Universidade Federal de Santa Maria
Geografia, Ensino e Pesquisa. Santa Maria, v. 25, e09, 2021
DOI: 105902/1414650943511
ISSN 2595-833X
Recebido: 13/04/2020 • Aceito: 29/04/2021 • Publicado: 06/07/2021
O ensino de Geografia como meio de leitura crítica da realidade: um estudo a partir das práticas do estágio supervisionado em Geografia
The teaching of Geography as a reading of critical reality, from the practices of the supervised internship in Geography
Felipe Rodrigues LeitãoI
Rachel Facundo Vasconcelos OliveiraII
Rian Kelvin do NascimentoIIII
I Licenciado em Geografia, Mestrando em Geografia na Universidade Estadual do Ceará (UECE)
ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7682-3351 - E-mail: mr.feliper@gmail.com
II Geógrafa, Doutoranda em Geografia na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
ORCID: https://orcid.org/0000-0002-3029-4084 - E-mail: rachel_facundo@yahoo.com.br
III TLicenciado em geografia pela Universidade Estadual do Ceará (UECE)
ORCID: https://orcid.org/00020-0002-3329-3407 - E-mail: rian465@gmail.com l
RESUMO
O presente tempo, nitidamente, é marcado por um acelerado processo de globalização da sociedade em suas diversas instâncias, sejam elas econômicas, sociais, políticas ou culturais, tendo os seus desdobramentos sobre o ensino nos últimos tempos, no contexto brasileiro. Os alunos estagiários, enquanto futuros docentes, irão passar por diversas conjunturas para as quais nem sempre as universidades os preparam. Dessa forma, esta pesquisa procurou revelar de maneira sistemática quais são os contextos atuais do ensino no Brasil, quais os ataques às ciências humanas e quais tipos de metodologias e práticas os futuros docentes usam para auxiliar no seu processo de formação e na assimilação de conteúdo por parte dos alunos da educação básica. Desse modo, a metodologia utilizada para obtenção dos dados foi pautada em levantamentos bibliográficos, artigos científicos, matérias jornalísticas e entrevista com 12 estudantes da disciplina de estágio supervisionado do curso de licenciatura em Geografia da Universidade Estadual do Ceará (UECE) no ano de 2018, que realizaram suas regências no Ensino Fundamental II em escolas públicas e privadas situadas no município de Fortaleza e na sua região metropolitana. Assim sendo, o estudo se constitui em uma reflexão sobre o papel da Geografia frente a esse contexto e a necessidade clara de ações alinhadas à realidade e à conjuntura dos educandos.
Palavras-chave: Ensino-aprendizagem; Práxis docente; Ensino de Geografia; Estágio supervisionado.
ABSTRACT
The present time is clearly marked by an accelerated process of globalization of society in its various instances, whether economic, social, political or cultural, with its consequences on teaching and in recent times, in the Brazilian context. Trainee students, as future teachers, will go through different situations that universities do not always prepare them for. In this way, this research sought to systematically reveal what are the current teaching contexts in Brazil, which are the attacks on the humanities and what types of methodologies and practices do future teachers use to assist in their process of formation and in the assimilation of the content by students in basic education. In this way, the methodology used to obtain the data were bibliographic surveys, scientific articles, journalistic articles and the interview with twelve students of the supervised internship of the Geography degree course at the State University of Ceará (UECE) in the year 2018, who held their regency in primary and secondary schools in public and private institutions, located in the city of Fortaleza and its metropolitan region. Therefore, the study constitutes a reflection on the role of Geography in this context and the clear need for actions aligned with the reality and conjuncture of students.
Keywords: Teaching-learning; Teaching praxis; Geography teaching; Supervised internship.
1 INTRODUÇÃO
Este artigo é resultado de uma reflexão motivada, a partir da nossa participação no IV Colóquio Temático de Estágio Supervisionado em Geografia da Universidade Estadual do Ceará (UECE),I no qual começamos a debater sobre as complexidades e conjecturas que o ensino de Geografia vem passando na última década e quais desafios serão enfrentados pelos futuros docentes. Dessa maneira, procuramos realizar para esta pesquisa o levantamento e a análise de alguns temas que permeiam o processo de formação dos iniciantes na docência em Geografia que irão atuar em Fortaleza e sua região metropolitana.
A pesquisa contou com levantamentos bibliográficos e de dados obtidos em órgãos de educação nacionais e regionais, artigos científicos e matérias jornalísticas, além de entrevistas realizadas com 12 estudantes da disciplina de Estágio Supervisionado I em Geografia da UECE durante o ano de 2018, parte do curso de licenciatura em Geografia, que efetuaram as suas regências em séries do Ensino Fundamental II das redes pública e privada em escolas de Fortaleza e outros municípios da região metropolitana (RMF).
As entrevistas ocorreram com o intuito de investigar como foi o estágio e a sua importância no processo de formação desses alunos, avaliando quais conceitos geográficos, práticas, didáticas e metodologias foram utilizados para auxiliar no processo de ensino e aprendizagem dos estudantes.
Este estudo buscou, portanto, perceber as práticas adotadas pelos alunos de graduação em seus campos de estágio que estão alinhadas a uma ideia que enxerga a Geografia desenvolvida no ambiente escolar como uma possibilidade de leitura crítica da realidade social.
Este artigo, além desta introdução, apresenta outras quatro seções, encerrando com as considerações finais. Na primeira realizamos uma contextualização quanto ao momento atual em que o ensino de Geografia se insere, com a globalização e os ataques às ciências humanas. O debate do tópico seguinte gira em torno do papel central da Geografia escolar e da realidade dos alunos. Na sequência há uma reflexão sobre a importância do estágio supervisionado. Por fim, há a apresentação dos resultados da investigação com o grupo de alunos estagiários em Geografia e a realidade de suas primeiras experiências docentes. No tópico a seguir debatemos sobre a compreensão do ensino nos tempos atuais.
2 A BUSCA POR COMPREENDER “QUE TEMPOS SÃO ESTES?” NO ENSINO
Em um esforço de pensar o momento atual dentro da conjuntura ligada ao ensino da Geografia e aos contextos que ocorrem em sala de aula, deparamos com uma complexa realidade que muitas das vezes nos foge à capacidade de leitura e interpretação enquanto futuros docentes. Nesse sentido, uma pergunta ecoa de forma latente em nosso imaginário no que diz respeito à educação e ao ensino da Geografia: “Que tempos são estes que vivemos?”.
Diante de tal pergunta, realizamos um esforço para pensar e elaborar uma resposta que não fosse direta, mas que levasse a ponderações sobre as conjecturas e vivências de sala de aula, diante de tantas variáveis envolvidas. Assim, fizemos escolha por duas delas, que expressam os principais temas que permeiam as proposições da Geografia Humana, dentro dos contextos da educação: “tempos de globalização” e “tempos de ataques”.
Os ditos “tempos de globalização” dizem respeito a um intenso processo global cujos impactos são sentidos em todas as áreas da sociedade, em suas instâncias econômicas, culturais e sociais. Esse momento da história da humanidade é denominado por Milton Santos (2006) como período do meio técnico-científico-informacional, que se caracteriza pela interação profunda entre as ciências, as técnicas e as informações. Esses três elementos, de forma combinada, constituem a base da própria produção, bem como da utilização e do funcionamento do espaço, processo que se verifica tanto na cidade como no campo.
Nesse momento podemos evidenciar uma globalização da produção e dos elementos que lhes são inerentes, com: o capital, o mercado, as mercadorias, os preços, o dinheiro, as técnicas, o trabalho, as firmas, as economias, o consumo, as culturas e os gostos, até mesmo do modo de vida (SANTOS, 2008). Esse processo está assentado sobre a unicidade das técnicas e do tempo, com um conhecimento amplo e extensivo do planeta, tendo por motor único a mais-valia globalizada, e possui as palavras de ordem, a instantaneidade e simultaneidade das informações, que são animadas por sistemas técnicos que permitem isso (SANTOS, 2000).
Assim, as distâncias e o tempo já não são mais restrições à circulação como antes: estamos diante do imperativo da velocidade, uma vez que há um verdadeiro esforço por parte das forças produtivas em anular o espaço (a barreira das distâncias) e o tempo (período de circulação das mercadorias), promovendo, assim, uma ampliação do mercado a níveis globais (HARVEY, 2005). Muito embora ainda esteja em curso, já mostra reflexos em economia, política, cultura, organização social e territorial de todos os países, em especial dos países historicamente classificados como de Terceiro Mundo (ELIAS, 2003).
Essa dita globalização exacerba a lógica do capital e dissemina em uma escala global a “desigualdade estrutural e a segmentação do trabalho […], a nova exploração e precariedade do novo mundo do trabalho […] e a exclusão social” (GIOVANNI, 2001, p. 80). É nesse sentido que Santos (2000) discorre sobre uma globalização perversa, posto que uma série de mazelas sociais se ampliam, como a pobreza, o desemprego, a fome, as novas doenças e a mortalidade infantil, dentre outras.
Esse processo traz variados reflexos sobre a educação, dentre eles a possibilidade da incorporação ao processo de ensino-aprendizagem de novas propostas e tecnologias, tal como a possibilidade de um professor realizar uma “aula de campo” sem sair da sala, utilizando ferramentas como o Google MapsII para visualizar o bairro, os seus limites e seus fixos e fluxos, obtendo essas informações por meio das imagens de satélites artificiais. Mas, ao mesmo tempo, produz e reforças as desigualdades e diferenças sociais, uma vez que não são todas as instituições de ensino nem todos os alunos que têm acesso a essas novas tecnologias, criando verdadeiros abismos sociais e tecnológicos. Assim, o acesso à internet, a projetor multimídia, a computadores, a tablets e a aplicativos para celular ligados ao ensino e os avanços – exemplos de modernidades educacionais – ficam restritos àqueles que podem pagar.
Diante desse contexto, em que a realidade se torna cada vez mais complexa, urge pensar em uma educação que dê condições de formar pessoas que sejam capazes de pensar, refletir, agir e modificar a sociedade em que estão inseridas e em uma Geografia que dê conta de ler essa realidade complexa, que contribua para uma formação crítica e cidadã dos seus educandos, fornecendo elementos que contribuam para o combate às desigualdades aprofundadas e aos “tempos de ataques” sofridos pela educação brasileira em específico, que não são de hoje. A educação em nosso país vem sendo tratada como um instrumento de dominação, por meio do Estado e dos agentes hegemônicos. Mészaros (2006) destaca que o sistema educacional institucionalizado existe como meio de fornecimento de condições técnicas e humanas à expansão do capital e à instalação de valores funcionais aos interesses dominantes. Esse sistema se aperfeiçoa ao longo do tempo, constituindo-se em um instrumento poderoso de dominação.
Assim, os sistemas educacionais servem aos interesses de agentes hegemônicos que controlam as relações produtivas e financeiras, que pensam e operacionalizam a educação como um verdadeiro sistema bancário (FREIRE, 1987), transformando o ato de ensinar em um movimento de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos, que valoriza a memorização e anula a criatividade e a visão crítica do mundo em que “pensar autenticamente, é perigoso”. Esse modelo pensado e operacionalizado de forma vertical visa à manutenção das estruturas sociais, deixando intacta a posição de opressores e oprimidos, exploradores e explorados, dominadores e subservientes.
Em oposição a esse modelo de educação bancária, os sujeitos ligados a um ensino libertador e crítico acabam sofrendo consequentes ataques e pressões por parte dos agentes controladores desse sistema, como os que vêm acontecendo no Brasil por parte do atual governo federal contra as ciências humanas. Esse governo, fundamentado em uma visão utilitarista e simplista das ciências, encontra nas ciências humanas um conhecimento tido como “inferior ou desnecessário”.
Todavia, os geógrafos, enquanto sujeitos sociais críticos e leitores da realidade, muitas vezes se organizam, por meio de grupos e de organização civil, como a Associação de Geógrafos Brasileiros (AGB), que sempre procurou se pronunciar contra os ataques sofridos pela educação, seja por meio de eventos ou de notas como essa que expomos no pequeno trecho a seguir:
[…] Não há sociedade sem conhecimento obtido por meio da ciência social e tão pouco, ciência sem perguntas e questionamentos. Pensar a importância da sociologia e da filosofia [e a própria Geografia] é tomá-la no seu universo reflexivo e questionador, sentir a vida na sua totalidade e pensar a sociedade com responsabilidade intelectual. (AGB, 2019, s/p)
Diante desse cenário, fez-se necessário refletir: “Qual a ciência geográfica que se realiza neste momento?”. Qual é o ensino que a Geografia tem diante desses ataques? Evidentemente, não buscamos neste trabalho dar respostas a essas indagações, tampouco formular reflexões profundas sobre elas, mas nos parece patente que nenhuma reflexão sobre as práticas educacionais pode começar de fato sem que se pense a respeito, pois constituem o plano de fundo para nossas formações enquanto professores e nossas práticas no ambiente escolar.
Entendemos que, mais do que nunca, é necessário o uso de metodologias de leitura da realidade como forma de combate e resistência, que transponham o simples conhecimento decorativo e caminhem para uma reflexão mais profunda, que deem possibilidade de protagonismo para grupos excluídos, que lancem luz a elementos que os agentes hegemônicos fazem questão de obscurecer, que permitam “sentir a vida na sua totalidade e pensar a sociedade com responsabilidade intelectual” (AGB, 2019, s/p).
No próximo tópico iremos explanar sobre os desafios e as demandas na atualidade do ensino de Geografia voltada para a educação básica.
3 HÁ UM DESAFIO POSTO: AS DEMANDAS DA REALIDADE
Diante de todo o contexto apresentado e pensado, parece-nos que um desafio se impõe: o de resistir às investidas sistemáticas contra a educação e, principalmente, ao ensino das ciências humanas. É nesse bojo que se encontra a disciplina de Geografia, por seu caráter crítico e reflexivo, entendido de maneira errônea como doutrinador e ideológico, enquanto a sua função é transmitir conhecimentos estruturados e alinhados com os momentos atuais, permitindo aos nossos discentes a compreensão dessa totalidade. Nesse momento, ressurge um debate da importância e do papel da Geografia escolar.
A Geografia, entendida como a ciência da totalidade, no ambiente escolar assume a incumbência de ser uma disciplina que possibilite uma leitura crítica e reflexiva do mundo de maneira contextualizada e regionalizada, que contribui para a formação cidadã do aluno, para auxiliar no processo de desvendar a lógica presente na sociedade. No espaço escolar há uma busca por trazer para a sala de aula a realidade do mundo contemporâneo (STRAFORINI, 2018).
Essa ideia nos faz pensar que o ensino da Geografia está para além de um conhecimento enciclopédico, que guarda grande apreço pela quantidade de conteúdos e prioriza a memorização de informações que se tornam inúteis para a vida dos alunos, transformando-a em uma disciplina enfadonha. Essa “[…] gula dos conteúdos” tende a tornar as aulas de Geografia uma “tortura geográfica, comum na maioria das escolas, é um exercício constante de ver o mundo de coisas, decorar o máximo e não aprender nada” (SOUSA NETO, 2008, p. 63).
Cachinho (2002) destaca aquilo que seria o caráter do ensino de Geografia nas escolas, em que teríamos uma ciência geográfica centrada em identificar e trabalhar relevantes conceitos, além de termos também uma Geografia social e problematizadora do real, que parta de problemas reais da sociedade e da realidade dos alunos; uma Geografia global e sistêmica, com uma perspectiva que permita a compreensão multiescalar; uma Geografia ativa, que permita aos alunos serem agentes do seu próprio processo de aprendizagem e mudanças sociais. Assim, a Geografia, enquanto disciplina escolar, assume um papel primordial na leitura e na reflexão acerca do mundo e da realidade social de forma ampla e sistêmica, a partir dos seus conceitos e procedimentos metodológicos, compreendendo o “entendimento e esclarecimento possa surgir um inconformismo com o presente e, a partir daí, outra possibilidade para a condição da existência humana” (STRAFORINI, 2004, p. 56).
Nessa perspectiva, é necessário ter em mente que a escola, instituição própria e predominante do ensino regular, entendida como parte importante do processo formativo que constitui a vida social e as relações humanas, está inserida em um contexto marcado pelo trabalho, por lutas e conflitos, pela cultura, pela organização social, pelas histórias e trajetórias de vida. Além disso, a escola é o lugar do encontro das culturas e dos saberes (científicos e cotidianos).
Dessa maneira, a escola é também um retrato da sociedade na qual estamos inseridos, tendo em seu seio os problemas sociais deflagrados no cotidiano, como a criminalidade, a violência, a pobreza, a venda e o consumo de drogas ilícitas, o preconceito racial, a gravidez na adolescência, o suicídio, os transtornos psicológicos, o estupro, o bullying e a LGBTfobia, dentre outras problemáticas.
Contundo, a escola se mostra não somente como um espaço de conflito e de confronto, mas também de resiliência, de esperança e de contradição, que reverbera em si as problemáticas sociais citadas anteriormente, sendo assim, um espaço que “[…] exala humanidade e precariedade […]” (CORTELLA, 2003, p. 124).
Então, como lidar com as demandas da realidade da escola? E o ensino da Geografia, como se coloca diante disso tudo? A Geografia tem um importante papel no processo de formação dos docentes, que foi muito bem elucidado por Callai (2013) quando a autora afirma que os conteúdos em Geografia devem estimular os alunos a superar sua própria condição de vida, ao passo que oferece a eles a compreensão de suas realidades e possibilidades para além delas.
Insistimos que é necessário o uso de metodologias que aqui estamos chamando de metodologias de leitura da realidade, de combate e de resistências, pois elas não possuem um caráter meramente informativo, mas são o ponto de partida da realidade dos alunos, o seu lugar de convivência, onde se dá a sua cotidianidade, como bem descreve Pontuschka (1999, p. 133):
[…] as condições de existência dos próprios alunos e seus familiares são ponto de partida e de sustentação que podem garantir a compreensão do espaço geográfico, dentro de um processo que vai do particular ao geral e retorna enriquecido ao particular.
A realidade social atual se torna cada vez mais complexa. O avanço tecnológico, das informações e das técnicas contrapõe-se à permanência de históricas desigualdades sociais, em paralelo às novas que surgem mediante a desigual distribuição dos ditos elementos modernizantes. Nesse contexto, as atuais gerações nascem e crescem com esse cenário em curso, de tal forma que determinadas realidades são naturalizadas e legitimadas, impondo-se como inquestionáveis. Dessa forma, a Geografia “serve para desvendar as máscaras sociais” (MOREIRA, 1982), rompendo a ilusória aparência e chegando à essência dos fatos e fenômenos sociais ou, mais que isso, entendendo os fatos de forma associada e combinada, considerando todas as suas partes, pois “[…] não podemos pensar em uma totalidade, numa estrutura, numa essência que seriam formadas por uma parte ‘real’ e uma parte ‘falsa’, separadas uma da outra” (SANTOS, 2008, p. 127).
Milton Santos (1988), ao propor um método de investigação geográfico, afirma ser necessário ir além das coisas e dos objetos geográficos (naturais e artificiais): é necessário se debruçar sobre a sociedade, buscando entender as suas formas (o visível), as funções que elas têm dentro de uma determinada estrutura social – que constantemente muda, obedecendo a um complexo processo que se desenrola sobre o tempo. Esse não é um trabalho simples, ao passo que a sociedade, estando em movimento, modifica constantemente todas as variáveis que são constituídas, de tal forma que se exige o mesmo movimento de busca de entendimento do processo e dos sentidos dessas variáveis afetadas e modificadas (SANTOS, 2000).
Assim, a Geografia, ao ser trabalhada em sala de aula, apresenta ferramentas que permitem aos alunos a compreensão da realidade que os rodeia e da qual são participantes. Parece-nos central a realidade do aluno para tal feito, sendo ela o ponto de partida para o desenvolvimento de práticas pedagógicas e de conteúdos que busquem ajudar os alunos a aprimorar seus conhecimentos próprios do cotidiano, a internalizarem métodos e práticas que permitam a captura da realidade, tanto a vivida quanto a apresentada pela Geografia (CAVALCANTI, 2006).
Por combate, entendemos serem necessárias práticas pedagógicas que confrontem o modelo de educação hegemônico pautado essencialmente pelo “bancário” ou “enciclopédico”, baseado em resultados, tecnicista e puramente voltado à formação de mão de obra, além de alinhado aos ditames e movimento da economia globalizada, que vê a educação como mais um setor apropriado pelo capital em sua busca por acumulação.
Freire (2002) destaca que o ato de ensinar não é simplesmente a transmissão de conhecimento pura e simplesmente, mas vai para além disso, estando associado a criar as possibilidades para a própria produção ou construção desse conhecimento. Assim, o autor denuncia uma concepção bancária de educação que entende os alunos como seres passivos e, desprezando os conhecimentos e a bagagem que trazem, enche-os de conhecimentos – como que depósitos – e os que ensinam se julgam como seres detentores do verdadeiro saber (FREIRE, 1987).
Nesse modelo os resultados numericamente mensuráveis são o grande alvo, seja para atender à exigência de grandes sistemas avaliativos (tais como o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica [IDEB] e o Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes [PISA]), que em sua maioria desprezam a pluralidade do conhecimento e se focam em áreas específicas (como a capacidade de leitura e de realizar operações matemáticas, dentre outros), seja para apresentar resultados nos processos avaliativos para o ensino superior, como é o caso do Exame Nacional Ensino Médio (ENEM) e de outros vestibulares realizados por universidades e faculdades, cujas notas e aprovação dos alunos servem como marketing de sucesso dos grandes grupos educacionais que atuam no Brasil.
Esse modelo é focado em resultado, priorizando e recompensando a capacidade de memorização, acabando por sufocar práticas não alinhadas com o modelo vigente, desprezando o ensino plural, contextualizado e formativo. Nesse sentido, as práticas pedagógicas que priorizem a construção coletiva do conhecimento, a interdisciplinaridade, a formação humana e cidadã, mas que não deixem de lado os conteúdos importantes e definidos, podem ser entendidas como práticas de combate. De combate pois, não se alinhando ao modelo hegemônico, buscam formas alternativas de desenvolver os conteúdos, de maneira desalinhada da ideia massificante, reguladora e conteudista vigente e dominante.
Diante desse modelo de ensino sistematicamente encaixotado, cujos conteúdos são rigidamente organizados e alinhados de forma hierárquica, diversas formas de conhecimento são postas de lado e não encontram espaço para serem trabalhadas dentro de sala de aula. Essa tradição formal impõe aos professores e aos alunos rígidos currículos, produzidos pelo poder público, que assume a função de controle técnico do trabalho docente, destacando-se como um instrumento racional de planejamento (GIROTTO; MORMUL, 2016).
Muitos desses conteúdos enumerados pelos currículos, enaltecidos pelas instituições escolares e exigidos pelos meios de avaliação e cobrados pelos pais, estão totalmente divorciados da realidade dos alunos. Essa desconexão aluno-conteúdo transforma o ensino de Geografia em uma ação totalmente alheia à vida dos alunos, de tal forma que “[…] os educandos não conseguem interligar a realidade local com os conteúdos ministrados em sala de aula, e passam a taxar a disciplina como sendo uma matéria de fácil e/ou decoreba e sem utilidade […]” (CALLAI, 1995, p. 12), enquanto o momento exige da Geografia escolar uma preocupação com a realidade humana e suas transformações sociais.
Nesse contexto, assuntos associados a história, lutas e resistência de povos tradicionais (tais como indígenas, quilombolas e campesinos) e a manifestações de minorias (como a realidade LGBTIQ e as evoluções e resistências de práticas feministas, dentre outras) não encontram lugar nesses currículos engessados e alinhados aos interesses de formação tecnicista e caráter avaliativo. Assim, promover modos de desenvolver esses assuntos é uma verdadeira prática de resistência, que pode aparecer enquanto espaços contra-hegemônicos, como as escolas do campo do Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra (MST), cujos espaço e tempo da educação são construídos levando em conta a realidade, os saberes e as práticas das pessoas do campo, ou como práticas, diante da ação docente, ao desenvolver conteúdos e metodologias que priorizem a compreensão coletiva, a interação e a relação do aluno com sua realidade, com suas raízes, com sua história e o seu local.
O processo de ensino-aprendizagem dos alunos, para ser efetivo, tem de partir da vivência, do cotidiano e do interesse dos estudantes, pois daí ocorre a efetivação desse processo. Pensar formas de trabalhar entendendo a realidade, combatendo o modelo hegemônico e resistindo às imposições verticais que põem em risco a formação humana, crítica e ampla do indivíduo parece-nos ser um caminho combativo e resiliente de pensar o ensino da Geografia.
Esse caminho se inicia na vida do professor muito antes de ele entrar em sala de aula, muito antes de ele ganhar sua habilitação para exercer sua atividade docente, muito antes de ele receber sua certificação: inicia-se durante sua formação. É por isso que focamos, neste trabalho, em investigar as práticas pedagógicas de ensino de Geografia desenvolvidas ao longo do estágio supervisionado como modo de entender como os docentes em formação caminham para a construção de um ensino em Geografia que tenha compromisso com as premissas que estamos apresentando até aqui.
Dessa forma, nos próximos tópicos iremos discorrer sobre os desafios e as mudanças no ensino de Geografia a partir da análise das experiências e vivências do estágio supervisionado em relação à teoria e à prática enfrentadas pelos futuros docentes em suas salas de aulas.
4 O ESTÁGIO SUPERVISIONADO COMO PROCESSO DE FORMAÇÃO E REFLEXÃO
O estágio supervisionado é uma importante prática no processo de formação e aprendizado dos alunos de licenciatura, por meio da realização de atividades e exercícios práticos referentes à profissão docente. Necessita, assim, de compilação dialética da práxis entre os conhecimentos práticos e teóricos aprendidos durante toda a graduação (PIMENTA, 2006).
Há diversas modalidades de estágio. Entre elas podemos destacar o estágio curricular obrigatório, atividade assegurada na matriz curricular do curso, cuja prática varia conforme o curso e pode ser realizada em instituições públicas, privadas, organizações não governamentais ou por meio de programas permanentes de extensão da universidade (PIMENTA, 2006).
O estágio curricular não obrigatório se refere às atividades complementares ligadas à área de formação do aluno, importantes para o progresso profissional dos acadêmicos, pois consegue criar vínculos entre a universidade, a escola e a comunidade. Permite também um processo mais completo de formação, podendo ser realizado em instituições que mantêm laços com a universidade. Assim, a regência (nome dado às práticas dos estagiários) ajuda no desempenho como futuros profissionais, possibilitando terem uma maior capacidade técnica e didática em certas áreas do conhecimento (PIMENTA, 2006).
O estágio supervisionado é identificado pela legislação vigente do Brasil como um componente curricular obrigatório das licenciaturas, em que se privilegia a articulação com a prática profissional e as teorias (BRASIL, 2015). O estágio supervisionado diz respeito ao desenvolvimento de atividades de um aluno de curso de formação no campo de sua futura área de atuação, sendo corriqueiramente encarado como uma etapa prática do curso, e faz parte do currículo do curso de formação de professores. Nessa perspectiva, o estágio aparece quase como uma “oposição” ao conjunto de disciplinas presentes no currículo de formação, que são mais voltadas às teorias, sendo apresentado de forma isolada e autônoma (PIMENTA; LIMA, 2012).
Os alunos de licenciatura que chegam até o estágio acabam tendo uma experiência no curso que se torna um grande divisor de águas em sua formação, pois significa um momento importante para sua atuação, permitindo-lhes o contato com a sala de aula e as suas diversas realidades sociais e educacionais. Ao depararem com esse espaço como futuros professores, têm a possibilidade de lidar com realidades que conhecem apenas pela teoria apresentada na universidade ou pela literatura que incorporaram ao seu capital intelectual ao longo da sua formação.
O desenvolvimento do estágio supervisionado, como deixam claro as autoras Pimenta e Lima (2012), não se trata apenas de uma atividade prática do curso, nem pode estar dissociado da teoria vista na universidade ao longo da formação, como muitos podem entender. Ele está atrelado a uma atividade de teoria e prática, de “fundamentação, de diálogo e de intervenção na realidade, esta sim, objeto da práxis” (PIMENTA; LIMA, 2021, p. 45), um momento de apreensão da realidade (PIMENTA, 2006), um momento de aproximação do estudante com o seu campo de ação profissional (LIMA, 2009), um momento de inserção no espaço escolar, de conhecimento da realidade, de diagnóstico de problemas (FELDKERCHER, 2009).
Nesse sentido, Silva (2005) afirma ser o estágio o momento da formação do graduando de maior contato com o mercado de trabalho e as pressões que este impõe ao profissional, sendo também um momento de apreensão da realidade, a partir do contato com o espaço de atuação trabalhista, uma vez que, ao incluir o aluno no contexto do espaço escolar, o estágio “proporciona-lhe domínio de sua prática e de seu papel social, com base na reflexão contextualizada na ação, sobre a ação e sobre o próprio conhecimento na ação, num processo de ressignificação permanente” (FÓRUM NACIONAL DE PRÓ-REITORES DE GRADUAÇÃO [FORGRAD], 2002, p. 183).
Além disso, os estágios são bastante relevantes, porque concretizam a efetivação da aprendizagem como processo pedagógico da constituição de conhecimentos, habilidades e competências, por meio da supervisão de professores atuantes na sua área de estudo, sendo a relação direta da teoria com a prática cotidiana. Isso porque conectam teoria e prática em uma linguagem voltada para os alunos da educação básica, o que acaba sendo um enorme desafio com o qual os educandos de cada curso de licenciatura têm de lidar (SCALABRIN, MOLINARI, 2013). Essa interação contribui para a construção do profissional:
A educação deve conter a integração com o outro, não apenas professor com professor, mas também professor e estagiário. Compartilhar a maneira como trabalha, a forma como encaminha o trabalho, são sugestões que somam à bagagem que o acadêmico está formando para que possa desempenhar sua tarefa com mais segurança. Ser profissional da educação requer um trabalho com objetividade: educar para incluir e elevar-se socialmente, levando em consideração a complexidade de todas as formas que nos rodeiam para conhecer e entender, para mudar com consciência este mundo na qual nos encontramos inseridos. (SCALABRIN, MOLINARI, 2013, p. 3)
A sociedade está em constante processo de mudança em diversas áreas e segmentos. Esses reflexos são sentidos também na realidade escolar, onde as práticas tradicionais continuam existido, porém os alunos já apresentam outras necessidades para captação dos conteúdos e o estagiários devem se atentar a essas transformações na maneira de agir, pensar e sentir das novas gerações. Os educadores, estando incluídos no processo de ensino e aprendizagem, necessitam estar em constante transformação também, e o estagiário começa a sentir esse mundo da qual fará parte no primeiro contato: o promovido durante a prática do estágio (SCALABRIN, MOLINARI, 2013).
Outra coisa a que o estagiário deve se atentar são as novidades que auxiliam o processo de ensino e aprendizagem, ligadas às novas tecnologias de comunicação. Essa deve ser uma demanda diferencial enquanto futuros profissionais da educação. É no estágio que ocorre o contato com esses instrumentos de educação, tecnologia e comunicação que estão sendo utilizados e que podem ser até um diferencial na prática reflexiva do estágio.
É a partir dessas premissas que concebemos o desenvolvimento das práticas de estágio supervisionado como uma atividade de desenvolvimento de habilidades em sala de aula, “iluminadas” por teorias e que caminhem para a reflexão dessas destrezas e, sobretudo, para a “construção de conhecimento por meio da reflexão, análise e problematização dessa prática” (PIMENTA; LIMA, 2012, p. 48), com o desenvolvimento de uma práxis escolar.
No próximo tópico iremos debater sobre o estágio supervisionado no curso de licenciatura em Geografia e as metodologias que foram aprendidas, a partir de pesquisa prévia realizada para disciplina de estágio supervisionado.
5 AS PRÁTICAS DO ESTÁGIO SUPERVISIONADO E AS SUAS METODOLOGIAS
Consolidada a ideia de um ensino em Geografia que permita a leitura da realidade e as práticas combativas e de resistência, e do papel primordial do estágio supervisionado para a formação docente, devemos então buscar visualizar quais são as contribuições que o desenvolvimento do referido estágio tem para essa visão da disciplina escolar tanto para discentes da educação básica quanto para estagiários e professores supervisores no campo de estágio.
Para realizar esta pesquisa, colhemos informações e dados por meio de entrevistas com 12 alunos que cursavam a disciplina Estágio Supervisionado I em Geografia da UECE ao longo do ano de 2018. Buscamos perceber e entender o desenvolvimento dessas práticas metodológicas que priorizassem a leitura da realidade, o combate e a resistência no ensino da Geografia.
Esses alunos desenvolveram suas práticas de estágio na RMF. No município de Fortaleza foram oito estagiários; no de Caucaia, dois estagiários; e no de Cascavel, outros dois estagiários, todos acompanhando turmas do Ensino Fundamental II. A Figura 1 mostra o perímetro em que ocorreram os estágios supervisionados.
Figura 1 – Imagem de localização das escolas de campo de estágio
Fonte: Elaboração própria, 2019.
Quanto à formação dos professores orientadores de estágio, apenas um estagiário informou ter sido acompanhado por docente não formado em Geografia. Essa não é uma realidade exclusiva desse estagiário ou dessa escola: pelo contrário, o Censo Escolar de 2019 demonstrou que pouco mais de 34% dos professores atuantes nas disciplinas de Geografia não são formados em sua área de atuação e, de forma geral, pouco mais de 13% do total de professores atuantes no Fundamental II não possui licenciatura no Brasil (INSTITUTO NACIONAL DE ESTUDOS E PESQUISAS EDUCACIONAIS ANÍSIO TEIXEIRA [INEP], 2019).
Isso influi decisivamente no modo de desenvolvimento das práticas do professor em sala de aula, pois a falta de formação específica pode comprometer decisivamente o real papel dos conhecimentos e metodologias da disciplina de Geografia no espaço escolar, dada a falta de preparo com o trato de conceitos, temas e metodologias específicos da ciência geográfica. O relato de um dos estagiários repercute essa realidade:
A prática docente de Geografia que é observada é nitidamente aquela marcada pela reprodução de um modelo histórico que entende a Geografia como uma disciplina teórica, que privilegia a capacidade de memorização e está repleto de descrições e pouca carga de reflexão e crítica. Foi comum ouvir e ver o desinteresse e descontentamento por parte dos alunos com a disciplina que se mostrava enfadonha, repetitiva e pouco ligada com a realidade dos alunos. A carência de uma metodologia ativa que envolva os alunos é algo marcante. É comum perceber aulas que pareciam estarem sendo planejadas e desenvolvidas ao mesmo tempo, enquanto os alunos agitados promoviam algazarras. (Estagiário 1)
As investigações das práticas de regência, foco de nossa análise, permitiram verificar a presença de inúmeros elementos que, segundo os próprios estagiários, contribuíram para uma aprendizagem significativa e que capturasse a atenção e a participação dos alunos. Assim, foi comum observar atividades em grupos, atividades artísticas, trabalhos colaborativos, uso de geotecnologias e ferramentas audiovisuais, ações que tirassem os alunos de sala (como atividades de campo em torno da escola ou mesmo na comunidade) e debates, entre outros.
Dessa forma, chegamos ao Quadro 1, que busca sintetizar as principais práticas que foram desenvolvidas pelos estagiários durante as suas regências no campo de estágio escolar, com alunos do 6º ao 9º ano do Ensino Fundamental II, permitindo reflexão e análise mais contextualizadas e complexas, por meio das demandas da realidade vivenciadas pelos estagiários, para assim entendermos o que contribuiu efetivamente para a um ensino que permita a leitura da realidade de maneira crítica quanto aos embates e às resistências. No Quadro 1 temos uma síntese com as descrições e as atividades desempenhadas pelos estagiários pesquisados.
Quadro 1 – Síntese das atividades desenvolvidas
Atividade |
Descrição |
Folhetim geográfico |
Construção individual de material informativo sob a forma de um folheto informativo e ilustrado que apresentasse o conhecimento que o aluno obteve após o desenvolvimento dos conteúdos da aula. Essa atividade trabalha os elementos artísticos (ilustrações e desenhos), bem como a capacidade escrita dos alunos e o gênero textual do texto explicativo. Foi realizada com alunos dos 6º, 7º e 8º anos, com os assuntos surgimento da vida, região Nordeste e América, respectivamente. Com o uso de duas aulas, os alunos produziram e apresentaram suas atividades. |
Mapas colaborativos |
O uso constante de mapas que contribuíam para localização, orientação, informação, distribuição e ordem dos fenômenos espaciais. Ocorre por meio da construção coletiva do mapa e auxilia na compreensão da estrutura dos continentes, da distribuição dos países e da língua falada, dentre outros. A atividade foi desenvolvida em duas aulas com turmas do 8º ano. |
Notícias e textos |
Trabalho em grupo com notícias atuais e textos cujas temáticas contemplem assuntos que estão no noticiário e a construção de relatos, a partir da leitura deles e associados aos assuntos trabalhados de forma contextualizada com a realidade local dos alunos. Essa atividade trabalha com o gênero textual no formato de notícia e contribuiu para o trabalho em grupo. Atividade desenvolvida com as turmas dos 8º e 9º anos, em duas aulas. |
Músicas |
Seleção de músicas de diversos estilos (forró, regue, rock, MPB etc.), cujas letras contribuam para assimilação de discussões e debates a respeito de determinadas temáticas. Na prática, essa atividade em diversos momentos foi muito assimilada pelos alunos, sendo interessante perceber a participação e o envolvimento de alguns em conhecer as letras e os cantores. Houve recorrência dessa atividade em todas as turmas do Fundamental II. |
Artes |
Construção em grupo, por meio de painéis ilustrativos, dos conteúdos trabalhados em sala. Essa atividade trabalha com o uso de atividades artísticas, como desenho, pintura, colagem e modelagem, dentre outros. |
Apresentações orais |
Atividades que buscam a socialização das ideias, a partir de discussões e trabalhos em grupo ou individuais. A principal atividade com essa característica foi a promoção de uma exposição de trabalhos e socialização das ideias dos alunos. |
Trabalho de campo |
Atividade que permite aos alunos vivenciarem na prática os conteúdos trabalhados em sala de aula, tornando o ensino da Geografia mais rico e permitindo uma visão aplicada dos conhecimentos. O simples fato de sair de sala e visitar o entorno da escola permite aos alunos uma nova visão da realidade que os circunda. Foi desenvolvida com alunos do 6º ano, no reconhecimento do entorno da escola. |
Dinâmicas e uso do espaço |
A utilização de dinâmicas que integrem e relacionem-se com os conteúdos abordados em sala, facilitando e melhorando as habilidades cognitivas dos educandos, propiciando (com a quebra das atividades cotidianas) maiores atenção e disponibilidade demonstradas pelos próprios alunos. Diante disso, vemos que utilizar espaços como o chão, as paredes da sala de aula e a quadra da escola melhoram de forma considerável as práticas pedagógicas, acarretando novas metodologias que visam à efetivação do processo ensino-aprendizagem. |
Jogos lúdicos |
Uso de jogos e atividades lúdicos na mediação dos conteúdos ou no desenvolvimento de atividades de revisão de assuntos. Esses foram utilizados especialmente com alunos dos 6º e 7º anos na abordagem de assuntos ligados ao universo e às regiões do Brasil de forma respectiva. |
Fonte: Elaboração própria, 2019.
Ao desenvolverem as atividades listadas anteriormente, os estagiários propuseram um ensino de Geografia desalinhado com o modelo hegemônico conteudista e enciclopédico, por permitirem o uso de elementos lúdicos, promoverem ações interdisciplinares, privilegiarem outros elementos da inteligência humana que não a escrita e a capacidade de memorização, e fazerem uso de elementos que partem do cotidiano.
Os relatos dos estagiários quanto à efetividade dessas atividades em sala de aula demonstram que esse tipo de prática contribui de forma efetiva para uma melhor fluidez das aulas, uma vez que proporciona maior interação aluno/professor e aluno/aluno, além de uma maior aproximação dos estudantes com os conteúdos trabalhados em sala de aula, pois o uso dessas metodologias ajudou na explanação e no entendimento de maneira contextualizada dos conteúdos com os discentes. Podemos destacar que são atividades que não são onerosas e ajudam no processo assimilação dos conteúdos, como uso de músicas e apresentações orais, dentre outras.
A seguir, elencamos relatos sobre como foi para os estagiários usar essas metodologias citadas no Quadro 1 em seu dia a dia durante a regência escolar, sendo que para muitos desses estagiários foi seu primeiro contato com magistério.
Os resultados foram muito bons. Os alunos ficavam menos apáticos durante a aula e alguns chegavam a prestar mais atenção pois sabiam que ao final haveria um debate. (Estagiário 2)
Foi possível perceber uma maior apreensão do conteúdo por meio da investigação dos mesmos [sic] e do interesse pelas atividades não convencionais, tornando a relação aluno-professor amena e proativa. (Estagiário 3)
Houve uma ampla adesão e participação dos alunos nas atividades e o desenvolvimento de reflexões que até então eles não haviam realizado. (Estagiário 4)
O desenvolvimento de atividades lúdicas, artísticas e de interação coletiva com o meio foi percebido pela abordagem de assuntos e temáticas diferentes dos presentes no currículo preestabelecido ou descritos no livro didático que era adotado pelos professores supervisores do estágio. Destacamos as temáticas de consciência negra e ancestralidade; violência contra lésbicas, gays, bissexuais e transexuais (LGBT); feminismo e representação da mulher; meio ambiente e reciclagem; e tradição nordestina. Os assuntos, embora não diretamente presentes no currículo programado, contribuíram para o fortalecimento dos conceitos e conhecimentos geográficos trabalhados com as turmas até então.
No Quadro 2 é apresentada uma síntese dos assuntos abordados que não estão dentro currículo escolar ou dos livros didáticos, mas que vieram à tona a partir das necessidades e curiosidades dos estudantes escolares.
Quadro 2 – Assuntos extras tratados em sala de aula
Assunto |
Forma de apresentação |
Tratada com alunos de 9º ano por meio do uso da música “A carne”, de Elza Soares, e posterior debate. |
|
Violência contra LGBTs |
Roda de conversa sobre a temática com alunos de 9º e 8º anos. |
Feminismo e representação da mulher |
Seminário e apresentação de grupos com as turmas de 7º e 8º anos. |
Meio ambiente |
Apresentações de trabalhos com o 6º e 7º anos. |
Tradições nordestinas |
Exposição de vídeos, comidas típicas e elementos representativos da cultura nordestina, desenvolvida com o 7º ano. |
Fonte: Elaborado pelos autores, 2019.
A pluralidade de atividades desenvolvidas, de assuntos trabalhados e de conexões construídas nos permite ver o esforço por parte dos estagiários em construir uma prática educativa que se encaixa em nossa proposta teórica. Ao proporem folhetim geográfico, mapas colaborativos, notícias, textos, músicas, artes, apresentações orais, trabalhos de campo, dinâmicas e uso do espaço e de jogos lúdicos, trabalhando temas como consciência negra, violência contra LGBTs, feminismo e representação da mulher, meio ambiente e tradições nordestinas, os estagiários buscaram o desenvolvimento de novas práticas, novos saberes, novas construções, novas formações, novos olhares e novos alcances.
Talvez nenhuma dessas propostas práticas ou temáticas sejam inovadoras em si, mas trazem em suas intencionalidades pedagógicas elementos que as tornam atuais, ao passo que reconhecem as realidades; são inovadoras ao passo que se valem de estratégias modernas; mais importante que isso, são práticas de resistência, de combate e de leitura da realidade.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso objetivo aqui não foi esgotar o assunto, tampouco dar conta de todas as atividades que se enquadram dentro de uma perspectiva de metodologias de leitura da realidade, de combates e resistências – até porque estas são criadas e recriadas constantemente por nossos educadores em suas práticas diárias. Buscamos, a partir de uma reflexão teórica, ver a prática de nossos estagiários em Geografia e perceber como essas metodologias têm sido (re)criadas dentro das escolas.
Concluímos que os ataques são de diversas ordens na área de educação, principalmente na educação pública, na qual é notório o sucateamento da universidade, sendo que muitas vezes o aluno (mesmo após o estágio supervisionado) não consegue ter acesso ao processo de formação ideal. Muitas vezes o acesso às práticas e instrumentos metodológicos ainda são muito tradicionais e quando estão em sala de aula é que esses futuros docentes deparam com essa falta de acesso às tecnologias educacionais.
Outro destaque é a questão da falta de incentivo para uma formação continuada após a graduação, com os baixos salários e cortes de investimento (tanto pessoal quanto de infraestrutura) das escolas, com os quais o estagiário depara quando tem contato com a realidade das diversas salas de aula.
No tocante à Geografia enquanto disciplina, a mudança proposta dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) para a Base Nacional Curricular Comum (BNCC) – que, embora não tenha sido alvo deste artigo, transpassa a realidade do ensino – ainda é muito recente, mas se nota que há certo descaso com as disciplinas de ciências humanas, o que fica evidente dentro do que é proposto nas avaliações e políticas educacionais do Brasil.
Os questionamentos quanto à educação em um país como o nosso são muitos e complexos, porém aqui buscamos trabalhar alguns poucos em específico, envolvendo as metodologias de ensino de Geografia alinhadas com uma perspectiva crítica e formativa humana. A partir disso, deparamos com um conjunto rico e plural de metodologias e realidades sociais apresentadas pelos estagiários. Buscamos aqui promover o debate sobre a necessidade de se pensar essas práticas educacionais que os alunos da disciplina de Estágio Supervisionado precisam utilizar para dar conta de ensinar e aprender a realidade de nossos alunos das escolas campo de estágio.
Os 12 alunos de Estágio Supervisionado nos mostraram como é importante pensar e idealizar metodologias que auxiliem no processo de ensino e aprendizagem e na formação de professores, o que se volta ao fortalecimento das identidades profissionais, além de levar em conta os anseios de escolas, alunos e sociedade para além de uma visão puramente utilitarista. Isso porque mais do que dominar o conhecimento científico e as técnicas, é necessário ao professor ter a capacidade de desenvolver metodologias e estratégias que tornem o trato do saber científico interessante, aplicável e cativante para o aluno.
O ensino da Geografia está atrelado ao contexto de globalização, modernização, tecnificação e velocidade dos processos, além de sistemáticos ataques, ao qual a educação e as ciências humanas têm sido submetidas. Dessa forma, urge pensar e repensar nossas práticas enquanto professores, nossos processos formativos enquanto alunos, nossas políticas públicas enquanto gestores e nossas ideias enquanto pesquisadores. Assim concluímos que são tempos de combate e resistência: combate à mercantilização da educação e resistência aos sistemáticos ataques.
REFERÊNCIAS
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Contribuições de Autoria
1 – Felipe Rodrigues Leitão
Contribuição: Investigação e Escrita - rascunho original
2 – Rachel Facundo Vasconcelos Oliveira
Contribuição: Escrita - revisão e edição
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Contribuição: Investigação e Escrita - rascunho original
I O evento IV Colóquio Temático de Estágio Supervisionado em Geografia ocorreu nos dias 21 e 23 de maio de 2019 na Universidade Estadual do Ceará (UECE), campus do Itaperi, com o título: “Escola, cotidiano e Geografia: o que as realidades nos demandam?”.
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