Universidade Federal de Santa Maria

Geografia, Ensino & Pesquisa, Santa Maria, v. 26, e21, 2023

DOI: 10.5902/2236499467398

ISSN 2236-4994

Submissão: 26/08/2023 Aprovação: 17/07/2022 Publicação: 22/09/2022

SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO.. 3

2 O RACISMO NA SOCIEDADE BRASILEIRA: A CONTEXTUALIZAÇÃO DO AMBIENTE ESCOLAR.. 5

3 PROFESSOR TICOLINO: ENSINO DE GEOGRAFIA E RACISMO EM ITUIUTABA/MG.. 12

4 RESULTADOS DA ENTREVISTA: ENTRE AS VIVÊNCIAS, A NEGRITUDE E O ENCONTRO GEOGRÁFICO   14

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 27

REFERÊNCIAS. 29

CONTRIBUIÇÕES DE AUTORIA.. 30

COMO CITAR ESTE ARTIGO.. 31

Ensino e Geografia

Professor Ticolino: Ensino de Geografia e Racismo em Ituiutaba/MG

Ticolino Teacher: Teaching Geography and Racism in Ituiutaba/MG

Profesor Ticolino: Enseñanza de Geografía y Racismo en Ituiutaba/MG

Isabôhr Mizza Veloso dos SantosI Ícone

Descrição gerada automaticamente

Adriany de Ávila Melo SampaioI Ícone

Descrição gerada automaticamente

I Universidade Federal de Uberlandia, Uberlândia, MG, Brasil

RESUMO

No Brasil muitos indivíduos ao conviverem em sociedade percebem a existência do racismo nos diferentes ambientes. O racismo pode ser interpretado como uma forma de preconceito e de discriminação baseadas em percepções sociais nas distinções biológicas entre os povos. O artigo trata sobre o ensino de geografia e do racismo a partir da história de vida do professor Ticolino na cidade de Ituiutaba (MG). Possui como objetivo geral fazer uma discussão sobre a manifestação do racismo presente na sociedade brasileira. Tem como objetivo específico analisar as vivências do professor entrevistado, para compreender as problemáticas raciais envolvidas. A metodologia científica empregada se deu por meio de revisão de literatura bibliográfica acerca das temáticas pesquisadas e por meio da utilização de entrevista, para alcançar suas memórias e analisar sobre o ensino de geografia e o racismo em Ituiutaba (MG).

Palavras-chave: Geografia; Ituiutaba; Racismo

ABSTRACT

In Brazil, many individuals living in society perceive the existence of racism in different environments. Racism can be interpreted as a form of prejudice and discrimination based on social perceptions of biological distinctions between peoples. The article deals with the teaching of geography and racism from the life story of professor Ticolino in the city of Ituiutaba (MG). Its general objective is to discuss the manifestation of racism present in Brazilian society. Its specific objective is to analyze the experiences of the interviewed teacher, in order to understand the racial issues involved. The scientific methodology used took place through a review of the bibliographic literature about the researched themes and through the use of interviews, to reach their memories and analyze the teaching of geography and racism in Ituiutaba (MG).

Keywords: Geography; Ituiutaba; Racism

RESUMEN

En Brasil, muchos individuos, al vivir en sociedad, perciben la existencia de racismo en diferentes ambientes. El racismo puede interpretarse como una forma de prejuicio y discriminación basada en las percepciones sociales de las distinciones biológicas entre los pueblos. El artículo trata sobre la enseñanza de la geografía y el racismo a partir de la historia de vida del maestro Ticolino en la ciudad de Ituiutaba (MG). Su objetivo general es discutir la manifestación del racismo presente en la sociedad brasileña. Su objetivo específico es analizar las experiencias del docente entrevistado, con el fin de comprender las cuestiones raciales involucradas. La metodología científica utilizada fue através de una revisión bibliográfica sobre los temas investigados y mediante el uso de una entrevista, para llegar a sus memorias y análisis sobre la enseñanza de la geografía y el racismo en Ituiutaba (MG).

Palabras-clave: Geografía; Ituiutaba; Racismo

1 INTRODUÇÃO

Jerusalema ikhaya lami Ngilondoloze Uhambe nami Zungangishiyi lana

Jerusalema ikhaya lami Ngilondoloze Uhambe nami Zungangishiyi lana

Letra da Música Jerusalema, do grupo Master G, oriundo da África do Sul, 2020.

A música Jerusalema do grupo sul africano Master G, foi uma das composições do ano de 2020, mais ouvidas em muitos países do mundo pela mensagem de esperança frente a epidemia do Coronavírus que assolou quase todo o globo. Nada melhor do que começar este artigo, fazendo menção aos povos africanos que tanto contribuíram com seu trabalho e lutas historicamente estabelecidas e ainda tão invisibilizadas pelos preconceitos sociais.

A lei 10.629/2003 que torna obrigatório o ensino de História da África e da cultura Afro-brasileira nas escolas e a lei 12.288/2010 que cria o Estatuto da Igualdade Racial instituídas mais recentemente no Brasil, na gestão do governo Lula (2003-2011) foram importantes para o combate ao racismo a nível nacional.

Sílvio Almeida (2018) aponta que o direito precisa se alinhar com lutas e pautas antirracistas, mediante a aprovação de leis e mecanismos de controles sociais, que viabilizem combater energicamente o racismo a nível nacional e mundial.

Este artigo faz uma discussão sobre o racismo e o ensino de geografia, a partir da história de um professor negro na cidade de Ituiutaba (MG). Nesse contexto, a primeira parte do artigo, retrata sobre o racismo na sociedade brasileira a partir do ambiente escolar, mediante os autores discutidos, relacionando as problemáticas do racismo.

A segunda parte, retrata sobre as impressões do professor Ticolino, a partir de suas vivências e história de vida em Ituiutaba (MG) no decorrer de toda sua formação individual, familiar e docente onde relata alguns episódios que trabalham a noção do racismo em diferentes ambientes de convivência.

O objetivo geral está centrado em discutir sobre a manifestação do racismo presente na sociedade brasileira tendo como parâmetro o ensino de geografia. Já o objetivo específico é analisar as vivências do professor Ticolino, para compreender as situações racistas envolvidas.

A metodologia científica empregada se deu por meio de revisão de literatura bibliográfica acerca das temáticas pesquisadas trazendo a dimensão das Histórias de vida que são acessadas por intermédio da entrevista realizada com o professor.

A escolha do professor Ticolino, se deu pelo seu perfil de atuação, pois chamou bastante atenção, por ter uma inserção didática e lúdica entre crianças e adolescentes, tendo em vista o fato de ser professor e por se apresentar artisticamente como o Palhaço Ticolino, bem como por sua inserção política em outros segmentos culturais e sociais em Ituiutaba (MG).

2 o racismo na sociedade brasileira: a contextualização do ambiente escolar

No Brasil, muitos indivíduos ao conviverem em sociedade, percebem o tanto de preconceitos diários nos mais diferentes ambientes. E isso, colabora com a relação das interações sociais racistas. Milton Santos (2001) elucida com propriedade sobre essa força de alienação operando nas relações interativas e enfraquecendo os laços de relacionamento presentes entre os distintos segmentos socioeconômicos.

Sílvio Almeida (2018) vem delineando discussões sobre o racismo a partir do conceito de raça. O racismo significa uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminaram nas desvantagens ou em privilégios para indivíduos a depender do grupo social a que pertençam. Enfatiza que existem ao menos três concepções acerca do racismo, atuantes nas esferas individual, institucional, estrutural diferenciando entre si tais conceitos.

Desse modo, Sílvio de Almeida (2018) defende que as relações de poder imbricadas nas instituições contribuem para a hegemonia de determinados grupos, em função de manter seus interesses sociais, políticos, econômicos, ambientais, redefinindo regras e condutas que são naturalizadas. O autor destaca que essa autonomia alcançada pelo Estado no capitalismo, evoca o anseio de grupos específicos a ocupar posições de poder nessa estrutura, permitindo a manutenção dos seus próprios interesses e necessidades. Essa dominação do poder no Estado conserva os discursos pautados na meritocracia, nos resultados individuais e no racismo, naturalizando as desigualdades existentes no país.

Para Sílvio de Almeida (2018) o racismo é naturalizado através da ideologia, da política, da economia e do direito mediante a existência de um bipoder, que se integrou ao racismo como um dispositivo essencial do poder do Estado, classificando os sujeitos de acordo com as características fenotípicas.

O racismo pode ser interpretado como uma discriminação baseada em percepções sociais nas distinções biológicas entre os povos, que recai em indivíduos esteticamente com a cor de pele negra. Quanto mais a cor da pele for escura, maiores são as percepções e a incidência do racismo presente em diferentes ambientes que evidenciam esse olhar social, que recai muito mais nas atitudes e ações de pessoas negras.

Nesse sentido, Lia Schucman (2010) nos ajuda a entender sobre as formas de manifestação racistas no Brasil:

Considero racismo qualquer fenômeno que justifique as diferenças, preferências, privilégios, dominação, hierarquias e desigualdades materiais e simbólicas entre seres humanos, baseado na ideia de raça. Pois, mesmo que essa ideia não tenha nenhuma realidade biológica, o ato de atribuir, legitimar e perpetuar as desigualdades sociais, culturais, psíquicas e políticas à “raça” significa legitimar diferenças sociais a partir da naturalização e essencialização da ideia falaciosa de diferenças biológicas que, dentro da lógica brasileira, se manifesta pelo fenótipo e aparência dos indivíduos de diferentes grupos sociais. No Brasil, o racismo desenvolveu-se de forma muito específica e particular, porque o racismo brasileiro nunca foi legitimado pelo Estado, mas sim foi e ainda é um racismo presente nas práticas sociais e nos discursos, ou seja, um racismo de atitudes, porém não reconhecido pelo sistema jurídico e ainda negado pelo discurso de harmonia racial. (SCHUCMAN, 2010, p. 44).

Para Lia Schucman (2010) a ideia da harmonia racial entre os indivíduos é nula. Essa noção de harmonia racial encontra-se no imaginário coletivo dos povos, mas que no Brasil, a ideia da harmonia social foi produzida por intelectuais das elites dominantes, com objetivo de promover a sociabilidade sem conflitos entre brancos e negros evitando um conflito racial no Brasil aos moldes de outras sociedades, permeadas de violações racistas mais visíveis, violentas e que deixou intensas marcas naquelas comunidades.

Por isso, defendemos mediante as interpretações de Djamila Ribeiro (2019) que as ações pautadas no chamado antirracismo, podem ser identificadas, como uma forma da adoção de uma postura incômoda, colocando-se frente as atitudes individuais que compreendem os privilégios raciais. Assim, a educação antirracista é aquela em que convivemos em uma sociedade racista, e as relações entre as pessoas são pautadas, sobretudo, a partir do lugar sociorracial que ocupam. A educação antirracista tem a preocupação e o objetivo de preparar e formar indivíduos que possam se colocar contra esse sistema de opressão e de preconceitos cotidianos.

Djamila Ribeiro (2019) identifica que o racismo é um sistema de opressão que nega direitos, e não um ato da vontade de um indivíduo. Reconhecer o caráter estrutural do racismo pode ser complexo. Mas é necessário se quisermos superar tais preconceitos. Dessa forma, defende que a prática antirracista é urgente e se dá nas atitudes mais cotidianas possíveis.

Sobre o racismo Silvio de Almeida (2019) ressalta que:

É parte da estrutura social e, por isso, não necessita de intenção para se manifestar, por mais que calar-se diante do racismo não faça do indivíduo moral e/ou juridicamente culpado ou responsável, certamente o silêncio o torna ética e politicamente responsável pela manutenção do racismo. A mudança da sociedade não se faz apenas com denúncias ou com o repúdio moral do racismo: depende, antes de tudo, da tomada de posturas e da adoção de práticas antirracistas. (ALMEIDA, 2019, p. 52).

Por certo, as práticas antirracistas defendidas por Djamila Ribeiro (2019) e Silvio de Almeida (2019) contribuem diretamente para se contrapor e combater a manutenção do racismo no Brasil.

O espaço escolar é que mais pode proporcionar essa mudança de paradigmas e posturas, em função da educação, atingir dialeticamente os discentes em formação. Nesse sentido, Rafael dos Anjos (2005) defende que a escola ainda representa uma instituição que propaga a reprodução do racismo.

O respeito a expressão da diversidade manifestadas no território precisa alcançar a população negra brasileira, que sofre de forma dupla, pela estrutura social vigente favorecer uma maior inserção dos indivíduos brancos/as do que negros/as e mediante a ampla divulgação da história negra africana, que nos cerca a partir de nossas concepções históricas, geográficas e culturais. Rafael dos Anjos (2005) milita pela desconstrução do racismo e pela pluralidade de ideias presentes no estado democrático de direito no Brasil. Desse modo, também revela sobre as condições atuais do capitalismo e o tanto que este interfere nas práticas educativas inclusivas e antirracistas, dinâmicas e inovadoras.

Assim, Rafael dos Anjos (2005) aponta sobre sua visão sobre os estereótipos tradicionais, antiquados, e racistas na educação cotidiana da sala de aula, nos aponta esse instrumento para conseguir trabalhar conteúdos africanos e sobre diferentes preconceitos que envolvam a cor da pele e demasiadas perseguições ideológicas da comunidade, de setores da escola e de discentes.

A partir do ensino de Geografia, por exemplo, torna-se necessário ressaltar sobre a história da África e seu continente, sobre a incidência do racismo, para compreender as religiões de matrizes africanas, suas culturas, seu território, mediante práticas educativas inclusivas e da necessidade do livro didático no âmbito geográfico, deixar de marginalizar tais conteúdos, tendo em vista, a promulgação de leis nacionais que garantem o ensino dessas temáticas em escolas das esferas municipais, estaduais e federais acerca da cultura e história africana. Como bem defende o autor:

A raiz dessa desigualdade secular estaria localizada na pré-escola. O sistema escolar tem sido estruturado para a perpetuação de uma ideologia sócio-político-econômica que, junto com os meios de comunicação social, mantém uma estrutura classista, transmissora de valores distorcidos e individualistas. Primeiro, são os livros didáticos, que ignoram o negro brasileiro e o povo africano como agente ativo da formação geográfica e histórica. Em segundo, a escola tem funcionado como uma espécie de segregadora informal. A ideologia subjacente a essa prática de ocultação e distorção das comunidades afrodescendentes e seus valores tem como objetivo não oferecer modelos relevantes que ajudem a construir uma autoimagem positiva, nem dar referência à sua verdadeira territorialidade e sua história (ANJOS, 1989, p. 174).

O fragmento aponta sobre a dificuldade de se compreender a territorialidade africana em função da marginalização que tais assuntos são referidos nos livros didáticos de Geografia, em função da dominância do conjunto de valores eurocêntricos propagados nos livros didáticos. De fato, acaba existindo uma omissão de informações acerca da cultura negra africana.

Para Rafael dos Anjos (2005) é necessário compreender uma aprendizagem mais multicultural e diversa dos conteúdos históricos e geográficos, como forma de entender a religião, a cultura, a arte, a identidade do povo negro africano na história mundial e dessa representatividade aparecer no ensino de Geografia como um todo, inclusive, sendo enfrentado por professores/as geógrafos/as do ensino infantil, básico e superior. Isso de fato, representa o entendimento da formação do Estado brasileiro e das suas bases políticas educacionais e ideológicas mais profundas. Portanto, é preciso enfrentar o racismo contra os negros/as, para propiciar uma Geografia mais plural, diversificada, a favor das minorias sociais.

Já para Nilma Lino Gomes (2005) a questão racial está ligada a um terreno delicado, ou seja, daquele visto das representações e dos valores sobre o negro.  Assim, expõe que a educação representa um processo amplo e complexo de construção de saberes culturais e sociais que fazem parte da vida humana em sociedade, no entanto, nem todos os educadores estão de acordo com essa afirmação e menosprezam ainda o papel da escola na realidade contemporânea (GOMES, 2005). A educação voltada as relações étnico raciais contribuem para o processo educacional formado por dimensões como a ética, as diferentes identidades, a diversidade escolar e populacional, a sexualidade, a cultura (GOMES, 2005).

Ao se trabalhar com essas dimensões é preciso ter a sensibilidade para perceber como esses processos constituintes da formação humana se manifestam na vida e no cotidiano do ambiente escolar. Assim, torna-se possível construir coletivamente as formas de convivência e de respeito entre professores, alunos e a comunidade local. A escola deve atender a sociedade na qual está inserida e precisa ser plural, multifacetada, diversa, popular (GOMES, 2005).

No que tange à educação para combater o racismo a autora destaca que:

O entendimento conceptual sobre o que é racismo, discriminação racial e preconceito, poderia ajudar os (as) educadores (as) a compreenderem a especificidade do racismo brasileiro e auxiliá-los a identificar o que é uma prática racista e quando esta acontece no interior da escola. Essa é uma discussão que deveria fazer parte do processo de formação dos professores. Porém, é necessário que, na educação, a discussão teórica e conceptual sobre a questão racial esteja acompanhada da adoção de práticas concretas. Julgo que seria interessante se pudéssemos construir experiências de formação em que os professores pudessem vivenciar, analisar e propor estratégias de intervenção que tenham a valorização da cultura negra e a eliminação de práticas racistas como foco principal. Dessa forma, o entendimento dos conceitos estaria associado às experiências concretas, possibilitando uma mudança de valores. Por isso, o contato com a comunidade negra, com os grupos culturais e religiosos que estão ao nosso redor é importante, pois uma coisa é dizer, de longe, que se respeita o outro, e outra coisa é mostrar esse respeito na convivência humana, é estar cara a cara com os limites que o outro me impõe, é saber relacionar, negociar, resolver conflitos, mudar valores. (GOMES, 2005, p. 148-149).

Nilma Limo Gomes (2005) sustenta que tal campo dos valores apresenta algumas estratégias de combate ao racismo e de valorização da população negra na escola brasileira. Ao se abordar sobre esse campo e o das identidades, nos levam a refletir sobre diversos temas no campo educacional, sobretudo, da autonomia de conteúdos e saberes do professor/a. Compreende-se que ao tratar da temática racial, que alguns docentes usam de uma compreensão deturpada de autonomia para (re) produzir ações racistas no ambiente escolar, o que representa uma realidade muito triste e cruel, sobretudo na educação infantil, atingindo negativamente a autoestima de alunos/as negros/as (GOMES, 2005).

Aparecida Ferreira (2009) sustenta que existe uma consciência de identificação com o grupo étnico a qual a pessoa pertence e isso revela problemas com relação à forma como é feita a classificação de pertencimento no Brasil, vista como um enquadramento para classificar ao seu grupo étnico. A questão dos brancos é trabalhada pela autora a partir da análise de discurso proferidas pelos professores/as negros/as e brancos/as à luz da teoria crítica racial e dos discursos articulados ideologicamente sobre negritude e branqueamento.

Nesse sentido, tais temáticas, em muito se aproximam da proposta inicial deste artigo, que é fazer uma discussão sobre o racismo experimentado principalmente pelo Professor Ticolino de Geografia na cidade de Ituiutaba (MG), retratando algumas memórias de sua biografia e prática docente, trazendo à tona, experiências negativas com relação a manifestação do racismo em diferentes ambientes.

A partir das discussões teóricas apresentado neste primeiro tópico, tão presentes na sociedade brasileira, o segundo tópico deste trabalho, pretende retratar especificamente dos fatos, eventos, memórias, que ocorreram na vida do Professor entrevistado intercalando com a prática docente em Geografia.

3 PROFESSOR TICOLINO: Ensino de Geografia e Racismo em Ituiutaba/MG

Milton Santos (2001) evidencia sobre a posição do intelectual negro no Brasil e da dificuldade dupla em se posicionar com relação às temáticas sociais mais graves, isso porque alguns segmentos sociais sequer reconhecem, de forma pacificada, a liberdade de expressão por parte de outras classes menos privilegiadas.

A sociedade brasileira está estruturada no racismo, uma ideologia com disseminação histórica, perversa e que se remete ao período da colonização portuguesa no Brasil e ao período da escravização do povo negro.

Nesse contexto, cabe também ressaltar sobre os posicionamentos do movimento negro unificado em Gonzalez (1982) no Brasil e sua luta frente ao poder público como um norteador através do controle social exercido para unificar acesso aos direitos básicos da população negra.

A estruturação política e histórica do racismo apontado por intelectuais negros como Fanon (1968), Flauzina (2006) e também por Gonzalez (1982) evidenciam a sua ação direta junto à população negra, o que contribui para que sofram rejeições sociais, a partir da raça e da cor da pele, de modo que, influenciam na sua educação, na socialização em diferentes ambientes do cotidiano, pelo forte controle social da própria sociedade brasileira, de forma que, a vigilância social mostra-se como algo meramente comum e aceito pela população brasileira, a tal ponto, que os órgãos públicos (principalmente os referentes à segurança pública) também enfatizam esta prática, contribuindo para reforçar a existência do racismo, ainda que seja velado ou mesmo institucional. Todo esse conjunto de fatores propagam os ideais do mito da democracia racial no Brasil.

O racismo no Brasil segundo Gonzalez (1982) é percebido desde o período colonial, através da escravização dos negros, até os dias atuais, com diferentes modus operandi de manifestação, seja através do racismo velado e institucional, até as manifestações mais discriminatórias explícitas da atualidade, presentes nas figuras e imagens que formata as representações sociais e simbólicas promotoras do racismo segregacionista, que materializa a estrutura da desigualdade brasileira. As formulações ideológicas que remetem a teoria do racismo científico do século XIX, reconhecem a imagem do negro (a) como um estereótipo de dominação, de deturpação de hábitos e costumes, e da sexualização da imagem da mulher negra e que na atualidade, reproduz a lógica do mito da democracia racial.

Uma segunda teoria busca analisar o racismo como uma derivação do etnocentrismo, como uma teoria científica do século XIX, a partir da expansão colonial e da globalização com as chamadas migrações em massa, de modo que, percebia o problema do racismo, como uma forma de julgamento a partir da aparência e da hierarquização dos grupos humanos pela distinção social e interpreta o racismo como algo natural e histórico nas sociedades. Assim, a utilização da ideia de raça por muito tempo na história, foi justificada através de discursos e argumentos religiosos, biológicos, culturalistas e nacionalistas correlacionados.

Para exemplificar práticas racistas evidenciamos no próximo tópico do artigo, a entrevista que retrata a história de vida do professor Ticolino, que ministra a disciplina de Geografia pela Secretaria de Estado e Educação de Minas Gerais (SEEMG) numa escola estadual da cidade de Ituiutaba (MG) e também já lecionou por cerca de 12 anos, com aulas nas disciplinas de História, Sociologia e Filosofia em instituições particulares da cidade e de outros municípios do Pontal do Triângulo Mineiro.

Nesse sentido, mediante a entrevista, resgatou-se impressões, vivências, memórias do professor, como forma de evidenciar as suas experiências práticas, a militância sobre a negritude e o encontro geográfico do docente durante fases de sua vida. Essa prática de entrevista remete a história de vida do professor Ticolino.

4 RESULTADOS DA ENTREVISTA: entre as vivências, a negritude e o encontro geográfico

O primeiro contato com o professor se deu via WhatsApp no início do mês de novembro de 2020. Logo de início, após explicar sobre a entrevista e o seu propósito, se mostrou interessado e aberto em função das temáticas abordadas e já esclareceu que estava disponível para realizarmos a entrevista em sua residência pessoal.

Desse modo, o seu perfil chamou bastante atenção, por ter uma inserção social entre crianças e adolescentes (em função do fato de ser professor e por se apresentar artisticamente como o Palhaço Ticolino) e inserção política em outros segmentos culturais e sociais em Ituiutaba (MG).

Ticolino, assim como outros homens negros, possui uma história bastante sofrida no que tange as perseguições por seu jeito de ser, de se colocar no mundo, desde a infância, perpassando pela adolescência e idade jovem e adulta. No entanto, conforme o trecho a seguir, a sua forma rebelde e crítica de ser o levava a questionar o que estava estabelecido nas suas relações entre amigos e outras crianças na escola quando conta sobre sua infância, adolescência e sua família em Ituiutaba:

A minha vivência foi maravilhosa enquanto criança dentro de casa, eu era esse menino que brincava e tentava perceber o mundo e que existia dentro do limite da minha infância. Eu fui nascido e criado aqui no bairro Progresso e aqui na época era Vila Progresso, não tinha nenhuma infraestrutura, e minha casa não tinha cisterna e em determinado momento era fossa e aquilo me dava um medo. E era de frente para o cemitério e não tinha cerca. Uma vida simples. Já na escola começou meus traumas, então eu era meio brigão, porque devido a discriminação, ao bullying, e eu não aceitava aquela situação, e eu reagia partindo para cima. Sabe, mesmo eles sendo maiores do que eu, eu tinha aquela coisa do embate, mas eu sofri muito por dois aspectos. Isso uma confissão que eu faço agora. Para você ter noção eu era disléxico, os meus irmãos tinham muito mais conhecimento, e eu era o caçula, e eu meu caderno de geografia, eu escrevia geografia com j, então era sempre piada e tido como burro, (e diziam que eu não ia virar nada). E como tinha dificuldade de escrever, de acompanhar, minha letra não era lá essas coisas, e a concentração... eu lembro uma vez, que eu estava na sala de aula, e eu acho que era no terceiro ano, e que hoje seria o quarto, e eu lembro da sala estar toda fantasiada, com bola e borboleta num jardim, então eu viajava, eu perdia a concentração, e eu acordava com tapas da professora na minha cabeça (TICOLINO, 2020).

A incompreensão dos colegas e da professora, aliado as dificuldades de dislexia colocavam o acesso e a permanência de Ticolino numa situação complicada para continuar a conviver no ambiente escolar. Conversando com o entrevistado revela:

É. Tapa e beliscão e com toda raiva e eu assim assustado. Isso aqui em Ituiutaba? Em escolas de Ituiutaba? Isso. Em escolas daqui. Mas isso era comum, batiam, puxavam com a unha a orelha, era uma coisa terrível e opressora e aquela coisa de ficar sempre em fila, aquilo me incomodava e eu comecei a ter raiva de escola, ter muita raiva, e o que me fez me manter na escola, primeiro foi minha mãe, que queria ter os filhos formados, ela era mãe de 4 jovens negros, um homem, uma mulher, um outro negro e eu mais novo. Só que o mais velho tinha pele mais clara, e eu sentia os pesos das coisas, então tomei bombas, mas o meu mecanismo de resistência a tudo isso foi me revoltar, e eu resolvi chamar a atenção de outra forma, sendo engraçado (TICOLINO, 2020).

Isso expõe o tanto que a educação, na época de convivência escolar do entrevistado, era conservadora e se optavam por métodos pedagógicos mais rígidos, que querendo ou não, deixaram marcas profundas nos alunos, conforme narrado pelo professor. Durante a entrevista, o professor nos revela que foi tendo uma postura mais engraçada, para encarar o cotidiano permeado por vivências difíceis e preconceituosas e se utilizou do convite que teve para acessar o teatro da cidade, como forma de lidar com todas as situações complexas do seu cotidiano:

Com o humor e agressividade e sendo irônico e de certa forma alguns professores me acolheram, principalmente depois que sai do ensino fundamental I e fui para o Ensino Fundamental II, aí veio a salvação da minha vida, fui treinar handball, eu jogava bem e eu fui fazer atletismo e era corredor de 100 metros, mas principalmente quando foi fundada a Biblioteca Comunitária, e aí  já estava com meus quinze anos ou dezesseis anos, e eu já estava lá pela sétima ou oitava série, fui para uma chapa do noturno, e aí durante o dia eu ia para lá na Biblioteca, e conversava com uma professora ela tem doutorado em pedagogia e fez teatro montava peça, e isso me fascinava, ela contava histórias e eu comecei a forçar a barra para ler. Começava a ler alguns contos, de Carlos Drummond de Andrade, do Fernando Sabino, e assim com essa parte lúdica, além de me mostrar que eu não podia sair da escola, me afastar, foi me dando um senso crítico, discernimento, e principalmente porque eu estava vivendo na época da ditadura e minha mãe e irmãos tinham uma crítica a ditadura muito grande, meu irmão ouvia muito o Chico Buarque, e isso me ajudou, as minhas amizades eram próximas desse pessoal. Então comecei a marcar uma posição de ter uma consciência, do que é opressor e do que é o oprimido, não sabia expressar de uma forma concreta na minha mente, mas o teatro, eu fiz um papel numa peça chamada ‘’Quem matou o Leão da Maria Clara Machado’’ e como tinha o apelido de Tico, por ser magricela, ao contrário desse gordão hoje. Então eu lembro na década de 80 de ficar confuso com a Arena, MDB, não sabia o que era esquerda e direita. Eu chorei na morte do Tancredo Neves, eu fiquei de luto, eu e meus amigos. Na época eu tinha uns 20 anos. Mas essa companhia com  pessoas do teatro, foi um grande discernimento na própria oposição à ditadura e que havia gente que pensava mais na esquerda, tinha gente que era liberal e capitalista e queriam a democracia, isso foi me dando discernimento de posição de luta, de questão de classe, mas principalmente me deu vantagem dentro da escola, que eu militei dentro da juventude do movimento escolar, fui um dos caras que participei da reorganização do movimento estudantil de Ituiutaba entre 1984 e 1985. Então assim, eu sou feliz e tive uma infância feliz (TICOLINO, 2020).

Esse trecho da entrevista revela muito precocemente sua envergadura de cunho político e ideológico, que seguiria no início da vida adulta nos movimentos sociais de Ituiutaba, até os dias atuais e retrata sobre o período histórico das vivências dos anos 80 no Brasil, com a vigência do Regime Cívico Militar (1964-1985). Desse modo, é notório, perceber em sua fala que os aspectos relativos a arte e a cultura, sobretudo, as artes cênicas e suas formas de inserção social, modificaram a sua visão de mundo enquanto jovem, convivendo em Ituiutaba. O teatro aparece como uma forma de resistência ao que era vivido à época e o seu interesse e protagonismo o fizeram ter acesso a outras formas de sociabilidade na cidade, conforme nos esclarece:

Porque me abriram portas para dar aulas de teatro, no Conservatório e ao mesmo tempo eu animava festas como palhaço, eu posso dizer que eu fui um dos únicos caras aqui em Ituiutaba, que sobreviveu da arte literalmente, constitui uma família e construí uma casa, depois eu foquei nos estudos (TICOLINO, 2020).

Quando jovem, após o casamento, resolveu fazer faculdade de História na FEIT/UEMG (Fundação Educacional de Ituiutaba/ Universidade do Estado de Minas Gerais), em função das conversas, companhias e por sua forma de ser crítico. Sobre esse período acrescenta:

Fui fazer história. Só que a história em Ituiutaba era Estudos Sociais. Isso na UEMG, Antiga FEIT. Na realidade quando falou que tinha estadualizado, na verdade eu estava casado, eu tinha 3 filhos e morava com minha mãe, então eu construí a casa e aí eu dava aula de teatro no Conservatório daqui, de Capinópolis e de Cachoeira. E todo final de semana eu animava festas, eu era o palhaço Ticolino. Se fosse hoje se eu fizesse duas festas, tirava um salário ou no mínimo meio salário. E isso andava de bicicleta e sempre muito crítico mesmo dentro do teatro, lá tinha biblioteca e isso eu soube aproveitar, eu lia Dostoievski, Karl Marx, e eu ficava ali. E outra coisa importante, eu ficava no meio do bate papo dos caras e dos intelectuais, então eu já vinha fazendo minha formação. Aí então eu fui fazer Estudos Sociais e eu já tinha pretensão de fazer história, porque não tinha aqui a Geografia por causa da ditadura. Só que a UEMG não era uma Universidade, como você que estudou na UFU. Lá não tinha pesquisa, eu falo que era um Colégio grande, para você aprender, a repassar os conhecimentos e até eu ficava assim me sentindo estranho. Então muita coisa assim eu já sabia, eu já lia. E os professores explicavam e eu já sabia. (...) Porque eu já tinha essa pré-disposição, tanto que a maioria das pessoas que estudavam não tinham esta noção, aí quando eu fui formar, eu lembro de ter encontrado vários amigos aqui do Direito, querendo saber porque que eu queria fazer História e eu dizia que queria fazer a revolução, aí eles riam na minha cara, porque eles queriam era ganhar dinheiro. Eu me sentia assim um verdadeiro babaca, mas eu queria e eu fui. Só que quando eu fui pegar aula, eu peguei as primeiras aulas de Geografia, e eu tinha uma resistência com a Geografia porque quando eu estudava na época da ditadura, era uma sacanagem, eles colocam para você decorar estado, nomes de capitais, direção, mas não te dava a possibilidade de desenvolver o pensamento questionador, isso me incomodava. Como eu já tinha uma boa base de História eu peguei, e olhei e vi que boa parte da Geografia, baseada no nosso querido Milton Santos, e você sem História, sem Filosofia e sem Sociologia, você não entende o espaço geográfico, e a gente ia discutir Geopolítica e falar da Guerra Fria, e quando começava a Geografia física, eu sempre linkei com a questão do espaço geográfico, e aí eu fazia discussão social, política e econômica, mesmo falando a respeito da estrutura geológica, ou se fosse falar da Cartografia, eu já fazia crítica ao eurocentrismo e a produção de mapas, então eu tive isso. E fui fazer Geografia a distância (TICOLINO, 2020).

Parte do depoimento, revela um período de estudos do entrevistado na universidade local e características muito específicas do momento histórico e político da época. Na fala de Ticolino, é bem perceptível a situação por exemplo, do ensino de Geografia sendo marcado pelo período militar no Brasil, em que a disciplina, era reduzida a repassar conhecimentos decorados e tinha certo esvaziamento de debates geopolíticos e da formação do pensamento crítico, tão presentes atualmente na Geografia mais contemporânea e nas disciplinas das ciências humanas.

O relato do professor dá um panorama educacional importante do ponto de vista cronológico e conteudista, desse modo, torna-se necessário ressaltar a visão do entrevistado e da articulação de ideias entre as disciplinas que compõem as ciências humanas na formação crítica dos discentes. O conjunto que esses saberes sociopolíticos integram vão formar os intelectuais pensantes em diferentes classes sociais.

Mais adiante, o professor detalha sua formação superior, tendo experiência em cursar a graduação em Geografia na modalidade à distância. Após formado, já dando aulas em diferentes escolas, evidencia a importância de apostar na teoria com a prática docentes para conseguir se fazer entender entre os discentes. Conforme salienta:

Como eu tinha facilidade com a Filosofia, eu lia os filósofos, e eu dei aula de Geografia, Filosofia, História e de Sociologia, e eu logo depois leciono para o ensino médio, aí eu saio da COESA e vou para dar aulas ao COC para lecionar em Geografia, História, Filosofia e Sociologia. Mas aí algumas pessoas criticavam que eu era mais historiador que geógrafo, aí quando li o Milton Santos eu vi que eu sou geógrafo sim, porque eu sempre relacionei o conteúdo a transformação do espaço, com a questão econômica e política, social, nunca desvinculei uma coisa da outra. Então sem perceber Deus me ajudou pelas circunstâncias a ter essa formação crítica, e hoje mesmo quando a gente vê hoje aqui, algumas pessoas que fizeram Geografia aqui, e que tem uma formação teórica profunda, eu tenho essa prática e entendo essa teoria, para trabalhar com os alunos, tanto que minhas aulas por eu sofrer muito dentro de uma fila, apanhado e ter enfrentado a repressão, eu sempre resolvi fazer o inverso, sair da sala de aula e trabalhar o espaço, e mostrar o mundo em Geografia e em História, e sempre que dá vamos para a Serra do Corpo Seco, vamos para Montanha. Eu lembro que saia da escola, que era para sentir a liberdade, saia andando perto do Córrego do Pirapitinga até perto da rodovia, e falava da mata ciliar, falar da margem e da questão de como se forma a calha do rio e o que que é um afluente e subafluente e debatendo também o espaço urbano, ia mudando isso sabe, e a gente fazia debates, e vivenciava essa experiência (TICOLINO, 2020).

Certamente aliar a teoria com a prática saindo dos muros escolares e adentrando na paisagem urbana e rural de Ituiutaba, é uma forma de mostrar parte desse espaço geográfico e da paisagem natural representadas nas montanhas, na Serra do Corpo Seco, mostrando o Córrego local para os seus alunos.

A Geografia é uma ciência, que proporciona os trabalhos de campo para analisar o relevo, o solo, a paisagem, o espaço geográfico. Dessa forma, ao se tornar professor, avalia que esta foi uma escolha madura e importante, sempre articulando os conhecimentos históricos e geográficos teóricos com os práticos, entre suas turmas de ensino fundamental e médio. Com relação a sua prática pedagógica elucida que:

Esse contato com um professor da UFU para mim, foi importante porque eu tinha essa sensibilidade, eu tinha que fazer isso diferente, então eu pegava as aulas de Geografia ou História dependendo do tema, eu pegava uma letra do Legião urbana e ia fazer uma discussão sobre o capitalismo, a música Índio, e levava a letra e ouvia, dividia em grupos e ia construindo e debatendo. Então eu fazia isso com música, montava peças, fazia trilhas na Serra do Corpo Seco aí aproveitava para trabalhar a questão do solo e do relevo, da vegetação, da hidrografia, e eu tinha dúvidas dessas práticas docentes, quando me aproximei desse professor, e ele me mostrou claramente o Paulo Freire, o Boaventura e vários outros, eu me senti à vontade e sei que esses 30 anos de escola, eu vi que essa perspectiva não estava errada. Geografia e História caminham juntas. E entre elas tem Filosofia e Sociologia. Aí eu viajava e explicava a questão do mapa e aonde se dava o domínio europeu e era errado essa coisa da Europa em cima do mapa, se formos buscar, nossa referência no mapa pelo Cruzeiro do Sul, até hoje não temos, o mapa seria inverso, eu explicava isso para meus alunos. E a gente tem aquela adoração de que o conhecimento vem da Europa e não é. A cultura está por todo o lado. E aí quando jovem eu assistia muito filme americano e a gente desmerecia e desvalorizava ser latino americano, então nessa visão, hoje eu amo ser latino americano, amo ser descendente de negro, amo ter essa nossa visão e inclusive politicamente (TICOLINO, 2020).

O entrevistado detalha sobre sua forma de dar aulas, como uma maneira de conseguir abordar a amplitude da História e da Geografia como disciplinas importantes no ambiente escolar. Inclusive na própria cultura latino-americana em comparação com a europeia. O conhecimento histórico geográfico no campo da educação, ao longo dos anos de didática, foi mostrando a valorização da cultura nacional e relativa aos países que nos cercam na América Latina, com isso o professor foi compreendendo sua cultura e foi se desconstruindo da visão eurocêntrica em suas aulas e conteúdos ministrados.

Tal conjunto de fatores levam a crer, que o professor tenha começado a adotar formas e maneiras de trabalhar conteúdos relativos as relações étnicas raciais ao longo dos anos de prática docente:

Sempre trabalhei. Porque eu sempre senti na pele. E já montei vários espetáculos e um dos últimos eu tive a oportunidade, pegando a africanidade e a Orquestra do Conservatório, discuti a questão da mulher negra, do negro. Fui vice-diretor de uma escola, trabalhei em muitas escolas em Ituiutaba, há muitos anos já se tinha uma visão que uma escola Estadual era pública e elitizada, já o Municipal também e tem um agravante, ela foi criada para negros. Os negros não tinham escola e criaram essa. E eu dava aulas lá a noite, mas a qualidade foi melhorando tanto que amigos de vereadores pediam a oportunidade de matricular os filhos, e chegava lá e você via mais brancos do que negros. Mas mesmo assim você via mais negros no Municipal do que no Estadual. Quando eu vim para o Estadual eu tive que me desdobrar, eu era um cara baixinho, preto e jogava muito futebol, para entrar no time, você tinha que brigar, porque senão você não entrava, eu tinha que dar um duro danado, então assim, eu sempre fiz esse debate com os alunos da questão racial (TICOLINO, 2020).

Essa era uma questão chave a ser enfrentada pelo professor, porque como já havia sofrido durante a infância e à adolescência com o racismo e preconceitos de todas as formas, decidiu que como docente teria uma abordagem diferente.

Ao longo da entrevista conta sobre situações correlatas acerca da educação em Ituiutaba e a diferenciação de inserção entre alunos negros e brancos. O relato do professor é bastante contundente e a sua narrativa se mescla com o tempo em que era estudante na cidade, juntamente a sua prática docente nas instituições públicas e privadas e vem esclarecendo:

Mesmo porque a primeira vez que eu fui dar aulas, por ser negro e palhaço, eu nunca esqueço da diretora que me ofereceu a aula, ela ficou escondida atrás da porta para ouvir e a primeira vez que eu fui contratado em escola particular lá em Santa Vitória, ao invés de todos que chegavam e mostravam o diploma, com boa aparência entrava e já ia para a sala, já a diretora pediu para que eu desse uma aula para ela. Graças a deus uma coisa que eu tenho por ser auditivo, por causa da dislexia, eu criei uma capacidade enorme de percepção, então baseado nessas coisas, porque eu sofri como negrinho nas escolas. Se você é negro e está no Estadual e mal vestido, você não tem capacidade de ser matriculado, eles não vão falar isso e vão falar que não tem vaga. Mas até 2017 existia isso e eu queria levar esse debate, era mais fácil você encontrar alunos que são do Centro, que saiam de escolas particulares, ou saiam de uma escola pública de ensino fundamental elitizada que vem para o Estadual. E aí você vê eles não pegando alunos aqui do dessas escolas periféricas e isso sempre me incomodou. Isso é uma discriminação. Se eu quero ter uma escola boa, eu parto da premissa para a escola ser boa, ter bons alunos de boas família e ‘’boas índoles’’, e eu aí eu formo esses alunos. Mas eles não param para pensar que a escola boa, é aquela que pega o aluno que não teve a boa família, que não tem boa índole e consegue transformar esse cidadão. Isso mexe comigo. Então eu sempre fiz embate e nos meus projetos eu levava essa discussão (TICOLINO, 2020).

Esse trecho revela questões importantes no âmbito da área de educação da cidade de Ituiutaba. Nos parece crer, que escolher alunos/as em função dos bairros de residência, para matricular e formar turmas com a mesma variação socioeconômica não proporciona a diversidade que precisa estar presente na escola. Ao contrário, isso proporciona uma segregação dos mais pobres, uma vez que outros alunos/as possuem mais inserção social e a maioria dos estudantes dos bairros tidos como periféricos (e que geralmente tendem a ser estudantes com a cor de pele pardas e negras) sequer possuem a mesma inserção social e espacial na cidade.

Não se pode deixar de mencionar, a própria trajetória profissional do professor Ticolino na cidade de Santa Vitória (MG) que para assumir aulas numa escola particular, teve que dar aulas a diretora escolar, coisa da qual, outros concorrentes diretos não foram submetidos, nos revelando uma prática de racismo.

Assim, torna-se interessante destacar, que a escola é uma instituição que pode proporcionar a alfabetização, o letramento, o conhecimento pedagógico prático, as leituras críticas repassadas ao aluno/a, para que aprendam a questionar a seu redor e tenham mais interesse em intervir na realidade de sua vida cotidiana. Esse representa o maior desafio da escola pública brasileira na atualidade.

Ademais, Ticolino relata sobre uma situação bem atípica que passou quando era vice-diretor de uma escola pública da cidade e que teve intervenção direta para ajudar ao retorno da aluna à escola. Nesse sentido nos evidencia que:

O preconceito ele existe, não é só com negro, é com o nordestino, com a pessoa pobre, com a mulher negra. Vou te contar um caso, eu era vice-diretor de uma escola pública, uma aluna desapareceu e não estava indo, e eu como vice-diretor tinha que correr atrás, fui e conversei com a mãe, e ela disse que era complicado, ela não quer voltar e eu perguntei o porquê, a mãe estava sem dinheiro para levar ela ao cabeleireiro, para fazer trancinhas rastafári e como ela está indo com o cabelo natural e os colegas estavam chamando ela de ‘’assolan’’, ela se sentia ofendida e está com vergonha de si mesma, e eu falei que ela ia voltar, porque teve uma professora que fez o cabelinho, e ela retornou e nesse meio tempo eu comecei a mostrar para ela , ser ela não era ser vergonhoso, e eu fiz isso porque eu passei, porque muitas vezes quando eu era pequeno me negavam, até onde eu fui me reconhecer em grandes seres negros, porque os filmes da minha infância os heróis eram brancos, como o Tarzan que era branco, e os negros eram nada....eram mortos pelos brancos, que queriam o bem da salva, você imagina o conflito na minha alma de jovem, mas por conta de ser adolescente, encontrei pessoas que estavam debatendo a questão da consciência negra, tive a oportunidade de conhecer um Padre e discutia a questão do racismo. Então eu tive a oportunidade de buscar esse entendimento, então eu levo essas discussões para os alunos. E vejo que vários sofrem e sentem isso na pele, calados e o silêncio deles me incomoda (TICOLINO, 2020).

Revela que a partir de sua atitude como vice-diretor, foi preponderante para conseguir fazer a aluna, com o apoio da família, retornar à escola, mesmo com a situação do racismo posta neste ambiente. A sua forma de atuar, tentando conciliar a situação, mediante a ajuda de uma outra professora, auxiliando a família a conseguir custear as trancinhas rastafári para aluna, como forma de resgatar sua autoestima no retorno à escola. Essa relação de proximidade contribuiu para que a aluna permanecesse no ambiente escolar até o término dos estudos.

Sobre episódios relativos ao racismo o professor Ticolino pondera:

Mas o pior de todos é o racismo invisível dentro da escola. Ele não aparece na escola. Mas eles falam que você não tem capacidade, que você brinca demais, e eu sou muito brincalhão e sempre usei a alegria como forma de defesa. Mas as minhas aulas sempre foram dadas para meus alunos. A nota e a forma de avaliar eu sempre tive uma sensibilidade diferente para avaliar, porque eu sempre tive um olhar para avaliar cada aluno. E senti várias vezes nas escolas que eu participei, quando almejava um cargo de direção, mas percebia nas entrelinhas na minha forma de pensar, de vestir, nunca fui muito preocupado com essas questões materiais e de aparência, na minha essência eu acho meu jeito de vestir e calçar era irrelevante, mas as minhas atitudes são. A minha relevância e posição política, a minha posição enquanto professor, se é um momento de luta, eu paro e faço greve, sempre parei, vão me criticar. Mas a maioria dos professores se preocupam mais com, usando o Platão, mais com o mundo da fantasia do que da realidade. Mas quem já foi chamado de macaco quando pequeno, e as vezes sentia aquilo me incomodando, já perdi namorada porque o pai não queria que namorasse com negro, e falava que era boa pessoa, mas era negro. Tudo isso é racismo (TICOLINO, 2020).

Na escola, enquanto um ambiente de formação, existe uma realidade latente da manifestação de atos, atitudes relativas a discriminação social e racial, tanto por parte de docentes, quanto de discentes, quanto de servidores da instituição.

No que tange aos relacionamentos amorosos, relatou que uma namorada terminou com ele pelo fato de ser negro e detalha:

Eu tive uma namorada branca que a família dela não deixava. Foram todas que eu tive de pele clara que a família não aceitava. A família da pessoa não aceitava. (...) ou seja, eu não ia levar aquilo porque sei que ela era vítima também, não iria levar aquilo como um desaforo, então sempre fui muito casca grossa. Então eu sofri discriminação por ser negro e pobre, eu gostava de chamar a atenção dançando, chamava atenção jogando, tentando chamar a atenção e ser o melhor naquilo, tinha que fazer para mostrar. E essa questão do negro, ele tem que comer um leão por dia para mostrar que é bom, essa questão da cor ainda diz muito, é muito predominante (TICOLINO, 2020).

O racismo é crime, inclusive que se encontra especificado na Constituição Federal de 1988 (Inciso XLII do Artigo 5º) juntamente a lei 7.716/1989 que elenca os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor.

A interpretação constitucional do racismo se diferencia da injúria racial que é ofender alguém com base em sua raça, cor, etnia, religião, idade ou deficiência. O Código Penal, em seu artigo 140, descreve o delito de injúria, que consiste na conduta de ofender a dignidade de alguém, e prevê como pena, a reclusão de 1 a 6 meses ou multa.

A injúria consiste em ofender a honra de alguém se referindo a elementos de raça, cor, etnia, religião ou origem, com pena de um a três anos e multa, o crime de racismo atinge um grupo de indivíduos, discriminando a integralidade de uma raça, tem caráter inafiançável e imprescritível. Para o professor o racismo:

E aí eu falo que sou negro e as pessoas: que isso você é tão gente boa, não fala assim, você é negro, mas é da alma branca. Então eu fazia piada e dava umas cacetadas na escola e várias vezes e fazia debates sobre esse preconceito, no Estadual eu desenvolvi um projeto chamado Ubuntu, junto com o NUPEIAS, que é um centro de pesquisa municipal quando fez 80 anos, e eu tive conhecimento e eu dizia que lá tinha muito filho de burguesinho aqui, os pobres que acham que são classe média alta e os negros que tem, são oprimidos, e eu falei que queria fazer um projeto diferente sobre as origens negras na escola, mas eu trouxe os negros como protagonistas. E na abertura nós entramos com o Congado (isso chega me arrepia), e os tambores batendo e os meninos ao verem aquilo foi tão contagiante que eles começaram a descer na quadra e dançar, e isso eu chorei, bateram o pé no tambor e a nossa existência é importante, porque eles se viram e eles foram protagonistas e aí a gente foi pesquisando e no final montamos esse espetáculo e teve colagens de textos com poemas falando do racismo, com músicas e danças, e aí até que nosso finado maestro fizemos o espetáculo final no Conservatório, com música clássica junto com a dança negra, para mostrar essa questão e que não tem diferença e que as culturas são importantes, a música de Bethoveen não é diferente do africano ou da música do tambor, muitos diziam que o tambor não era instrumento, então eu tive isso e sem preocupação e sempre enxerguei esse racismo em relacionamento, principalmente quando tem a questão religiosa, e eu pego e pergunto: você acha que Cristo era de que cor? Eu busco essa questão do Oriente Médio. Se Cristo fosse muito branco você nem seria da cor dele, Cristo podia não ser loiro dos olhos azuis, e nos fazem ver Cristo assim loiro dos olhos azuis porque o Cristianismo se desenvolveu na Europa. E nos vendem essa imagem de que o Salvador é loiro dos olhos azuis. E ele não tem cor! (TICOLINO, 2020).

Para Ticolino as questões culturais juntamente ao Conservatório de Música e de atividades teatrais, pode combater o racismo, tendo em vista, que crianças e adolescentes se veem representados por outros jovens negros/as que se apresentam na Congada. Para ele seria uma maneira de desconstruir as imagens pejorativas da cultura negra e africana. Com relação a visão da sociedade sobre os negros, o professor desabafa:

Mas veem um professor negro e acham que ele é incapacitado, eu percebi isso em escola particular, já fazem aquela leitura de que precisam de alguém de boa aparência. Ser negro já te tira disso. Não é uma boa aparência para a sociedade branca e preconceituosa. E os alunos também e são raros os alunos negros que se destacam e eu vejo isso no dia a dia, na forma da opressão não só da polícia, dos professores, da sociedade, é muito grande a questão do racismo, a hipocrisia é maior ainda e as pessoas vem com aquela coisa que não existe racismo, existe muito vitimismo, o mimimi e que a pessoa tem que vencer pela competência e é mentira, eles dão oportunidade a partir da sua cor, e se você conseguir mostrar você vai ter um certo espaço, mas não te deixam chegar pelo merecimento, então isso é grande sim, com os profissionais. A mulher negra principalmente, aí eu vejo quando, é negra e tem a questão da obesidade e se torna uma forma caricata, aquilo que nos filmes americanos faziam e aqui no Brasil, de ser negro e ser a figura engraçada ou quando você vê nos vídeos, a maioria das pessoas envolvidas com alcoolismo, ou jogados na calçada são de origens negras e a maioria das pessoas que estão na APAC são negras eu já dei aulas lá. E é importante tentar montar um narcótico anônimo para tentar fazer alguma coisa. E quando eu falo da questão do jovem é para usar a cultura e um meio de esporte e mesmo pegar a questão do meio ambiente e trabalhar a consciência dele, para fortalecer, eu vejo isso como uma forma de tentar proteger, porque eles estão soltos nestas periferias, estão prontos para serem assassinados na periferia, estão prontos para serem presos e as escolas fechando os muros. Estou falando isso porque quando eu era pequeno, a minha escola abriu o muro para mim, eu estava dentro da escola jogando bola, indo na biblioteca, isso salvou minha vida, e hoje assim nós temos mais estrutura, as escolas, os lugares, os parques, os espaços, se você pegar as universidades que temos hoje, temos o IFTM, temos a UFU, a UEMG, e mesmo a faculdade ali que é particular, se você pegar o meio acadêmico e fazer políticas para resgatar vidas isso pode ser viável. E assim você sai em defesa de você e dos seus e de quem mais precisa. Então isso precisa ser feito. O racismo é terrível e é o que mais massacra é preciso se colocar no lugar do obeso, do que tem a deficiência física, da mulher. Na minha alma eu tenho um pouco de cada coisa e que combate cada tipo de preconceito, principalmente o racismo e o machismo, da homofobia e de todo tipo de preconceito, eu não aceito. Eu percebi vários alunos que não assumiam e que tinham características de ser homossexual, então sempre fiz essa conversa, não direcionando ao aluno, mas a sala, porque eu sabia que a pessoa tinha dificuldades, nós tivemos alunos que se suicidaram na escola, e eles sofriam e eles sofrem, tem medo de abrir porque só eles sabem, e não querem assumir isso, e as vezes é melhor desaparecer com a própria vida do que tentar encarar essa sociedade. Mas essa sociedade hipócrita, ela é cruel, ela mata e é muito violenta (TICOLINO, 2020).

Nesse trecho final da entrevista, Ticolino expõe a perversidade sistêmica em que o indivíduo negro está exposto/a socialmente. A imagem e a estética negra ainda se mostram como sendo algo marginalizado na ótica da sociedade brasileira.

A fala detalhou também algumas particularidades dos presos do sistema prisional da cidade de Ituiutaba, sendo composto, quase que exclusivamente, por homens em situação de conflito com a lei e de origem negra ou parda conforme suas observações atentas em sala de aula.

Dentro de suas possibilidades como professor, tenta combater preconceitos, conservadorismos e atitudes racistas contra alunos/as e também com os grupos relativos aos gays, lésbicas, transgêneros, negros e negras (LGBTQIAP+) em função das suas vivências pessoais com o racismo, da sua militância acerca da negritude, se valendo da atividade docente e do seu encontro com a Geografia e a História, para atuar frente a esse cenário de incertezas e crueldades perceptíveis na sociedade brasileira.

A escola, por representar a diversidade social, também se percebe dentro dessas relações sociais e políticas imbricadas nas convivências entre os diferentes.  O professor Ticolino ao longo de sua vida pessoal e da carreira docente, teve projetos, aulas, debates, peças teatrais para (des) construir essa realidade tão perversa e preconceituosa que assolam seus tão diversos alunos/as.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O artigo propôs uma discussão sobre o ensino de Geografia e o racismo a partir da história de vida do professor negro Ticolino na cidade de Ituiutaba (MG). O racismo no Brasil segundo Gonzalez (1982) é percebido desde o período colonial, através da escravização dos negros, até os dias atuais, com diferentes modus operandi de manifestação.

Nesse sentido, no que tange ao desenvolvimento das sociedades latino-americanas escravistas e mestiças, baseadas através de uma estrutura de mão de obra escravista, remete a questão da mestiçagem e também a figura central do negro nos países da América Latina e até mesmo na imagem do negro no Brasil.

Na atualidade, no Brasil o crime de racismo, regido pela lei 7.716/1989, especifica que o crime de racismo é inafiançável e imprescritível, conforme determina o artigo 5º da Constituição Federal de 1988 e difere de injúria racial nos termos jurídicos e de responsabilização de pessoas, o que na prática, nem sempre acontece em todos os casos, pois existe a dificuldade em comprovar o crime de racismo mediante provas contundentes.

De maneira geral, o racismo encontra bases nas questões de cunho político, social e histórico. Tais evidências podem ser encontradas e percebidas no cotidiano da população negra, através das disparidades sociais, bem como a falta de moradias dignas, ausência de empregos disponíveis a todo (as), do sistema de educação ser bastante ineficaz, a questão de a população ser alvo da criminalidade, das ausências de prioridades aos direitos básicos e fundamentais das populações carentes, sobretudo as de origem negra e parda.

O racismo é construído culturalmente, conforme meandros sociais e políticos, mediante os processos de criminalização que atingem a população negra brasileira, sobretudo aos nascidos e residentes das principais periferias urbanas e que vem contribuindo ainda na atualidade para o extermínio da juventude negra.

Durante a entrevista, com o professor, ficou evidente a partir de suas vivências no município de Ituiutaba (MG) que ao longo de sua vida passou por diferentes episódios relativos ao racismo, o que foi preponderante para escolher sua profissão, para ter uma atuação social, política e artística na cidade, como forma de tentar prevenir problemáticas dessa ordem e influenciando gerações de crianças, jovens e adolescentes.

As disciplinas de História e de Geografia foram importantes para o professor e sua forma crítica de ser e de pensar, representa um diferencial com relação a teoria e a prática de suas aulas nas redes pública e particular de ensino em Ituiutaba e em municípios do Pontal do Triângulo Mineiro.

A entrevista revelou muitas situações de racismo em diferentes ambientes de convivência e a dimensão internalizada pelo professor Ticolino em suas vivências pessoais e as marcas psicológicas ao longo de sua vida, mesmo assim, sua atitude crítica e a dedicação as atividades docentes e artísticas foram maneiras de driblar um pouco as inquietações vivenciadas e influenciar novas gerações.

Assim, a entrevista do professor Ticolino revela o que Sartre (1965) quando ressalta que há uma diferença entre o trabalhador negro/a e o branco/a mediante a forma com que se encontra estabelecido às relações raciais e sociais na sociedade, estruturado a partir do racismo, da falta de políticas de Estado de pós-libertação, e da alienação diante de sua condição no mercado de trabalho, bem como da autoidentificação negra, de modo que, para Sarte (1965) é preciso que o negro/a se perceba a partir de sua negritude através da cultura e da identidade de resistência, bem como da consciência de raça.

Residem nos espaços periféricos alternativas viáveis para a construção ou (des) construção dos ideais capitalistas colocados em sociedade. Para tanto, a tomada de consciência coletiva por parte do povo negro é essencialmente necessária, bem como do combate ao racismo enraizado socialmente. O protagonismo docente de Ticolino foi analisado nesse artigo como uma prática antirracista na cidade de Ituiutaba (MG), que atinge uma vivência significativa para o cultivo de uma educação bem menos preconceituosa e excludente.

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contribuições de autoria

1 – Isabôhr Mizza Veloso dos Santos:

Doutoranda em Geografia

https://orcid.org/0000-0001-6198-7273 e-mail: isabohr.mizza@ufu.br

Contribuição: Escrita - primeira redação

2 – Adriany de Ávila Melo Sampaio:

Doutora em Geografia

https://orcid.org/0000-0003-4428-8395 e-mail: adrianyavila@gmail.com

Contribuição: Escrita - revisão e edição

COMO CITAR ESTE ARTIGO

SANTOS, I. M. V. dos; SAMPAIO, A. A. M. Professor Ticolino: Ensino de Geografia e Racismo em Ituiutaba/MG. Geografia Ensino & Pesquisa, Santa Maria, e21, 2022. Disponível em: 10.5902/2236499467398. Acesso em: dia mês abreviado. ano.