Universidade Federal de Santa Maria
Geografia, Ensino & Pesquisa, Santa Maria, v. 26, e25, 2022
DOI: 10.5902/22364994677111
Submissão: 16/09/2021 • Aprovação: 20/07/2022 • Publicação: 14/10/2022
SUMÁRIO
2 AS CONCEPÇÕES DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
5 OS MOMENTOS DA PRÁTICA DE ENSINO-APRENDIZAGEM
Ensino e Geografia
A extensão universitária como prática de ensino aprendizagem
I Universidade Federal do Mato Grosso, Cuiabá, MT, Brasil
RESUMO
Palavras-chave: Extensão universitária; Ensino-aprendizagem; Cidadania; Apropriação
ABSTRACT
Keywords: University extension; Teaching-learning; Citizenship; Appropriation
Há a concepção de extensão universitária como prestação de serviços que se imbui de um caráter teórico, justifica-se ou implementa-se prática e independentemente da demanda da sociedade, por meio da transmissão vertical de conhecimento e de sua transformação em um produto sob a lógica do capital. Distingue-se da extensão concebida como ação prática para a formação cidadã, que surge em diálogo com a sociedade, em que os sujeitos envolvidos a assumem ativamente, trocam saberes muitas vezes distintos e colaboram para a produção teórica em uma relação dialética entre teoria e prática. Nessa concepção de extensão, a teoria se constrói por sua superação oriunda da articulação com uma realidade dinâmica, múltipla e contraditória (LEFEBVRE, 1995). Nesta práxis se destacam os processos de ensino-aprendizagem dos sujeitos envolvidos (docente, discentes e membros das comunidades), pois sua mediação como prática cidadã traz a possibilidade de transformação social.
É com base na concepção de extensão enquanto prática cidadã e entendida como mediação de processo educativo que se desenvolve este artigo. Para esmiuçar os conteúdos desse processo, por meio da ciência geográfica, apresenta-se um projeto de extensão universitária realizado em uma universidade federal e deste desdobra-se uma interlocução com as percepções e os relatos dos sujeitos envolvidos. Para tanto, foi efetuada uma pesquisa qualitativa, utilizando-se a metodologia de entrevistas com os discentes.
O projeto de extensão universitária que ora referimos nasce de uma problemática presente na vida cotidiana dos discentes: o ato de morar da classe trabalhadora empobrecida. Trata-se de uma realidade lida por meio de contradições que perpassam a imprescindibilidade desse ato de morar, o acesso à moradia pela mediação do mercado (compra e venda) e as resistências expressas nas ocupações de terras, ou seja, a moradia torna-se simultaneamente mercadoria e locus da reprodução da vida. No momento inicial do projeto, em 2017, realizou-se a parceria com a Associação 1º de Julho, mas no decorrer dele outras realidades foram encontradas, tais como a remoção e a realocação das famílias de outra área, o que levou a novas parcerias, à ampliação e renovação das ações extensionistas até fevereiro de 2020.
Embora o projeto tenha ocorrido antes da implementação da “Curricularização da Extensão” (Resolução nº 07 de 18/12/2018 do MEC, prorrogada pelo contexto pandêmico pelo Parecer CNE/CES nº 498 de 06/08/2020) na instituição de ensino (UFMT), entende-se que se torna uma experiência que permite pensar criticamente a relação entre ensino, pesquisa e extensão, e a formação do geógrafo e da cidadania, o que contribui para proposituras no atual momento de reestruturação do currículo.
Contudo, em primeiro lugar, para subsidiar essa análise proposta optou-se por organizar um histórico das ações de extensão nas universidades brasileira, destacando suas diferentes concepções.
2 AS CONCEPÇÕES DA EXTENSÃO UNIVERSITÁRIA
A história das ações de extensão nas universidades brasileiras se evidencia após o golpe cívico-militar de 1964, pois anteriormente estas eram incipientes, mesmo levando-se em conta as práticas dos movimentos estudantis (SOUSA, 1995). Contrapondo as práticas de troca de experiências com as comunidades promovidas pelos movimentos estudantis, regulamentou-se, ainda na década de 1930, o Estatuto das Universidades Brasileiras (decreto nº 19.851 de 11 de abril de 1931), que proclamava uma perspectiva domesticadora e manipuladora da extensão (SERRANO, 2013). Esse decreto instituiu, por meio dos artigos nº 42 e 109, a extensão como cursos e conferências intra e extramuros, destinados à difusão de conhecimentos considerados “úteis à vida individual ou coletiva, à solução de problemas sociais ou à propagação de ideias e princípios que salvaguardem os altos interesses nacionais” (BRASIL, 1931).
Tal concepção foi aprofundada durante o período da ditadura militar, quando o Estado assumiu a função de controlar toda e qualquer atividade extensionista. A extensão universitária passou, então, a ser entendida como a ação que se “processa sob a forma de cursos, serviços, difusão de resultados de pesquisa e outras formas de atuação exigidas pela realidade da área onde a Instituição se encontra inserida ou exigência de ordem estratégica” (BRASIL, MEC/DAU, 1975, p. 1). Além disso, não foi abandonado, também, o flagrante caráter assistencialista e cooptativo dessas ações, evidenciado pela ideia de prestação de serviço, como revelou o Projeto Rondon (GADOTTI, 2017; SERRANO, 2013).
No contexto da ditadura militar, a extensão universitária, de diferentes formas, se tornou instrumento para reforçar os planos governamentais do Estado autoritário. No entanto, sua concepção passou a ser questionada ao longo da década de 1980, quando ressurgiram os movimentos sociais que lutavam por ações de extensão sob a perspectiva da Educação Popular e alterou-se com a abertura política do país com o final da ditadura (SOUSA, 1995). Ainda em 1987 foi criado o Fórum Nacional de Pró-Reitores de Extensão das Universidades Públicas Brasileiras, que definiu a extensão como um processo educativo, cultural e científico capaz de articular o Ensino e a Pesquisa de forma indissociável e viabilizar a relação transformadora entre Universidade e Sociedade, o que depois foi regulamentado pela Constituição Federal de 1988 (GADOTTI, 2017).
Contudo, Sousa (1995) salienta que, concretamente, as formas extensionistas se mantiveram, e as universidades continuaram, mesmo com a redemocratização, como o locus da reprodução e da manutenção de poder das classes dominantes. Para a autora, essa relação histórica de dominação influenciou a constituição das ações extensionistas universitárias, que conflitou com a atuação dos movimentos estudantis nas instituições. De fato, tais movimentos continuamente buscavam respostas para as demandas da sociedade, devido à sua característica de compromisso social e político, pois a forma como os estudantes entendiam seu papel social conduzia-os a atuar diretamente nos principais problemas da sociedade (SOUSA, 1995).
Por outro lado, mesmo quando imbuída da concepção de que sua função era oferecer respostas às demandas sociais, a extensão universitária se materializou, muitas vezes, na “desvinculação das necessidades objetivas das classes subalternas e pela permanente vinculação com os interesses da classe dominante” (SOUSA, 1995, p. 12). Isso se deu pois, em vez de optar pela construção dialógica entre a universidade e a sociedade, perenizou-se a dominação, mas com um novo conteúdo, por meio do qual se propaga a alienação e o conformismo generalizado na classe trabalhadora, configurando-se como uma forma de subordiná-la à lógica hegemônica econômica e política e fazer com que esta seja aceita como uma ordem natural inalterável (MÉSZÁROS, 2008).
No entanto, assim como as instituições de ensino, as práticas extensionistas não devem ser entendidas apenas como um instrumento de perpetuação e de reprodução do modo de produção capitalista e de políticas de Estado a favor das classes dominantes, mas como algo em disputa, em que diferentes momentos aparecem como uma mediação libertadora e emancipadora. Trata-se, assim, de uma concepção de extensão como algo que deve contribuir para aprimorar ou expandir a cidadania, estimular a criatividade, fomentar o pensamento crítico e metamorfosear o humano de mero trabalhador para sujeito reconhecedor de suas ações e conquistador de direitos, ou seja, configura-se como processos fundamentais para a construção de um projeto político de transformação das relações sociais para além da reprodução do capital (VESENTINI, 1999). Logo, tanto as instituições de ensino quanto suas práticas estão em disputa, pois guardam, ao mesmo tempo e contraditoriamente, as dimensões de dominação e de libertação.
Para construir a dimensão libertadora dos processos de extensão é salutar o aprofundamento do diálogo como base na construção coletiva (equipe acadêmica e comunidade), a fim de concretizar tal princípio na prática. Diante da universidade questionada pela já mencionada disputa, as ações extensionistas destacam-se pela possibilidade diferenciada de mediação do ensino-aprendizagem, em construção deste projeto transformador intra e extramuros e, com ele, a materialização da práxis revolucionária. Simultaneamente pontua-se que sua relevância se evidencia em um contexto de manutenção do caráter elitista da instituição universitária, ainda que atualmente ele tenha sido parcialmente fissurado por políticas públicas de universalização de acesso ao direito à educação. Portanto, a extensão universitária também é instrumento finito de luta, que almeja a superação em si mesma por meio da realização desta práxis.
Para alcançar essa possibilidade futura, hoje propõe-se o aprofundamento, mesmo dentro da instituição de ensino, das inter-relações dos três pilares da universidade, pois a extensão não pode ser lida como ação isolada, ou mesmo como residual das ações universitárias, em que “se não é ensino, nem pesquisa, então é extensão”, expressão comumente ouvida na instituição. Entende-se que a relevância social que justifica a presença da extensão universitária deve ser reconhecida pelas outras bases desse tripé.
Não se deve reduzir a extensão universitária a uma dimensão mecanicista, ou mesmo à assistencialista, ou, ainda, à prestadora de serviço, em que as contradições existentes na sociedade ou as relações que produzem determinadas circunstâncias não são questionadas, servindo para amenizar tal situação classificando-a como “problema” e buscando sua resolução pelo imediatismo. Essas dimensões foram criticadas por Paulo Freire, ao compreender que “educar e educar-se, na prática da liberdade, não é estender algo desde a ‘sede do saber’, até a ‘sede da ignorância’ para ‘salvar’, com este saber, os que habitam nesta” (FREIRE, 1983, p. 25). O estender algo ao outro (ao que está do lado de fora da universidade) não se realiza pela imposição de um conhecimento e de procedimentos técnicos pautados em um discurso de superioridade, que o nega como sujeito social e transforma-o em “coisa”, além de, constantemente, classificá-lo como “o problema” que precisa ser corrigido. De fato, para este autor, a extensão é uma ação educativa, “um que-fazer educativo” (FREIRE, 1983).
A extensão universitária envolve indissociavelmente ensino e pesquisa por si só e, concomitantemente, reflete uma relação dialética entre a instituição e a sociedade. Essa indivisibilidade deve ser superada praticamente para além dos escritos nos instrumentos jurídicos, garantida desde a Constituição Federal de 1988, pelo artigo nº 207, (BRASIL, 1988), e desvelar os conteúdos em sua materialização assumida pelos sujeitos. Todavia, o ensino, na concepção freiriana, não se restringe à transmissão, memorização e repetição de conteúdos, ou seja, não se resume a um conhecimento simplista ou mesmo a um treinamento para aplicação de técnicas, mas se refere, enfim, ao ato de possibilitar aos alunos (equipe acadêmica e sujeitos das comunidades) a construção de conhecimento, por meio da apropriação desse. Já a pesquisa, para Freire, possui uma relação intrínseca com o ensino, em que “não há ensino sem pesquisa e pesquisa sem ensino”, pois
[e]sses que-fazeres se encontram um no corpo do outro. Enquanto ensino continuo buscando, reprocurando. Ensino porque busco, porque indaguei, porque indago e me indago. Pesquiso para constatar, constatando, intervenho, intervindo educo e me educo. Pesquiso para conhecer o que ainda não conheço e comunicar ou anunciar a novidade. (FREIRE, 1996, p. 14)
Entende-se que todos os sujeitos envolvidos na extensão (docente, discentes e a comunidade) ensinam e aprendem, e não apenas a equipe acadêmica. Tal percepção ajuda a superar a noção da extensão universitária como mediadora da distribuição passiva de conhecimento, e a ressaltará como momento de produção ativa deste em todos.
Destaca-se que o conhecimento na Geografia Crítica não se faz deslocado da leitura da realidade, mas intrínseco a uma relação entre teoria e prática (práxis). Na concepção materialista, marxista-lefebvriana, a realidade é parte fundante para a investigação, análise e exposição, de maneira que a teoria emana da prática. O conhecimento se expõe pelo caminho metodológico que se inicia pela leitura da concretude, perpassa a interlocução com a abstração pela mediação de referenciais teóricos e, então, produz um concreto explicado. Nos termos de Lefebvre (1988, p. 60), “é necessário partir do conteúdo. O conteúdo tem a primazia, é o ser real que determina o pensamento dialético”. Portanto, a teoria e o conhecimento não estão imobilizados, pelo contrário, são mutáveis, abertos e constroem-se nos diferentes momentos históricos e com distintos conteúdos.
Há também que ressaltar que a prática por si só não basta. De acordo com Paulo Freire,
[s]em prática não há conhecimento; pelo menos é difícil saber sem prática. Nós temos também que ter um certo tipo teórico de prática a fim de saber. Mas a prática em si mesma não é sua teoria. Ela cria conhecimento, mas não é sua própria teoria. (FREIRE, 2003, p. 114)
Em consonância com a leitura da realidade encontra-se a leitura da teoria de outros momentos históricos por meio de referências bibliográficas. Esta leitura da realidade se realiza na ciência geográfica principalmente em trabalho de campo. É nessa medida que o trabalho de campo ganha um papel fundamental na formação do geógrafo, como uma espécie de experiência totalizante,
[...] uma incomparável e insubstituível imersão na realidade, botando o pé na estrada e descobrindo o mundo por meio de conversas, observações da paisagem, visitas a arquivos; [em que] tiravam-se fotos (e alguns faziam croquis), registravam-se detalhes nas cadernetas (nas famosas cadernetas de campo!), realizavam entrevistas, coletavam amostras. O trabalho de gabinete, elaborando um mapa (ou supervisionando a sua elaboração), em uma biblioteca ou redigindo algum texto era uma parte fundamental do trabalho do geógrafo, mas este só se sentia verdadeiramente geógrafo ― uma sensação de estar realmente aprendendo ― em campo. (SOUZA, 2017, p. 18-19)
O autor, ao descrever os conteúdos e os processos do trabalho de campo para a Geografia, por meio da leitura da obra de Orlando Valverde, ressalta o seu caráter pedagógico-formativo, por exigir uma programação e, principalmente, uma postura crítica e interrogativa. Entende que não se vai a campo como se vai ao zoológico ou como outro momento de turismo (KAISER, 1985), mas para observar, interagir com as pessoas e compreender a materialização das relações sociais. Trata-se do caminho da leitura, da análise da realidade e, posteriormente, da produção do conhecimento. Nesse sentido, o trabalho de campo se configura como uma ação em destaque no que se refere ao ensino, à pesquisa e à extensão.
Nessa relação com o trabalho de campo, a extensão é entendida e desenvolvida como o movimento de deslocamento da universidade até a sociedade, e não somente como a abertura dos espaços físicos da instituição. É nesse movimento que se encontra o projeto de extensão que ora referiremos.
O projeto de extensão intitulado “O direito à moradia e a apropriação privada da terra em Chapada dos Guimarães – MT” teve início em 2017 e terminou em fevereiro de 2020, passando por três fases anuais. Contou com a participação total de 23 discentes, variando entre as diferentes fases e com o apoio da instituição de ensino (UFMT) pela concessão de quatro bolsas de extensão para graduação, duas na primeira fase e uma em cada fase subsequente, e, ainda, com o transporte para o trabalho de campo, o qual devido às restrições orçamentárias teve sua quantidade obrigatoriamente reduzida em 2019.
O referido projeto objetivou entender e analisar geograficamente a situação dos conteúdos da moradia da classe trabalhadora no município circunvizinho à capital mato-grossense e nasceu com a concepção teórica dos conteúdos contraditórios do ato de morar para classe trabalhadora em uma sociedade organizada sob o modo de produção capitalista. De fato, o morar representa algo imprescindível à reprodução da vida humana, já que “não se pode viver sem ocupar espaço. Morar é uma das necessidades básicas, assim como comer, vestir etc.” (RODRIGUES, 1988, p. 49). Contudo, na sociedade capitalista as características do ato de morar se transformam em uma mercadoria qualquer, em que sua mediação se realiza pelo mercado (formal ou informal) e fundamenta-se na propriedade privada. O uso e o acesso são feitos hegemonicamente pela condição de pagamento, que condicionará o local (e as características internas da habitação) em que cada sujeito poderá morar no município. Portanto, na sociedade capitalista o ato de morar torna-se conflituoso e contraditório, pois a moradia é simultaneamente mercadoria e locus da reprodução da vida.
Há que se observar que esse formato de “compra e venda” não constitui a unicidade na história brasileira do acesso à terra. Pelo contrário, destacam-se os diferentes mecanismos de burla e de alianças entre o poder econômico e político e a elite (formada por poucas famílias em detrimento de muitas outras) (MORENO, 2007). Trata-se de um processo violento que alicerça a desigualdade, amplia a pobreza e gera a segregação por meio da concentração fundiária e da expropriação dos trabalhadores.
Como se constatou durante a execução do projeto de extensão, Chapada dos Guimarães não se distinguiu desse processo, pois a apropriação privada de suas terras ocorreu por meio das cartas de aforamento, que, em meados do século passado, a prefeitura passou a emitir como concessões, as quais também refletem processos de “privilégios”[1] atribuídos à elite cuiabana, principalmente, de concentração fundiária e de grilagem de terra (SOUSA, 2021). Em grande medida, isso se deu porque o município é caracterizado por ocupações de segunda residência da classe média cuiabana, em que a “beleza cênica” faz parte do processo de hegemonização da mercantilização da terra, bem como pela pressão decorrente da expansão do projeto do agronegócio, nas áreas com solos mais férteis e passíveis de mecanização (platô). Restou à classe trabalhadora chapadense a negação das características qualitativas aqui mencionadas, ou seja, o morar em áreas com menor possibilidade de auferição de renda fundiária, ou mesmo, em áreas bastante precárias, como é possível constatar nas palavras do ex-secretário municipal ao se referir à política de habitação do município: “pobre tem que morar no areião”[2].
Em contraposição aos processos de generalização da mercantilização e dos “privilégios”, historicamente a classe trabalhadora travou lutas para o reconhecimento da moradia como um direito universal, o qual, no Brasil, foi expresso na Constituição Federal (1988). Compreende-se que as leis são produtos de relações sociais díspares (com diferentes concepções da sociedade) e, por isso, expressam conflitos. Contudo, há que se considerar que os instrumentos jurídicos nem sempre se configuram concretamente, pois sua aplicabilidade pode depender do lugar, do momento histórico e do contexto político. Nesse sentido, mesmo como direito, o ato de morar não está garantido plenamente à classe trabalhadora em seu cotidiano.
Como se observou na execução do projeto de extensão, para uma parcela da população chapadense o ato de morar é marcado pela precarização e pela escassez. Esses trabalhadores encontram-se diante da ausência de políticas públicas e da impossibilidade de pagar pela habitação e vislumbram nas ocupações de terras uma estratégia de reprodução da vida. Por conseguinte, as ocupações revelam momentos de lutas e resistências, em decorrência das constantes ameaças, bem como expulsões de fato, por meio de medidas legais ou extralegais.
Neste contexto, em seu decorrer, o projeto de extensão de desenrolou em conjunto com dois grupos sociais: os associados do 1º de Julho e os moradores formadores das ruas 15 e 16 do Bairro Pôr do Sol. Ambos os grupos surgiram após distintos processos de reintegrações de posse, sob a ameaça de criminalização de algumas lideranças, além de outras violências inerentes a esses momentos. Nesse processo, essas famílias expulsas mantiveram a incerteza da legitimidade do título do autor do pleito judicial, acrescida da clareza da negação de seus direitos, e optaram pela continuidade da luta.
Diante da morosidade das políticas públicas, a Associação 1º de Julho mudou de estratégia de acesso à moradia, pois resolveu adquirir coletivamente um terreno e iniciar um loteamento privado por meio da figura da pessoa jurídica. O segundo grupo, formado pelos moradores das ruas 15 e 16 do Bairro Pôr do Sol, foi realocado pelo poder municipal em 2019, ao serem retirados da área ocupada e levados para terrenos municipais (sem casa), cujos supostos donos apareceram para ameaçá-los, tendo se instaurado um processo de extrema violência.
Essas realidades foram compreendidas a partir de três momentos metodológicos do projeto de extensão em si. O primeiro, marcado pela aproximação com a Associação 1º de Julho, resultou na aplicação dos questionários fechados elaborados em parceria com as lideranças e aplicados pelos discentes nos associados. O segundo, já em contexto em que a associação tinha adquirido o loteamento por compra coletiva, contou com a realização de questionários abertos direcionados àqueles que já moravam no loteamento recém-aberto e em condição de inadequação habitacional[3]. Foi durante esse momento metodológico que se conheceu e firmou uma nova parceria com as famílias da Área Verde, que então estavam na iminência da expulsão de suas casas, por meio do processo judicial de reintegração de posse, o que, de fato, se concretizou durante a terceira fase do projeto. Nessa última fase, continuaram as entrevistas aos associados e iniciou-se a entrevista aos moradores das ruas 15 e 16, já que a reintegração se concretizou, revelando múltiplas ações de conflito, que foram mapeadas de maneira participativa.
Diante dessas duas realidades complexas e mutáveis, a ação extensionista foi construída coletivamente com a participação efetiva dos seus integrantes (equipe acadêmica e membros das comunidades), por meio da intensificação do diálogo entre todos os sujeitos envolvidos. Essas parcerias[4] corroboram a concepção de que as ações de extensão se constituem como mediadoras e ampliadoras do compromisso social da Universidade que salvaguarda direitos humanos. Rompendo a leitura da verticalização do conhecimento e da prestação de serviços como produto sob a lógica do capital, essa prática buscou esmiuçar as contradições de um direito essencial à vida (a moradia), debater a condição de sujeitos-cidadãos e superar a de meros consumidores (SANTOS, 2007). Para alcançar esses conteúdos, um dos caminhos possíveis foi a análise da prática de ensino-aprendizagem por meio desta ação extensionista.
Com o intuito de compreender a leitura dos discentes sobre o processo de ensino-aprendizagem na ação extensionista bem como sua importância, optou-se por uma pesquisa qualitativa. Trata-se de metodologia que contribui para os estudos da Educação, conforme referem Gatti e André (2011), por retomar ao foco da análise de todos os sujeitos envolvidos no processo educativo, por meio da discussão sobre diversidade, equidade e pelo destaque aos ambientes comunitários. Para tal, elaborou-se um questionário composto por perguntas abertas, ao qual foram convidados a responder todos os discentes participantes do projeto[5], pois se entende que essa técnica garante maior liberdade ao conteúdo das respostas (MARCONI, LAKATOS, 2003).
Foram elaboradas quatro questões principais sobre o tema: “participação em outros projetos de extensão?”; “a importância das ações extensionistas na formação acadêmica”; “indicação e explicação do momento de destaque no projeto de extensão em questão” e “reflexão sobre a relação atual entre Universidade e Sociedade”.
O mencionado questionário foi respondido por dez discentes participantes da ação extensionista, com diferentes períodos de participação ao longo das três fases do projeto e de distintos semestres nas graduações de Geografia (bacharelado e licenciatura). Os sujeitos tiveram seus nomes suprimidos e substituídos por numerais, com a finalidade de preservar suas identidades.
Por meio desta metodologia qualitativa, foi construída uma análise a partir de um diálogo com as respostas obtidas, com o intuito de aclarar e entender os conteúdos da relação ensino-aprendizagem na ação de extensão universitária. Compreende-se essa relação como processo complexo, em que tanto o ensino quanto a aprendizagem são formados por momentos de transmissão e apropriação. Nega-se, portanto, uma relação imediata e linear em que “um ensina e o outro aprende”, superando a relação da instituição de ensino como uma mera distribuidora de conhecimento, para uma produtora de conhecimento de todos os sujeitos envolvidos no processo.
5 OS MOMENTOS DA PRÁTICA DE ENSINO-APRENDIZAGEM
As respostas dos discentes sobre suas formas de participação em ações de extensão universitária mostraram a incipiência, pois revelaram que se trata da prática menos exercida pela instituição, o que ignora um importante instrumento de interlocução com a sociedade e, consequentemente, de ensino-aprendizagem dos envolvidos.
Tal fato se agrava se considerarmos que a extensão deverá abranger 10% dos currículos de todos os cursos de graduação até 2022, de acordo com a orientação governamental (Resolução nº 07 de 18/12/2018 do MEC, prorrogada pelo contexto pandêmico pelo Parecer CNE/CES nº 498 de 06/08/2020). De fato, apenas três alunos afirmaram ter tido a oportunidade de se envolver em outros projetos, e um deles pontuou que desde que ingressou no curso, em 2014, este projeto foi o primeiro de que teve conhecimento.
Diante de suas experiências o projeto de extensão teve sua importância reconhecida pelos discentes como prática de interação social extramuros, que rompe com o elitismo ainda presente na instituição, e na formação dos entrevistados. Conforme um dos alunos refletiu,
[a] universidade encontra-se em um lugar ainda muito distante da sociedade. Boa parte das pessoas sabe o que é a universidade, sabe onde ela fica, mas o conhecimento vai muito pouco além disso. [...]. A universidade foi constituída como um espaço da elite, e esse estigma permanece até hoje, e algumas as pessoas não se sentem em posição de estar lá. [...] A universidade se fez como um espaço excludente, e teve sucesso nisso, mudar esse estigma não é fácil. Porém, é possível, e um dos caminhos de mais efetivo sucesso, sem dúvida, é a extensão universitária. (ALUNO 1).
Dentre os momentos de ensino-aprendizagem ao longo do período da extensão universitária, que se realiza principalmente por meio do trabalho de campo, estão as leituras coletivas de referências não só bibliográficas, mas também da realidade. É importante ressaltar a ideia de um contínuo, gerado pelo encontro da teoria e da prática — e não a existência de uma precedência de ação, em que uma acontece em decorrência da outra — para a corroboração do entendimento da realidade e, quiçá, para a produção de outros conhecimentos. Logo, por não se tratar da simples aplicação da teoria na prática, novas análises puderam ser agregadas à medida que novos elementos eram percebidos durante os trabalhos de campo.
Ainda assim, foi possível observar uma cisão da relação entre teoria e prática no ensino da universidade, como salientou outro discente:
Penso que em primeiro lugar vem a questão de ultrapassar os muros da universidade, no sentido de produzir o conhecimento para fora do espaço da academia, voltado para questões sociais, econômicas, ambientais e espaciais. Um ponto de defasagem que, particularmente, senti em minha formação é a forma muito engessada como o curso de Geografia da UFMT trata seus trabalhos de campo. Nestes os professores despejam conteúdos sobre os processos nos pontos de paradas pré-determinados sem uma construção conjunta, e/ou literalmente, sem o ensino de técnicas para o aproveitamento do trabalho de campo, que é algo fundamental para o geógrafo. O projeto me ajudou a superar essa defasagem em minha formação. (ALUNO 9).
O discente ainda apontou que durante o projeto foi possível entrar em contato com práticas de ensino-aprendizagem que negam a denominada “educação bancária”, ou seja, a simples transmissão conteudista, em que ele se configurasse como “um repetidor cadenciado de frases e de ideias inertes” (FREIRE, 1996, p. 13). Neste sentido, é necessária a reflexão do assunto em questão para saber e se apropriar criticamente desses conteúdos e técnicas (metodologias e procedimentos), o que ganha outra dimensão quando postos em confronto com a realidade, a fim de se criarem as possibilidades da construção do conhecimento e acentuar seu caráter humanizador.
Ressalta-se tanto uma leitura crítica das referências bibliográficas quanto da realidade, posicionamento que desvela a essência dos fenômenos, suas interrelações e supera a aparência. Para tal, na concepção freiriana, esses momentos devem envolver práticas dialógicas, abertas e indagadoras. Em vista disso, buscou-se desenvolver tais práticas de ensino-aprendizagem na ação de extensão universitária, conforme elucidam declarações dos discentes, como: “[C]reio que ajuda a formar novos olhares aos lugares, e aos assuntos que antes eram pouco observados. Como sinto que é o caso de Chapada para mim.” (ALUNO 2). Ou mesmo:
As entrevistas quantitativas nos permitiram entrar em contato com um número grande de pessoas muito diferentes, nesse momento ainda inicial do projeto. Em termos de execução foi profundamente esclarecedor, especialmente para alguém, como eu que sempre morou em Cuiabá e tinha a imagem de Chapada dos Guimarães como é vendida pela mídia. Esse momento foi um abrir de olhos para uma realidade completamente diferente do que a maioria das pessoas tem acesso. (ALUNO 1).
Semelhantemente,
O projeto se apresentou como uma oportunidade de realizar outra atividade além do ensino na universidade, uma vez que a grande maioria dos projetos desenvolvidos exigem dedicação integral, algo impossível de se realizar sendo estudante e trabalhador. Além disso, possibilitou-me conhecer várias realidades, o que acabou por mudar completamente minha visão do município estudado, e que é presente em meu cotidiano desde a infância. Não imaginava que o mesmo tivesse tantos problemas com a questão da moradia, tampouco que esses se arrastam há bastante tempo. (ALUNO 6).
Dentre as discussões levantadas houve a constatação por parte dos discentes de que “conheceram” uma Chapada dos Guimarães radicalmente diferente daquela exibida pela mídia ou mesmo em outras disciplinas da Geografia, pois comumente lhes são apresentadas as áreas turísticas, como o centro da cidade, as “belezas naturais”, as cachoeiras, as formações rochosas e a vista de Cuiabá.
Além do mais, “conheceram” porque o projeto de extensão com ação prática extramuros da universidade “possibilitou o entendimento das múltiplas realidades no contexto geográfico” (ALUNO 7). Asseguraram que viram, ouviram, presenciaram, questionaram e dialogaram com os sujeitos parceiros do projeto, como ressalta outro discente, “entendendo o projeto de extensão como uma devolutiva para a sociedade, [em que] o diálogo estabelecido através das entrevistas proporcionou momentos únicos” (ALUNO 4). Ou, ainda, destaca-se “o contato com a comunidade, pois, força-nos a encarar realidades distintas, com todas as contradições e reconhecimento de novas possibilidades e oportunidades” (ALUNO 5). Neste sentido, a realidade não é estática e nem inexorável, mas está em construção, porque deve ser entendida como produto das relações sociais, resultando em “novas possibilidades e oportunidades” de transformação do conhecimento. Apresenta-se como caminho para o conhecimento, não apenas observaram ou interagiram com as pessoas, mas entenderam a concretude produzida pela existência de relações sociais desiguais, bem como compreenderam os processos, os conflitos e as contradições que estão no cerne do modo de produção capitalista. Por fim, questionaram seus limites em prol de mudanças sociais.
Algo que ocorreu no projeto de extensão e que reflete a importância da crítica como momento da prática ensino-aprendizagem foi destacado por um aluno, ao se referir à ida ao lixão[6] do município:
Em outros momentos da graduação, já havia visitado “lixões” de outros municípios e, assim como em Chapada, deparei-me com condições de trabalho extremamente insalubres e precárias. Todavia, em nenhum dos outros municípios havia encontrado pessoas morando lá, em meio ao lixo, alimentando-se de restos e sem ter acesso a água. (ALUNO 6).
O discente refere-se aos dois trabalhos de campo realizados na terceira fase do projeto (2019), quando, acompanhados de uma liderança da comunidade, visitamos o seu local de trabalho. Chegando ao lixão do município, encontramos outras pessoas trabalhando, e, então, iniciou-se o diálogo envolvendo a questão da moradia.
Descobrimos durante esse processo de diálogo um casal que prontamente disse que comprou um lote pela Associação 1º de Julho e o pagava por meio dos programas sociais recebidos (principalmente pelo Bolsa Família). Por sua vez, um outro homem aproximou-se e afirmou que morava ali mesmo e mostrou-nos sua casa. Ao indagarmos qual era o maior problema de morar ali mesmo no lixão, ele respondeu: “a água, porque comida tenho”. Contou-nos que vivia naquela área — e que não era o único a permanecer no local — desde que se acidentara no trabalho que exercia como autônomo, o que o levou a perder parte dos movimentos da mão e o impediu de realizar a função de pedreiro. Expôs também que estava se recuperando depois de alguns meses de internação no hospital por ter contraído uma bactéria naquela localidade.
Aquele seu relato, em consonância com a percepção da paisagem — caracterizada pelo acúmulo de rejeitos da sociedade consumidora, acrescido da presença de urubus e outros animais que se alimentavam dessas substâncias em decomposição, além do odor específico mesclado ao da fumaça oriunda da queima desse material com vistas à separação do aproveitável para posterior reciclagem por aqueles trabalhadores —, causou um grande mal-estar na equipe acadêmica.
Naquele momento, então, constatou-se a necessidade da compreensão crítica daquela realidade, bem como sua mudança. Para isso destacou-se em debate as razões e os fundamentos desses fenômenos, em contraposição à descrição da aparência ou a aceitação da existência deles devido a uma vontade divina ou, ainda, como algo natural ou certo, inexorável e cabível (FREIRE, 1995).
A compreensão crítica da realidade foi salientada por outro discente como prática ensino-aprendizagem, pois, segundo ele,
[o] projeto de extensão possibilita uma formação com um maior senso crítico, pois faz pensar por outro viés. Depois de iniciar a faculdade e o projeto em especial, tento pensar duas vezes nos assuntos e me perguntar o motivo de um fenômeno ocorrer. Comecei a trabalhar isso porque principalmente na vivência do projeto, após conhecer e tentar compreender outras realidades sociais e a segregação socioespacial vivenciada por essas pessoas, foi possível perceber que é uma coisa pensada e não feita de qualquer forma por aqueles que estão no poder. Não é algo aleatório, e pensar que é algo ocorrido pelo acaso, é pensar pelo senso comum (ALUNO 8).
Do mesmo modo, tal entendimento foi percebido por um dos alunos como parte de sua formação enquanto cidadão, algo que superaria a prática de ensino-aprendizagem no que diz respeito aos “assuntos acadêmicos”:
No que condiz [sic] aos assuntos acadêmicos afirmo que a extensão foi de grande valia, não só pela aplicação e aperfeiçoamento de métodos e técnicas, bem como pelo aprofundamento teórico, e também pela visualização da aplicação dos saberes na prática.
No que se refere à formação como cidadão, afirmo que esta extensão abre novos horizontes para a reflexão das condições e realidades dos diversos segmentos da sociedade, bem como aponta um caminho para uma melhoria na aproximação Universidade-Sociedade (ALUNO 5).
É nesta medida que a compreensão crítica da realidade leva ao rompimento das aparências, como destaca mais um discente:
Fazer parte deste projeto me levou a compreender a organização e a manutenção da relação pesquisa/ensino/extensão como devolutiva para a sociedade com aprendizado próprio sobre método e prática, de maneira profunda. Além disso, pude entender melhor alguns assuntos que estavam desconexos no decorrer da graduação. Isso me fez perceber e aguçou meu interesse sobre alguns pontos relevantes para minha formação como, por exemplo, a produção do espaço e a maneira como é retratada considerando-se as relações sociais brasileiras em consonância com outra no mundo ocidental. Outro ponto importante que obtive a partir dessa extensão, foi a participação em aulas de campo, os estudos de textos, a interação com a sociedade. Esta não se limitou a discutir sobre o que está fora da Universidade, mas foi ao seu encontro, tornando possível ampliar meu conhecimento da realidade (ALUNO 3).
Nota-se que o discente se apropria do conhecimento resultado desta prática coletiva de ensino-aprendizagem e transforma-o em reflexões individuais por meio de pesquisa acadêmica, quer como iniciação científica ou mesmo como trabalhos de conclusão de cursos, e pesquisa de mestrado[7].
Além das práticas de ensino-aprendizagem, por meio do projeto de extensão há a possibilidade de construção da multidisciplinariedade, pela perspectiva de um posicionamento em prol da generalização de direitos humanos e permeado por um compromisso social. Trata-se de um posicionamento que se opõe à visão da “universidade como detentora de conhecimentos que não são compartilhados com a sociedade” e que evita a configuração de “uma teoria não sem práxis, dando uma parcialidade acadêmica à favor do capital” (ALUNO 7).
Destacamos a necessidade de considerar a relevância da prática de ensino-aprendizagem na ação de extensão universitária, em que essa se torna uma mediação para a construção do conhecimento emancipador. Como destaca um discente,
[o]s projetos de extensão enquanto contribuição para o processo de formação são de extrema importância, visto que se constituem como um momento de articulação e que reafirmam a indissociabilidade entre teoria e prática do fazer profissional, contribuindo para o processo de ensino aprendizado, propiciando práticas e contatos para além da sala de aula. (ALUNO 4).
Essa prática se faz em um processo contínuo e que envolve todos os sujeitos (docente, discentes e os membros das comunidades). Mas, para isso, deve-se deixar de lado a pretensa superioridade inabalável do conhecimento acadêmico e abrir-se para o movimento de construção/desconstrução/reconstrução de outros conhecimentos, o que só se torna possível a partir da relação entre as leituras críticas dos referenciais bibliográficos e da realidade, e, ainda, a partir da potencialização e da expansão da cidadania ativa, em detrimento da aceitação, por parte do sujeito, de um papel social que o reduz a mero consumidor ou àquele que faz uma reclamação de uma relação de consumo.
Entende-se que a cidadania rompe com a postura de legitimação absoluta das instituições, pois “guarda a possibilidade de subversão”, em que a “cidadania é mais exatamente a possibilidade e menos uma realidade”, de modo que, para “recuperá-la, enquanto tal, não é o universo do existente que deve ser fixado, mas o dos vestígios e possibilidades no/do existente” (DAMIANI, 1999, p. 60).
Sob a ótica docente, muitos momentos deste projeto de extensão se configuram como prática de ensino-aprendizagem: a inscrição do projeto na plataforma virtual da universidade, para uma docente recém-ingressa na instituição; o contato com a realidade chapadense, para uma migrante, além da elaboração participativa dos questionários (fechados e abertos); a “procura” guiada por estratégias para entrevistar os 500 associados pela cidade; a aplicação de 218 questionários fechados e de 40 entrevistas qualitativas; a análise coletiva desses materiais coletados; as leituras e debates coletivos de referências bibliográficas; as respostas às lideranças; os mapeamentos participativos realizados, entre outras ações aqui já mencionadas.
Entre os momentos de ensino-aprendizagem na ação extensionista destaca-se a primeira conversa com uma liderança na ocupação da área verde do loteamento Vale da Chapada, que trouxe ao debate o seu reconhecimento como sujeito, multiplicador e lutador pelo direito à moradia. Durante essa conversa, tal liderança mencionou os artigos da Constituição Federal de 1988, revelando que a consciência da luta supera o fato de ter a casa em si. Nesse e em outros momentos, ensinou à equipe acadêmica o sentido mais amplo da humanidade e aprendeu ao longo da prática extensionista que o compromisso político e social da instituição dialoga, forma parcerias e ratifica os direitos conquistados pela classe trabalhadora precarizada, bem como se torna princípio para construção de um projeto de transformação das relações sociais para além da reprodução do capital.
Outro momento importante foi o da exposição oficial, pela equipe acadêmica, da análise situacional decorrente das entrevistas qualitativas e quantitativas na assembleia da associação. Embora tal análise tenha sido configurada no formato acadêmico mais habitual, ela se concretizou como um produto construído pelo diálogo coletivo, mantendo o compromisso acadêmico como uma devolutiva crítica a essa demanda da sociedade.
Entende-se que em todos os momentos da prática extensionista buscou-se germinar a crítica aos processos existentes, marcados por desigualdades, violências e contradições, bem como potencializar o reconhecimento dos envolvidos no processo como sujeitos sociais, conquistadores de direitos e produtores do espaço de reprodução social, e, consequentemente, como cidadãos ativos.
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1 – Camila Salles de Faria
Geógrafa, Doutora em Geografia
https://orcid.org/0000-0003-4948-351X • camila.faria@ufmt.br
Contribuição: Escrita – Primeira Redação
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[1] Referencio Milton Santos, ao afirmar que a classe média brasileira não quer direitos, mas privilégios, conforme declaração registrada no documentário “Encontro com Milton Santos: O Mundo Global Visto do lado de Cá”.
[2] Frase proferida pelo ex-secretário de habitação em entrevista realizada pela comunidade acadêmica (discentes e docente) na Câmara Municipal de Chapada dos Guimarães, em 04/12/2018, em que estava presente, ainda, um vereador (presidente da Câmara).
[3] Um dos conteúdos que revelam a inadequação habitacional é a análise das diferenças térmicas das construções no loteamento. Uma ação proposta pelos discentes mensurou a temperatura em distintos períodos do ano, dentro e fora das habitações, que nesse momento eram de multimateriais, fato que expressa a construção emergencial de suas casas. Por meio deste estudo, observou-se situações cotidianas de desconforto térmico, agravadas pela ausência de infraestrutura, como, por exemplo, a inexistência de energia elétrica.
[4] Firmadas oficialmente por meio de uma carta de anuência e assinadas pelas lideranças comunitárias.
[5] O desenvolvimento do projeto de extensão e sua análise como prática de ensino aprendizagem, revelada por meio das entrevistas com os alunos, fez-se em consonância com a Resolução nº 510 de 07 de abril de 2016, que dispõe sobre normas para Pesquisa das Ciências Humanas e Sociais.
[6] O termo lixão, neste contexto, não deve ser substituído por aterro sanitário, uma vez que neste local os resíduos sólidos são depositados em céu aberto, sem tratamento adequado. Ressalta-se que a Política Nacional de Resíduos Sólidos, aprovada em 2010, determina que os lixões deveriam ser fechados até 02/08/2014.
[7] Do projeto de extensão em específico resultaram, sob diferentes temáticas, uma iniciação científica e quatro monografias de conclusão de curso, em que uma delas encontra-se em aprofundamento e desenvolvimento como pesquisa de mestrado.