Universidade Federal de Santa Maria
Geografia, Ensino & Pesquisa, Santa Maria, v. 26, Ed. Esp., e8, 2022
DOI: 105902/2236499473548
Submissão: 16/12/2022 • Aprovação: 16/12/2022 • Publicação: 13/01/2023
SUMÁRIO
1 PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA, UMA PEDAGOGIA CONCRETA
Dossiê Educação Ambiental & Educação do Campo
Pedagogia Histórico-Crítica, construção do ser social e educação ambiental
Historical-Critical Pedagogy, construction of social being and environmental education
Pedagogía Histórico-Crítica, construcción del ser social y educación ambiental
IUniversidade Estadual de Campinas, Campinas, SP, Brasil
RESUMO
Palavras-chave: Pedagogia Histórico-Crítica; Construção do ser social; Educação Ambiental
ABSTRACT
Keywords: Historical-Critical Pedagogy; Construction of the social being; Environmental education
RESUMEN
Este artículo aborda la forma en que la Pedagogía Histórico-Crítica concibe la construcción del ser social y qué implicaciones tiene para la educación ambiental. Para ello, parte de una caracterización del sentido de la Pedagogía Histórico-Crítica como pedagogía concreta, ocupándose, en un segundo momento, de la construcción del ser social para, finalmente, situar el problema del entorno y su educación.
Palabras-claves: Pedagogía Histórico-Crítica; Construcción del ser social; Educación ambiental
1 PEDAGOGIA HISTÓRICO-CRÍTICA, UMA PEDAGOGIA CONCRETA
Uma pedagogia concreta é aquela que considera os educandos como indivíduos concretos, isto é, como sínteses de relações sociais. Assim, enquanto a pedagogia tradicional considera os educandos como indivíduos abstratos, isto é, como expressões particulares da essência universal que caracterizaria a realidade humana, a pedagogia moderna considera os educandos como indivíduos empíricos, isto é, como sujeitos singulares que se distinguem uns dos outros pela sua originalidade, criatividade e autonomia, constituindo-se no centro do processo educativo. Por esse caminho, a pedagogia nova elide a história, naturalizando as relações sociais, como se os educandos pudessem se desenvolverem simplesmente a partir de suas disposições internas, de suas capacidades naturais, inscritas em seu código genético.
Diferentemente, a Pedagogia Histórico-Crítica considera que os educandos, enquanto indivíduos concretos, se manifestam como unidades da diversidade, como “uma rica totalidade de determinações e de relações numerosas”, como sínteses de relações sociais. Portanto, o que é do interesse deste aluno concreto diz respeito às condições em que se encontra e que não escolheu, do mesmo modo que a geração atual não escolhe os meios e as relações de produção que herda das gerações anteriores. Sua criatividade vai se expressar na forma como assimila as relações herdadas e as transforma. Nessa mesma medida, os educandos, enquanto seres concretos, também sintetizam relações sociais que eles não escolheram. Isso anula a ideia de que o aluno pode fazer tudo pela sua própria escolha. Essa ideia não corresponde à realidade humana.
Daí a grande importância de distinguir, na compreensão dos interesses dos alunos, o aluno empírico do aluno concreto, firmando-se o princípio de que o atendimento aos interesses dos alunos deve corresponder sempre aos do aluno concreto. O aluno empírico pode querer determinadas coisas, ter curiosidades as quais não necessariamente correspondem às suas concretas. É nesse âmbito que se situa o problema do conhecimento sistematizado, que é produzido historicamente e, de certa forma, integra o conjunto dos meios de produção.
Esse conhecimento pode não ser do interesse do aluno empírico, ou seja, o aluno, em termos imediatos, pode não ter interesse no domínio desse conhecimento; mas ele corresponde diretamente aos interesses do aluno concreto, pois enquanto síntese das relações sociais, o aluno está situado numa sociedade que põe a exigência do domínio desse tipo de conhecimento. E é, sem dúvida, tarefa precípua da escola viabilizar o acesso a esse tipo de saber.
Eis como a Pedagogia Histórico-Crítica, trilhando as sendas abertas por Marx, habilita-se a enfrentar os desafios postos à educação pela sociedade atual, ultrapassando o horizonte do capitalismo e da sua forma social burguesa e contribuindo para a construção de uma sociedade em que estejam abolidas as relações de dominação entre os homens.
Mas para se chegar a essa nova sociedade, é preciso transformar radicalmente a sociedade atual, de forma a estabelecer-se a exigência de pôr em movimento a práxis revolucionária pela ação das massas organizadas, o que implica a tarefa da educação das massas ligada à função de hegemonia que se exerce pela difusão da concepção de mundo que se manifesta em diferentes níveis, desde o senso comum e o folclore, passando pela religião, pela ideologia, pela ciência e pela filosofia.
Ora, a concepção de mundo hegemônica é aquela que, em função de sua expressão universalizada e seu alto grau de elaboração, obteve o consenso das diferentes camadas sociais, convertendo-se em senso comum. Dessa forma, de modo difuso, a concepção dominante atua sobre a mentalidade popular, o que articula-a em torno dos interesses da classe dominante, impedindo, ao mesmo tempo, a expressão elaborada dos interesses populares, o que concorre para inviabilizar a organização das camadas subalternas como classe para si.
O senso comum é, pois, contraditório, dado que se constitui num amálgama integrado por elementos implícitos na prática transformadora do homem de massa e por elementos superficialmente explícitos caracterizados por conceitos herdados da tradição ou veiculados pela concepção hegemônica e acolhidos sem crítica (GRAMSCI, 1975 [Q. 11], vol. II, p. 1385).
As relações entre senso comum e filosofia assumem, para a classe dos trabalhadores, o caráter de uma luta hegemônica que se expressa na forma de um processo de desarticulação-rearticulação: trata-se de desarticular dos interesses dominantes aqueles elementos que estão articulados em torno deles, mas não são inerentes à ideologia dominante e rearticulá-los em torno dos interesses populares, dando-lhes a consistência, a coesão e a coerência de uma concepção de mundo elaborada, isto é, de uma filosofia.
A educação se constitui, pois, num instrumento de luta para estabelecer uma nova relação hegemônica que permita constituir um novo bloco histórico sob a direção da classe fundamental dominada da sociedade capitalista. A importância fundamental da educação na luta pela hegemonia reside na elevação cultural das massas. Essa tarefa implica dois momentos simultâneos e articulados entre si: um momento negativo que consiste na crítica da concepção dominante (a ideologia burguesa); e um momento positivo que significa trabalhar o senso comum, buscando extrair o seu núcleo válido (o bom senso) para dar-lhe expressão elaborada com vistas à formulação de uma concepção de mundo adequada aos interesses populares.
A função educativa que permeia toda a estrutura social adquire especificidade ao ser organizada na forma escolar, constituindo-se num importante instrumento para elaborar intelectuais de diversos níveis e também para elevar o nível cultural das massas. Nesse contexto, desempenha papel central o corpo docente, pois conforme Gramsci, na escola, “o nexo instrução-educação só pode ser representado pelo trabalho vivo do professor, pois o professor tem consciência dos contrastes entre o tipo de sociedade e de cultura que ele representa e o tipo de sociedade representado pelos alunos” (idem, p. 1542).
Por estar consciente desse contraste entre seu lugar e o lugar do aluno no processo educativo, o professor tem consciência também de que sua tarefa é “acelerar e disciplinar a formação da criança conforme o tipo superior em luta com o tipo inferior” (ibidem).
Portanto, com um corpo docente deficiente, afrouxa-se a ligação entre instrução e educação, e o ensino degenera em mera retórica que exalta a educabilidade do ser humano em contraste com um trabalho escolar esvaziado de qualquer seriedade pedagógica.
Podemos, enfim, com Gramsci, considerar que a teoria histórico-crítica da escola se estrutura em torno de dois conceitos centrais: disciplina e catarse. Pela disciplina se adquire o hábito do estudo sistemático, superando os inconvenientes do autodidatismo e se trava a luta “contra a concepção mágica do mundo e da natureza que a criança absorve do ambiente” (idem, p. 1540); “contra as tendências à barbárie individualista e localista” (ibidem); “contra o folclore, contra todas as sedimentações tradicionais de concepções do mundo” (ibidem). Ainda pela disciplina, se faz adquirir os “hábitos de diligência, de exatidão, de compostura também física, de concentração psíquica” (idem, p. 1544); em suma, os hábitos psicofísicos apropriados ao trabalho intelectual.
Pela catarse, o processo educativo atinge seu ápice, propiciando aos educandos atingir uma concepção superior, liberta de toda magia e bruxaria. Pela catarse, dá-se a passagem do nível puramente econômico ao momento ético-político. Igualmente, pela catarse dá-se a elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens. Ou seja, ocorre a assimilação subjetiva das condições objetivas permitindo a passagem da condição de classe-em-si para a condição de classe-para-si. É, enfim, pela catarse que tudo aquilo que era objeto de aprendizagem se incorpora no próprio modo de ser dos homens operando uma espécie de segunda natureza que transforma qualitativamente sua vida integralmente, isto é, no plano das concepções e no plano da ação.
É nessa direção que tem caminhado a Pedagogia Histórico-Crítica. Como já foi indicado, a fundamentação teórica dessa pedagogia parte do entendimento da formulação contida no “método da economia política” (MARX, 1973, p. 228-240). Com base nessa orientação, a Pedagogia Histórico-Crítica procurou construir uma metodologia que, encarnando a natureza da educação como uma atividade mediadora no seio da prática social global, tem como ponto de partida e ponto de chegada a própria prática social.
O trabalho pedagógico se configura, pois, como um processo de mediação que permite a passagem dos educandos de uma inserção acrítica e inintencional no âmbito da sociedade a uma inserção crítica e intencional. A referida mediação se objetiva nos momentos intermediários do método, a saber: problematização, que implica a tomada de consciência dos problemas enfrentados na prática social; instrumentação, pela qual os educandos se apropriam dos instrumentos teóricos e práticos necessários para a compreensão e solução dos problemas detectados; e catarse, isto é, a incorporação na própria vida dos alunos dos elementos constitutivos do trabalho pedagógico.
Ora, o termo “catarse”, que denomina o quarto momento do método proposto, constitui o ponto culminante do processo pedagógico, sendo entendido na acepção gramsciana de “elaboração superior da estrutura em superestrutura na consciência dos homens” (GRAMSCI, 1978, p. 53).
É essa orientação que a Pedagogia Histórico-Crítica vem procurando seguir no campo da educação brasileira, consciente de todas as limitações que são necessárias enfrentar e superar para levar a bom termo essa empreitada. Mantendo-se fiel a essa diretriz, essa pedagogia atravessou toda a década de 1990 e ingressou no século XXI “imune ao canto de sereia” das novas pedagogias que, beneficiadas com uma avalanche de publicações e pela grande divulgação na mídia, vêm exercendo razoável poder de atração nas mentes dos educadores. A difusão e apropriação da Pedagogia Histórico-Crítica representa um antídoto importante na resistência a esse poder de atração. Trata-se de uma resistência ativa porque não se limita a efetuar a crítica mostrando os limites, insuficiências e equívocos das teorias hoje hegemônicas. Vai além, formulando uma teoria capaz de orientar a prática dos educadores numa direção transformadora concorrendo para que os trabalhadores ascendam ao nível da classe para-si, condição para que possam desenvolver a práxis revolucionária, cujo êxito tornará realidade a emancipação humana.
2 CONSTRUÇÃO DO SER SOCIAL
Considerando que as caraterísticas especificamente humanas não estão inscritas na genética e, portanto, não são herdadas pelos indivíduos ao nascer, mas são produzidas historicamente devendo ser adquiridas por meio da atividade educativa, a Pedagogia Histórico-Crítica define a educação como o ato de produzir, direta e intencionalmente, em cada indivíduo singular a humanidade que é produzida histórica e coletivamente pelo conjunto dos homens.
Isso significa que o papel da educação é tornar os indivíduos contemporâneos à sua época, pois, quando vêm ao mundo, os membros da espécie humana já se encontram num contexto que é produto histórico, isto é, produto das ações das gerações precedentes.
Vemos, então, que o indivíduo humano, ao nascer, já se encontra determinado em larga escala pelas condições do meio físico que, por sua vez, na nossa época, está já sobredeterminado pelos conhecimentos produzidos pela humanidade, expressos em domínios científicos como a geologia, a geografia, a agronomia, assim como pelo complexo das ciências físico-químicas e naturais. Isso significa que, além do meio físico, a criança nasce, também, predeterminada pelo meio cultural representado por um meio humano constituído com sua língua, seus costumes, sua moralidade, suas expressões artísticas, sua religião, sua organização econômica e política, sua história específica. E ela se encaixa nesse conjunto, é influenciada por ele, depende dele.
Portanto, quando a criança nasce, pode-se dizer que ela é coetânea de sua época, mas não é contemporânea à sua época. Essa particularidade da espécie humana é evidenciada de forma clara pelo fenômeno que ficou conhecido historicamente como “crianças selvagens”.
Se a existência humana não é garantida pela natureza, tem de ser produzida historicamente pelos próprios homens, o que significa que aquilo que chamamos de “natureza humana” não é algo dado ao homem, mas é por ele produzido sobre a base da natureza biofísica. Eis por que a Pedagogia Histórico-Crítica define o trabalho educativo como a produção, em cada indivíduo singular, da humanidade que é produzida pelo conjunto dos homens ao longo da história.
O caso do “garoto selvagem” mostra, com toda a evidência, que a criança, mesmo tendo nascido com todo o aparato fisiológico próprio da espécie humana, se subtraída ao convívio humano ou perecerá ou, se por alguma circunstância vier a sobreviver, assumirá as características dos seres vivos do meio em que logrou sobreviver, sem ascender à condição humana.
O homem é, pois, um produto da educação. Portanto, é pela mediação dos adultos que, num tempo surpreendentemente curto, a criança se apropria das forças essenciais humanas objetivadas pela humanidade, tornando-se, assim, um ser revestido das características humanas incorporadas à sociedade na qual ela nasceu.
Em suma, para se tornar atual à sua época, o indivíduo necessita se apropriar do conjunto das objetivações humanas que configuram o contexto da atualidade. E isso não ocorre simplesmente, digamos assim, por osmose . Podia antes ocorrer por processos espontâneos, mas na contemporaneidade já se incorporaram ao modo de vida humano elementos formalmente construídos e sistematicamente elaborados, que exigem, também, processos formais e sistemáticos de aquisição.
É esse fato histórico que converteu a escola na forma principal e dominante de educação. Isso fica evidente no caso do "garoto selvagem", cuja análise, realizada por Malson, no livro As crianças selvagens, permitiu-lhe registrar a seguinte conclusão: “A verdade que tudo isto proclama em definitivo é que o homem como homem, antes da educação, não passa de uma possibilidade, isto é, ainda menos do que uma esperança” (MALSON, 1977).
Eis aí o significado da afirmação que define o ser humano como "síntese de relações sociais". Ou seja, não se trata de um dado da natureza, mas de um ser que se põe como uma construção social decorrente do processo educativo, fenômeno esse que a Pedagogia Histórico-Crítica exprimiu ao definir o trabalho educativo como o ato de produzir, em cada indivíduo singular, a humanidade que é produzida pelo conjunto dos homens. É essa, enfim, a perspectiva histórico-crítica da construção do ser social.
3 A EDUCAÇÃO AMBIENTAL
Até aqui tratamos da espécie humana pela sua especificidade, em outras palavras, como seres que, para existir, não lhes basta adaptarem-se à natureza como ocorre com os demais animais. Os seres humanos necessitam agir sobre a natureza ajustando-a, pelo processo de trabalho, às suas necessidades. Ora, isso significa que a natureza é a fonte perene da existência humana, sendo dela que a humanidade retira cotidianamente os meios de sua sobrevivência.
É a natureza que nos fornece o ar que respiramos e a qual provém a água, que não apenas sacia nossa sede, mas que constitui-se na origem da vida, sem ela, nenhum ser vivo, seja do reino vegetal ou animal pode sobreviver; é, ainda, a natureza que nos proporciona os frutos que comemos e a terra na qual abrimos covas para plantar nossos alimentos e para abrigar nossos mortos. É também a natureza que fornece o calor que nos aquece, as matérias-primas para produzirmos nossos instrumentos, com os quais transformamos outras matérias-primas em novos produtos para atender às nossas necessidades reais ou supérfluas.
Enquanto os homens viviam no “reino da pura necessidade”, isto é, enquanto eles eram forçados a extrair da natureza os elementos necessários à sua sobrevivência, não aparecia a questão da destruição da natureza como algo que viria a inviabilizar a própria existência humana.
Somente quando o avanço das forças produtivas, traduzido no desenvolvimento tecnológico e permitida uma utilização racional dos recursos naturais, é que a consciência da necessidade de preservação desses recursos se manifesta. É verdade que essa consciência pode se antecipar em casos específicos, como ilustra a análise efetuada por Engels, em 1876, no texto “Sobre o papel do trabalho na transformação do macaco em homem” (In: MARX, K. e ENGELS, F., 1977, p. 61-78).
Nesse texto, Engels conclui que, ao contrário dos animais que só modificam a natureza pelo simples fato de viverem nela, o homem domina a natureza e a obriga a servir-lhe, diferença essa que resulta do trabalho. Mas acrescenta:
Contudo, não nos deixemos dominar pelo entusiasmo em face de nossas vitórias sobre a natureza. Após cada uma dessas vitórias a natureza adota sua vingança. É verdade que as primeiras consequências dessas vitórias são as previstas por nós, mas em segundo e em terceiro lugar aparecem consequências muito diversas, totalmente imprevistas e que, com frequência, anulam as primeiras (ENGELS, 1977, p. 71).
Engels prossegue mostrando que na Mesopotâmia e na Grécia, assim como na Ásia Menor e em outros lugares, os homens devastavam as matas para cultivar as terras sem imaginarem que estavam, dessa forma, produzindo o atual deserto nessas regiões. Registra, em seguida, a destruição pelos italianos dos Alpes, dos bosques de pinheiros meridionais que eram conservados carinhosamente ao Norte, sem se advertirem que, por esse meio, estavam destruindo as bases da indústria de laticínios de sua própria região.
E, continuando, adverte: “os que difundiram o cultivo da batata na Europa não sabiam que com esse tubérculo farináceo difundiam por sua vez a escrofulose” (p. 71), acrescentando, mais adiante:
Mas que importância pode ter a escrofulose, comparada com os resultados que teve a redução da alimentação dos trabalhadores a batatas puramente, sobre as condições de vida das massas do povo de países inteiros, com a fome que se estendeu em 1847 pela Irlanda em consequência de uma doença provocada por esse tubérculo e que levou à sepultura um milhão de irlandeses que se alimentavam exclusivamente, ou quase exclusivamente, de batatas e obrigou a que emigrassem para além-mar outros dois milhões? (Idem, p. 72).
A semelhança dessa situação com a disseminação atual dos produtos transgênicos e o uso indiscriminado de agrotóxicos não é mera coincidência. Na sequência, Engels relata outros atos humanos que, sem o saber, provocaram consequências desastrosas, como a destilação do álcool descoberta pelos árabes, sem pensarem que haviam produzido uma arma de dizimação dos indígenas da América, um continente então ainda desconhecido. E depois, Colombo, ao descobrir a América, também não sabia que estava dando vida nova à escravidão, há séculos desaparecida na Europa.
Mas se Engels pôde, ainda no século XIX, fazer essas constatações, isso se deveu à perspectiva teórica e ao compromisso social e político que aguçou sua consciência. De forma ampla, essa “consciência ecológica” só veio a se disseminar na atualidade quando o capitalismo, com sua insaciável busca de lucros, tomou conta de todo o globo, levando a níveis intoleráveis o processo de destruição da natureza.
Essa situação calamitosa vem provocando um desenvolvimento crescente da consciência ambiental, o que conduziu à instituição, pela ONU, do Dia Mundial do Meio Ambiente a ser comemorado anualmente no dia 5 de junho, provocando o Governo brasileiro a estabelecer, pelo Decreto Federal 86.028, de 27 de maio de 1981, a primeira semana de junho como a Semana do Meio Ambiente. E a Constituição Federal de 1988 definiu em seu Art. 225: “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
E o que foi que a Constituição proclamou ao definir o meio ambiente como “bem de uso comum do povo”? Trata-se de algo que não é propriedade privada nem mesmo propriedade pública. É, sim, bem de natureza difusa e, como tal, ninguém dele pode dispor para desfrute próprio ou de grupos, por mais numerosos que sejam. Consequentemente, o que é facultado a toda a população, indistintamente, em relação ao meio ambiente, enquanto bem de natureza difusa, é exclusivamente o direito de uso associado ao dever de todos de assegurar esse mesmo direito às gerações futuras.
Entretanto, não obstante a clareza da prescrição constitucional, é exatamente sobre as terras preservadas ambientalmente que vem ocorrendo o avanço desenfreado do chamado “capitalismo verde”, que, embora sob roupagem ecológica e supostamente sustentável, de fato é o mesmo modelo imperialista e expansionista da época do colonialismo. Como mostra Amyra El Khalili no texto “A lógica perversa do capitalismo verde”, de abril de 2017, em apenas doze anos, mais de 3,8 milhões de hectares já foram vendidos legalmente no Brasil a estrangeiros, sendo que, em 2019, foram aprovadas medidas legislativas, facilitando ainda mais a aquisição de terras por estrangeiros.
Não satisfeitos, procura-se, agora, avançar também sobre as terras da União, que, protegidas por leis nacionais e internacionais, não podem ser negociadas. Eis a razão pela qual vêm sendo aprovadas novas leis, modificando as anteriores para beneficiar o mercado financeiro e afetando os direitos fundamentais dos povos indígenas, dos quilombolas e dos camponeses, o Código Florestal, os direitos trabalhistas. E para justificar essas medidas, argumenta-se que as águas e florestas só serão viáveis se tiverem valor econômico. Mas El Khalili contra-argumenta e mostra que se trata de uma falácia, “pois valor econômico as florestas ‘em pé’ e as águas sempre tiveram. O que não tinham, até então, era valor financeiro, já que não há preço que pague o valor econômico das florestas, dos bens comuns e dos ‘serviços’ que a natureza nos proporciona gratuitamente”.
Estamos, portanto, diante de uma grave ameaça à existência da humanidade e de todo o planeta. Precisamos, pois, ”colocar um freio” a nessas ambições desmedidas de empresários e banqueiros nacionais e estrangeiros, tudo isso agora, não apenas com o beneplácito governamental, mas com a iniciativa do próprio Governo Federal, que vem transformando em verdade prática a ironia do dito popular que se refere à ação de "colocar a raposa para tomar conta do galinheiro".
É exatamente isso que o atual Governo Federal está fazendo com um Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária - INCRA que, em lugar de promover, persegue os que lutam pela reforma agrária; com uma Fundação Nacional do Índio – FUNAI que, em vez de proteger os índios, estimula a invasão de suas terras; com um Ministério do Meio Ambiente que defende a exploração das áreas de preservação e das terras de demarcação indígena, que incentiva o avanço do desmatamento, favorecendo grileiros e garimpos ilegais e desfazendo os órgãos de fiscalização; um governo que acabou com os estoques reguladores de alimentos da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB) e praticamente desativou o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), que era uma das principais políticas de apoio e incentivo à agricultura familiar no Brasil; além disso, paralisou o Programa Nacional de Alimentação Escolar - PNAE, vetou a liberação de crédito para a agricultura familiar aprovada pelo Congresso, provocando a crise alimentar e, para contornar a escassez de arroz com os decorrentes preços exorbitantes, determinou sua importação com isenção de impostos. Não bastasse isso, decidiu, para favorecer a reeleição de Trump, para adquirir, de forma também totalmente isenta de impostos e tarifas, etanol americano, mesmo quando nossa produção de etanol se encontra com altos estoques, dada a redução do consumo em consequência da pandemia. Notem o entreguismo desse governo. Em lugar de financiar nossos agricultores familiares, beneficia os produtores estrangeiros e não resolverá o problema da alta do preço do arroz, elevando, ainda, o preço do etanol porque a importação é paga em dólar com o câmbio atualmente desfavorável.
Trata-se, pois, de um governo que se empenha diuturnamente em destruir o país, desmontando as políticas públicas, buscando criminalizar os movimentos sociais populares, levando à falência as grandes empresas nacionais, vendendo a preços vis as empresas estatais, em suma, que está transformando o Brasil num caso inédito de auto recolonização. Sim, porque acaso já se viu algum país que, tendo ficado independente da condição colonial, resolveu decidir, por sua própria iniciativa, voltar a ser colônia? E, na verdade, é isso o que o atual governo está fazendo: está abrindo mão da soberania, destruindo a indústria nacional, subvertendo as instituições e prestando reverência a uma potência externa, - os Estados Unidos -, subordinando-se aos desígnios e interesses dessa potência num verdadeiro crime de lesa-pátria pelo qual os atuais dirigentes deverão ser julgados e severamente punidos.
Diante desse quadro trágico, cabe-nos a grande responsabilidade de assegurar às gerações presentes e futuras, o pleno direito de uso dos bens de natureza difusa, consolidando a manutenção e melhoria de suas condições de preservação e desenvolvimento.
Para isso, é necessário, além de uma grande mobilização de todos os setores da sociedade, a organização sistemática e permanente do processo de educação ambiental, que permita a plena absorção histórico-crítica da consciência ecológica por parte de todos e de cada um dos habitantes do nosso país. Para tanto, não se trata apenas de introduzir nos currículos escolares uma nova disciplina denominada "Educação Ambiental", ainda que seja em todas as séries de todos os níveis e modalidades de ensino. Trata-se de desenvolver a consciência ecológica em todo o processo formativo, impregnando todas as disciplinas com a noção constitucional do "meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações”.
Veremos, então, que o aprofundamento da consciência ecológica nos conduzirá à plena compreensão de que a preservação do meio ambiente e a própria sobrevivência da espécie humana é incompatível com a manutenção do capitalismo com sua tendência irrefreável à expansão da economia de mercado. Surge, portanto, com extrema atualidade a disjuntiva lançada por Rosa Luxemburgo em 1916, "socialismo ou barbárie".
Estamos vendo como a barbárie se alastra neste novo século, exigindo, como antídoto, o que Michael Löwy chamou de “ecossocialismo” que implica uma nova ética, de caráter social, diferentemente da ética do individualismo consumista; uma ética democrática em lugar da ética tecnoburocrática do mercado capitalista; ou seja, uma ética que vá além da democracia formal do liberalismo buscando realizar a democracia real própria do socialismo; uma ética radical, que vá às raízes dos problemas enfrentados em lugar da ética de fachada da economia capitalista (LÖWY, 2005, p. 67-78).
Enfim, trilhando o caminho proposto, estaremos contribuindo para o desenvolvimento da consciência ambiental na educação do campo, assim como para a construção do ser social capaz de se inserir criticamente no processo de transformação da sociedade atual.
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1 – Dermeval Saviani
Professor do Programa de Pós-Graduação em Educação
http://orcid.org/0000-0002-3148-3055 • dermeval.saviani.2013@gmail.com
Contribuição: Escrita - revisão
SAVIANI, D. Pedagogia Histórico-Crítica, construção do ser social e educação ambiental. Geografia Ensino & Pesquisa, Santa Maria, v. 26, Ed. Esp., e8, 2022. DOI 10.5902/2236499473548. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2236499473548. Acesso em: dia mês abreviado. ano.