Universidade Federal de Santa Maria
Geografia, Ensino & Pesquisa, Santa Maria, v. 26, e13, 2022
DOI: 10.5902/2236499466101
Submissão: 04/06/2021 • Aprovação: 13/06/2022 • Publicação: 19/07/2022
SUMÁRIO
Produção do Espaço e Dinâmica Regional
Maximillian Ferreira ClarindoI
IUniversidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, PR, Brasil
RESUMO
Palavras-chave: Geografia da Saúde; Epistemologia; Pnsamento decolonial; Saberes populares
ABSTRACT
Keywords: Health Geography; Epistemology; Decolonial thinking; Popular knowledge
O presente trabalho é de natureza propedêutica. Após qualificar quantitativamente o subcampo[1] de pesquisas intituladas de “Geografia da Saúde” em trabalhos acadêmicos realizados na Pós-Graduação do Brasil, constata-se uma tendência de pesquisas vinculadas a uma razão pragmática. O que se denomina de razão pragmática e/ou instrumental se refere ao emprego da linguagem preditiva, a um lócus de saber ambientado no espaço urbano e nos espaços de enunciação da ciência médica.
Os trabalhos desenvolvidos no tratamento das especificidades das moléstias implicam uma relação de causa e efeito entre os ambientes e as enfermidades. As técnicas de pesquisas fundamentais são os mapeamentos com geotecnologias e a localização das doenças (diagnósticos espaciais). Esses singelos elementos que compõem os enunciados do subcampo representam dispositivos de poder, de controle de discurso, de autorização e não autoridade, os quais na essência do fenômeno deixam aparecer os sentidos próprios de saúde contemplados por essa geografia.
Todavia, compete salientar mediante a hodierna crise de autoridade da ciência herdeira do Iluminismo, da crise da razão diante do obscurantismo e do negacionismo, que aqui não se trata de um expediente de negação dos processos curativos modernos, mas de ampliação das lógicas de pensamentos que orbitam em torno da ideia de saúde e sua geografia. Inobstante, alerta-se para uma contradição irrefutável: a de debater/questionar a ciência moderna valendo-se dela própria e de seus métodos.
Dessa forma, este artigo tem por objetivo central discutir abordagens outras em Geografia da Saúde no Brasil. O desvio semântico que opta por falar em “abordagens outras” e não “outras abordagens” ocorre de maneira proposital. Quando se fala em “outras abordagens”, reduz-se o objeto de pesquisa à mera alternativa, vinculando-o a outros conteúdos preexistentes. Neste caso, não se almeja o status de uma alternativa, mas iluminar perspectivas novas e sedimentar algumas cuja exploração ainda se mostra embrionária. Portanto, a questão não se reduz ao conteúdo, mas às suas formas de objetivação – expandindo a ideia de uma matéria pura à concepção de campo de posicionamento e que por vezes se coloca na sala de fora da hegemonia farmacológica, higienista e tecnicizada.
Como objetivos específicos deste artigo pretende-se analisar qual é o estado da arte das produções geográficas relacionadas com saúde e doença, desde teses e dissertações produzidas no Brasil no período em epígrafe e também identificar possibilidades outras envolvendo aspectos conceituais do “bem viver”, desde o espectro da geografia social/humanística/cultural.
Para tanto, foram investigadas as dissertações e teses produzidas entre 1987 e 2018 nos Programas de Pós-Graduação em Geografia. O recorte temporal foi estabelecido a partir das informações que se encontravam disponíveis no site da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). A extração dos dados revelou que foram produzidos 31.691 trabalhos acadêmicos em nível de mestrado e doutorado durante esse período. Tal perspectiva se justifica no trabalho de Suertegaray (2007), pois, nesse texto, a autora destaca que na Geografia praticada no Brasil consiste a pós-graduação o centro da produção científica.
Nesse ínterim, o presente artigo visa expandir o trabalho realizado por Clarindo (2019), no qual o autor analisou os artigos publicados na Revista Hygeia (Revista Brasileira de Geografia Médica e da Saúde), único periódico nacional dedicado exclusivamente à Geografia da Saúde e Geografia Médica ao mote, quando se constatou que os artigos se inclinavam sobremaneira na direção de analisar geograficamente doenças específicas (com destaque para a dengue) por meio de dados teóricos-quantitativos.
Dutra (2011), em sua tese de doutorado, aponta que maior parte da produção envolvendo Geografia da Saúde e Geografia Médica no Brasil está centrada nos trabalhos finais de pós-graduações stricto senso, daí a necessidade de se investigar tais produções. Outrossim, Dutra (2011) classificou a Geografia da Saúde brasileira em quatro fases distintas. De acordo com o autor, a primeira e segunda (séculos XVIII e XIX e do século XIX até meados do século XX, respectivamente) são majoritariamente conduzidas por médicos sanitaristas, os quais pautavam o debate em doenças e o meio em que ocorriam. É a partir da terceira fase (entre 1950 e 1970) que os geógrafos passaram a atuar com maior ênfase nas discussões afetas ao processo saúde-doença, intitulando o subcampo de "Geografia Médica". Ainda, de acordo com o autor, a quarta fase tem característica mais marxista e socializada, ampliando-se as discussões com análises dos serviços de saúde, planejamento, enfim, uma abordagem crítica dos problemas de saúde nacional.
A pesquisa aqui desenvolvida centra-se na análise dessa quarta fase, iniciada após 1980. Em face do volume de produções a serem analisadas ao longo desses 31 anos de pesquisa, adotou-se uma metodologia específica (cujo detalhamento constitui uma seção específica deste artigo). Com o apoio de softwares, buscou-se organizar as categorias discursivas apresentadas nos títulos e palavras-chave dessas pesquisas. Destarte, divide-se este artigo em três seções, são elas: material e método, resultados e discussões e, finalmente, as abordagens outras a partir da análise do conjunto de dados apresentados, na qual se propõe uma mirada para as ausências e emergências tanto sociais quanto científicas que foram identificadas na coleta de dados.
A busca junto ao banco de dados da CAPES revelou 31.691 teses/dissertações produzidas entre os anos de 1987 e 2018 (em diferentes áreas do conhecimento). Em face do volume de informações, procurou-se operacionalizar o trabalho por meio de softwares para automatizar alguns passos da pesquisa, tal qual orientam Silva E. e Silva, J.:
O uso de ferramentas informacionais para a pesquisa apresenta algumas vantagens. Inicialmente, elas permitem a percepção de tendências de sentido em grandes quantidades de documentos; ademais, diminuem a necessidade de intervenção manual do pesquisador, aumentando sua produtividade e sua capacidade de realizar 'mudanças de rumos' quando a dinâmica da pesquisa exigir. (SILVA, E; SILVA, J., 2016, p. 34).
O uso do expediente tecnológico se fortalece no fato de a metodologia adotada no presente estudo se aproximar dos procedimentos adotados na tese de doutorado de Przybysz (2017), quando a autora lançou mão de softwares para classificar categorias discursivas de seu público-alvo, ou seja, trata-se de uma abordagem cientificamente validada. Nesse sentido, as produções acadêmicas foram inicialmente filtradas com auxílio do editor de planilhas LibreOffice Calc[2], quando apenas as produções classificadas dentro da “Geografia” e suas subdivisões constatadas: “Geografia humana, agrária e regional foram mantidas”. Este filtro resultou em 16.143 registros.
No intuito de diminuir o tamanho da amostra e facilitar o manejo dos dados, algumas colunas foram removidas do arquivo original por serem julgadas desnecessárias aos objetivos propostos, tais como: código do programa de pós-graduação, quantidade de páginas do trabalho, e-mail do autor, biblioteca e/ou link em que está disponível etc. Mantiveram-se, portanto, informações afetas ao ano da produção, região, estado, instituição de Ensino Superior, nome do programa de pós-graduação, nome do autor, títulos, palavras-chave, resumo e linha de pesquisa.
Após, os dados foram filtrados com auxílio do software OpenRefine[3]. Nessa etapa, foram escolhidas para análise apenas pesquisas que tivessem, em meio às palavras-chave, título e/ou resumo, os termos: Saúde, Doença, Médica(o) e Medicina. A escolha dos termos de forma individual e não condensados como “Geografia da Saúde” e/ou “Geografia Médica” se dá no intuito de alcançar o maior número de pesquisas possíveis, que mesmo não classificadas especificamente dentro desses dois grupos possam tratar dos temas. Outros termos também foram testados na classificação, tais como “remédio e hospital”. No entanto, as buscas mostraram-se irrelevantes no volume de pesquisas e a maioria delas estava contida nos termos já escolhidos, portanto, a delimitação das 4 palavras sobreditas se mostrou eficiente.
Com a filtragem, identificou-se muitos dados em duplicidade, isto é, um mesmo trabalho foi localizado a partir de diferentes chaves de busca. Não obstante, tal aspecto ressaltou a assertividade dos parâmetros elegidos. Desta forma, os registros em duplicidade foram removidos, restando 749 trabalhos que constituíram a amostra. Nessa filtragem, tomou-se o cuidado de não considerar como parâmetro o nome do autor, já que um mesmo pesquisador poderia ter desenvolvido uma tese e uma dissertação em momentos distintos.
Após a filtragem, os registros foram submetidos a uma extração das stopwords (palavras que param o texto, em tradução não literal). As stopwords são palavras vazias, utilizadas para conexões dentro do texto e que, portanto, não servem de parâmetro para análise, como por exemplo: do, da, para, os, as, então, porém, partir, entre outras. Embora seja possível encontrar na internet várias listas com stopwords mais utilizadas em diferentes idiomas, optou-se pela ampliação de uma dessas listas incluindo-se outros termos que, mesmo não sendo consideradas stopwords, apareceriam com frequência nas pesquisas analisadas, tais como: tese, dissertação, análise, avaliamos, estudo etc. Foram também removidas as expressões utilizadas para a filtragem inicial (saúde, doença, médica(o) e medicina). Com efeito, ao todo foram listadas para remoção 444 stopwords.
Como o volume de palavras a serem removidas é relativamente alto, a utilização da função “localizar e substituir” disponível na maioria dos softwares de edição de texto ou planilha mostrou-se impertinente. Assim, foi utilizado um código construído na linguagem de programação Python/Jython que, uma vez inserido no OpenRefine, busca o arquivo de texto com as stopwords em um diretório do computador e as remove da planilha, conforme ilustra a Figura 1:
Figura 1 – Remoção das stopwords
Fonte: Captura de tela produzida pelos autores (2020)
Após a remoção das palavras de parada, o texto resultante foi submetido a uma revisão ortográfica, com apoio do editor de texto do GoogleDocs, conforme consta na Figura 2.
Figura 2 – Submissão dos resultados à correção ortográfica
Fonte: Captura de tela produzida pelos autores (2020)
A correção ortográfica se mostrou necessária, já que na base de dados havia muitas palavras com erros de digitação, sem acentos, unidas pela ausência de espaços, abreviadas de maneira incorreta etc. O procedimento de correção ortográfica também foi adotado para a planilha de palavras-chave.
Ato contínuo, as palavras que constituíam os títulos das pesquisas já com as stopwords extraídas e corrigidas gramaticalmente foram novamente exportadas para o editor de planilhas para facilitar seu manejo e categorização. Já as palavras-chave tiveram organização diferente, todas foram divididas em colunas independentes, restando uma palavra para cada coluna. Posteriormente, todas as palavras foram “empilhadas” em uma coluna única, para que pudessem ser trabalhadas de forma mais célere no OpenRefine.
Esta planilha foi, então, importada novamente para o OpenRefine visando padronizar as palavras iguais/semelhantes cujo texto apresentava pequena variação semântica. Adotou-se no software o método de colisão de chaves e vizinhos mais próximos (Method Key Collision com Keying Funcion fingerprint e Method nearest neighbor no modo levenshtein com Radius 2.0). Essa etapa teve participação da expertise dos pesquisadores, no sentido de se evitar colisões que pudessem alterar o resultado da pesquisa. Na Figura 3, percebe-se que as palavras “ambiental” e “ambiente” e “imaterial” e “material” deixaram de ser agrupadas, já que possivelmente se referem a pesquisas com entonações epistêmicas diferentes.
FIGURA 3 – Colisão de chaves no OpenRefine
Fonte: Captura de tela produzida pelos autores (2020)
Com isso se teve uma limpeza total das palavras e real percepção de suas respectivas ocorrências nos títulos e palavras-chave. A organização das palavras-chave resultou em 2.474 expressões. Os títulos mantiveram-se no volume de 6.564 palavras.
Optou-se por realizar a mesma filtragem em separado das palavras que compunham os títulos para não perder de vista o sentido delas no contexto das pesquisas. Observou-se, por exemplo, que a presença do estado e/ou cidade do Rio de Janeiro na planilha, quando dividida e com as stopwords removidas, transformava-se em “Rio” e “Janeiro”, alterando significativamente o “peso” de pesquisas que se destinam a estudar a questão dos “rios” com saúde, doença etc. Outrossim, alteravam o sentido dos estudos envolvendo como recorte espacial o estado/cidade do Rio de Janeiro.
Com o propósito de organizar essas palavras, de modo a tornar a percepção de suas concentrações mais fácil e intuitiva, utilizou-se o software Wordle, também gratuito e disponível para download na internet. Trata-se de uma aplicação destinada à elaboração de “nuvens de palavras” (cloud tags, cloud words). As nuvens com as palavras mais recorrentes em pesquisas têm sido adotadas por alguns periódicos visando facilitar a navegação de leitores pelas expressões que se destacam em seus respectivos bancos de dados. Além disso, o Wordle se apresenta como:
Uma ferramenta para análise preliminar, destacando rapidamente as principais diferenças e possíveis pontos de interesse, fornecendo orientações para análises detalhadas nas etapas seguintes; e uma ferramenta de validação para confirmar ainda mais as descobertas e interpretações de achados. As nuvens de palavras fornecem assim um suporte adicional para outras ferramentas analíticas. (LAM; MCNAUGHT, 2010, p. 631, tradução nossa).
O uso da nuvem de palavras propicia identificar sobre quais perspectivas estão concentradas as produções geográficas envolvidas com saúde e doença. Trata-se de uma análise semântica que articula procedimentos quantitativos e qualitativos, conforme se observará adiante. Na nuvem, palavras maiores representam maior incidência e as menores são as que aparecem menos vezes. Mais que uma forma de organizar e sistematizar os dados, a centralidade na técnica de nuvens de palavras está profundamente lastreada na consideração do texto dos autores e seus respectivos trabalhos em torno dos significados e sentido autocentrados[4], isto é, a linguagem elucubrada pelos autores como sentidos lógicos atribuídos às suas produções científicas.
Desde 1987, o volume de produções de teses e dissertações vem aumentando, exceto no ano de 2004, em que se observou um decréscimo em relação ao ano de 2003. No geral, percebe-se um aumento médio de 10,25% todo ano, conforme atesta a Tabela 1, a seguir:
Tabela 1 – Volume de teses e dissertações no Brasil
Continua...
Ano |
Volume total |
Volume na Geografia |
% produções geográficas |
Produções relacionadas com os temas saúde, doença, médica(o) e medicina |
% Produções relacionadas com os temas saúde, doença, médica(o) e medicina em relação às produções geográficas |
1987 |
4497 |
42 |
0,93 |
0 |
0,00 |
1988 |
4682 |
23 |
0,49 |
0 |
0,00 |
1989 |
5604 |
37 |
0,66 |
0 |
0,00 |
1990 |
6739 |
72 |
1,07 |
0 |
0,00 |
1991 |
8052 |
93 |
1,15 |
0 |
0,00 |
1992 |
8965 |
73 |
0,81 |
0 |
0,00 |
1993 |
9419 |
91 |
0,97 |
0 |
0,00 |
1994 |
9974 |
92 |
0,92 |
0 |
0,00 |
1995 |
11934 |
129 |
1,08 |
0 |
0,00 |
1996 |
13495 |
147 |
1,09 |
6 |
4,08 |
1997 |
15645 |
160 |
1,02 |
2 |
1,25 |
1998 |
16745 |
167 |
1,00 |
2 |
1,20 |
1999 |
20244 |
221 |
1,09 |
8 |
3,62 |
2000 |
23724 |
273 |
1,15 |
11 |
4,03 |
2001 |
26033 |
355 |
1,36 |
10 |
2,82 |
2002 |
31337 |
447 |
1,43 |
25 |
5,59 |
2003 |
35742 |
398 |
1,11 |
23 |
5,78 |
Tabela 1 – Volume de teses e dissertações no Brasil
Conclusão
Volume total |
Volume na Geografia |
% produções geográficas |
Produções relacionadas com os temas saúde, doença, médica(o) e medicina |
% Produções relacionadas com os temas saúde, doença, médica(o) e medicina em relação às produções geográficas |
|
2004 |
34917 |
442 |
1,27 |
24 |
5,43 |
2005 |
39695 |
531 |
1,34 |
34 |
6,40 |
2006 |
41657 |
588 |
1,41 |
40 |
6,80 |
2007 |
42819 |
621 |
1,45 |
31 |
4,99 |
2008 |
46750 |
732 |
1,57 |
62 |
8,47 |
2009 |
50167 |
740 |
1,48 |
39 |
5,27 |
2010 |
50903 |
802 |
1,58 |
45 |
5,61 |
2011 |
55554 |
919 |
1,65 |
50 |
5,44 |
2012 |
61053 |
932 |
1,53 |
51 |
5,47 |
2013 |
67534 |
1043 |
1,54 |
50 |
4,79 |
2014 |
70668 |
1044 |
1,48 |
51 |
4,89 |
2015 |
75884 |
1182 |
1,56 |
29 |
2,45 |
2016 |
80278 |
1209 |
1,51 |
59 |
4,88 |
2017 |
83282 |
1286 |
1,54 |
48 |
3,73 |
2018 |
88120 |
1252 |
1,42 |
49 |
3,91 |
Fonte: Adaptado de CAPES (1987-2018), organizado pelos autores (2021)
As produções dentro da Geografia acompanham a mesma tendência ao longo dos anos. Por outro lado, as teses e dissertações conectadas com as expressões que servem de recorte para esta pesquisa (saúde, doença, médica(o) e medicina) oscilam de quantidade no período.
Outro aspecto que chama atenção é a ausência de pesquisas com esses temas entre os anos 1987 e 1994. Essa lacuna e as oscilações constatadas possivelmente indicam que as problemáticas da Geografia da Saúde sejam recentes no campo científico brasileiro ou que sua emergência esteja relacionada com a expansão e interiorização dos programas de pós-graduação pelo país. No entanto, esse fenômeno demanda uma pesquisa apartada, pela necessária análise da conjuntura histórica e da sociologia do conhecimento desses períodos.
O que importa aqui é perceber hodiernamente que há um volume considerável de pesquisas na Geografia que se dedicam ao estudo de saúde, doença, medicina e termos correlatos. A Figura 4 ilustra a distribuição e ascensão dessas pesquisas durante o período considerado.
Figura 4 – Produções envolvendo saúde, doença, médicas(os) e medicina
Fonte: Adaptado de CAPES (1987-2018), organizado pelos autores (2021)
A maioria dessas pesquisas está concentrada nas regiões Sudeste e Sul (47,79% e 20,42%, respectivamente). Esta concentração, que pode ser percebida melhor na Figura 5, está diretamente relacionada com a distribuição dos programas de pós-graduação pelo país. Segundo dados da CAPES, também atualizados até 2018, tais programas estão concentrados nessas duas regiões (305 deles no Sudeste – 36,66% e 179 no Sul – 21,51%).
Figura 5 – Distribuição de teses e dissertações relacionadas com as palavras: saúde, doença, médicas(os) e medicina a partir da Geografia
Fonte: Adaptado de CAPES (2018), organizado pelos autores (2020). Shapefiles: IBGE, 2017
O volume maior de pesquisas está concentrado nos trabalhos de mestrados. Assim, são 567 delas concluídas com dissertações em programas de mestrado regulares e 8 em programas de mestrado profissional (provavelmente em face de que os programas de mestrado são em maior número que os de doutorado). No doutorado, são 174 teses compreendendo tais temáticas. Embora 76,5% dos trabalhos sejam de pesquisadores em formação (mestres), os 23,5% indicam uma maturidade em termos de consolidação do subcampo de investigação na pós-graduação em Geografia no Brasil, ou seja, os professores doutores são autorizados institucionalmente a orientar e (re)produzir a ciência no plano das instituições de Ensino Superior.
A concentração espacial dos programas de pós-graduação no país também apresenta reflexos nos recortes espaciais das pesquisas desenvolvidas. A extração das palavras dos títulos aponta grande concentração no eixo Sul e Sudeste do país, vez que os estados do Paraná, São Paulo e Minas Gerais aparecem destacados na nuvem de palavras, conforme Figura 6.
FIGURA 6 – Nuvem com 150 palavras extraídas a partir dos títulos das pesquisas
Fonte: Adaptado de CAPES (1987-2018), organizado pelos autores (2021)
Outra constatação a partir da Figura 6 é que as pesquisas estão centralizadas no espaço urbano. O recorte é percebido pela aparição das palavras cidade, município e urbano, sobrepondo-se às demais. Inobstante, a expressão “rurais” aparece bem menos destacada (23 aparições contra 100 da expressão urbano).
Além dos conceitos geográficos (território, espaço, região, área, paisagem, redes etc.), cuja aparição avalia-se como inevitável pela tradição clássica da Geografia de relacionar espacialidades com o fenômeno, percebe-se a presença do debate ambiental destacado. Destarte, outros termos correlatos a essa perspectiva aparecem dentre as palavras mais mencionadas, tais como: socioambiental, meio ambiente, poluição, águas, resíduos, rio, hidrográfica, dentre outras.
Também, chama a atenção a relevância de pesquisas direcionadas a doenças específicas. A dengue constitui pouco mais de 6% das pesquisas, se tomada por base a aparição dela com a menção ao mosquito transmissor da doença (Aedes Aegypti). Essa constatação reforça o observado na pesquisa realizada por Clarindo (2019), quando foram sistematizados os dados das publicações do periódico Hygeia, revista dedicada exclusivamente à Geografia da Saúde/Geografia Médica, em que se constata a primazia de estudos da dengue dentre as publicações na revista.
Como os títulos podem revelar situações falseadas, já que eles comumente são estabelecidos para chamar a atenção do leitor ao conteúdo da pesquisa, fez-se o mesmo procedimento com as palavras-chave das dissertações e teses relacionadas. Parte-se do pressuposto que as palavras-chave apresentam resultados mais fidedignos, visto que são essencialmente escolhidas para representar/sintetizar o real conteúdo da investigação.
Figura 7 – Nuvem com 150 palavras-chave mais citadas nas pesquisas
Fonte: Adaptado de CAPES (1978-2018), organizado pelos autores (2021)
A análise desde as palavras-chave aponta para uma tendência dos trabalhos científicos à associação entre política de saúde brasileira e o ordenamento do território. Além da centralidade do conceito de território, percebe-se nítida concentração das pesquisas relacionadas com doenças, tais como a dengue, mas também, a aparição mais contundente de doenças respiratórias. Há ainda a aparição significativa da malária, da leishmaniose tegumentar americana, bem assim, da leptospirose, da AIDS, da pneumonia e da hanseníase.
Novamente, nota-se concentração de investigações no espaço urbano pela menção de palavras-chave como: urbanização, cidade, cidade média, rede urbana etc. Por outro lado, nessa perspectiva de análise, a agricultura familiar, a reforma agrária e os assentamentos rurais se fazem presentes, mesmo que de forma pouco mais singela.
Assim como nos títulos, constata-se presença contumaz de aspectos físico-ambientais, quando as palavras meio ambiente, clima, qualidade da água, águas subterrâneas, impactos (sócio)ambientais, os recursos hídricos e a poluição atmosférica são presenças recorrentes. Conectando-se ao recorte urbano e à questão ambiental, os resíduos sólidos aparecem com destaque. O lixo urbano é um problema de difícil resolução e que transcende ao dever-fazer do poder público, pois relaciona-se com o atual modelo civilizatório, por conseguinte estimula debates acadêmicos.
Os sentidos expressos nas nuvens de palavras, isto é, no conteúdo semântico das pesquisas analisadas de modo esquemático, revelam uma tênue tensão polarizada entre os aspectos propensos à boa saúde e suas correspondentes maléficas (negativo). Ato contínuo, a qualidade da água, dos recursos hídricos, entre outros aspectos da physis geográfica associados à saúde e/ou à doença, limitam indicações de uma associação dicotomizada entre o saudável e o doente, expressando um típico par de opostos da racionalidade funcional[5].
As palavras-chave evidenciam também que há uma quantidade significativa de pesquisas imbuídas em discutir o Sistema Único de Saúde (SUS), a saúde pública, as políticas públicas de saúde e os serviços de saúde. São predileções que não apareciam de maneira incisiva nos títulos, mas que apontam para uma preocupação latente da ciência geográfica que se alinha às querelas sociais – ter acesso à saúde pública. A geografia dos serviços de saúde ou da atenção médica é uma perspectiva emergente (MENDONÇA; ARAÚJO; FOGAÇA, 2015), com efeito, há um volume expressivo dessas pesquisas.
Por mais que o plano de análise do SUS percorra uma abordagem política e crítica em relação ao subcampo da Geografia da Saúde, o aspecto mais amplo evidenciado entre a qualidade ambiental e a boa ou a má saúde expressa, no limite, uma racionalidade em que o ambiente ou natureza propriamente se inscreve em um dado/indicador do “saudável”. Não obstante, na seção seguinte percorre-se justamente o caminho de pensar a natureza dos saberes de cura e saúde, os quais extrapolam uma Geografia da Saúde em seus temas mais recorrentes, as suas técnicas de pesquisas e a natureza técnica funcional que constituem os enunciados do subcampo em relação aos sentidos de seu saber-saúde.
Em que pese o caleidoscópio de investigações percebido através da análise das palavras-chave, percebe-se que a Geografia tem muito a oferecer para a sociedade quando se fala de temas relacionados com saúde, doença, cura, entre outras expectativas da vida humana (incluso os coletivos não humanos, presente nos imaginários sociais) na superfície terrestre. Dentro de uma tomada híbrida e holística desses conceitos, notam-se outros problemas urbanos e rurais que incidem diretamente no bem-estar social, mas que são pouco ou nada explorados.
A democratização baseada numa "insurreição do saber subjugado" é um componente desejável e necessário aos processos mais amplos de democratização porque o paradigma anterior está em crise e, apesar de seu poder de manipulação, é incapaz de proteger tanto a sobrevivência da natureza quanto a sobrevivência humana. (SHIVA, 2003, p. 81).
Nesta seção, parte-se do pressuposto de que o saber geográfico comporta a transdisciplinaridade de maneira singular. “No caso da história da Geografia, o que se observa quando a análise é cuidadosa, é uma atividade pluralista em todas as grandes etapas de sua formação.” (AMORIM FILHO, 2006, p. 17). Nesse sentido, a proposta fundante aqui é reposicionar algumas discussões envolvendo Geografia e Saúde valendo-se dessa sua plasticidade. Para tanto, torna-se imperativo questionar o racionalismo científico, descolonizar o imaginário, e trazer para o debate outros sujeitos e outras formas, conceitos e temas que possam aperfeiçoar a tríade metodológica clássica de produção do conhecimento científico: temporal-espacial-temática.
Por outro lado, os dados de pesquisas vinculados com os enunciados do subcampo da Geografia da Saúde, por ora, remetem aquilo que Santiago Castro‑Gomez (2005) denominou de projeto da governamentalidade. A relação aparente de causa e efeito entre saúde e os denominados ambientais ressaltam que o projeto de modernidade eleva o ser humano como princípio ordenador das coisas, o antropocentrismo, partindo da ordenação e do domínio da natureza, por meio da técnica e da ciência instrumental.
Fala-se, portanto, de uma necessidade premente de se contornar o racionalismo científico, que, acomodado em parâmetros objetivantes, formalistas e coloniais, deixou pouco espaço para outros saberes e práticas que não perfeitamente moldáveis a esses ditames. Trata-se de uma querela latente de experienciar, desde o recorte da Geografia da Saúde, questões para além de doenças específicas ou do viés do espaço geográfico concebido enquanto representação matemática da realidade.
Recentemente, Andreotti Dias e Mendonça (2020), ao investigarem as pesquisas do periódico Hygeia, evidenciaram a ausência de discussões envolvendo as alternatividades em saúde. Para os autores:
Considera-se assim, que essa é uma Geografia da Saúde pública e estatal que, majoritariamente, não tem empoderado e afirmado os saberes tradicionais e autóctones. E questiona-se: se a Geografia da Saúde é de vertente crítica, então porque a maioria dos(as) geógrafos(as) da saúde menosprezam a abordagem da cultura e das alternatividades? (ANDREOTTI DIAS; MENDONÇA, 2020, p. 278).
Ao detectar que, ao longo dos 15 anos de história do periódico, apenas 2% das investigações destinaram-se a discutir as alternatividades de saúde na Geografia, os autores concitam a revisão das entonações de pesquisas nesse subcampo de investigação geográfica e sugerem que essa carência esteja atrelada à colonialidade do saber. Bem, como observado no tópico anterior, as pesquisas de mestrado e doutorado brasileiras também caminham na mesma direção, de modo que assiste razão aos pesquisadores invocar o incremento da perspectiva crítica e, sobretudo, decolonial.
Por outro lado, mesmo que no atual estado de coisas seja extremamente útil/salutar tratar as práticas populares como “alternatividades” e trazê-las para o centro do debate em Geografia da Saúde, é preciso ir além e reconhecer as inúmeras validações sociais/culturais que se abstraem dos saberes e práticas populares/tradicionais envolvendo saúde/doença. Falar em alternatividades vincula saberes que resistem ao longo dos anos à tentativa de domínio da ciência moderna sobre outras formas de pensamento.
São saberes que possuem racionalidades próprias. A medicina popular, por exemplo, sustentada no espaço urbano (recorte espacial predileto das pesquisas de Geografia da Saúde brasileira) pela presença de benzedeiras/benzedores, é um arranjo complexo em face de suas dimensões plurais: religiosa, espiritual, mítica, mágica, social, cultural, psicológica/pedagógica, biofísica etc. Nela estão incorporados seres e não seres, vozes e silêncios, emoções e sensações, enfim: um caleidoscópio significativo de signos que muitas vezes escapam às lógicas cartesianas do pensamento científico – são efetivamente produtos de uma cosmovisão intrínseca a cada atriz/ator social. (CLARINDO, 2019).
Nessa esteira, o diálogo a ser estabelecido deve suplantar a homogeneidade da compreensão espacial, investindo na compreensão das metaestruturas espaciais individuais, que segundo o geógrafo francês Di Méo:
Elas formam uma nova família de indicadores do funcionamento de uma instância ideológica. Levando em conta os escritos e a linguagem, o discurso dos habitantes, os monumentos e as memórias, as demonstrações, as cerimônias e as celebrações, as histórias e as obras de arte, os sinais e emblemas, os símbolos que escondem paisagens como espaço geográfico (etc.), todos esses elementos fornecem os marcos para uma instância ideológica intimamente associada à instância geográfica. (DI MÉO, 2014, p.49-50, tradução nossa).
O reconhecimento da heterogeneidade das formatações sociais (sejam urbanas ou rurais) desnuda diferentes saberes relacionados com saúde/doença que não aparecem ou que aparecem raramente nos debates acadêmicos/científicos. Nesse caminhar, torna-se fundamental incorporar e perceber a voz ativa dos saberes e práticas de povos indígenas, quilombolas, comunidades ribeirinhas e também de saberes autônomos que se propagam e que resistem firmes mesmo no urbano moderno, metamorfoseando/adaptando-se ao longo dos anos. Essa tomada de ângulo ampla se relaciona intimamente com os preceitos do bem viver, na medida em que:
O Bem Viver deve ser considerado parte de uma longa busca de alternativas de vida forjadas no calor das lutas populares, particularmente dos povos e nacionalidades indígenas. São ideias surgidas de grupos tradicionalmente marginalizados, excluídos, explorados e até mesmo dizimados. São propostas invisibilizadas por muito tempo, que agora convidam a romper radicalmente com conceitos assumidos como indiscutíveis. Estas visões pós-desenvolvimentistas superam as correntes heterodoxas, que na realidade miravam a “desenvolvimentos alternativos”, quando é cada vez mais necessário criar “alternativas de desenvolvimento”. É disso que trata o Bem Viver. (ACOSTA, 2016, p. 78).
Assevera-se, no entanto, que não se trata de desprezar os debates construídos até então, mas sim de iluminar perspectivas outras. Parte-se da necessidade de buscar a etiologia dos problemas sociais em sentido lato (assente em análises inter/transdisciplinares). Para se avançar nesta proposta de remodelagem epistêmica do subcampo do saber geográfico focado em discutir saúde e doença, por exemplo, é preciso agenciar diferentes saberes e incluir os “não especialistas” nos debates. Alier (2018) denomina esse paradigma como “ciência pós-normal”. Ainda, segundo o autor:
O movimento pela justiça ambiental tem fornecido exemplos de ciência participativa, como os que respondem pela denominação de “epidemiologia popular”. No Terceiro Mundo, a combinação da ciência formal com a informal, a concepção de “ciência com pessoas”, antes que uma “ciência sem pessoas”, caracteriza a defesa da agroecologia tradicional de grupos camponeses e indígenas, com os quais há muito que ser aprendido através de um autêntico diálogo de saberes. (p. 36).
[...]
Na ciência pós-normal, diferentemente da ciência normal, os não especialistas são incluídos, manifestadamente, pela razão de que os especialistas oficiais ou qualificados são incapazes de oferecer respostas convincentes aos problemas que enfrentam. (ALIER, 2018, p. 67, grifo nosso).
Outrossim, a inserção dos debates de Geografia da Saúde no paradigma da ciência pós-normal recobra inevitavelmente a revisão de suas práticas espaciais. É preciso reconhecer que “[...] na América Latina o território é lido frequentemente no diálogo com os movimentos sociais, suas identidades e seu uso como instrumento de luta e de transformação social.” (HAESBAERT, 2020, p. 76).
Nesses termos, o território, enquanto predileção das discussões retratadas no tópico anterior, também deve ser passado em revista. A concepção do corpo, como primeiro território de lutas, como descreve Haesbaert (2020), vai ao encontro da necessidade de se mergulhar nas especificidades dos muitos mundos que coexistem dentro daquele que rogou para si o direito de ser único (ESCOBAR, 2016). Haesbaert, ao discutir a ênfase dada ao território por grupos latino-americanos, pondera que:
Trata-se de grupos cuja existência se deve a essa relação indissociável de seus corpos/afetos com os espaços de vivência cotidiana, rompendo, relacionalmente, com a visão dicotômica entre materialidade e espiritualidade, sensibilidade e consciência, natureza e sociedade e, obviamente, corpo e espírito, pois a concepção de corpo/corporeidade embutida nesses “territórios-corpo” é profundamente moldada, também, por um conteúdo simbólico ou, se preferirmos, espiritual. (HAESBAERT, 2020, p. 87).
Destarte, avalia-se que para se avançar no reconhecimento dessas ausências e emergências e consolidar o debate desde as epistemologias do sul (SOUSA SANTOS, 2011), com o reconhecimento da voz ativa de grupos historicamente marginalizados e silenciados pelo padrão ocidental, eurocêntrico, branco, androcêntrico e heteronormativo, é imperativo também começar a envolver a Geografia da Saúde em diferentes perspectivas geográficas.
Talvez a Geografia Queer seja uma primeira aposta para essa abertura de diálogo, haja vista sua madura capacidade de questionar os parâmetros patriarcais que revestem a sociedade ocidental e, em grande medida, a produção do conhecimento científico. Inobstante, “Se, no contexto da produção colonial, o sujeito subalterno não tem história e não pode falar, o sujeito subalterno feminino está ainda mais profundamente na obscuridade.” (SPIVAK, 2010, p. 67). Considera-se ainda que:
As mulheres de setores populares, as mulheres indígenas, mestiças, negras e camponesas foram o setor da população que não apenas levou sobre seu corpo a maior carga de trabalho doméstico e produtivo (de não reconhecimento e instabilidade, produto do empobrecimento brutal e dos conflitos pela ausência do Estado em áreas estratégicas, de investimento e garantia de direitos sociais e econômicos), como também, além disso, a partir da dinâmica imperante de mercantilização neoliberal, viu suas demandas se fragmentarem, e com elas suas identidades. (BARRAGÁN et al., 2016, p.113‑114).
No contexto de saberes e práticas populares de saúde e doença, as mulheres sempre tiveram papel importante, mormente no espaço urbano quando as benzedeiras (ou rezeiras/curandeiras) oferecem suas casas como pontos de socorro comunitário. Através delas, há uma proliferação espontânea de alternativas de melhoria das condições de vida, portanto, diretamente ligadas à Geografia da Saúde e que precisam ser mitigadas. São, sobretudo, outras racionalidades econômicas nas quais a dádiva é protagonista. Nelas, a lógica de expansão econômica é refutada e substituída pela reciprocidade/solidariedade. Entretanto, mesmo diante de suas relevâncias (que transcendem o aspecto cultural), essas mulheres não aparecem nos debates acadêmicos/científicos com a frequência que deveriam.
De igual modo, outros grupos subalternizados pela hierarquização social imposta pelo capital e pelas relações de poder resultantes do projeto neoimperialista e neocolonial encontram-se em um verdadeiro ostracismo perante a ciência geográfica. Na mesma linha, aspectos importantes para a vida social como preceitos religiosos/espirituais, emoções e sensações que permeiam o imaginário geográfico, desde as práticas ordinárias de cidadãos comuns ou de comunidades tradicionais, também se encontram invisibilizados.
Trata-se de uma lacuna injustificável, em face da tradição crítica da ciência geográfica e de sua capacidade de agenciamento inter/transdisciplinar. Notoriamente, há um lastro do colonialismo científico que converge as energias do saber geográfico (que trata de saúde e doença) para as produções teorético-quantitativas. Nesse sentido, é urgente questionar o colonialismo do saber, para então se indagar o desenvolvimento como única direção possível, pautando debates socioambientais na finitude da natureza, trazendo questões afetas ao decrescimento econômico para a agenda geográfica, apostando em ideias julgadas subalternas de povos que sobrevivem ao intento de homogeneização do mundo. Para tanto, deve-se pautar o olhar/imaginário geográfico em outras escalas de análise da vida social (urbana ou rural), sobretudo em microperspectiva.
Buscou-se com este artigo discutir abordagens outras em Geografia da Saúde no Brasil, bem assim, analisar o estado da arte das produções geográficas relacionadas com saúde e doença desde teses e dissertações produzidas no Brasil e identificar possibilidades outras envolvendo aspectos conceituais do “bem viver”, desde o espectro da geografia social/humanística e cultural.
Para tanto, com auxílio de softwares específicos destinados ao manejo de grande volume de informações, foram analisadas 31.691 produções entre 1987 e 2018, conforme disponibilidade das planilhas ofertadas gratuitamente no site da CAPES. Após implementação dos recortes, para se abarcar apenas as produções correlatas à Geografia da Saúde, sobraram 16.143 registros.
Todos esses registros passaram por um processo de filtragem e remoção das stopwords (palavras de parada do texto). Em seguida, as palavras-chave e as palavras que compunham os títulos das pesquisas foram tabulados, contabilizados e organizados em nuvens de palavras, visando tornar mais intuitiva/visual a compreensão dos resultados.
Em síntese, pode-se observar que há um aumento gradual de teses e dissertações na Geografia, porém, as que envolvem as retratadas pela Geografia da Saúde oscilam em volume ao longo dos anos. A distribuição das pesquisas no território nacional também ocorre de maneira desigual, estando elas concentradas majoritariamente na região Sudeste e Sul, sucessivamente. Provavelmente essa concentração esteja relacionada com a oferta de programas de pós-graduação e/ou de disciplinas específicas na região, fato que sugere pesquisas ulteriores.
No tocante às temáticas de investigação, tanto a nuvem de palavras dos títulos quanto das palavras-chave revelaram que as regiões Sul e Sudeste também recebem enfoques maiores. Ainda, as pesquisas inclinam-se sobremaneira em discussões centradas no espaço urbano, em doenças específicas, na perspectiva ambiental e que adotam o território como conceito espacial predileto. Percebeu-se também um recente direcionamento para a análise dos serviços de saúde, destacadamente organizadas ao redor do Sistema Único de Saúde (SUS).
Com efeito, detectou-se uma vocação teorético-quantitativa nas abordagens em Geografia da Saúde. Ainda que o período analisado coincida com a quarta fase da pesquisa realizada por Dutra (2011), percebe-se pouca aparição da vocação crítica da Geografia (busca da essência) nessas pesquisas, tal qual postulava o autor. Assim, pouco ou quase nada se discute de forma relacional entre a etiologia dos problemas sociais e a riqueza cultural que envolve o manejo de saúde e doença no país. A sabedoria dos povos e comunidades tradicionais no manejo da natureza para curar/proteger, o saber-fazer de benzedeiras, rezadeiras e curandeiras, outras lógicas de reciprocidade não econômicas, ficam relativamente apartadas do debate. Outrossim, é válido pôr em questão a relação entre os atores da saúde (incluso as geógrafas e os geógrafos que já pesquisaram no campo) e a Geografia do Conhecimento, isto é, o fato de haver uma concentração espacial dos programas de pós-graduação (Sul e Sudeste) reflete nos regimes de verdade em relação à saúde, ao mesmo tempo que declara os atores dos espaços enunciados como autorizados racionalmente a constituir o conceito de saúde pública, entre outros temas. Em outros termos, a ausência de uma pluralidade de perspectivas em relação às racionalidades de saúde evidencia uma hierarquização espacial (escalar) fundada no expediente normativo do Estado.
Diante dessa carência, a proposta propedêutica (não fechada) deste artigo concentrou-se em trazer para a agenda geográfica (em saúde) outros objetos, recortes temporais e espaciais. Parte-se da premissa de que esse avanço somente pode ocorrer pelo viés de uma perspectiva inter/transdisciplinar, que coloque em nível de igualdade outros saberes, sobretudo os populares/tradicionais subjugados pelo logocentrismo – paradigma da ciência pós-normal.
A partir desse agenciamento, deve haver o resgate da criticidade, quando o desenvolvimento econômico, como objeto de desejo inexorável, passa ser uma questão. O unidirecionamento para o crescimento econômico fragiliza a natureza – e na maioria dos casos a esgota – quando obviamente impacta diretamente no bem-estar social e, consequentemente, possui funestos resultados na saúde/doença da sociedade.
É um processo a ser conquistado. Grande parte dos países do sul global possui o desenvolvimento enraizado nos imaginários sociais e políticos. A exemplo do Brasil, cuja toponímia remete a uma árvore, mas cujo o batismo etimológico é presidido pela razão do produto, da matéria-prima pau-brasil. As palavras “ordem e progresso”, inscritos na bandeira nacional brasileira, constituem-se em dois símbolos dos atores hegemônicos, das opções civilizatórias moderna e desenvolvimentista (positivista).
Nesse sentido, a proposta é valer-se do bem viver, de modo a aprender alternativas ao desenvolvimento com os povos e comunidades (tradicionais ou não, rurais ou não) que se postam resilientes diante dos mais tenebrosos efeitos da modernidade. Para tanto, fala-se da necessidade de, preliminarmente, se reconhecer o plurinacionalismo e mergulhar nas metaestruturas espaciais individuais dos sujeitos.
Desde essa refocagem estrutural do saber geográfico – que alcance as ausências e emergências do debate – o imaginário geográfico se aguça na direção da compreensão dos corpos-territórios, tendo o corpo (sobretudo o feminino) como o primeiro campo de lutas na sociedade. Nesse viés, é possível que a aproximação das análises fenomenológicas com o subcampo possa contribuir para se entender as múltiplas instâncias do social, isto é, o prospecto cultural, espiritual, religioso, e a mixórdia de signos que se relacionam com a vida em sociedade.
Assim, outras perspectivas que se relacionam direta ou indiretamente com a Geografia da Saúde podem ser pautados, como: a economia solidária, soberania alimentar, da defesa da terra e dos modos de vida, a violência urbana contra comunidades periféricas e grupos minoritários, como contra a comunidade LGBTQIA+, a precarização das condições de trabalho, os aspectos psicológicos que permeiam o cidadão urbano, entre outros que necessariamente expandem os conceitos “ontológicos” da saúde.
Não menos importante, concomitantemente a essas demandas, as abordagens antropocêntricas devem ser revisadas. Olhar a natureza como “sujeito de direitos” é imprescindível para que seja possível perpetuar modos de vida dela dependentes, o que não exclui as sociedades urbanas modernas. Por outro lado, no atual estado de coisas, esse é um passo um tanto quanto audacioso, seja para os limites da ciência como para a pouca vontade política, amplamente organizada pelos/para os interesses do capital.
Não tardará até que a Geografia da Saúde se debruce sobre a pandemia da COVID-19, no entanto, espera-se que as discussões contemplem reflexões afetas aos insustentáveis hábitos humanos. Ou então, minimamente noticiem a tragédia do choque da doença com as populações tradicionais brasileiras e com as comunidades subalternizadas. A pandemia produziu um efeito devastador nas periferias do país, portanto, de plano se observa a necessidade da abordagem crítica de seus efeitos.
Nesses termos, a Geografia tem muito mais a oferecer do que emprestar expressões geomorfológicas para a estabilidade do gráfico representativo da curva do COVID-19 (o platô, como a mídia faz gosto em pronunciar). De um modo geral, a Geografia possui um vasto campo inexplorado de discussões envolvendo saúde e doença que podem se somar à importante bagagem conquistada até o tempo presente. Para além de se esgotar o tema, pensa-se que o trabalho inter/transdisciplinar é fundamental tanto quanto é essencial saber que há mais do que aprender que a ensinar no paradigma da ciência pós-normal.
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1 – Maximillian Ferreira Clarindo (Autor Correspondente)
Doutor em Geografia
https://orcid.org/0000-0003-1615-4808 • maxclarindo@hotmail.com
Contribuição: Escrita - Primeira redação
2 – Almir Nabozny
Doutor em Geografia
https://orcid.org/0000-0001-8723-9134 • almirnabozny@yahoo.com.br
Contribuição: Escrita - Primeira redação
CLARINDO, M. F.; NABOZNY, A. Da razão funcional entre ambiente e saúde às epistemologias outras em Geografia da Saúde a partir da resistência dos saberes populares. Geografia Ensino & Pesquisa, Santa Maria, v. 26, e13, 2022. Disponível em: 10.5902/2236499466101. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
[1] A noção de campo é empregada a partir do trabalho de Bourdieu (2004) sobre os usos sociais da ciência. No caso em tela o subcampo constitui um intraespaço entre os textos (analisados) e os contextos (racionalidades desenvolvidas nas pós-graduações em Geografia no Brasil), isto é, um microcosmo estabelecido por regras e ações relativamente autônomas.
[2] O LibreOffice Calc é um editor de planilhas disponibilizado gratuitamente para download na internet.
[3] OpenRefine é um software que auxilia na mineração de dados. É um produto do Google de acesso gratuito com mecanismos para manejo de grandes volumes de dados.
[4] Perspectiva similar foi adotada com êxito no trabalho da geógrafa Nabozny (2018) para analisar imagens e fotografias a partir da teoria dos gêneros textuais. Portanto, a técnica é proveniente dos estudos linguísticos e se revela apropriada para o estudo em tela.
[5] Para aprofundar o enfoque naturalista e funcionalista na Geografia recomenda-se a leitura do texto de Paul Claval (2014).