Universidade Federal de Santa Maria

Geografia, Ensino e Pesquisa., Santa Maria, v. 25, e12, 2021

DOI: 105902/1414650944027

ISSN 2595-833X

Recebido: 01/05/2020 • Aceito: 30/04/2021 • Publicado: 06/07/2021

O método (auto)biográfico na formação inicial de professores de geografia

The (self)biographical method in the initial training of geography teachers

Victória Sabbado MenezesI

Roselane Zordan CostellaII

I Doutora em Geografia - UFRGS, Professora do Colegiado de Geografia da UNESPAR, Brasil

https://orcid.org/0000-0003-2750-2820 – victoriasabbado@gmail.com

II Doutora em Geografia – UFRGS, Professora da Faculdade de Educação e do Programa de Pós-Graduação em Geografia da UFRGS, Porto Alegre, RS, Brasil

https://orcid.org/0000-0002-1297-1352 – professoracostella@gmail.com

RESUMO

O presente artigo está vinculado a uma tese de doutorado em construção e tem o intuito de propor a discussão concernente ao método (auto)biográfico enquanto uma possibilidade para ressignificar a formação inicial de professores de Geografia. Para tanto, pauta-se em uma revisão bibliográfica referente aos seguintes eixos basilares: formação docente em Geografia e pesquisa (auto)biográfica. O método (auto)biográfico representa um caminho profícuo para pensar a formação docente em sua complexidade, entendendo-a como um processo longo, permanente e contínuo. Nesse sentido, a formação do/da professor/a de Geografia é concebida não como o resultado exclusivo da formação acadêmica e da carreira profissional do sujeito, mas está associada a trajetória de vida pessoal, escolar, acadêmica e profissional, visto que é constituída por uma diversidade de saberes provenientes de diferentes fontes. Assim, as narrativas (auto)biográficas, compreendidas como um dispositivo formativo e vinculadas a este método, possibilitam repensar a constituição da professoralidade em Geografia, uma vez que revelam os percursos formativos dos sujeitos. Portanto, o método (auto)biográfico, operacionalizado por meio das narrativas (auto)biográficas, pode colaborar com um outro olhar para o processo de formação docente e, quiçá, provocar reflexos positivos e questionadores aos princípios que balizam as licenciaturas em Geografia na contemporaneidade.

Palavras-chave: Formação docente; Geografia; método (auto)biográfico

ABSTRACT

The present work is linked to a doctoral thesis under construction and aims at proposing the discussion concerning the (self)biographical method as a possibility to assign a new meaning to teacher initial training in Geography. Thus, it is based on a bibliographical review referring to the following basic axes: teacher training in Geography and (self)biographical research. The (self)biographical method represents a useful way to think about teacher formation in its complexity, understanding it as a long, permanent and continuous process. In this sense, the formation of the Geography teacher is conceived not only as the exclusive result of the academic formation and the professional career of the subject, but it is also associated with the trajectory of personal, academic and professional life, since it is constituted by the diversity of knowledge from different sources. Thus, the (self)biographical narratives, which are understood as a formative device and linked to the present method, make it possible to rethink the constitution of being a Geography teacher, once they reveal the formative paths of the subjects. Therefore, the (self)biographical method, prepared through the (self)biographical narratives, may collaborate with a different look on the teacher training process and, perhaps, trigger some positive and questioning reflection regarding the principles that mark the degrees in Geography in the contemporary world.

Keywords: Teacher training; Geography; (self)biographical method

1 INTRODUÇÃO

O presente trabalho está vinculado a uma tese de doutorado em construção pertencente ao Programa de Pós-Graduação em Geografia da Universidade [omitida para avaliação] na linha de pesquisa em Ensino de Geografia. Tem-se o intento de propor uma discussão concernente ao método (auto)biográfico enquanto uma possibilidade para ressignificar a formação inicial de professores de Geografia. Desse modo, a pesquisa abrange o eixo do Ensino de Geografia e da Formação de professores, concebendo-os de forma indissociável. Parte-se da premissa de que repensar a formação de professores no que diz respeito à sua estrutura e princípios fundantes é condição necessária para promover um ensino de Geografia no espaço escolar com verdadeiro sentido existencial, social e político para todos seus sujeitos (professores e alunos).

A preocupação central do trabalho reside na formação inicial de professores, isto é, nas licenciaturas em Geografia. Isso se justifica por compreender, por meio de leituras e experiências docentes no ensino básico e no ensino superior, que a formação construída no âmbito da licenciatura ainda apresenta algumas dificuldades e fragilidades que provocam reflexos nas práticas de ensino dos professores na escola básica. Diante desta realidade e ciente de sua complexidade e das diferentes escalas envolvidas na constituição do panorama da educação escolar e universitária, pretende-se contribuir na micro-escala da formação inicial ao propor um método a ser adotado nas pesquisas no campo da formação de professores de Geografia a fim de que este também esteja presente como prática no interior da licenciatura.

A questão-problema deste artigo consiste em: como o método (auto)biográfico pode contribuir na formação de professores de Geografia? A partir disso, serão tecidas reflexões no sentido de analisar carências da licenciatura em Geografia, sobretudo em termos dos fundamentos teórico-metodológicos que balizam a formação inicial, a fim de propor a perspectiva (auto)biográfica como um caminho possível para repensar a formação docente em Geografia. Visa-se salientar as possibilidades que o referido método pode oferecer para contribuir com uma outra maneira de conceber a formação do professor e, por consequência, desencadear outras práticas no âmbito da licenciatura e das instituições escolares. É digno de nota que não se pretende conceber tal método como a solução de todos os problemas inerentes à formação docente. Contudo, considera-se que a abordagem (auto)biográfica, já apropriada pelo campo da Educação desde a segunda metade do século XX, é profícua de ser introduzida e disseminada no seio dos estudos em ensino e formação de professores de Geografia.

A relevância do método (auto)biográfico, a partir do qual se busca referência na área da pesquisa (auto)biográfica em Educação, se explica pelo olhar que apresenta para a formação docente. Esta é compreendida através da consideração da trajetória de vida dos sujeitos, de modo que é constituída ao longo de toda a existência dos mesmos. Sendo assim, para além dos saberes científicos, formalizados e da experiência profissional, interessa também a história de vida e os percursos formativos nos mais diferentes espaços que se circula. Constrói-se uma noção ampla e complexa de formação docente na qual o método (auto)biográfico colabora ao manifestar as narrativas de si, possibilitando a análise, interpretação e reflexão daquele/a que narra, bem como daqueles que ouvem/leem estas narrativas.

O método (auto)biográfico se apresenta como uma alternativa que se contrapõe ao paradigma científico predominante, o qual pauta-se na racionalidade técnica. A ciência moderna assenta-se na fragmentação e na especialização do conhecimento, nas dicotomias sociedade-natureza, teoria-prática, indivíduo-sociedade, particular-geral, entre outras. O método (auto)biográfico, por sua vez, visa restaurar estas compartimentações no sentido de articulá-las. Logo, trata-se de uma outra racionalidade que se funda em outra epistemologia, as quais se distinguem das hegemônicas. A abordagem (auto)biográfica considera a subjetividade, a ligação entre o universal-singular, entre história de vida e história social e entre a dimensão racional e emocional. Esta perspectiva é enriquecedora no âmbito dos estudos acerca da formação docente, tendo em vista que compreende a indissociabilidade entre o eu pessoal e o eu profissional. Portanto, urge inserir o método (auto)biográfico no nosso campo de estudo, tendo em vista sua potencialidade em pensar a construção da professoralidade em Geografia.

2 METODOLOGIA

Para o desenvolvimento deste artigo, algumas escolhas metodológicas foram definidas. Por se tratar de um recorte de uma tese de doutorado em construção, a produção científico-acadêmica aqui apresentada pauta-se em uma revisão bibliográfica. Logo, realizou-se um levantamento bibliográfico a fim de proporcionar um suporte teórico à pesquisa. A busca de referenciais para fundamentar as considerações aqui explicitadas está direcionada às duas grandes temáticas: formação docente em Geografia e pesquisa (auto)biográfica. Tem-se o intuito de traçar paralelos e estabelecer diálogos entre os teóricos destas temáticas com a finalidade de apresentar uma contribuição epistêmica-metodológica ao campo de estudo em questão.

Apresentar o método (auto)biográfico e suas possibilidades para a formação inicial de professores de Geografia significa introduzir algo novo na linha de pesquisa em Ensino de Geografia e Formação docente. Sua primeira contribuição já está no fato de inovar as lentes teórico-metodológicas para os estudos da área. Cabe esclarecer que tal interesse partiu da professora pesquisadora de Geografia referência nesses estudos, Jussara Portugal (2013, 2015). A partir das contribuições teóricas desta, de outros autores do Ensino de Geografia e Formação de Professores (COSTELLA, 2011, 2014; KAERCHER, 2004, 2014) e de autoras alinhadas com a pesquisa (auto)biográfica em Educação (ABRAHÃO, 2016; DELORY-MOMBERGER, 2014) serão construídas as reflexões que se pretende provocar ao longo deste texto.

Nesse sentido, reitera-se que a proposição do método (auto)biográfico aqui sugerida é feita para ser problematizada, avaliada e criticada e não entendida como uma tábua de salvação para todo e qualquer problema da formação inicial docente. Por conseguinte, visa-se pensar como este método pode se tornar um caminho profícuo para repensar a formação de professores no contexto hodierno e pôr em questão concepções de ensino, de educação, de Geografia e de ciência hegemônicas com vistas às transformações dos modos de fazer docente.

3 POTENCIALIDADES DO MÉTODO (AUTO)BIOGRÁFICO NA LICENCIATURA EM GEOGRAFIA

É consenso que o ensino de Geografia predominante nas escolas precisa ser revisto. Isso porque este componente curricular ainda é marcado por um viés conteudista, reprodutivista e pouco reflexivo. Ensinar Geografia hoje, embora haja exceções, tem se caracterizado pela exigência da memorização, descrição e classificação dos fenômenos do espaço. Os elementos são ensinados e aprendidos de forma desarticulada, sem o estabelecimento de relações. Esta fragmentação impede que se pense o todo de forma conjunta e interligada. Assim, a Geografia torna-se mais uma disciplina escolar na qual basta a decoreba. Por consequência, cria-se uma desmotivação e desinteresse por parte dos alunos em relação à disciplina, o que afeta os professores que tendem a também sentirem-se pouco animados no seu exercício profissional.

Este quadro traçado está diretamente associado à história da Geografia escolar, visto que as características apontadas remontam os princípios da vertente da Geografia Tradicional. Tal corrente representa a gênese tanto da disciplina escolar quanto da ciência geográfica. Entretanto, o decorrer do tempo histórico foi marcado por avanços desencadeados em âmbito acadêmico a partir do desenvolvimento e aprofundamento de discussões teóricas, as quais acompanharam as transformações sociopolíticas, porém pouco se refletiram no espaço escolar. O movimento da Geografia Crítica, por exemplo, teve seu auge na década de 70 do século XX e caminhou paralelamente ao movimento de Pedagogia Crítica. Contudo, teve dificuldades de ultrapassar os muros da universidade e se concretizar nas instituições escolares por meio de mudanças nas práticas efetivas dos professores do ensino básico, como se percebe até no contexto atual. (KAERCHER, 2004; PONTUSCHKA; PAGANELLI; CACETE, 2009).

Urge questionar: e o potencial reflexivo da Geografia? E suas contribuições para o desenvolvimento da capacidade crítica dos sujeitos? E seu poder de provocar questionamentos e problematizar a realidade sócio-espacial vigente? E sua capacidade de colaborar para a construção da autonomia e cidadania dos alunos? É digno de nota que estes são alguns pontos importantes aos quais esta disciplina escolar pode direcionar suas intencionalidades. Contudo, torna-se necessária outra concepção epistemológica de ensino e de Geografia. Concepções estas que partem do princípio de que:

Ensinar geografia pela geografia, sem entender que tipo de aluno está aprendendo, é como se o instruíssemos para uma tarefa que necessita somente a repetição. Ensinar é desequilibrar constantemente o pensamento dos alunos, é levá-los a agir sobre o conhecimento, fazendo com estas ações possam emergir de conhecimentos já existentes no pensamento de quem aprende. (COSTELLA, 2014, p. 198)

No entanto, deve-se salientar que estas questões não são de fácil concretização diante da complexidade que apresentam. É premente uma reflexão e revisão das concepções epistemológicas e pedagógicas dos sujeitos professores, pois estas são o sustentáculo, assim como orientam suas práticas de ensino. Ao mesmo tempo, não se pretende recair no discurso de culpabilização do professor, visto que há outras escalas e fatores que influenciam na elaboração deste quadro referente ao ensino de Geografia no espaço escolar. A formação inicial e os mais variados percursos formativos dos sujeitos atuam na construção da sua identidade docente e interferem na sua maneira de ser, estar, fazer professor. Além disso, não se pode desconsiderar todo um contexto sociopolítico que vigora o desmantelamento da educação pública e a desvalorização da profissão docente nos mais diversos sentidos: financeiro, social, moral.

No que diz respeito à formação inicial de professores, deve-se apontar que esta é marcada pela compartimentação do conhecimento. Ou seja, o curso é composto pelas disciplinas específicas da Geografia e por disciplinas pedagógicas. A Geografia é trabalhada de forma separada em suas subáreas e também distante da discussão pedagógica. Dessa maneira, cria-se a dificuldade de tecer as relações entre as especificidades da ciência geográfica e, como agravamento, a dimensão do ensino não é pensada no interior destas disciplinas. Logo, emerge o desafio de “como transformar as especificações dos assuntos evidenciados na universidade em aulas com significado contido nas interpretações espaciais, no conjunto das análises e num cotidiano de experiências” (COSTELLA, 2011, p. 178).

Aliado a isso, a licenciatura é caracterizada por conceber teoria e prática de forma desvinculada. Os estágios obrigatórios do curso são entendidos como o momento da prática, isto é, como a aplicação da teoria, conforme esta perspectiva. Os primeiros anos do curso, de modo geral, são essencialmente teóricos através das disciplinas específicas e ao final da graduação realizam-se os estágios (PIMENTA; ANASTASIOU, 2002), apesar da existência de alguns poucos currículos que efetivam a prática nos primeiros semestres do curso. Contudo, de forma predominante, os acadêmicos, futuros professores, sentem-se angustiados e inseguros, pois por mais que tenham aprendido muito sobre Geografia Urbana, por exemplo, não sabem como ensiná-la aos alunos do ensino básico. Diante dessa dificuldade, como os licenciandos agem? Frente a situações problemáticas como esta que não sabem como lidar, a tendência é que busquem referenciais de vivências semelhantes. Estas vivências referem-se às memórias de escola que possuem. Desse modo, buscam as formas de atuação de seus professores de escola e reproduzem os vícios deste modelo de ensino que conviveram na condição de alunos. Modelo este amparado, majoritariamente, num ensino tradicional, empirista e associado a uma pedagogia diretiva.

Levanta-se a questão de que, conforme assevera Kaercher (2014, p. 35), “aprendemos a ser professores desde que nos tornamos alunos, desde muito crianças, portanto”. As experiências de ensino que se tem na escola, ainda que no papel de aluno, criam representações acerca da profissão docente, do ensino, da Geografia. A vivência ao longo de muitos anos no futuro lócus de trabalho faz com que modelos de professor sejam construídos. Elaboram-se concepções e imagens de como se ensina, como se aprende, como se dá a relação professor-aluno, como se avalia, entre outras funções da docência. Estas representações construídas a partir das experiências oriundas da vida escolar permanecem vivas nas mentes dos sujeitos e estão presentes inclusive quando ingressam na licenciatura em Geografia.

Eis que surge um problema: o curso de licenciatura é constituído, tanto em sua estrutura quanto em seus pressupostos, de maneira que se entende como o primeiro momento de formação docente. Destarte, as vivências de escola anteriores são desconsideradas, uma vez que as representações construídas não são científicas. Logo, não possuem validade no espaço acadêmico. A licenciatura é pensada para atuar no processo de construção da formação docente. As discussões teóricas sobre a docência em Geografia e sobre a Educação são introduzidas. Entretanto, as crenças e representações que carregam as marcas das experiências anteriores não são desconstruídas e postas em questão. Este é um ponto que merece atenção, visto que as representações sobre docência provenientes das memórias de escola exercem influência sobre as concepções dos sujeitos e sobre seu fazer pedagógico.

Sendo assim, salienta-se que a formação docente já se inicia desde a fase escolar e abarca toda a trajetória de vida dos sujeitos. Não se limita apenas à formação universitária e à carreira profissional. Por conseguinte, não se pode desvincular a formação do professor de sua história de vida. Tardif (2014, p. 16) argumenta que:

Nessa perspectiva, o saber dos professores parece estar assentado em transações constantes entre o que eles são (incluindo as emoções, a cognição, as expectativas, a história pessoal deles, etc) e o que fazem. O ser e o agir, ou melhor, o que Eu sou e o que Eu faço ao ensinar, devem ser vistos aqui não como dois polos separados, mas como resultados dinâmicos das próprias transações inseridas no processo de trabalho escolar.

Nesta linha de pensamento que considera a história de vida e os itinerários formativos dos sujeitos para compreender o processo de construção da professoralidade, o método (auto)biográfico emerge como uma alternativa profícua para pensar a formação docente. Este se insere no campo da pesquisa (auto)biográfica e pertence às Ciências Sociais e Humanas. Teve sua gênese na segunda metade do século XX com a intenção de escutar e registrar as histórias de vida silenciadas diante do contexto social, político e econômico mundial da época. Logo, possui desde sua origem uma veia militante, além de confrontar o paradigma científico hegemônico. Nas últimas décadas tem sido introduzido de forma interessante no âmbito das pesquisas em Educação e, de modo específico, na formação de professores.

Destoa do paradigma predominante da ciência moderna que considera o que é científico e racional como a única forma de saber válido. O método (auto)biográfico questiona estes princípios hegemônicos e tem como metodologia as histórias de vida e como fonte as narrativas (auto)biográficas (ABRAHÃO; DAL RI, 2016). Ao reconhecer e problematizar os saberes provenientes da história de vida, o método (auto)biográfico considera também a dimensão não científica, como as memórias dos sujeitos, as quais caracterizam-se pelo seu caráter afetivo-emocional. A proposição de adotar este método na pesquisa em formação de professores em Geografia se justifica pela sua contribuição ao propiciar novas lentes analíticas para os estudos desta área. Empregar o método mencionado para analisar a história de vida de professores em formação se justifica na medida em que se considera que:

[...] a história de vida é uma mediação de autoconhecimento na existencialidade, que oferece ao seu autor uma reflexão sobre as oportunidades de tomadas de consciência sobre as suas diferentes formas de expressão e autorrepresentações, bem como sobre as dinâmicas que orientam a formação. (JOSSO, 2016, p. 66)

O método (auto)biográfico permite o resgate da história de vida, uma vez que abrange a memória de experiências vividas, sua manifestação e interpretação através das narrativas, o que propicia conferir novos sentidos a estas vivências. Sendo assim, os fatos rememorados do passado passam por um processo de reconfiguração no presente, pois ao serem relatados em outro contexto e período de vida são atribuídos novos significados, os quais estão em consonância com as intencionalidades e desejos do exato momento do ato narrativo. Por intermédio das narrativas (auto)biográficas, a dinâmica de formação e as características próprias do fazer docente dos professores são reveladas. Dessa forma, torna-se possível visualizar e analisar os saberes e fazeres que compõem seu exercício profissional.

Segundo Nóvoa (1995, p. 17), “é impossível separar o eu profissional do eu pessoal”. Esta é a essência da pesquisa (auto)biográfica em Educação. Ou seja, as opções epistemológicas, metodológicas e pedagógicas que cada professor faz durante sua ação profissional estão diretamente relacionadas à sua maneira de ser como pessoa. Nesse sentido, a maneira de ensinar e desenvolver suas práticas pedagógicas revela sua maneira de ser. Isto posto, torna-se necessário o conhecimento de si para lhe entender também como profissional docente em constante formação. Passeggi (2010, p. 126) ressalta que “formar-se é levar a sério a reversibilidade do trabalho de reflexão sobre si mesmo, realizado no processo de autobiografização”. O método (auto)biográfico, portanto, possibilita esta aproximação com o autoconhecimento.

A busca pelo conhecimento de si através das histórias de vida e das narrativas (auto)biográficas também propiciam a autorreflexão a partir da análise das trajetórias de vida, de formação e de profissão. O sujeito torna-se ator, protagonista, autor de sua própria história. Volta-se ao passado para evocar suas memórias no presente atribuindo novos significados que lhe provoca o repensar de suas ideias e a possibilidade de modificar suas práticas. Por isso, o método (auto)biográfico carrega consigo uma dimensão formativa. É possível desencadear “a transformação das experiências vividas em experiências formadoras demonstrando que os professores, agentes culturais e políticos, são portadores de um saber e de representações sobre a maneira de ser professor” (SOUZA; ALMEIDA, 2013, p. 49). Este saber e estas representações de cada sujeito, ao serem agrupadas, compõem um imaginário coletivo acerca da profissão docente. Manifestá-las e problematizá-las torna-se fundamental nos cursos de formação inicial.

Deve-se salientar a relação que existe entre a memória individual e a memória coletiva. As memórias de ensino e de escola da época que eram alunos apresentam traços em comum entre professores. A memória coletiva é constituída da identificação entre diversas memórias individuais. De acordo com Halbwachs (2006, p. 69), “a memória coletiva tira sua força e sua duração por ter como base um conjunto de pessoas, são os indivíduos que se lembram, enquanto integrantes do grupo”. Desse modo, as memórias dos professores acerca do modelo de ensino que vivenciaram na condição de alunos agem sobre suas representações concernentes à docência e fortalecem a memória coletiva. Por sua vez, a memória coletiva tende a alimentar as memórias individuais, o que acarreta na reprodução dos modos de fazer docente.

Investigar memórias de professores por meio do método (auto)biográfico torna-se essencial a partir da compreensão de que estas exercem um papel relevante na construção de suas concepções de ensino e na condução das práticas pedagógicas. Estas memórias que os professores carregam da sua trajetória de escolarização tem um peso considerável no processo de constituição da identidade docente. O fato do ensino de Geografia ainda se caracterizar de forma predominante pela descrição e classificação dos fenômenos em detrimento do estímulo ao desenvolvimento da capacidade reflexiva dos educandos está associado à importância do saber da tradição pedagógica. Este representa um dos saberes docentes que se refere às representações sobre a escola e sobre a docência que os sujeitos recordam de suas experiências escolares da infância (GAUTHIER, 1998).

Destarte, o ensino tradicional e a reprodução de uma Geografia Tradicional no espaço escolar estão diretamente relacionados ao saber da tradição pedagógica. A raiz deste processo encontra-se na formação inicial, tendo em vista que a licenciatura é regida por um modelo que “trata os alunos como espíritos virgens e não leva em consideração suas crenças e representações anteriores a respeito do ensino” (TARDIF, 2014, p. 273). Estes saberes anteriores que os sujeitos possuem sobre a profissão docente servem, em sua maioria, para orientar suas práticas educativas. Contudo, em vez destas representações construídas a partir das vivências na escola quando se era aluno serem problematizadas e discutidas ao longo da formação inicial, o que acontece é que estas são desconsideradas.

Isso ocorre porque o modelo de formação vigente na licenciatura ampara-se na ideia de que este é o primeiro momento em que a profissão docente será pensada e estruturada na constituição identitária dos sujeitos. Tal perspectiva compreende que os saberes docentes estão ligados à formação acadêmica e à experiência profissional. Assim, tudo que precede estas fases possuem pouca relevância na construção do ser professor. A pesquisa (auto)biográfica em Educação questiona essa visão, pois concebe o processo de formação docente como permanente e de maneira que acompanha a caminhada da vida, a qual envolve também os itinerários que precedem a formação universitária. Por conseguinte, o processo de configuração da identidade docente se confunde com os percursos formativos realizados ao longo da história de vida dos sujeitos.

A investigação (auto)biográfica considera a formação do professor um processo mais amplo e complexo, uma vez que seu desenvolvimento se dá ao longo da existência. Desse modo, os saberes docentes são provenientes de diversas fontes, não se limitando aos espaços institucionais, como a escola e a universidade. De acordo com Tardif (2014), estes conhecimentos profissionais abrangem: saberes pessoais dos professores, saberes da formação escolar anterior, saberes da formação profissional, saberes dos programas e livros didáticos e saberes da experiência profissional. Nesse sentido, as trajetórias de vida, de escolarização, de formação e de atuação profissional se complementam e influenciam os modos de ser, pensar e fazer a docência.

Deve-se apontar que dois professores com a mesma formação acadêmica, por exemplo, não exercerão a docência da mesma maneira. Isso se justifica pelas distintas histórias de vida, pois cada um possui uma trajetória única e singular que lhe compõe o que é como pessoa e, por consequência, como professor. As origens, a família, as relações sociais, a condição socioeconômica, os espaços vividos são fatores determinantes na identidade do sujeito. O que este é e/ou pensa ser como pessoa se reflete em suas formas de pensar e desenvolver a docência. Ratifica-se que o eu pessoal e o eu profissional estão mutuamente implicados.

Esta linha de pensamento provoca a necessidade de um debate relativo aos discursos e práticas que embasam a licenciatura em Geografia. Torna-se premente que esta compreenda os acadêmicos como sujeitos que possuem uma bagagem repleta de vivências anteriores que incidem sobre suas concepções de ensino. É fundamental que as representações que tendem a fortalecer o saber da tradição pedagógica sejam postas em questão e desconstruídas. Pensar em uma ressignificação do ensino de Geografia na escola com a finalidade de tornar-se mais crítico, construtivista e reflexivo pressupõe repensar a licenciatura e o processo de formação de professores.

É espantoso observar jovens professores recém graduados iniciando sua carreira profissional e reproduzindo práticas historicamente desenvolvidas com base em princípios de uma epistemologia empirista e de uma pedagogia diretiva. A pesquisa de Menezes (2016) com licenciandos em Geografia concluintes identificou nas práticas de estágio dos mesmos que ainda que houvesse uma contradição e pluralismo epistemológico tanto nas concepções teóricas quanto nas práticas dos sujeitos, o empirismo aliado a corrente da Geografia Tradicional estão enraizados em suas posturas. Esta percepção impõe um dilema: se as licenciaturas em Geografia, em termos de currículo, são orientadas para uma perspectiva crítica e construtivista do ensino de Geografia, por que os professores seguem adotando a linha tradicional para realizar suas práticas pedagógicas?

Atribui-se a presença significativa das memórias de escola na modelagem da identidade docente dos sujeitos. Portugal (2013, p. 49) concluiu em sua tese que “a gente não ensina o que não experienciou e vivenciou. Não é possível ensinar o que não se sabe. Assim, fica evidente que os professores reproduziam nas suas práticas docentes as experiências vividas na discência”. A trajetória de escolarização produz um imaginário docente por meio de modelos e exemplos de práticas. Práticas estas que trazem em seu bojo a naturalização do empirismo, da pedagogia diretiva e da Geografia Tradicional predominantemente. Outras práticas que se aproximam de uma corrente construtivista e de uma Geografia Crítica e/ou Humanista não são comumente vivenciadas pelos licenciados, fazendo com que nas situações concretas de ensino resgatem em suas memórias os modelos que já experienciaram de docência, mesmo que na condição de alunos.

Considerar a trajetória de escolarização, a qual abrange memórias influenciadoras nas concepções e práticas docentes, torna-se de suma relevância nos cursos de licenciatura. Se a formação inicial compreende o primeiro momento em que os futuros professores pensarão a profissão racionalmente por meio de conhecimentos científicos, é imprescindível que as representações anteriores sejam debatidas à luz dos referenciais teóricos. Para tanto, o método (auto)biográfico pode ser inserido na formação inicial com vistas a revelar tais representações por meio de narrativas (auto)biográficas dos sujeitos que expõem suas histórias de vida. Assim, a formação docente pode ser entendida como um conjunto de itinerários (vida, formação e profissão) percorridos pelos professores ao longo da existência.

O caráter formativo deste método pode ser expresso por meio da noção de que “mediante a linguagem e a narrativa é possível reabrir o passado e se projetar em devir. O bom uso dessa reflexão sobre a experiência vivida constitui o propósito das escritas de si como prática de formação, [...]” (PASSEGGI, ABRAHÃO, DELORY-MOMBERGER, 2012, p. 43). As narrativas (auto)biográficas consistem em dispositivos formativos. Por meio destas, o narrador conta suas trajetórias a partir da rememoração. As experiências vividas no passado são resgatadas, porém passam por um processo de ressignificação no presente. Isso quer dizer que as memórias dos acontecimentos ao serem narradas não expressam fielmente a maneira como ocorreram, visto que há uma reconfiguração no presente em função do contexto e das intencionalidades que se tem durante o ato narrativo. Logo, novos sentidos e significados são atribuídos no presente às experiências rememoradas.

Cabe salientar que as narrativas (auto)biográficas não apenas recuperam o passado ressignifcando-o no momento enunciativo, como também projetam um futuro. O processo reflexivo gerado pelo ato narrativo coloca o sujeito e suas ações em análise, de modo que pode apontar caminhos a serem seguidos. Sendo assim, as narrativas resultam de uma articulação entre passado, presente e futuro. O que é explicitado pelo narrador corresponde a um olhar para sua trajetória, o que elucida não o que o sujeito de fato é, mas o que o mesmo pensa ser e/ou pretende ser. Por isso, as narrativas constituem fontes de acesso aos elementos que atuam na constituição da identidade dos sujeitos.

Memória, identidade e narrativa estão imbricadas. Um sujeito sem memória não é, não possui identidade. Segundo Candau (2016, p. 16):

A memória, ao mesmo tempo em que nos modela, é também por nós modelada. Isso resume perfeitamente a dialética da memória e da identidade que se conjugam, se nutrem mutuamente, se apoiam uma na outra para produzir uma trajetória de vida, uma história, um mito, uma narrativa. Ao final, resta apenas o esquecimento.

A memória produz identidade, assim como a identidade se reforça através da busca memorial. Memória e identidade estão ligadas intimamente no sentido de permitir o sujeito a ser, a existir. Já a narrativa (auto)biográfica é elaborada por meio de memórias dos percursos de vida do narrador, o que permite compreender o seu processo de construção identitária. Toda narrativa é inacabada, pois se refere ao que é enunciado no momento em que ocorre. Sua elaboração é resultante da seleção de memórias, o que implica também em esquecimentos. Dessa maneira, a narrativa não revela tudo o que se viveu ao longo da existência, mas o que foi mais significativo e demonstra valor no exato contexto em que o sujeito narra, de acordo com seus interesses. Um mesmo narrador não produz a mesma narrativa se ocorrer em outro dia, em outro momento, pois depende das condições do ambiente, das suas intencionalidades e do contexto em que está inserido.

Se toda narrativa é inacabada, o mesmo vale para a identidade. Esta é um processo marcado por constantes mudanças e caracteriza-se por uma construção social. Nesse sentido, trata-se de uma identidade individual que é produzida mediante relações sociais. Identidade e alteridade co-existem. Nóvoa (1995) se refere à denominação de “processo identitário” e formula seu pensamento ao considerar o entrecruzamento da identidade pessoal e profissional. Para o autor, “a identidade não é um dado adquirido, não é uma propriedade, não é um produto. A identidade é um lugar de lutas e de conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e de estar na profissão” (NÓVOA, 1995, p. 16). Os modos de ser no cotidiano tem relação com os modos de exercer a docência, de ensinar, de se relacionar com os alunos.

Ao partir da premissa que a história de vida abarca os itinerários formativos que compreendem as fontes para a constituição identitária, a narrativa (auto)biográfica possibilita manifestar este processo identitário que se confunde ao processo existencial. Destarte, torna-se possível compreender como o sujeito constrói sua professoralidade. A produção, socialização e análise de narrativas (auto)biográficas de professores fornece pistas para investigar algumas questões, como: quais suas concepções de ensino e de Geografia? Como sua trajetória de vida se reflete na sua identidade docente? Quais os saberes produzidos, mobilizados e transformados nas práticas de ensino? Qual a gênese destes conhecimentos? Tratam-se de inquietações que podem ser analisadas por meio de narrativas (auto)biográficas, as quais auxiliam com subsídios para formular um arcabouço de conhecimentos acerca da profissão docente e do processo de ser e tornar-se professor. Assim, as narrativas podem ser “concebidas como importantes fontes de investigação sobre a Geografia Escolar, sobre a formação acadêmica docente e as práticas pedagógicas desenvolvidas nesses dois relevantes espaços e tempos formativos – a escola e a universidade” (PORTUGAL, 2015, p. 68).

Compreender como a professoralidade em Geografia é constituída através de narrativas (auto)biográficas levanta o dilema da generalização. Toda a narrativa é individual e expressa uma trajetória de vida-formação-profissão única e particular. Então, como seria possível buscar a compreensão de processos mais amplos como a questão da profissionalidade? Um dos princípios basilares do método (auto)biográfico diz respeito ao seu caráter universal singular. Este se refere à noção de que a narrativa (auto)biográfica singulariza a universalidade de uma estrutura social. Logo, trata-se de uma práxis humana que sintetiza a totalidade de uma história social coletiva. Este raciocínio é semelhante às relações tecidas entre memória individual e memória coletiva, como supracitado. O método (auto)biográfico considera a dialética universal-singular, individual-social. De acordo com Ferrarotti (2014, p. 42), “se nós somos, se todo o indivíduo é a reapropriação singular do universal social e histórico que o rodeia, podemos conhecer o social a partir da especificidade irredutível de uma práxis individual”.

Para além de um arcabouço de conhecimentos referentes ao processo formativo de professores de Geografia, o método (auto)biográfico apresenta uma natureza autoformativa e heteroformativa. De acordo com Abrahão e Frison (2010, p. 192):

Já nas narrativas (auto)biográficas de formação é possível que as pessoas universalizem (tornem público, divulguem) suas experiências, suas ações, revelando influências que tiveram ou exerceram, tanto na atuação profissional como na vida pessoal e como, mediante um processo autorreflexivo, intencional e crítico a respeito dessa vivência existencial, as pessoas transformam essas vivências em experiências de formação.

A narrativa (auto)biográfica é autoformativa na medida em que o sujeito se desvela, lança o olhar para si e mergulha no seu íntimo. Esta viagem ao baú de memórias faz com que o professor direcione sua atenção para sua trajetória de vida e se aproxime da percepção de como os caminhos trilhados se reverberam nas suas maneiras de ser-estar no mundo. Deve-se assinalar que a seleção de memórias e sua exposição conferem à narrativa uma ação interpretativa por parte do narrador. A narrativa é mais que um simples relato. Trata-se de um relato que carrega sentidos e significados atribuídos pelo sujeito durante o ato narrativo. Isto coloca o sujeito em uma posição de ator e autor de sua própria história, fazendo com que um processo autorreflexivo seja engendrado por meio da narrativa (auto)biográfica.

As memórias selecionadas, reveladas, reconfiguradas e ressignificadas durante a enunciação representam as experiências marcantes que foram vividas e, portanto, possuem um caráter formativo. As rememorações de escola dos professores, por exemplo, podem ser tanto positivas quanto negativas. De todo modo, são marcas deixadas pela escolarização que constituem modelos a serem seguidos ou não e orientam as práticas docentes dos sujeitos. Ao contar sobre as experiências na escola quando se era aluno, o sujeito torna-se capaz de reconhecer que alguns elementos de seu fazer pedagógico são inspirados em práticas de professores que teve neste período. Mesmo que a licenciatura tenha lhe propiciado o contato com teorias pedagógicas de diversas vertentes da Educação, não raro as práticas de ensino carregam traços de modelos oriundos da vivência escolar que são reproduzidos.

Colocar-se em uma posição autorreflexiva e de autoavaliação constitui uma das contribuições do método (auto)biográfico, visto que possibilita que as concepções de ensino e de Geografia subjacentes e as práticas educativas desenvolvidas de forma automática no cotidiano do trabalho docente sejam postas em questão. Assim, a falta de clareza epistemológica e pedagógica no que tange ao exercício docente pode ser superada pela narrativa de si. Aqui reside uma importante contribuição que o método (auto)biográfico pode oferecer às licenciaturas em Geografia: seu potencial transformador de mentes e práticas. Conforme Delory-Momberger (2014, p. 349), “a história de vida, naquilo que ela sedimenta e naquilo que deixa permanentemente em aberto, pode ser o lugar desse processo de autoeducação”.

A autorreflexão que a narrativa (auto)biográfica provoca é condição sine qua non para repensar e possivelmente modificar o fazer docente. O processo reflexivo é acionado pela aproximação com o autoconhecimento ou, como denomina Souza (2006), o “conhecimento de si”. A narrativa de si para si mesmo por meio da evocação de memórias produz conhecimentos que são construídos a partir das experiências formadoras rememoradas. Conhecimentos estes sobre si, sobre as relações tecidas com o processo formativo e as aprendizagens correspondentes deste ao longo da existência. Para Souza (2006, p. 36), “através da abordagem biográfica o sujeito produz um conhecimento sobre si, sobre os outros e o cotidiano, o qual revela-se através da subjetividade, da singularidade, das experiências e dos saberes, ao narrar com profundidade”.

Nesse sentido, a narrativa (auto)biográfica favorece o conhecimento de si que está atrelado à autoformação. Esse processo se desenvolve através do movimento de distanciamento e aproximação, uma vez que o sujeito narrador exerce dois papéis: autor e protagonista de sua própria história. Assim, ao assumir o papel de autor o sujeito busca um distanciamento para lançar o olhar para sua caminhada de vida. A aproximação ocorre quando o mesmo narra seus itinerários de vida e se percebe como ator principal. Nesse momento há a tomada de consciência acerca de seus percursos formativos. Então, o sujeito constrói elementos para compreender o que lhe tornou quem é.

Trata-se de uma tomada de consciência do sujeito no tocante à sua vida pessoal, sua trajetória de formação e sua trajetória de profissão. O exercício de narrar sua (auto)biografia modifica a relação do sujeito consigo mesmo. Verifica-se uma reapropriação de si mesmo que lhe confere uma autonomia para pensar sobre si, as trilhas percorridas ao longo da existência e as múltiplas vivências que influenciam no seu ser professor. Conforme afirma Josso (2002, p. 117), há “a passagem de uma tomada de consciência da formação do sujeito para a emergência de um sujeito da formação através da mediação de uma reflexão crítica sobre a forma de pensar o seu itinerário experimental e existencial”. A formação do sujeito se desenvolve por meio da investigação-formação de si ao teorizar sobre suas próprias experiências.

Além da autoformação, a adoção do método (auto)biográfico no âmbito da licenciatura em Geografia também proporciona a heteroformação. Ao serem partilhadas, as narrativas (auto)biográficas de professores em formação também provocam reflexões e inquietações naqueles que as ouvem ou as leem. A dimensão formativa da narrativa não se restringe ao narrador, pois o leitor ou ouvinte que tem contato também é instigado a rever sua trajetória, associar seus percursos e experiências com os relatados pelo narrador. Ao conhecer a história de vida de colegas de profissão, torna-se possível buscar os pontos em comum e os divergentes a fim de compreender o processo de construção da professoralidade em Geografia e os diversos aspectos que compõem a identidade docente.

Segundo Benjamin (1980, p. 60), “o narrador colhe o que narra na experiência, própria ou relatada. E transforma isso outra vez em experiência dos que ouvem sua história”. Isso justifica o cunho autoformativo e heteroformativo do método (auto)biográfico, tendo em vista a relevância que a experiência apresenta neste processo. As memórias reveladas pelo narrador resultam de sua interpretação acerca das experiências vividas que se tornam formadoras ao serem destacadas na narrativa. Estas atuam como impulsionadoras para uma ação reflexiva daqueles que se colocam na escuta ou leitura das narrativas de outros. Pensar sobre si a partir do outro representa uma possibilidade de refletir sobre a coletividade (neste caso, a formação docente) por meio das individualidades.

Diante disso, questiona-se: de que maneira o método (auto)biográfico pode ser introduzido nas práticas realizadas na licenciatura em Geografia com o intento de contribuir para a formação de professores reflexivos e autônomos? As narrativas (auto)biográficas, conforme explicitado, constituem um dispositivo formativo por excelência. Estas podem ser orais ou escritas. Propõe-se que os momentos profícuos para sua produção seriam no início do curso e durante o estágio supervisionado. No primeiro poderia se atentar para a abordagem e questionamento das representações que os acadêmicos possuem em relação à docência, representações estas fortemente influenciadas por sua trajetória de escolarização. Já no momento de estágio, os licenciandos passam a pensar o ensino e a profissão de forma mais concreta e desenvolvem práticas pedagógicas nas escolas, o que lhes geram dúvidas, conflitos, angústias e aprendizados. Nessas situações de tensão, não raro os estagiários reproduzem fazeres que estão vivos em suas memórias de escola. Assim, a narrativa novamente torna-se fundamental para desconstruir ideias preconcebidas e desencadear um processo de reflexão na e sobre a ação.

Deve-se apontar que há outras alternativas a serem produzidas nas licenciaturas e que estão em consonância com o método (auto)biográfico. Abrahão (2016) sugere o memorial de formação, o qual pode ser elaborado como um texto escrito ou por meio de outras formas de expressão com a finalidade de expor os principais acontecimentos da trajetória de vida-formação. Holly (1995) se refere aos diários (auto)biográficos que dizem respeito a uma escrita sobre a vida, suas experiências e pensamentos. De forma semelhante, Portugal (2015) compreende que os diários de formação, memoriais e portfólios são frutíferos para a licenciatura em Geografia ao considerar que as escritas (auto)biográficas promovem a articulação entre ensino e pesquisa. Souza (2006) e Brito (2010) propõem também o diário das práticas pedagógicas por conferir reflexão e avaliação da prática e sobre a prática no processo formativo. Já Segovia (2014) se utiliza do biograma, cujo instrumento consiste em uma representação gráfica do perfil biográfico do sujeito, onde são ressaltados os tempos e espaços de sua trajetória de vida.

Por isso, muitas são as possibilidades de introduzir o método (auto)biográfico na formação inicial. Parte-se do princípio de que este contribui para o repensar a formação docente ao considerar a condição humana na sua processualidade, isto é, conceber a formação do professor ao longo da vida por meio dos seus diversos itinerários que configuram a indissociabilidade entre o eu pessoal e o eu profissional. Pereira (2010, p. 124) corrobora ao preconizar que se deve “avançar em direção a um clareamento da compreensão de como funciona o sujeito, de como ele se constitui e se constrói dentro das práticas, de como ele elabora seu conhecimento e suas ações”. Portanto, pensar a formação de professores nesta perspectiva remete a compreensão de que na medida em que o sujeito se constitui como pessoa, também se constitui como profissional docente em diferentes espaços-tempos de seu processo existencial. Nesse sentido, a perspectiva (auto)biográfica enfatiza “a ideia que ‘ninguém forma ninguém’ e que ‘a formação é inevitavelmente um trabalho de reflexão sobre os percursos de vida’” (NÓVOA, 2014, p. 153). Isto ratifica o caráter autoformativo do sujeito que atua sobre as relações com o outro e com o ambiente e se constrói ao ressignificar as vivências passadas no momento presente e lança um olhar prospectivo para si e sobre si.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante das afirmações, incertezas e reflexões que se buscou apresentar ao longo do texto, depreende-se que o método (auto)biográfico pode ser inserido nas pesquisas em formação de professores de Geografia, bem como nos cursos de licenciatura em Geografia como prática recorrente. Tal consideração se justifica por entender que este método pode renovar as pesquisas desta área através de outro viés epistêmico-metodológico distinto do hegemônico, o qual ainda pauta-se no paradigma científico moderno. No âmbito da formação inicial pode se tornar uma prática para atuar na desconstrução de representações referentes à docência em Geografia e na construção coletiva da professoralidade nesta área.

Destaca-se que, ao lidar com a história de vida para compreender os itinerários formativos e a constituição da identidade docente dos sujeitos, o método (auto)biográfico lança o olhar para a formação de professores de forma ampla e complexa. Concebe que a formação não se limita à licenciatura e ao exercício profissional, assim como não ocorre de forma exterior ao sujeito, entendido como passivo neste processo. Adotar o método (auto)biográfico na formação inicial significa que o sujeito irá se identificar como produtor de sua própria história, autor e autônomo em seus processos formativos, bem como em constante devir.

Observa-se uma mudança na concepção de formação que esta perspectiva instaura quando comparada ao modelo de formação vigente no espaço universitário. Ao longo dos períodos históricos no campo da Educação, esta foi concebida a partir de tempos e espaços específicos. Além disso, os tempos e espaços da formação estiveram separados dos tempos e espaços da ação. O cerne da questão estava em formar e não em formar-se. Trata-se de um modelo ultrapassado no sentido de que objetiva o progresso e o desenvolvimento futuro. Todavia, o método (auto)biográfico propõe uma outra epistemologia de formação que seja pautada no balanço de vida, visto que além da visão prospectiva, é também necessária uma visão retrospectiva do que foi formador na vida de cada um (NÓVOA, 2014).

Como me tornei quem sou em termos pessoais e profissionais? Esta é a pergunta que move a abordagem (auto)biográfica em Educação e que pode provocar transformações na maneira como se desenvolve a formação de professores de Geografia. Tal perspectiva leva a enxergar o professor como sujeito de sua formação. Um sujeito autônomo que tem seu desenvolvimento profissional como uma ação individual com o meio social, de modo que coincide com a trajetória de vida e as experiências formativas que esta proporciona, constituindo seu processo identitário (pessoal e docente).

Por fim, deve-se salientar que as narrativas (auto)biográficas podem ser relevantes fontes acerca de como a Geografia escolar é produzida ao longo do tempo, pois representam registros de como os professores pensam e exercem a profissão. Assim, pode-se construir um arcabouço de conhecimentos concernentes aos saberes docentes, ao ensino de Geografia e a formação de professores. Estes fornecerão subsídios para orientar as mudanças necessárias na licenciatura em Geografia, as quais terão reflexos na docência em Geografia na escola de maneira a concretizar o ensino que se almeja: crítico, reflexivo e humanizador.

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Contribuições de Autoria

1 – Victória Sabbado Menezes

Contribuição: Conceituação. Escrita – rascunho original, revisão e edição.

2 – Roselane Zordan Costella

Contribuição: Conceituação. Escrita – rascunho original, revisão e edição.