novas tendências em Análise do Discurso (1987), o autor fala em coerções genéricas, descartando a tentativa de uma tipologia de abordagem discursiva. Do quê se entende que “cabe ao analista definir, em função de seus objetivos, os recortes genéricos que lhe parecem pertinentes” (1997, p. 35). Segundo essas formulações, que decerto acompanham muitas outras reflexões sobre o tema, esses recortes são pautados pela cena da enunciação que se constrói com base numa dêixis discursiva, definida pela conjugação de co-enunciadores, por uma cronografia e uma topografia discursivas.

Depreende-se, dessa perspectiva, que a “eficácia da enunciação resulta necessariamente do jogo entre as condições genéricas, o ritual que elas implicam a priori e o que é tecido pela enunciação efetivamente realizada” (1997, p. 40). E também que as condições genéricas são, por isso, um cerco prenhe de escapes e delimitam gêneros conforme uma gradação: alguns cercos são menos suscetíveis a escapes que outros, e isso tem a ver com as práticas sociais que os mantêm ou os transformam. A seguir, um dado que permite observar alguns desses aspectos.

Texto destinado à publicação em um fanzine digital, eventualmente com alguma divulgação impressa. Trata-se de um tipo de dispositivo comunicacional caracterizado como alternativo aos periódicos comerciais, ligado à produção cultural marginal. Portanto, seria possível pensar que se trata de um gênero de script menos rígido, em que as forças de condicionamento são mais horizontais (Maingueneau, 2004a: 110), ou seja, têm uma relação bastante dinâmica, grande flexibilidade na troca de funções entre interlocutores e nos arranjos formais dos dizeres, o que seria um espaço amplo de manobra do sujeito tático (retomando a formulação de DE CERTEAU, 2004); muito embora esteja, ao mesmo tempo, submetido a estratégias sistêmicas, posto se tratar de um texto destinado a circular em certa comunidade discursiva, em um periódico com características de fanzine (consideradas aí as características da circulação que os fanzines têm hoje) e de publicação digital (escrito para leitura na tela). Está, portanto, condicionado também por forças verticais (MAINGUENEAU, 2004a, p. 110), na medida em que está submetido a coerções técnicas e estéticas, que têm a ver, entre outras coisas, com as demandas do aparato de leitura (computador, tablet, celular etc.).

No documento original, as intervenções do revisor estão em magenta; por razões técnicas, aqui aparecem reproduzidas em negrito. Os nomes de pessoas foram alterados.

original

A(s) música(s) que ve(ê)m da(s) rua(s)

Sim, o plural entre parênteses do título é proposital. Afinal há músicas e mais músicas que vêem das ruas e elas sempre nos chamam a atenção por algum motivo. Street calls you é o slogan de uma marca de jeans estampado nas avenidas de São Paulo. Mas antes de falar dessa música que vem da rua, que se inspira na rua, que fala da rua, seria interessante falar sobre A rua propriamente dita. E como um preâmbulo, faço as seguintes perguntas: de que rua estamos falando? de que cidade? de que bairro? de que área? de que região? de que época? rua de quem? Pois é, a rua é o microcosmo do mundo, é onde as coisas se condensam, se transmutam e fazem reverberar na sociedade.

 

nova textualização

A(s) música(s) que v(ê)m da(s) rua(s)

Sim, o plural reiterado (entre parênteses) é proposital.

Afinal, há músicas e mais músicas, diversas músicas, que vêm das ruas – e que não deixam de pertencer a essa categoria singular “a música que vem das ruas”. A rua também é uma e muitas ao mesmo tempo.2 Elas sempre nos chamam a atenção por algum motivo. Street calls you, como diz o slogan (de um jeans) atualmente estampado nas avenidas de São Paulo. Para falar dessa música que vem da rua, que se inspira na rua, que fala da rua, seria interessante pensar, antes, sobre a rua propriamente dita: de que rua estamos falando? de que tipo de cidade? de que bairros? de que áreas? de que regiões? de que épocas? rua de quem? Pois é, toda rua é um microcosmo, é onde as coisas todas do mundo se condensam, se transmutam e reverberam.

________________________

2 Ana, não sei se é isso, mas me parece necessário ao charme dessa entrada que se explique, além do plural, a manutenção da singular – pois ao usar os parênteses, vc não descartou o singular, não pôs tudo direto no plural, certo?

 

Logo na primeira construção frasal, uma mudança importante é sugerida: a referência ao título, que tinha intenção lúdica, explicitada já no começo do texto, ganha maior ludicidade com a “brincadeira formal” de pôr a expressão entre parênteses entre parênteses. Além disso, a proposta de uma curta oração-parágrafo, desmembrando o parágrafo original em dois, torna a construção do título mais impactante, funciona como uma espécie de subtítulo que instrui o leitor sobre os caminhos oferecidos no texto.

Em seguida, na nota 2, explica-se o acréscimo sugerido textualmente sobre a malha textual original; uma sugestão que se põe como arranjo final mas que se sabe sub judice e, então, procura justificar-se na nota de rodapé. Uma necessidade de esclarecimento (de que essa entrada se explique) e de que a “brincadeira” com o título renda (é necessário ao charme dessa entrada) é apontada pelo revisor, que, ao justificar suas sugestões (que não são correções propriamente), apresenta a interpretação em que se baseia para formular tal proposta, mostra sua leitura para propor ajustes orientadores de leituras futuras. Detenho-me em duas passagens desse excerto:

 Em Street calls you, como diz o slogan (de um jeans) atualmente estampado nas avenidas de São Paulo, uma nova organização dos elementos originais – Street calls you é o slogan de uma marca de jeans estampado nas avenidas de São Paulo –, modificou-se a cadência da construção frasal e, portanto, as ênfases: no arranjo da nova textualização, Street calls you ganha um caráter de “chamado das ruas” antes de ser um slogan comercial. Prosseguindo, em Para falar dessa música que vem da rua, o destaque proposto para a expressão define uma categoria de música – “a que vem das ruas” – que desde o título se enunciou como foco do ensaio: legitimar a música das ruas como um tipo de música.

Nas alterações sugeridas na passagem Pois é, a rua é o microcosmo do mundo, é onde as coisas se condensam, se transmutam e fazem reverberar na sociedade por Pois é, toda rua é um microcosmo, é onde as coisas todas do mundo se condensam, se transmutam e reverberam, a troca de a rua é o microcosmo por toda rua é um microcosmo seguida do deslocamento da expressão do mundo em microcosmo do mundo, é onde as coisas se condensam... por microcosmo, onde as coisas todas do mundo se condensam... faz parecer mais rica a rua que se descreve, ela fica superlativa: ela é que contém as coisas todas do mundo.

Ainda que essas transformações possam parecer menos sujeitas à dinâmica das coerções genéricas do que o que se comenta na nota 2 sobre o charme da entrada, tanto elas como a brincadeira inicial são registros das interpretações que este co-enunciador faz do original, com base nas quais sugere acentuar certos traços, suavizar outros, enfim, calibra o texto. Para seguir nessas interpretações, o revisor mostra que supõe certas características como desejáveis num zine: consistência com informalidade, inteligência jocosa, irreverência, dentre outros predicativos que têm a ver com a comunidade em que circula esse tipo de publicação. Vemos que nessas manobras o texto segue “contendo”, em boa medida, a “idéia” do autor, mas essa leitura ativa, colaborativa, propõe os referidos relevos e, com isso, apropria-se do texto para fazer com que ele renda, explorando encaminhamentos que se anunciam nos originais. Opera num código linguageiro que parece condizente com o que deve ser esse texto autoral, sobre esse tema, nesse gênero: uma musicista que escreve em defesa da “música que vem das ruas” num fanzine digital.

Maingueneau (2002) refaz uma proposta anterior, para pensar esse funcionamento dos regimes definidores das coerções genéricas. Antes, prupunha três regimes genéricos: gêneros autorais, impostos pelo autor ou pelo editor, espaço de ação do sujeito tático; gêneros rotineiros, cujos integrantes têm papéis definidos a priori e que tendem a perdurar, verdadeiros dispositivos de comunicação social historicamente condicionados; e gêneros conversacionais, nos quais as forças restritivas horizontais predominam, e suas delimitações são das mais movediças (p. 147-8).

Passa, depois, a ver os gêneros autorais como um tipo de gênero rotineiro e formula um esquema que agrupa tipos de textualização bastante variados em apenas dois regimes de discurso bem distintos: gêneros conversacionais e gêneros instituídos. E estes últimos são os que lhe interessa pesquisar, como a nós: os gêneros instituídos “não formam um conjunto homogêneo”, são “aqueles que não implicam uma interação imediata” e “podem ser distribuídos em uma escala de acordo com a habilidade do falante de categorizar sua estrutura comunicativa e, especialmente, de elaborar uma ‘cenografia’” (2002, p. 149). De certo modo, todos os gêneros instituídos podem admitir, a partir daí, traços de estilo singularizantes, manobras formais recorrentes e conjugadas, caracterizadoras de uma maneira algo peculiar de dizer o dito.

Como há uma grande diversidade de gêneros instituídos, o autor propõe outra gradação; fala em gêneros instituídos de primeiro grau, que estão submetidos a pequena ou nenhuma variação, fórmulas rigorosamente preestabelecidos (lista telefônica, certidões etc.); de segundo grau, nos quais se espera dos interlocutores que produzam singularidades conjugadas a roteiros mais rígidos (noticiário de tevê, correspondência de negócios); de terceiro grau, que admitem variações cenográficas (como um guia de viagens, que pode ser apresentado em forma de conversa entre familiares); de quarto grau, que permitem e mesmo requerem a invenção de cenários de fala, mas sem questionar as estruturas impostas pelo gênero (propagandas, programas de entretenimento na televisão etc.); e de quinto grau, os “mais autorais”, para os quais a própria noção de gênero põe um problema; são “conseqüência de uma decisão pessoal, os vestígios de um ato de posicionamento interior a um determinado campo, geralmente inscrito na memória coletiva” (p. 151).

A textualização analisada acima seria de quinto grau, posto que a ideia de um fanzine é sobretudo pôr em xeque fronteiras e rótulos (o que, em todo caso, já é uma coerção genérica). Nesse ensaio para o zine, a “música que vem das ruas” é objeto de uma reflexão que pretende circunscrever um tipo de produção cultural atendendo a essa restrição do gênero (discutir fronteiras e rótulos), e procurando cumprir o roteiro de modo singularizado, buscando efeitos formais que produzam um tom particular dentro desse cerco genérico, o que, paradoxalmente, é um condicionamento, na medida em que há essa expectativa sobre a escrita de um ensaio destinado a circular num zine.

Para nos determos nessa imbricação do código linguageiro mobilizado na tessitura de uma dada cenografia, que, por sua vez, se produz conforme possibilidades e demandas de um dado gênero, examinamos a seguir passagens de dois memoriais acadêmicos destinados a uma circulação a princípio bastante restrita (as bancas examinadoras de concursos), mas pública e, portanto, passível de ampliações variadas, oficiais e oficiosas.

Essa condição é importante, porque, embora um memorial seja escrito para um grupo pequeno de avaliadores, hierarquicamente superiores mas que se pretende ter como iguais, portanto aos quais se deve dizer que se está preparado para vir a ser um par, sabe-se que a ampliação da circulação desse documento pode acontecer, e isso faz parte, então, das projeções de outros interlocutores.

Interessante sublinhar, ainda, que no contexto acadêmico o memorial é supostamente o espaço da “liberdade de estilo”. Diferentemente do que acontece nos artigos científicos, dissertações e teses, num memorial de concurso supõe-se que a formalidade acadêmica seja conjugada a uma escrita mais autoral, mais individualizada, no limite do singular – como se, partindo do modo 2, se pudesse ensejar o modo 3 e até o 4, conforme os efeitos de alinhamento ou de ousadia que se pretende para a apresentação de si mesmo. Aliás, disso decorre a maior fonte de coerções do gênero: esse tipo de memorial é a apresentação de um “si mesmo” que pleiteia o pertencimento a uma dada comunidade, por isso a textualização pode variar entre uma cenografia mais alinhada a essa comunidade e uma cenografia mais subversiva, em que se dá a ver um candidato de ruptura ou inovação. O modo de apresentar-se está longe de ser mais livre do que em outros gêneros acadêmicos. Trata-se de um outro gênero, distinto de um artigo científico ou de uma tese. Trata-se de um outro modo de apresentar-se.

A seguir, um excerto de um memorial acadêmico destinado a concurso para provimento de uma vaga de docente em área das ciências humanas. Observação: os registros do revisor estão todos em negrito.

O que define todo humanismo é o fato de que o mundo moral não é um mundo dado, estranho ao homem e que este deveria esforçar-se por alcançar de fora: é o mundo querido pelo homem na medida em que sua vontade exprime sua realidade autêntica.

(Simone de Beauvoir: 19707).

 

A tarefa de escrever um memorial é sempre difícil. As lembranças da minha trajetória me (re)aproximaram de pessoas, de situações, de escolhas, de angústias e alegrias que eu pressupunha estarem esquecidas. E, não bastassem as surpresas ao despertá-las, o fio condutor desta pequena narrativa é o presente, daí o risco de interpretar os caminhos trilhados como se tivesse estado plenamente consciente das decisões tomadas. Mas, afinal, lembrar é um modo de refazer os percursos, e nossas trajetórias se compõem também de nossa memória.8

__________________________

7 Nas epígrafes, em vez do ano da obra, é bom aparecer o nome da obra – ele dá pistas ao leitor do teor contextual do excerto que se apresenta.

 

8 Achei que “faltava” nessa entrada uma amarração das idéias de lembrar, esquecer, trilhar, refazer trilhas via memória... Tudo isso sendo o “difícil” de escrever um memorial. Veja aí se te agradam minhas sugestões.

 

É a introdução do memorial. Nela, a indicação do revisor em relação à epígrafe não é só uma padronização formal, mas, como padronização formal – alega-se uma praxe: nas epígrafes é bom aparecer... – produz sentidos relevantes para o todo: dá pistas ao leitor do teor contextual do excerto que se apresenta. Delimita uma filiação ou remete a uma cena englobante, pelo menos.

Mais adiante no documento pesquisado, no subtítulo O curso de graduação, assim se registra na nota 9: É de propósito que vc coloca “O curso de graduação” como sub-item de “Os caminhos para a Universidade”? A graduação ainda era um caminho, ainda não era estar na universidade... é essa a idéia?

No desenrolar da narrativa, essa decisão sobre o subtítulo implica uma relação com o conjunto de informações tipicamente hierarquizadas em um memorial acadêmico: dizer que a graduação era ainda caminho para a universidade é considerar, de algum modo, que só na pós-graduação (ou depois da graduação) se despertou para a vida universitária propriamente. Essa hierarquização não pode ser firmada pelo co-enunciador, porque se trata aí de um gênero em que essa articulação das informações precisa ser esclarecida pelo autor. O revisor registrou um estranhamento, não uma nova formulação.

Já na nota 8, reproduzida acima, há uma proposta de formulação – e não de reformulação – que sugere acrescentar todo um período, sobre o qual poderíamos perguntar que função tem, posto que não acrescenta informação objetiva, propriamente. Mas é evidente que acrescenta efeito de sentido: as aspas no termo “faltava”, na nota do revisor, indicam que se trata de uma falta relativa, não de uma total obscuridade do original, mas de uma necessidade de “amarrar” ideias um tanto dispersas sobre lembrar, esquecer... enfim, algo que frisasse a consciência do perigo que é escrever um memorial, pois se pode deixar de falar de algo ou de alguém que eventualmente seria considerado fundamental pelos interlocutores. Com isso, produz-se um pedido de desculpas antecipado e, ao mesmo tempo, marca-se uma capacidade de prever derivas e inadequações na tarefa assumida – o que, afinal, sugere uma potência, uma destreza, uma sabedoria. Esse período acrescenta valor ao candidato.

Para o que nos interessa neste breve estudo, importa principalmente observar que o revisor sugere um acréscimo na própria malha textual e justifica essa sua “entrada” no texto autoral com explicações sobre o que – como leitor profissional – lê nesse texto, sobre o que nele parece autorizá-lo a essa entrada. Em todo caso, são sugestões, podem, portanto, ser descartadas pelo autor, que é quem responde pela textualização que vai a público.

Vale lembrar, porém, que, mesmo que o autor as descarte, não fará o texto voltar exatamente ao que era antes, pelo menos não no que tange à sua relação com seu texto: ele agora decide o que decidir ciente do que se pode ler ali, foi deslocado de sua posição inicial de criador, foi levado a ser um leitor de um texto autoral.

A seguir, apresentamos outro dado com fins comparativos. Trata-se de mais um excerto inicial de um memorial acadêmico destinado a concurso, neste caso em ciências biológicas. Observação: os registros do revisor estão todos em negrito.

original

Este memorial se divide em três partes. A primeira, se refere a um prefácio e a segunda parte é composta pelo “Curriculum Vitae” propriamente dito. A terceira parte corresponde ao “Currculum Lattes” que foi aqui apresentado pela facilidade que sua consulta poderá propiciar aos examinadores. A documentação referente as diferentes7 atividades serão apresentadas e numeradas segundo a seqüência dos capitulos do “Curriculum Vitae”.

nova textualização

Este memorial se divide em três partes. A primeira é um prefácio1, a segunda apresenta o curriculum vitae propriamente dito, do qual consta a documentação comprobatória, organizada por uma numeração simples. Quanto à terceira parte, corresponde ao currículo Lattes, plataforma que apresenta mais sinteticamente o material descrito e comentado e, assim, favorece os expedientes de consulta ágil.

___________________________

[1] Ou uma “introdução”?

 

A primeira impressão que tantas intervenções podem causar é a de que se alterou quase tudo, ou que quase nada do original se aproveitou. Mas um exame mais minucioso mostra que os elementos originais permanecem de algum modo na nova textualização – cada uma das partes do memorial e a justificativa dessa partição.

Ocorre que as manobras da nova textualização operam formalmente sobre essas mesmas informações: questiona-se a pertinência de um prefácio em vez de uma introdução – os memoriais supostamente não têm prefácio (restrição do gênero estabelecida pelas práticas da comunidade acadêmica); simplifica-se a leitura de curriculum vitae, suprimindo-se o acúmulo de recursos gráficos (retiram-se as maiúsculas e as aspas, mas a expressão continua em destaque, como prevê o original, bastando para isso o itálico – uma economia importante, que favorece a leiturabilidade) e de currículo Lattes, que soa mais técnico na nova grafia, o que remete mais prontamente às características dessa plataforma digital; também as justificativas para a segunda e a terceira partes foram apresentadas em nova disposição, sem a intercalação de raciocínio da formulação original.

Resulta da nova textualização um tom mais organizado, construído com base nos elementos sugestivos de organização da formulação original, o que acaba reforçando a decisão do autor de introduzir o memorial com uma apresentação estrutural do documento, instruindo um percurso de leitura.

Decerto estes dados merecem análise mais fina, mas podemos fazer notar aqui, com essas indicações, que certos códigos liguageiros são mobilizados, nos dois casos, para a produção de um memorial acadêmico para concurso público, isto é, em ambos os casos um candidato deve falar de si, de sua trajetória profissional, de sua formação... de modo a mostrar-se capaz de tomar posse do cargo de docente pesquisador a que se candidata. Mas em cada uma das áreas de conhecimento um certo modo de fazer isso condiciona a seleção de um léxico, de uma sintaxe, de um conjunto de relações formais do material linguístico que, afinal, produz textualizações bem diversas.

No primeiro memorial, instaura-se uma cenografia ligada às reflexões sobre a condição humana; a própria epígrafe de Simone de Beauvoir remete a isso, efetivamente anuncia e legitima esse caminho de considerações de caráter filosófico, sua relação com a produção de memória e a menção aos nomes que os interlocutores possivelmente julgariam fundamentais. No segundo memorial, instaura-se uma cenografia de organização documental, de uma expertise na compilação de dados comprobatórios, que são apresentados porntamente no primeiro parágrafo do memorial, sob a alegação de ser esta uma manobra que visa à facilitação das consultas que sabidamente os interlocutores devem fazer. Os leitores projetados são, afinal, tão distintos quanto o são os candidatos. Os códigos linguageiros mobilizados dão a um regime comum de funcionamento – o de um memorial acadêmico – diferentes tons, que evocam diferentes interlocutores. Na materialidade inteligível se produzem efeitos da ordem do sensível.

5 ETHOS DISCURSIVO: INTELIGIR O SENSÍVEL

Articulando aos regimes de genericidade o trabalho com os códigos linguageiros, ao mesmo tempo instituídos pelo quadro cênico e dele instituintes, propusemos que a formulação de uma cenografia é, necessariamente, a formulação de um estilo, e que não podemos entendê-lo como fato estritamente formal porque, da perspectiva discursiva em que apoiamos este raciocínio, não é possível pensar numa forma prévia ou ulterior. O estilo tem a ver com a cenografia na sua função integradora:

A noção de “cenografia” adiciona ao caráter teatral de “cena” a dimensão grafia. Essa “-grafia” não remete a uma oposição empírica entre suporte oral e suporte gráfico, mas a um processo fundador, à inscrição legitimadora de um texto, em sua dupla relação com a memória de uma enunciação que se situa na filiação de outras enunciações e que reivindica um certo tipo de reemprego. A grafia é aqui tanto quadro como processo; logo, a cenografia está tanto a montante quanto a jusante da obra: é a cena de fala que o discurso pressupõe para poder ser enunciado e que em troca ele precisa validar através de sua própria enunciação (MAINGUENEAU 2006b, p. 253).  

O quadro cênico – cena englobante e cena genérica conjugadas – delimita um território em que há certas normas previstas e, nele, o jogo singular/ordinário se estabelece conforme o posicionamento que se insinua numa dada cenografia ou, pelo menos, num dado movimento na direção de cenografar, nos casos em que a construção de uma cenografia não caracteriza o gênero ou é mesmo indesejável, porque fere a identidade do discurso em linearização. Por exemplo: a princípio, não se espera de um memorando expedido pela reitoria de uma universidade que se formule como um poema ou uma carta entre amigos ou, para ser menos radical, que, mantendo-se protocolar, como se espera que seja, inclua fechos como “um grande abraço a todos” ou “felicidades”.

A semântica discursiva se formula historicamente, socialmente, no âmbito do vivido; aí se formulam os torneios característicos e também os menos esperados. A cenografia é a articulação do texto posto em circulação como um objeto autônomo com as condições de seu surgimento; ela “não é um simples alicerce, uma maneira de transmitir ‘conteúdos’, mas o centro em torno do qual gira a enunciação” (p. 264). Nos textos de genericidade mais autoral, isso é evidente, nos textos de genericidade mais utilitária ou protocolar, a cenografia pode não ser desenvolvida, mas é como se fosse um norte.

Do trabalho dos sujeitos co-enunciadores sobre a língua, ou, nos termos que propusemos, do trabalho dos escribas escavando na interlíngua resulta sempre um tom que, na mesma mão, recai sobre o dito, participando de sua identidade. Isso acontece em todas as textualizações: num manual de instruções, numa história infantil, num artigo científico... Essa identidade que se formula nas cenas enunciativas tem uma vocalidade própria. Digamos, por ora, tem um “espírito próprio que se dá a ver”. Voltado para o outro, esse “espírito próprio” não é apenas um elã que pode ou não se mostrar; de certo modo, emana da forma, conforme o trabalho na interlíngua se conjuga às coerções genéricas, mas, ao mesmo tempo que emana do trabalho formal, incide sobre ele. Trata-se do ethos discursivo, uma noção que “permite articular corpo e discurso: a instância subjetiva que se manifesta através do discurso não se deixa perceber neste apenas como estatuto, mas sim como uma voz associada à representação de um ‘corpo enunciante’ historicamente especificado” (MAINGUENEAU, 2006b, p. 271).

Como se pode verificar nos dados acima, no tratamento editorial de textos, a interlocução registrada no texto original, sugerindo correções, mudanças, questões diversas, é reveladora do quanto, nessa altura, o texto está em construção, embora se tenha estruturado como versão final. Ao passar pelos ritos genéticos editoriais, ele se move. Mesmo em textualizações de genericidade de modo 1 há movimento. E, de outro lado, textualizações de genericidade de modo 4 não são movediças a ponto de perderem o sentido. Há gradações. Mas, com maior ou menor intensidade, todas as condições de textualização se impõem aos escribas, que são sujeitos táticos e trabalham alargando ou refazendo fronteiras, produzindo reverberações ou novos torneios, sempre contemplando um outro que, nos projetos editoriais, é a razão de ser do que se textualiza.

Nesses casos, fica claro que “o texto não é para ser contemplado, ele é uma enunciação voltada para um co-enunciador que é necessário mobilizar para fazê-lo aderir ‘fisicamente’ a um certo universo de sentido” (MAINGUENEAU, 2005, p. 73). Os textos, entendidos como linearizações de discursos, são unidades permanentemente suscetíveis a atravessamentos e impelidas a atravessar outras, construindo ininterruptamente sua identidade, que é insistentemente provocada na relação com seus leitores. Estes, tecendo em sua leitura uma decifração, devoram e são devorados.

Diante disso, a leitura do co-enunciador editorial, mobilizadora de certas redes de memória, de técnicas e de práticas, à qual cabe contribuir para que o texto se apresente a futuros leitores como um convite a dados percursos, não pode pretender a mudança do ethos dos originais, mas certamente não pode evitar tocá-lo, afinal, “um procedimento que se funda sobre uma semântica ‘global’ não apreende o discurso privilegiando tal ou tal de seus ‘planos’, mas integrando-os todos, tanto na ordem do enunciado quanto na da enunciação” (MAINGUENEAU, 2005, p. 79). Visto assim, o ethos faz parte da materialidade textual e também se movimenta se a tessitura é tocada.

Esse modo como uma discursividade “toma corpo” tem a ver com a configuração de uma voz, cujo tom é revelador de um posicionamento e, como tal, reveste-se de um caráter e de uma corporeidade evocados na própria maneira de enunciar (conforme as coerções e possibilidades do gênero e da língua) e diretamente ligados à eficácia do discurso ou ao poder que tem de suscitar a crença. Trata-se de um ethos discursivo, de uma “presença” construída discursivamente, voltada ao interlocutor, procurando fisgá-lo; interlocutor que

não é apenas um indivíduo para quem se propõem “idéias” que correspondem aproximadamente a seus interesses; é também alguém que tem acesso ao “dito” através de uma "maneira de dizer" que está enraizada em uma “maneira de ser”, o imaginário de um vivido. Note-se, aliás, que esta concepção da eficácia discursiva é constantemente integrada pelos textos publicitários, que mostram de forma paroxística aquilo que provavelmente constitui a tentativa de toda formação discursiva: convencer consiste em atestar o que é dito na própria enunciação, permitindo a identificação com uma certa determinação do corpo (MAINGUENEAU, 1997, p. 49).

Ora, se toda enunciação é uma atividade linguageira que amarra interlocutores na teia interdiscursiva, uma maneira de dizer se liga a uma maneira de ser: as práticas discursivas estão sempre ligadas a outras práticas com as quais partilham um conjunto de afinidades semânticas. Textualizada, essa maneira de ser emerge não de uma ou outra manobra linguística específica, mas da totalidade que as várias manobras produzem.

Embora soe muito vaga, essa não é uma diretriz incomum no meio editorial. Há muitos materiais que não demandam correções, mas ajustes afinados com o pertencimento a um gênero e a uma rede de memória. Na verdade, talvez a diretriz não possa ser mais precisa, pois só no contato com a malha textual, com seus nós e costuras, é que se saberá como se tece essa cadência, ensejada para tal destino. Em todos os casos, isso se dá no jogo interdiscursivo, portanto com apoio num conjunto de valores sociais lastreados por representações historicamente constituídas. Expectativas baseadas em certas práticas e lugares cultivados por uma dada comunidade interagem, e daí decorrem confirmações ou estranhamentos no curso das confrontações. A interlocução movimenta-se entre a adesão e o desafio a um rearranjo, conforme as afinidades semânticas que se estabelecem entre expectativas e pretensões dos interlocutores. Em suma:

O ethos de um discurso resulta de uma interação de diversos fatores: ethos pré-discursivo, ethos discursivo (ethos mostrado), mas também de fragmentos do texto em que o enunciador evoca sua própria enunciação (ethos dito), diretamente (“é um amigo que fala”) ou indiretamente, por exemplo, por meio de metáforas ou de alusões a outras cenas de fala. A distinção entre ethos dito e ethos mostrado inscreve-se nos extremos de uma linha contínua, já que é impossível definir uma fronteira nítida entre o “dito” sugerido e o “mostrado”. O ethos efetivo resulta da interação dessas diversas instâncias, cujo peso respectivo varia segundo os gêneros de discurso (MAINGUENEAU, 2006a, p. 68-9).

Não detalharei essa conjugação de instâncias aqui, mas importa considerá-las porque isso já nos permite observar o quanto o co-enunciador editorial não determina o texto, embora o faça pender para um lado ou outro. Isso se deve ao fato de esse outro, que também participa da produção dos sentidos, não ser o ponto em que se resolve a tensão da dialogia constitutiva de todo texto, pois “não é o leitor que é seu autor essencial, mas o próprio texto, concebido como um dispositivo que organiza os percursos de sua leitura”; o leitor é “o ‘lugar’ a partir do qual [o texto] pode mostrar sua enunciação descentrada” (MAINGUENEAU 1996a, p. 59). No caso do tratamento editorial de textos, trata-se de uma leitura que deve explicitar esse descentramento ainda em etapa autoral.

Evidentemente, contam aí as gradações, definidas sobretudo pelas coerções genéricas. E não será o caso de negar que os textos de regime de genericidade de modo 4, como os literários, têm um manejo dos escribas que em muito difere de suas “escavações” nos textos eminentemente utilitários ou informativos. Em todo caso, em termos de circulação da energia social que se inscreve nos textos, gostaria de sustentar que não são diferenças de importância dos tipos de texto, mas de formas de interlocução, de articulações entre diferentes mundos éticos, de materialidades que veiculam os textos (e também participam da produção dos sentidos).[5]

A seguir, com vistas a pensar sobre esse efeito que institui uma voz fiadora do que se textualiza, apresento um folheto informativo que pretende, no arranjo das informações, criar uma marca distintiva, fazendo de si “boa figura”. É um folheto de uma clínica odontológica, destinado a acolher os pacientes (evocando afeto) e esclarecê-los sobre o funcionamento da clínica (juridicizando a relação), sobre os procedimentos profissionais nela adotados (produzindo um ethos de rigor e segurança) e sobre o próprio tratamento periodôntico. As anotações do revisor estão em negrito, e os nomes de pessoas foram modificados.

Depois de uma breve apresentação da formação profissional, com os nomes completos e os títulos acadêmicos de quatro cirurgiãs dentistas, aparece o item a seguir.

TRATAMENTO

Olá! Seja bem-vindo; é um prazer tê-lo(a) como paciente.

Você está iniciando seu tratamento odontológico em um consultório onde o objetivo maior é promover sua saúde bucal. Nosso trabalho é exercido de acordo com os mais estritos1 critérios de higiene e a utilização das técnicas mais avançadas na área de Periodontia.

Além disso, procuramos proporcionar a você e a sua família um ambiente agradável, que minimize qualquer eventual desconforto. E sempre que você tiver dúvidas, não hesite: consulte a recepção ou mesmo a sua cirurgiã dentista.

Passa-se então à explicitação dos materiais e dos métodos utilizados na clínica. E se segue para o tópico abaixo.

CONSULTAS2

O tempo médio de tratamento será informado ao paciente e dependerá exclusivamente de sua assiduidade e da complexidade do tratamento a ser realizado.

O número de consultas não tem relação com a forma de pagamento e sim com a disponibilidade do paciente e da agenda do consultório. Em geral, as consultas são semanais ou em dois dias da semana, quando possível.

Caso haja algum empecilho ao comparecimento à consulta marcada, o paciente deve cancelar seu horário com 12 horas de antecedência. As consultas que não forem canceladas serão indenizadas.

Havendo ausências sucessivas sem aviso ou justificativa, ficará a critério do consultório o encaminhamento de novas consultas.

POR QUE VOCÊ ESTÁ AQUI?

Seguramente, a indicação foi feita porque a sua gengiva ou o tecido ósseo que protege e sustenta seus dentes estão requerendo cuidados especiais. O periodontista é o profissional da Odontologia especializado no diagnóstico, tratamento e prevenção dessas manifestações - as DOENÇAS PERIODONTAIS - que são a maior causa de perda dentária em adultos, afetando, hoje, três em cada quatro pessoas.

A principal causa dessas manifestações é a placa bacteriana, que se forma constantemente sobre os dentes. As toxinas produzidas pelas bactérias dessa placa podem irritar a gengiva e causar alterações na sua forma, cor, contorno, volume, além de torná-la sujeita a sangramentos. À medida que tais sintomas não forem devidamente diagnosticados e tratados, as DOENÇAS PERIODONTAIS poderão progredir até que ocorra a perda total ou parcial dos elementos dentários.

Cuidar da saúde bucal é a garantia de bem-estar que se revela na sua auto-estima. Sorria saudável! 4

___________________________

[1] A palavra rigorosos vai ser repetida com realce logo no próximo textinho, achei que estritos, aqui, dá bem conta do rigor procedimental, né?

2 Modifiquei a ordem de aparecimento dos itens por duas razões: 1. há uma linha de raciocínio que se pode depreender da ordem de idéias – que assim fica mais plausível e, portanto, mais fluente; 2. acho mais simpático começar pelos itens de funcionamento – no original o item 1 era justamente a “bronca” que eu deixei por último: assim, no finzinho, fica como uma informação objetiva e não como uma advertência, né?

(...)

4 Mirian, este trechinho que eu inventei aí se deve basicamente ao fato de ter ficado faltando um fecho, a cadência do texto pedia uma amarração final e, juntando isso com o tom que vocês procuraram dar ao conjunto de informações – técnicas e objetivas, mas com certa informalidade afetiva (jeitinho feminino de fazer as coisas) –, achei que era algo por aí pra fechar. Podem jogar fora e fazer outro, o importante é que haja um encerramento amistoso aí.

É muito interessante pensar este dado em termos de ethos, porque, como se pode ver nas passagens reproduzidas, trata-se de material encaminhado ao tratamento editorial já com feições bem definidas. Foram feitas correções de digitação e também correções como de na medida que por à medida que ou No geral por Em geral, mas está bastante evidente que o trabalho do revisor foi sobretudo dar ênfase ao fato de ser uma clínica de cirurgiãs rigorosas nos procedimentos clínicos e cuidadosas na relação com seus pacientes, tanto no que concerne às regras de convivência (firmadas no tópico CONSULTAS) quanto ao acolhimento psicológico, o que se vê especialmente na passagem: Além disso, procuramos proporcionar a você e a sua família um ambiente agradável, que minimize qualquer eventual desconforto. E sempre que você tiver dúvidas, não hesite: consulte a recepção ou mesmo a sua cirurgiã dentista.

Fala-se em sua família, evocando uma imagem socialmente bem-vista por diferentes grupos, é uma referência que estabelece um ar de respeitabilidade ao ambiente, diz desse ambiente que, além de agradável, é respeitável, é “bem freqüentado”. Fala-se também em minimizar desconfortos. E será interessante notar que o trabalho do revisor modificou o trecho original minimizando qualquer desconforto, substituindo o gerúndio por uma construção em que o verbo tem marca de pessoa: na construção ...que minimize qualquer eventual desconforto, atribui-se o poder de minimizar ao ambiente construído. Acrescentou-se, ainda, o termo eventual, que torna os desconfortos previstos menos prováveis.

Registra-se, depois, a legitimidade de os pacientes terem dúvidas e, nesse caso, a prontidão da resposta, sugerida já pelos dois-pontos originais, que explicam: não há por que hesitar, pois estão à disposição para esclarecimentos a recepção e a cirurgiã dentista. No original, a construção era E quando você tiver dúvidas, não hesite: entre em contato com a recepção ou a cirurgiã dentista. No tratamento de textos, a legitimidade das dúvidas ficou reforçada e, portanto, também a receptividade a elas: no lugar de E quando você tiver dúvidas, propôs-se E sempre que você tiver dúvidas. O advérbio sempre é que promove esse efeito de ênfase. Depois, do entre em contato para o consulte, ganhou-se precisão (consultar é um termo bastante condizente com o serviço que se oferece aqui) e talvez se possa dizer também que, nessa textualização, ganhou-se proximidade: entrar em contato parece menos técnico, de um lado, e mais frio, de outro. E essa é uma clínica que se pretende acolhedora, embora invista muito no apuro técnico. Adiante, de a recepção ou a cirurgiã para a recepção ou mesmo sua cirurgiã dentista, houve outra mudança nessa mesma direção, produziu-se o estabelecimento de uma relação inconteste, pois, além da recepção, dentre as dentistas que trabalham na clínica, há uma que atende especialmente a suas dúvidas – “a que cuida de você”.

Esse cuidado é corroborado por dois tópicos, um que não foi reproduzido aqui, no qual se explicitam os materiais utilizados e os métodos clínicos adotados, e outro no qual se explica POR QUE VOCÊ ESTÁ AQUI.

Nesse conjunto, até mesmo o tópico mais juridicizante da relação (CONSULTAS), que trata da vigência de certos combinados, ganha ares de cuidado com os clientes. Ao esclarecer-lhes o funcionamento proposto, permite-se que estejam tranquilos quanto ao que pode acontecer, por exemplo, com relação ao número de consultas necessário ao tratamento, ele não tem relação com a forma de pagamento e sim com a disponibilidade do paciente e da agenda do consultório. É, de certo modo, uma declaração de princípios, uma vez que explicita as prioridades dessas cirurgiãs.

Isso posto, é possível ver que as manobras do revisor foram todas guiadas por uma voz feminina caracterizada pelo profissionalismo criterioso de uma coletividade em funcionamento: é um ambiente em que trabalham várias pessoas e que recebe muitas outras também, por isso tem regras de gestão; essas regras não parecem imposições porque estão legitimadas pelo tom do conjunto, cujo efeito de sentido faz delas esforços para que todos se sintam bem nesse ambiente, e os tratamentos corram com o sucesso prometido pela qualidade técnica.

Se esse folheto é assim tão bem pensado, talvez pudesse ter ido a público sem a assessoria dos “olhos de fora”. Mas é fácil ver que há contribuições para que o projeto original se consagre. Na nota 1, podemos pensar que a troca de rigorosos por estritos é muito sutil e apenas evitou uma repetição que não era problemática. Entretanto, as notas 2 e 4 são contundentes no que tange à garantia de que o tom pretendido se sustente.

Em 2, o co-enunciador justifica sua sugestão de troca na ordem dos itens alegando que fica mais plausível e, portanto, mais fluente. A fluência, que tem clara relação com aspectos técnicos de um texto – com os conectores, as referências e correferências etc. – está também ligada a um âmbito menos técnico, relativo ao tom do texto, a sua plausibilidade. De acordo com o que vimos desenvolvendo neste capítulo, o que é plausível depende do que é esperado por uma dada comunidade discursiva, e o revisor decerto está considerando um dado público ao propor essa alteração. Alega-se, também, que é mais simpático começar pelos itens de funcionamento. A manobra textual de alteração da organização dos tópicos foi feita com vistas a soar simpática. O tópico POR QUE VOCÊ ESTÁ AQUI? parecia uma bronca como primeiro item abordado, já como fecho, ele consta como uma informação objetiva e não como uma advertência.

Ou seja, o revisor “só” mudou de lugar um tópico, mas conseguiu, com isso, tornar mais cuidadosas e simpáticas as dentistas que trabalham nesse ambiente acolhedor. Nada mal para o ethos de uma clínica de tratamentos periodônticos, à qual seguramente vão apenas pessoas em sofrimento e por obrigação.

A nota 4 se refere a uma espécie de ápice de toda essa construção de uma imagem. O co-enunciador alega a falta de um fecho – um problema formal na medida em que a cadência do texto pedia uma amarração final. É flagrante aqui o que se disse acima sobre os textos trazerem na sua tessitura “suas demandas”, ou seja, as indicações de leitura. Um leitor não-profissional talvez não sentisse falta de fecho, porque não teria expectativas de um fecho simpático no folheto de uma clínica de periodontia. Talvez o achasse abrupto, ou frio, ou apenas mais um folheto dentre tantos. Mas Mirian, em nome dos que trabalham na clínica, entra em interlocução com um co-enunciador, ou seja, contrata esse serviço, quer ver o que esse outro de si lê no projeto textual original e de que modo contribui para que ele logre êxito.

Nessa leitura, a justificativa para a produção de um fecho se encerra de modo diretamente ligado ao ethos construído: juntando isso com o tom que vocês procuraram dar ao conjunto de informações – técnicas e objetivas, mas com certa informalidade afetiva (jeitinho feminino de fazer as coisas) –, achei que era algo por aí pra fechar. Fala-se em tom, em conjunto de informações (uma referência à totalidade do texto), fala-se em informalidade afetiva, em jeitinho feminino de fazer as coisas. Ao lado do rigor técnico profissional caminha uma marca distintiva, uma forma de acolhimento que é da ordem do feminino, do afeto. E o fiador está aí, validando esse dizer no modo como é dito: quatro cirurgiãs dentistas, com suas graduações e especializações, afinadas com rigores técnicos e tecnológicos, reuniram-se e criaram um ambiente de respeito e acolhedor, propício a um tipo de tratamento que conhecem muito bem.

É possível imaginar esse coletivo de dentistas cirurgiãs, em suas roupas alvas e bem passadas, sua idade média, sua sofisticação conjugada a uma discrição, sua fala calma e paciente, capaz de orientar os que desconhecem aquilo que elas sabem bem. Há uma vocalidade maternal nessa imagem de um coletivo de mulheres que sabe acolher e impor regras, sabe gerir um ambiente familiar e curar as dores que afligem os que as procuram. Há um misto de “mulher moderna” com a evocação de “um feminino ancestral”.

Esse folheto, assim como o exemplo anterior, também permite problematizar a noção de ethos. Isso fica patente na recomendação final da nota 4, quando o revisor registra sobre o trecho que inventou: Podem jogar fora e fazer outro, o importante é que haja um encerramento amistoso aí. A “invenção” do co-enunciador não é uma criação autoral sua, mas uma réplica de leitor que vê como necessário ao acabamento dessa imagem construída um fecho amistoso. Sua “invenção” é um trabalho no código linguageiro já convocado no folheto, cabível no gênero folheto de apresentação de um serviço, forjada num movimento que não chega propriamente a construir uma cenografia mas esboça-a, estilizando o que poderia ser uma enumeração menos amistosa de procedimentos e ditames contratuais. O revisor trabalha para validar o ethos do projeto original, para sustentar a capacidade de garantia do fiador e, afinal, com isso, suscitar a adesão de seus interlocutores.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS, POR ENQUANTO

Certamente cada um dos aspectos que foram apresentados acima pode ganhar espraiamentos diversos, com proveito para estudos da mediação editorial e também de atividades correlatas. Neste texto, o que se pôs em relevo foi o entendimento de que, no ofício de editar textos, considerar essas dimensões de trabalho possivelmente fará uma série de mitos – como o do profissional que corrige ou caça erros – cair por terra, permitindo aos preparadores, copidesques e revisores que sigam fazendo o que de fato fazem, com a qualidade de quem sabe o que faz e com a legitimidade de quem é reconhecido por fazê-lo desse modo.

Referências

ARAÚJO CAVALCANTI, Jauranice Rodrigues. A presença do conceito ‘gêneros de discurso’ nas reflexões de D. Maingueneau. In: Ling. (dis)curso, 2013, vol.13, n.2, p. 429-448.

 

CHARAUDEAU, Patrick; MAINGUENEAU, Dominique. Dicionário de Análise do Discurso. Coord. Trad. Fabiana Komesu. São Paulo: Contexto, 2004.

 

CLARES, Letícia Moreira. Ritos genéticos editoriais do impresso ao audiolivro: o revisor de textos e as manobras de intervenção, São Carlos, 2014. Trabalho de Conclusão de Curso, Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, SP.

 

DE CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano – Artes de fazer. Trad. Ephraim Alves. Vol. 1. 10 ed. Petrópolis: Vozes, 2004.

 

MAINGUENEAU, Dominique. O contexto da obra literária. Trad. Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1995.

 

MAINGUENEAU, Dominique. El ethos y la voz de lo escrito. Trad. Ramón Alvarado. Versión. Estúdios de Comunicación y Política, n. 6, Universidad Autonoma Metropolitana, Unidad Xochimilco (México), out. 1996, p. 79-92.

 

MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em Análise do Discurso. Trad. Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1997.

 

MAINGUENEAU, Dominique. Discours. Intertextualité. Interlangue. Champs du signe, n. 13/14, 2002, p. 197-210.

 

MAINGUENEAU, Dominique. Retour sur une catégorie: le genre. In: ADAM; GRIZE & BOUACHA (orgs.). Texte et discours: categories pour l´analyse. Dijon: Editions Universitaires de Dijon, 2004a, p. 107-118. (Collection Langages).

 

MAINGUENEAU, Dominique. Diversidade dos gêneros de discurso. Trad. Emilia Lopes, Ida Machado e Renato Mello. In: MACHADO; MELLO (orgs.). Gêneros: reflexões em análise do discurso. Belo Horizonte: NAD/FALE/UFMG, 2004b, p. 43-58.

 

MAINGUENEAU, Dominique. Gênese dos discursos. Trad. Sírio Possenti. Curitiba: Criar, 2005.

 

MAINGUENEAU, Dominique. Cenas da enunciação. Org. Sírio Possenti, M. Cecília Pérez de Souza-e-Silva. Curitiba: Criar, 2006a.

 

MAINGUENEAU, Dominique. Discurso Literário. Trad. Adail Sobral. São Paulo: Contexto, 2006b.

 

MAINGUENEAU, Dominique. A propósito do ethos. Trad. Luciana Salgado. In: MOTTA, A. R.; SALGADO, L. (org.) Ethos discursivo. São Paulo: Contexto, 2008, p. 11-29.

 

MOTTA, Ana Raquel; SALGADO, Luciana Salazar. A maquinaria discursiva como dispositivo enunciativo em funcionamento: teoria e método. In: SILVA, F. V; SILVA, A. A. (orgs.) Caleidoscópios do discurso. Campinas: Pontes, 2016, p. 45-64.

 

RUGONI, Luciana Sousa. O imaginário do revisor de textos nos ritos genéticos editoriais. São Carlos, 2015. Dissertação de Mestrado Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, SP.

 

SALGADO, Luciana Salazar. A circulação da energia social inscrita na vitalidade dos textos. Alfa, São Paulo, 54 (1): 11-31, 2010.

 

SALGADO, Luciana Salazar. Ritos genéticos editoriais – autoria e textualização. Edição revista. Bragança Paulista: Margem da Palavra, 2016.

 

SOUZA-E-SILVA, Maria Cecília Perez. Concepção integrada de discurso – discursividade e espaço discursivo. In: FIGARO, Roseli. (org.) Comunicação e Análise do Discurso. São Paulo: Contexto, 2012.



[1] Para uma introdução à obra de Dominique Maingueneau, recomendamos SOUZA-E-SILVA (2012), um capítulo intitulado “Concepção integrada de discurso”.

[2] Há um interessante estudo de caso dessa fluidez das atribuições em CLARES, 2014.

[3] Aspectos do imaginário dos revisores sobre seu próprio trabalho são discutidos em RUGONI, 2015.

[4] Apoiamo-nos, aqui, na proposta teórica para estudo das relações entre texto e discurso conhecida como cenas da enunciação: tipos de discurso (feminista, midiático, político...) são cenas englobantes, que encarnam em um gênero discursivo, uma cena genérica (panfleto, jornal televisivo, palestra...), compondo o quadro cênico, um enquadramento que permite compreender diversos mecanismos de funcionamento de uma discursivização. Mas há mais, há o espaço da singularidade, que é a tessitura mesma desse quadro cênico, a textualização em curso, a atualização material do quadro cênico – a cenografia (um panfleto feminista pode cenografar uma conversa entre amigas, um manifesto de luta renhida, uma esquete humorística...). A cenografia é a dimensão da superfície textual em que se atualiza toda a engenharia do quadro cênico. Estas noções são desenvolvidas em muitos dos textos de Maingueneau indicados nas referências, adiante; para uma introdução, sugerimos CAVALCANTI, 2013 e MOTTA; SALGADO, 2016.

[5] Sobre a energia social inscrita na vitalidade dos textos, ver SALGADO, 2010.