Geog Ens Pesq, Santa Maria, v.24, e38, 2020

Universidade Federal de Santa Maria, RS, Brasil

ISSN 2236-4994

DOI: https://www.doi.org/10.5902/2236499441922

Submissão: 17/01/2020 | Aprovação: 09/03/2020|  Publicação: 17/11/2020

 

 

 

Produção do Espaço e Dinâmica Regional

 

A trajetória histórica do porongo e a diversidade dos artefatos produzidos em diferentes espaços: a importância para a agricultura familiar de Santa Maria /RS[i].

 

The historical path of porongo and the diversity of artifacts produced in different spaces: the importance for family farming in Santa Maria /RS.

 

Janete Webler CancelierI

Cesar de DavidII

 

I Universidad Federal de Santa Maria, RS, Brasil – http://orcid.org/0000-0002-4850-5492 - janetewc@yahoo.com.br

II Universidad Federal de Santa Maria, RS, Brasil –http://orcid.org/0000-0003-0872-9181 - cdedavid2009@gmail.com

 

RESUMO

O presente artigo apresenta reflexões sobre a origem, inserção e dispersão do porongo-cabaça no continente americano, assim como os processos naturais e sociais que possibilitaram sua domesticação e utilização nos mais distintos espaços-tempos. Buscou-se compreender como a cuia, um artefato cultural que transcende gerações, está ainda presente na contemporaneidade em diversos espaços, inclusive no distrito de Arroio do Só, uma importante área produtora de porongos do município de Santa Maria (RS), cuja destinação é, prioritariamente, para a produção de cuias para o chimarrão. Para compreender o fenômeno em suas singularidades e totalidades, adotou-se enquanto caminho metodológico, a pesquisa teórica, a pesquisa documental e a pesquisa de campo com a aplicação de entrevistas. A análise é significativa para a geografia agrária, pois possibilita compreender o papel atribuído a este artefato nas mais distintas culturas, assim como, produzir/divulgar, conhecimentos acerca da importância de um cultivo de base tradicional praticado.

Palavras-chave: Arroio do Só; Chimarrão; Dimensão Espacial; Porongos; Reprodução Social

 

 

ABSTRACT

This paper presents some thoughts on the gourd, its origin, insertion and dispersion in the American continent,as well as the natural and social processes that allowed its domestication and use in the most distinct spaces-times. It aims at understanding s how the bowl, a cultural artifact that transcends generations, is still present in the contemporary world in several spaces, including in the district of Arroio do Só, an important area of gourd in the city of Santa Maria (RS), whose destination is , mainly for the production of bowls for the maté/chimarrão. Comprehending the phenomenon in its singularities and totalities, it was adopted as methodological path, theoretical, documentary and field research through interviews. The analysis is meaningful for agrarian geography because it will allow the role attributed to this artifact in the most different cultures, as well as, to produce /spread knowledge about the importance of a traditional base crop practiced.

Keywords: Arroio do Só; Gourd; Maté/Chimarrão; Space Dimension; Social Reproduction

 

 

1 INTRODUÇÃO

O porongo é um fruto proveniente da planta porongueiro, pertencente à família das Cucurbitaceae, também conhecido em várias regiões do Brasil por cabaça, porunga, porongo, cuia, taquera. O termo porongo é mais utilizado na região sul do Brasil. A variedade de nomes que recebe está relacionada à língua e à cultura de cada região. Neste artigo, utiliza-se predominantemente o termo porongo.

Originário da África e das Américas pode ser encontrado em praticamente todos os países, nos continentes da América, África, Ásia, Europa e Oceania, sendo um fruto global (HEISER, 1979). É a matéria-prima para a confecção de cuias utilizadas como recipiente para o chimarrão, bebida típica do sul da América do Sul (BISOGNIN et al., 2008), ainda que seus usos sejam diversos nos diferentes lugares do Brasil e do mundo, com especial destaque para o artesanato, como objetos de cozinha, usos religiosos, entre outras. Cabe destacar, que especificamente nesse artigo será apresentado um resgate histórico da origem deste fruto e as formas de utilização, entre as quais está a cuia do chimarrão.

O hábito de tomar chimarrão é comum entre os povos do Cone Sul Latino-americano, sobretudo na Argentina, Uruguai, Paraguai, Sul do Chile e Brasil. Essa tradição, de acordo com Mordo e Vega (2004, p. 17), foi “transmitida pelos indígenas aos colonizadores espanhóis e portugueses, e estes ao adotar o hábito de tomar o mate difundiram sua utilização por diversos países da América Latina”. Atualmente, está presente em diversos países.   

Os termos “mate” (mate amargo) e “chimarrão” são sinônimos, empregados com maior ou menor frequência de acordo com a região de origem. “Mate” é mais utilizado em países que foram colonizados por espanhóis, de língua castelhana, já o termo “chimarrão” é mais utilizado no Brasil, a partir da palavra castelhana rioplatense cimarrón, que significa xucro, não domesticado (CARPIO, 2006). O costume de tomar chimarrão é tradicional e contemporâneo, transmitido de geração em geração, estabelece relações entre diversas culturas e, inclusive, pode ser considerado uma marca de identidade regional.

O presente artigo consiste em um exercício de sistematização que busca compreender a origem dos porongos, sua inserção e dispersão no continente Americano, assim como, a importância para a reprodução social da agricultura familiar no distrito de Arroio de Só, município de Santa Maria-RS, uma importante área produtora, se constituindo como um dos maiores produtores da América Latina.

A análise é significativa especialmente para a geografia agrária, pois possibilitará compreender o papel atribuído a este artefato nas mais distintas culturas, assim como, produzir/divulgar, conhecimentos acerca de um cultivo de base tradicional praticado essencialmente pela agricultura familiar. Ademais, poderá servir de referência para diversas áreas do conhecimento, haja vista que dialoga, além de autores da Geografia, com áreas da Biologia, Antropologia, Agronomia, Sociologia, Economia e História.

Nesse sentido, organizou-se a presente reflexão em itens: na introdução apresenta-se o tema pesquisado; na sequência, a área da pesquisa; na metodologia, estão evidenciadas as técnicas utilizadas; posteriormente uma explanação de natureza teórica/conceitual sobre a origem dos porongos/cabaças; a utilização dos porongos em diferentes espaços; os porongos no continente americano e nos países do Cone Sul. O sub-item, os agricultores familiares produtores de porongos/cuias do distrito de Arroio do Só, foi elaborado a partir da pesquisa de campo, no qual se procura demonstrar a importância e o papel deste cultivo para a reprodução social dos agricultores familiares; por fim, apresentam-se as considerações finais.

 

1.1 área da pesquisa empírica

Como área de abrangência da análise, elenca-se o distrito de Arroio do Só (figura 1), localizado no município de Santa Maria – RS, visto que se encontra inserido na região central do estado do Rio Grande do Sul, a qual se constitui um dos maiores polos produtores de porongos e cuias da América Latina.

 

Figura 1 - Mapa de localização do distrito de Arroio do Só, no município de Santa Maria-RS

arroio do so3

Fonte: Organizado pelos autores

 

Santa Maria-RS possui uma população estimada de 280 505 habitantes (IBGE, 2018), sendo que 95% deles vivem na área urbana, enquanto o distrito de Arroio do Só possui uma população de 1.127 habitantes (IBGE, 2015). O município participa desse processo como um espaço de produção da matéria-prima (porongo), da transformação em cuia e de articulação aos demais mercados via produção e distribuição das cuias.

A produção de porongos é uma atividade desenvolvida no município de Santa Maria, prioritariamente no distrito de Arroio do Só. Desde a primeira metade do século XX, os agricultores produtores estiveram e continuam presentes, fazem parte da história do distrito, porém de forma incipiente, sua produção não aparece em registros ou documentos públicos, mas está viva na memória dos moradores mais antigos do distrito. No que tange à produção agrícola, predomina, no distrito, a agricultura familiar, com destaque para a produção de soja, porongos, arroz e gado (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

O cultivo é uma atividade tradicional, desenvolvida ao longo do tempo e recorrente nas memórias dos habitantes do distrito, ocorrendo a mais de 80 anos, possibilitando a reprodução social e econômica dos sujeitos inseridos na atividade. Os porongos produzidos nesta área são comercializados em Países do Cone Sul e em menor escala na Europa.

 

1,2  Caminho metodológico

A pesquisa caracteriza-se por apresentar abordagem qualitativa. Os apontamentos são de origem bibliográfica, documental e empírica. A bibliografia utilizada remete a estudos de cunho antropológico, histórico, botânico e geográfico.

A pesquisa teórica forneceu aportes que possibilitaram a compreensão da origem dos porongos, sua inserção e dispersão no continente Americano, assim como, sua função nos mais distintos espaços-tempos.

Para compreender a importância dos porongos para a reprodução social da agricultura familiar no distrito de Arroio de Só, município de Santa Maria-RS, utilizou-se a pesquisa documental e empírica. Enfrentou-se uma grande dificuldade em encontrar dados, pela ausência dos mesmos, em instituições públicas, sejam elas de ensino, pesquisa e extensão. No que se refere ao município de Santa Maria-RS, importante área produtora de porongos da América Latina, o número total de agricultores que praticam a atividade é desconhecido, sendo inexistente tal discussão na geografia. Motivo pelo qual várias das referências de dados são de fontes secundárias.

A Pesquisa documental contou com o levantamento de dados secundários, junto à sites, bem como em órgãos públicos, entre as quais destacam-se a Empresa de Assistência Técnica e a Extensão Rural (EMATER), os Censos Agropecuários e Demográficos da Fundação de Economia e a Estatística do Rio Grande do Sul (FEE), a Secretaria de Desenvolvimento Rural do município de Santa Maria (RS) e repositórios da Capes.

A pesquisa empírica ocorreu no ano de 2018 com a aplicação de entrevistas semiestruturadas dirigidas aos agricultores familiares produtores de porongos do distrito de Arroio do Só, município de Santa Maria-RS. O objetivo foi investigar elementos que possibilitassem compreender o período em que o cultivo iniciou, os tipos de porongos cultivados e os principais mercados. Durante os trabalhos de campo foram realizadas entrevistas, coleta fotográfica e anotações no diário de campo. Todos os dados utilizados foram construídos a partir da pesquisa.

A amostragem englobou 21 agricultores familiares (denominados de P-1 a P-21), sendo realizado uma entrevista com cada. A amostragem utilizada é de cunho não probabilística e selecionada pelo critério de acessibilidade. Tal procedimento se fez necessário, haja vista, ser desconhecido pelos órgãos públicos o número total de produtores existentes no distrito. As referências e dados disponibilizados pela Emater e Prefeitura Municipal de Santa Maria, são divergentes, não havendo um consenso, enquanto a primeira estimou a existência de dez unidades de produção familiar, a Subprefeitura Distrital de Arroio do Só estimou a possibilidade de haver, aproximadamente, cinquenta (50) unidades.

O distrito rural foi selecionado como área de estudo por possuir agricultores familiares e agroindústrias produtores de porongos e de cuias. Trata-se de uma área eminentemente rural, embora o comércio e a distribuição dos produtos ocorram prioritariamente em áreas urbanas.

Entende-se, neste artigo, agricultor familiar a partir do conceito de Lamarche (1993, p. 15), como “uma unidade de produção agrícola onde propriedade e trabalho estão intimamente ligados à família”. Lamarche, em suas análises, evidencia que a agricultura familiar ocupa um espaço significativo em todo o mundo, pois está presente nos mais diferentes sistemas sociais: culturais, econômicos e políticos, dessa forma, sendo considerada uma realidade multiforme com grande diversidade de situações e categorias, realidade presente na área pesquisada.

 

 

2. RESULTADOS E DISCUSSÕES

2.1 A origem dos porongos/cabaças

O porongo (Lagenaria Ciseraria) é um fruto proveniente da planta porongueiro, pertencente à família das Cucurbitáceas, da qual também fazem parte a melancia, o melão, a abóbora, entre outros. As cucurbitáceas estão divididas em dois grupos botânicos principais, denominados, de Cucúrbitas e Lagenárias (SEEDMAN, 2015).

O porongo é originário da África e pode ser encontrado em praticamente todos os países dos cinco continentes, sendo um fruto global (HEISER, 1979). Suas várias utilizações, como recipientes leves e duráveis, flutuadores, instrumentos musicais e aplicações utilitárias, explicam o motivo dos porongos/cabaças serem globalmente difundidos (SEEDMAN, 2015). Esse fruto possui uma trajetória histórica junto a diversas civilizações, registrada além da botânica, na arqueologia, na antropologia e na arte em muitos países do mundo, entre eles, alguns da América (BASTOS, 2010).

Nas pesquisas sobre a botânica das cucurbitáceas, seu cultivo e sua utilização Whitaker e Davis (1962) foram os precursores. Seus estudos introduzem as temáticas relacionadas tanto à inserção e origem das espécies cultivadas, à morfologia, anatomia e taxonomia dos cultivares, como ao melhoramento das plantas, aos efeitos dos fatores ambientais sobre o crescimento e ao desenvolvimento das variedades, à produção de sementes, às doenças e pragas, à colheita, transporte, armazenamento, comercialização, composição e usos da planta.

Por sua vez, Heiser (1979), se destaca com o livro “The Gourd Book”, no qual discute a origem e os tipos encontrados em todos os continentes, contextualiza como as sementes espalharam-se pelo mundo através da deriva oceânica, descreve a sua importância e os usos gerais nos mais diferentes contextos e culturas.

De acordo com Kistler et al. (2014, p.2937-2939), a cabaça foi uma das primeiras plantas domesticadas e a única com distribuição global pré-colombianas. Mesmo sendo natural da África, foram encontrados vestígios arqueológicos de sua utilização por seres humanos no leste da Ásia, nas ilhas do Pacífico, possivelmente há 11.000 anos e, nas Américas, há 10.000 anos. Os autores ainda relatam que, apesar de sua importância utilitária para as populações humanas, ainda não se sabe como esse fruto tornou-se tão amplamente distribuído e nem como chegou ao Novo Mundo.

Tomando como um estudo científico, com 86.000 bases de DNA genéticas e arqueológicas, Kistler et al. (2014), constataram que as variedades encontradas no continente americano possuem maior semelhança genética com as africanas, do que com as asiáticas. Sendo a África considerada a região ancestral de origem dos porongos que povoaram as Américas. Para os autores, os porongos do Novo Mundo compartilham um ancestral comum com as africanas de 60.000 a 103.000 anos atrás. Estes pesquisadores realizaram uma modelagem da deriva oceânica e mostram que as variedades africanas selvagens poderiam ter flutuado pelo Oceano Atlântico e se naturalizado no continente americano durante o Pleistoceno Tardio.

A partir da modelagem da deriva oceânica, os autores testaram a plausibilidade da dispersão oceânica dos porongos, em uma escala suficiente para explicar o nível de diversidade. Realizaram uma série de simulações de deriva oceânicas, baseadas nos Valores do Centro Nacional de Proteção Ambiental e do Centro Nacional de Pesquisas Atmosféricas e Estimativa da Circulação e do Clima Ocean. A partir das simulações, constataram que os cruzamentos da África ao Novo Mundo ocorria em menos de um ano, a maioria ocorrida entre a latitude 20° S e do equador (KISTLER et al., 2014 p.2239). As sementes contidas nos frutos das cabaças/porongos são conhecidas por permanecer completamente viáveis após quase um ano flutuando na água do mar.

As populações nativas realizavam a domesticação e a dispersão da cultura, múltiplas vezes em uma paisagem geográfica e culturalmente diversa (KISTLER et al., 2014, p. 2937). Nessa perspectiva, as primeiras populações foram estabelecidas nas Américas, na região Neotrópica, em lugares como Flórida, México e Brasil, mesmo que não seja possível verificar o local exato em que foram domesticadas.

Outra possibilidade apresentada refere-se aos estudos de Erickson et al. (2005), os quais, a partir da análise arqueológica e genética de DNA, em oito regiões do mundo, buscam compreender como ocorreu, a transição para a agricultura pela humanidade com a domesticação das plantas e animais há aproximadamente 10.000 anos atrás. Com a Lagenaria Siceraria, os autores, buscam compreender se a introdução do porongo nas Américas teve como origem a África ou a Ásia, se foi transportado por seres humanos ou por correntes oceânicas (ERICKSON et al., 2005, p.18.315).

De acordo com estes autores, os porongos terem sido transportados para as Américas da Ásia pelos Paleoindians ao colonizar o Novo Mundo. Os autores buscam compreender como a ocorrência consistente da Lagenaria Ciceraria, uma planta do Velho Mundo, teve estreita relação com os povos indígenas do Novo Mundo. Para estes pesquisadores os porongos domesticados teriam sido transportados para a América, por pessoas que chegavam da Ásia em barcos ou que atravessavam uma antiga ponte terrestre entre os continentes, ou que tenham flutuado através do Estreito de Bering, depois de ser transportado por seres humanos de sua África natal para o nordeste da Ásia (ERICKSON et al., 2005, p. 18.315).

No entanto, Kistler et al. (2014, p. 2938), consideram essa possibilidade pouco provável, pois os frutos somente prosperam em ambientes tropicais e subtropicais e, no cenário da origem asiática, a propagação se daria pelas regiões árticas. Além disso, foram encontrados em Zimbabwe, na África, populações selvagens com semelhança genética similar a presente no continente americano.

Uma das grandes contribuições da pesquisa de Erickson et al. (2005, p. 18.315-18.320), concerne ao fato de ter conseguido, a partir do radiocarbono, datar que os porongos já existiam nas Américas há 10 mil anos e disseminaram-se há 8 mil anos. Os estudiosos também comprovam que alguns dos espécimes estudados estão entre os mais antigos já encontrados, foram usados no Novo Mundo como recipientes durante pelo menos 9.000 anos.

Apesar das divergentes constatações entre os resultados das pesquisas de Kistler et al. (2014) e Erickson et al. (2005), não se pode deixar de evidenciar que ambos são relevantes e contribuíram significativamente nos estudos acerca da origem, domesticação e posterior dispersão do porongo pelo continente americano.

A origem do centro de domesticação ainda está em discussão. Atualmente, as pesquisas arqueológicas com seus métodos e técnicas, conseguem obter informações botânicas detalhadas em sedimentos e artefatos, as quais trazem, constantemente, novas evidências a respeito das datas de utilização dos mesmos e permitem redefinir o centro de origem.

Contudo, de forma geral, a domesticação e posterior dispersão está relacionada ao período de domesticação dos vegetais, os quais ocorreram, conforme Pezo (2015), no continente americano entre 11.000 e 9.000 anos. Para o autor, a domesticação dos vegetais ocorreu em algumas regiões do continente americano e, em outras, ocorreu um processo de difusão e adoção.

No que concerne aos centros de origem da agricultura neolítica no continente americano, a partir da concepção de Mazoyer (2010, p. 101), observa-se que um centro amplamente irradiante foi o sul do México entre 9.000 e 4.000 anos atrás.

 

Nesse centro irradiante, pequenos grupos de caçadores-coletores nômades teriam começado a se reunir na estação úmida para praticar a colheita da cultura da pimenta e do abacate. Muito mais tarde há aproximadamente 7.000 anos esses vilarejos temporários de cultivadores sazonais já eram muito mais importantes. Os cultivos primaveris de milho precoce, de abóbora e de abobrinha eram igualmente praticados, bem como, mais tarde, há aproximadamente 5.000 anos, o cultivo do feijão. Todavia, essas populações continuavam nômades na baixa estação e tentavam obter, pela caça e pela coleta, uma parte ainda importante de sua subsistência (MAZOYER, 2010, p.112).

 

Compreende-se que, possivelmente, a domesticação inicial no continente americano deu-se no México e difundiu-se para demais espaços. Apesar de Mazoyer não trazer elementos específicos acerca do cultivo dos porongos, aporta evidências da sua inicial domesticação e da forma como as populações nativas deslocavam-se nos territórios e organizavam suas rotinas, a fim de obter os alimentos. Como as populações eram nômades, os porongos poderiam ser amplamente utilizados enquanto recipientes.

Mazoyer (2010, p.112), relata que houve outros dois centros de origem da agricultura, os quais se estabeleceram, um nos Andes Peruanos/Equatorianos há mais de 6.000 anos e o outro, na bacia do médio Mississipi entre 4.000 e 1.800 anos. No entanto, esses centros são caracterizados como pouco ou nada irradiantes. Ou seja, suas práticas estariam, segundo Mazoyer (2010), mais limitadas ao espaço de ocorrência e a sua dispersão seria muito lenta, isto é, levaria milênios.

Os porongos, estão entre os cultivares mais antigos do continente americano. Na parte Sudoeste do Equador e do sítio de Las Vegas, datam 12.000 e 10.000 anos. Já no norte da América do Sul e Panamá, datam 10.200 e 7.600 anos (PEZO, 2015, p. 55). O referido autor ainda destaca que, são mais antigos que o milho e o feijão, os quais datam entre 7.500 anos.

Quanto a propagação das espécies, Mazoyer (2010, p.118-119), levanta duas hipóteses: a primeira resultaria da colonização progressiva, pelas sociedades agrárias provenientes dos centros irradiantes, de territórios anteriormente vazios ou ocupados por caçadores-coletores; a segunda, da transmissão progressiva das ferramentas, das espécies domesticadas, dos saberes e do savoir-faire agrícola às sociedades de caçadores-coletores preexistentes, que teriam, desse modo, se convertido à agricultura. Até, o presente momento, as duas possibilidades são aceitas pelos estudiosos e não há a supremacia de uma em relação a outra.

O processo de difusão e dispersão dos porongos justificaria-se, nos mais diversos tempos/espaços, pelas práticas tradicionais e tradições culturais entre diferentes povos e grupos sociais. Na sequência apresenta-se como as práticas de utilização se materializam em diferentes territórios.

 

2.2 A utilização dos porongos em diferentes espaços

 

O porongo é um fruto versátil, de fácil cultivo e manuseio, suas diferentes formas e tamanhos, conforme observado na figura 2, possibilitaram, ao longo dos anos, múltiplos usos. Cada povo atribui-lhe funções e significados, que podem ser distintos.

 

Figura 2 - Diferentes tipos de porongos: a) longos; b) periformes; c) pequenos

Fonte: Adaptado de Seedman, 2015

 

Na África, são muito utilizados como recipientes para armazenar alimentos, para transportar água, na confecção de instrumentos musicais, em redes de pesca, tigelas entre outros. No que se refere ao artesanato, várias técnicas de decoração são utilizadas, cada uma representa a tradição e a cultura de determinado grupo, conforme figura 3. A escassez de recursos, em grande parte do continente africano, pode ser considerada um dos fatores para o uso com diversos fins.

 

Figura 3 - Artesanato com porongos na Nigéria

Fonte: Adaptado de Valentine, 2018

 

A aplicação em redes de pesca, em que as boias eram/são feitas com porongos secos, conforme figura 4. Essa prática ainda é muito utilizada em vários lugares da África. A imagem, apresentada demonstra, além da utilização dos porongos nas redes de pesca, o Festival Internacional de Pesca e Cultura Argungu realizado na Nigéria. Considerado um dos principais eventos de turismo do país. Os competidores só podem usar ferramentas de pesca tradicionais e muitos preferem pegar peixes inteiramente à mão. Os porongos maiores são utilizadas como recipientes para depositar os peixes (PULSE NEWS AGENCY LOCAL BY NAN, 2018).

 

Figura 4 - Redes de pesca com boias de porongos

Resultado de imagem para TARTAGLIA, S. Argungu Fishing Festival 2016

Fonte: Tartaglia, 2018

 

Na Nova Zelândia, segundo registros arqueológicos, eram utilizados como recipientes para a retenção de água, óleos, flutuadores, máscaras, bem como recipientes para carne e instrumentos musicais. As peças eram personificadas, uma vez que as "sementes forneceriam vasos de água para os descendentes" (BURTENSHAW, 2003, p. 3-7).

Já no Japão e na China, segundo Erickson et al. (2005), foram encontrados exemplares utilizados como utensílios em sítios arqueológicos, os quais datam de 8.000 a 9.000 anos. Estes dados demonstram que a espécie existiu no Velho e Novo Mundo e caracterizou-se como um importante utensílio para as civilizações, motivo que justificaria sua dispersão pelos continentes.

 

2.3 Os porongos no Continente Americano

Nos Estados Unidos, atualmente são muito utilizados para a decoração artística. Contudo, os registros apontam de que já eram produzidos desde o ano de 1821, no geral as peças apresentam traços da cultura do povo que a produziu em determinado período histórico (AMERICAN GOURD SOCIETY, 2017).

No que se refere a utilização pelos índios, eram amplamente utilizadas pelos diversos povos habitantes de todo o continente Americano. A disponibilidade e a facilidade de manuseio difundiram sua utilização em: chocalhos, ornamentos, como utensílios para o armazenamento de sementes, água, alimentos, etc.

No México, de acordo com Hodge (1907), diversas espécies e variedades foram corriqueiramente criadas pelos índios, as quais produziram frutos de diferentes formas e tamanhos globosos e podiam ser moldadas enquanto cresciam. O autor evidencia que cada grupo indígena tinha formas particulares de utilização. Neste país, ainda segundo Boas (2015, p.121), eram utilizados para a confecção de pratos, os quais posteriormente eram revestidos com laca.

Em um estudo recente, liderado por Khoury (2016), um grupo de pesquisadores do Centro Internacional de Agricultura Tropical mapeou, em 177 países, as origens geográficas das culturas em todo o mundo, o foco da pesquisa era compreender a origem global dos alimentos utilizados. Para cada lugar estudado, foram determinadas a importância do produto e a sua diversidade. A pesquisa refere-se à América do Sul como um dos possíveis pontos de origem dos porongos, além de verificar a sua presença na Bolívia, Brasil, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname e Venezuela.

O registro da presença ocorreu, segundo Bastos (2010, p. 26), com a chegada dos colonizadores e conquistadores, os quais encontraram os frutos em abundância em todas as regiões do Brasil e América Latina. Cultivados ou silvestres, eram muito utilizados pelas nações indígenas, coletores e caçadores, por sua leveza e por ser um recipiente natural.

Nos Andes Centrais, Pezo (2015), evidência que a partir das evidências arqueológicas, encontraram junto aos sepultamentos, instrumentos de cozinha como vasilhas, pratos e garrafas feitos a partir de porongos. O mesmo autor, ainda relata que a presença data 10.700 anos, encontrados no Peru, no sitio de El Jaguey costa sul, com provável origem do México (PEZO, 2015, p.101). Para Pezo, o México seria considerado o centro de domesticação e dispersão para todos os demais espaços do continente Americano, ainda que não haja nenhum elemento científico que corrobore essa assertiva.

Em diferentes espaços e contextos, geralmente, os porongos eram utilizados como instrumentos de cozinha e para o armazenamento de alimentos e têxteis (SHADY, 2006, p. 37). Pezo (2015, p. 492), corrobora com a assertiva ao relatar a presença de sua utilização como vasilhame para o armazenamento de fibras vegetais, algodão, lã e peles. Isso sugere que foram usadas como recipientes nas Américas por milhares de anos, antes do advento da cerâmica, uma planta do Velho Mundo, que tem estreita associação com os primeiros indígenas do Novo Mundo (ERICKSON et al., 2005).

A opção pelos porongos e não pelas cerâmicas ocorria, primeiro, pela umidade e proliferação de fungos, gerada pelas cerâmicas (PEZO, 2015, p.493). Ademais, o fato das populações não terem se sedentarizado por completo, pressupõe a maior adequação dos porongos em relação à cerâmica, a última mostrava-se bastante frágil para povos cuja rotina caracterizava-se como seminômade.

Em sua tese, Pezo (2015, p.494) constatou, a partir do estudo em nove sítios arqueológicos dos Andes Centrais do Período Intermédio Tardio (10.000-1.470 anos), que o uso dos porongos para o serviço de alimentos foi corriqueiro em todas as regiões e períodos, considerada uma prática cultural persistente nos Andes. Para isso, relata a evidência da utilização da ancestral técnica da cocção indireta, conhecida como sopa de pedra, em que um seixo aquecido na fogueira é colocado dentro do porongo cheio de comida até cozinhá-la (PEZO, 2015, p. 415).

No Perú, importante uso se dá pela arte, principalmente nos trabalhos de José Sabogal e Mariano Florez, artistas Peruanos. Mariano Florez (1850-1949), destacou-se pelo belíssimo trabalho realizado com porongos na forma de artesanato, para a confecção dos mates burilados, o que se configura na:

 

Arte de esgrafitar a casca dura e amadeirada do porongo, com o auxílio de instrumentos pontiagudos, utilizando diversas técnicas, criando um fruto decorado. Os mates burilados são porongos e possuem funções heterogêneas, que deslocam-se no tempo e no espaço. Durante a colonização do Peru, tornaram-se peças de decoração, sendo utilizados como cofres ou porta joias. O fruto é transformado em um livro circular, que se torna testemunho e narrador de um tempo ou um acontecimento especial, que lhe foi registrado em sua superfície lisa e macia, por meio de incisões ou gravações a fogo com a finalidade de transmitir algo a alguém. Os mates burilados romperam o silêncio e tornaram-se vozes, na medida em que as histórias narradas foram sendo desveladas pelos espectadores (BASTOS, 2010, p. 110).

 

Por meio de sua arte, Mariano Florez, representou momentos que vivenciou em seu país de origem (Perú), como paisagens andinas/marítimas, combates, entre outros, conforme apresentado na figura 5. Os mates burilados são denominados como a verdadeira arte peruana, por ser uma expressão artística, a qual enaltece a produção indígena contemporânea, um produto da mestiçagem (SABOGAL, 2006).

Na perspectiva de Center (2017, p.1), na obra de Mariano Florez, verifica-se até mesmo os menores detalhes, tanto que as pessoas reconheceram cada figura retratada. Esta cena – o encontro final entre as forças peruanas e chilenas em Árica, em 7 de junho de 1880 – representa um dos momentos culminantes da Guerra do Pacífico (1879-1883), que enfraqueceu a posição do Peru como potência continental. A riqueza dos detalhes leva os pesquisadores a acreditarem que Mariano revelava nos porongos eventos históricos testemunhados ao longo de sua vida.

 

Figura 5 - Porongo esculpido por Mariano Florez

Fonte: The National Museum of the American Indian, 2018

 

A prática da confecção dos mates burilados foi iniciada em comunidades andinas rurais. A arte produzida simboliza a identidade e a cultura indígena peruana. Para Sabogal (1929), os mates burilados são excelentes exemplos do artesanato indígena e, habilmente, representam a beleza pictórica do Peru. O autor salienta que a decoração utilizada combina o realismo da arte espanhola com o ritmo visual dos Andes e o artesanato inspirado no muralismo mexicano. A riqueza de detalhes, citada por Sabogol pode ser observado a partir da figura 6, com o mate burilado, que data 1.600 anos, encontrado no Peru no complexo arqueológico de Cahuachi (Nasca).

 

Figura 6 - Mate burilado 1.600 anos

http://3.bp.blogspot.com/-JhIbmYcepCE/U3KF4L3FP7I/AAAAAAAAIiY/MU_2sUlEMyA/s1600/000.jpg

Fonte: Verde, 2018

 

Os povos andinos decoravam artesanalmente os porongos, com a utilização de técnicas bastante elaboradas de entalhes. O entalhe é uma habilidade milenar, que transcende gerações e foi usada para representar crenças, tradições, assim como, a materialização, em suas diferentes facetas, da vida nas comunidades andinas. As técnicas e os materiais utilizados possibilitavam a confecção de peças ricas em detalhes, num momento histórico em que os povos não tinham acesso aos conhecimentos ditos "modernos", trazidos pelos colonizadores.

Neste contexto, as descobertas arqueológicas levam-nos a refletir sobre a hipótese difundida de que a Europa é considerada o berço da civilização e da arte moderna. Haja vista, que os diversos povos de todo o continente Americano já utilizavam os porongos entre outros materiais, para a confecção de arte muito antes das invasões espanholas, as quais iniciaram no século XVI. Este fato demonstra que os povos já possuíam domínio e determinados conhecimentos, os quais lhes possibilitavam, inclusive, a utilização de plantas para o tingimento das peças confeccionadas.

Na atualidade, as peças, o artesanato dos mates burilados confeccionados, apresentam diferentes expressões históricas e contemporâneas como pode ser observado na figura 7.

 

Figura 7 - Mates burilados produzidos, a) no Perú, b) no Equador

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Fonte: Común Tierra (2018), e Ministério da Cultura do Perú, 2018

 

Apesar da significativa expressividade representada na arte, pela cultura indígena peruana, os mates burilados, confeccionados com a utilização dos porongos, ainda se encontram pouco difundidos fora do Peru. No entanto, o simbolismo que a peça artesanal representa, transporta sentidos de uma tradição do passado para o presente, em que novos valores e significados podem ser atribuídos (TEDESCO, 2013).

Os porongos estão presentes em diferentes espaços, momentos e contextos históricos. Sua utilização pelos povos nativos do continente Americano já era difundida mesmo antes da chegada dos europeus, foi muito usado para armazenar alimentos e estava no conjunto dos principais produtos cultivados pelos povos da antiguidade. Para Bonavia (1996), a dispersão e a presença podem ser justificadas, não só pela utilização na confecção de recipientes, mas também na alimentação humana e animal, já que as suas sementes são comestíveis. Nesta concepção, evidencia-se que o fruto possuiu um papel relevante dentro das diversas civilizações que o utilizavam/utilizam. No decorrer dos séculos, apresenta várias utilidades com distintos sentidos.

Cada povo em particular atribui um significado e sentido específico, os quais representam não somente um modo de vida, como também relações de identidade com o espaço e a natureza. O fruto se distribuiu na contemporaneidade, existe em distintos espaços e culturas, entre os quais destacam-se a África, Ásia e o continente Americano. Dessa forma, assegura-se que os porongos são frutos multiculturais.

Entre os elementos que propiciaram a dispersão pelos continentes e seu subsequente cultivo, cita-se a vasta utilização do fruto pelos mais diversos povos, bem como sua resistência e a durabilidade, tanto para armazenagem de alimentos ou água, quanto para instrumentos musicais, objetos decorativos e religiosos.

Apesar dos avanços das pesquisas referente a temática, ainda é um enigma definir se, inicialmente, o fruto alastrou-se por difusão ou dispersão, ou se os caçadores/coletores e agricultores/nativos levaram as sementes e plantaram nos novos territórios. A domesticação inicial ocorreu apenas em algumas regiões e dispersou-se, posteriormente, por todo o continente Americano. É encontrado em vários espaços, inclusive no município de Santa Maria-RS, importante área produtora, cuja destinação prioritária é a confecção das cuias para o chimarrão, o qual configura-se numa possibilidade econômica para agricultores familiares.

A opção pelo cultivo ocorreu/ocorre por uma necessidade que, a princípio, poderia ser de sobrevivência no armazenamento de alimentos e de água, mas, na atualidade, vai muito além. O porongo é, antes de tudo, um fruto presente em vários lugares do mundo, que dá origem a diversos utensílios. Neste contexto, é um artefato multicultural, uma expressão da forma de viver de distintos grupos sociais, em todos os continentes.

 

2.4 O porongo nos países do Cone Sul

É inegável que, no Continente Americano, o uso dos porongos encontra-se amplamente difundidos. As práticas e tradições culturais permitem múltiplos e distintos usos dos frutos. Em países do Cone Sul (Brasil, Uruguai, Paraguai, Argentina e Chile), a utilização ocorre, predominantemente, para a confecção das cuias do chimarrão, uma tradição cultural difundida entre os povos desses países. O costume de tomar chimarrão é anterior à chegada dos espanhóis e portugueses, já sendo praticado pelas populações indígenas habitantes dessa região. Também é utilizada, em menores proporções, para artesanato, instrumentos de música, tigelas, entre outros.

No Brasil está mais presente na região Sul, principalmente nos Estados do Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Paraná. A posição geográfica do sul do Brasil possibilitou amplas áreas de fronteiras com os países do Uruguai, Argentina e Paraguai. Nesses espaços, a miscigenação e o contato com diferentes culturas permitiram a socialização e a propagação de costumes e hábitos, entre eles, o chimarrão. Contudo, a forma em que a prática se materializa ocorre de maneira diferenciada entre esses povos, o que exige distintos formatos, tipos e tamanhos de porongos para a confecção das cuias.

De modo tradicional, utiliza-se o porongo para a confecção de cuias. Em regiões produtoras de erva mate e porongos, como no Brasil, popularizou-se a utilização das cuias de bocal largo (as maiores). Já nas regiões em que os produtos chegavam em morosas carretas e no lombo de carqueiros – Uruguai, Argentina –, introduziu-se a cuia de bocal pequeno, considerada econômica (LESSA, 1986, p.53). Essa distinção entre os usos acaba por caracterizar as relações que os homens estabelecem com sua cultura de origem, com o porongo e a região. De acordo com as características de cada região e do modo de vida, pode ocorrer um tipo de utilização ou outro.

No Brasil, o chimarrão geralmente é socializado em grupo e considerado um hábito típico difundido, especialmente, entre os gaúchos. Para o preparo são utilizadas, sobretudo, as cuias de porte médio com casco natural, demonstradas na figura 8.

 

Figura 8 -  Cuia de porte médio comumente utilizada no Brasil

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Fonte: Trabalho de campo, 2018

 

Por sua vez, na Argentina, Uruguai, Paraguai e Chile, geralmente, é tomado de forma individual em cuias pequenas (figura 9). É comum cada pessoa andar nas ruas com sua própria cuia e garrafa de água. Muitas das cuias utilizadas prioritariamente no Uruguai e Argentina são procedentes do Rio Grande do Sul, cultivadas pelos agricultores familiares do município de Santa Maria-RS. As mesmas são comercializadas nas fronteiras dos municípios de Santana do Livramento-RS, Uruguaiana-RS e Bagé-RS e destes espaços enviadas aos países. As cuias pequenas, denominadas tipo "coquinho", não possuem boa aceitação no mercado interno brasileiro, o que está diretamente relacionado ao seu tamanho, formato e qualidade do casco, em contrapartida são as preferidas dos países citados (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

 

Figura 9: Cuia de porte pequeno

Fonte: Trabalho de campo, 2018

 

A cuia do chimarrão possui significativo valor simbólico e está, praticamente, presente no dia a dia dos que dividem o hábito. No entanto, muitos dos que partilham o costume não têm conhecimento da origem do porongo. Ainda que pouco difundida no Brasil, como uma atividade comercial, a cultura é essencial para a confecção das cuias. Apesar da pouca visibilidade em nível nacional, o cultivo é importante e representativo para a agricultura familiar do Rio Grande do Sul, visto que são estes os que produzem os porongos. Bisognin e Marchezan (1988), afirmam que pouco se conhece sobre a cultura do porongo no Brasil, havendo carência de informações das práticas e manejo do cultivo.

No município de Santa Maria-RS, os agricultores familiares utilizam de saberes tradicionais para a seleção dos frutos, os quais fornecem as sementes para o próximo cultivo. Os frutos são selecionados, na própria lavoura, basicamente pelo tamanho e o formato, sem nenhuma atribuição à planta, ou seja, é uma seleção fenotípica de frutos individuais (BISOGNIN; STORCK, 2000). O conhecimento que possuem é transmitido de geração em geração, adquirido ao longo de anos dedicados ao cultivo, no qual, entre observações, erros e acertos, adaptam e apreendem as técnicas (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Nesta linha de pesquisa é válido salientar o trabalho de Esquinas-Alcazar e Gulick (1983), onde foi demonstrado que o porongo apresenta uma grande variabilidade genética, tanto intrapopulacional, quanto interpopulacional. Ao longo dos anos, a mistura de sementes e o uso concomitante de várias espécies nas lavouras favorecem a perda da identidade genética de determinadas variedades. Esse processo ocorre quando há o contato entre diferentes espécies nos cultivos, as quais naturalmente polinizam-se. Muitas das características especificas das cuias como a espessura (casco grosso, casco médio, casco fino), tamanho, formato, etc., dependem das populações (genótipos) e da região em que são plantados. Essas características também definem a qualidade e o valor comercial do produto (BISOGNIN et al., 2008).

Os principais pontos de cultivo de porongos no Estado do Rio Grande do Sul estão concentrados em três grandes regiões, a região de Frederico Westphalen, a região central em Santa Maria e a região de Montenegro, sendo o município de Santa Maria o maior produtor (CAMPO E LAVOURA, 2013), motivo pelo qual optou-se por pesquisar a área.

Neste estado, duas espécies de porongueiro destacam-se para o processamento de cuias: as que produzem cuias de casco fino cultivadas, na região de Santa Maria e Montenegro; e as que produzem cuias de casco grosso, cultivadas na região de Frederico Westphalen, noroeste do Alto Uruguai (TREVISOL, 2013). O porongo do casco fino pode produzir, em média, 12.000 frutos por hectare, duas vezes mais do que o do casco grosso, o que justifica a preferência pelo primeiro para o plantio e fabricação de cuias (BISOGNIN et al., 2008). No entanto, o do casco grosso, segundo Trevisol (2013), possui maior valor de mercado.

Ao longo do tempo, a utilização do porongo nas mais variadas culturas, adapta-se a múltiplas finalidades. Dentro de um mesmo país, no caso o Brasil, os usos ocorrem de formas diferenciadas de acordo com a região.

No espaço rural da região Nordeste, era essencialmente aproveitado para confecção das moringas, utilizadas para o transporte de água e gamelas com finalidades domésticas, usos não convencionais na região Sul do País. Atualmente, a matéria prima (figura 10), é muito utilizada para a fabricação de artesanatos. Os artesãos nordestinos produzem peças decorativas para restaurantes, bares, casas, lojas, etc. Com o passar do tempo, seu uso se amplia, o que ocasiona uma maior demanda e possibilita a implantação de novas áreas de cultivo em distintos espaços no território brasileiro, como a verificada em Goiás (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

 

Figura 10 - Porongos para artesanato

imagens porongos Goiás.JPG

Fonte: Oliveira Filho, 2018

 

Já na região Sul do Brasil, a produção em sua maior parte, é destinada para a confecção das cuias do chimarrão, mesmo que as cuias produzidas de madeira, porcelana, alumínio, vidro, já estejam disponíveis no comércio. No distrito de Arroio do Só, a maior ameaça destacada pelos entrevistados diz respeito a essa diversificação de materiais utilizados na confecção das cuias, ainda que todos façam referência ao hábito e sabor diferenciado do chimarrão servido na cuia de porongo.

 

2.5 Os agricultores familiares produtores de porongos/cuias do distrito de Arroio do Só

Um número significativo de famílias do distrito de Arroio do Só se dedica ao cultivo, no ano de 2018, foram localizadas 21 famílias, num total de 72 pessoas, entretanto, anualmente, esse número oscila, devido à dificuldade de encontrar terras aptas ao cultivo.

O cultivo deste é uma opção de trabalho e sustento, pois colabora na geração de renda do agricultor familiar, assim como, dos demais sujeitos que se encontram inseridos direta ou indiretamente em toda sua cadeia produtiva: a produção/transformação/comercialização. A cultura é a principal fonte de entrada de renda de muitos agricultores familiares de Arroio do Só.

Os agricultores familiares do referido espaço têm por tradição plantar porongos, visto que já produzem, segundo relato dos depoentes, a mais de 80 anos. A base econômica do distrito gira em torno da produção de porongo e seu posterior processamento.

A continuidade do cultivo ao longo dos anos é recorrente da origem dos atuais produtores. A partir do trabalho de campo, constatou-se que 72% são descendentes de famílias do próprio distrito, onde os pais/avós já praticavam o cultivo em períodos anteriores.  Nesse contexto, a relação da maior parte dos agricultores com a atividade pode ser considerada como uma marca do distrito, uma tradição que se perpetua ao longo dos anos e gerações, possibilitando a permanência e reprodução dos agricultores (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Para este grupo, o aprendizado sobre o cultivo, seus manejos, técnicas de pré-processamento, entre outros são transmitidos de geração a geração, podendo ser considerado um patrimônio tradicional e contemporâneo. Tradicional pelas técnicas que são simples e remetem ao conhecimento do homem rural, o qual possui o seu saber fazer, e contemporâneas, porque ainda produzem com pouca interferência externa. A forma como os conhecimentos são repassados vem permitindo que as famílias trabalhem juntas, ensinando aos mais jovens, possibilitando a sucessão familiar e a inserção de novos agricultores na atividade. Os processos utilizados na produção, tanto no cultivo quanto no pré-processamento, estão constituídos em bases familiares e estruturados sobre uma reprodução relativamente autônoma (PLOEG, 2006).

Os demais 28% são originários de outros distritos rurais de Santa Maria e de municípios próximos, porém, já residem no distrito há quinze anos. Inseriram-se na cultura do porongo pela rentabilidade, e pelo contato oportunizado, a partir das relações estabelecidas, desde a inserção nas agroindústrias familiares processadoras de cuias brutas, enquanto funcionário/a. Nesse caso, o aprendizado deu-se com base na observação da convivência, das conversas informais com os agricultores e dos conhecimentos adquiridos no processamento final das cuias brutas.

Apesar da tradição fazer-se presente, em ambos os grupos, a principal razão que os leva a cultivar porongos é a rentabilidade, conforme observado na fala do depoente P-17,

 

Para aqueles que são filhos de agricultores que cultivavam porongos tem-se a rentabilidade associada à tradição, é o que sabem fazer, faz parte da história do distrito, contudo a rentabilidade é o que nos leva a cultivar porongos. Em terrenos acidentados é o que mais dá certo. Para os demais é a rentabilidade mesmo, trabalham nas agroindústrias e nas propriedades para a limpeza e tratos com o porongo e aprendem, posteriormente os que podem iniciam o cultivo (P- 17, Diário de Campo, 2018).

 

Com o passar do tempo e com a instalação das agroindústrias de cuias, a produção ampliou-se, no ano de 2018 foram localizadas sete unidades no distrito. A garantia e a facilidade da venda da produção é fator determinante, a fim do aumento das áreas de cultivo, bem como os pequenos custos com o manejo, que ocorre de forma manual, não necessitando de grandes investimentos (P-7, P-12, P-20, 2018).

Outro fator determinante informado pelos entrevistados, refere-se ao hábito de consumo do chimarrão, visto que até algumas décadas esse consumo era centralizado nas áreas rurais, ao passo que hoje cresce nas áreas urbanas. Nesse sentido, pode-se afirmar que há um potencial de crescimento da demanda pelas cuias e, consequentemente, do cultivo dos porongos (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

 

Em relação à propriedade da terra, todos os agricultores entrevistados possuem áreas próprias dentro do distrito de Arroio do Só. Essas terras foram obtidas por meio de três processos principais: por herança, pela compra e pela combinação de heranças e compra. A maior parte, 62%, exclusivamente pela herança, 19%, a partir da compra e para outros 19%, a atual área resulta de herança/compra (DIÁRIO DE CAMPO, 2018). Apesar de todos os agricultores possuírem terras próprias, a prática do arredamento é constante, haja vista que, 66% do grupo possuem menos de 10 hectares de terra disponível, no mais o cultivo não pode ocorrer seguidamente na mesma área, havendo a necessidade de um intervalo de quatro anos entre um cultivo e outro. Isso acontece, em razão da cultura extrair muitos nutrientes do solo, sendo assim, neste período, há a recuperação da área, mas esta pode ser utilizada posteriormente a outros cultivos, dentre eles, a soja, a qual avança de forma significativa no distrito, se configurando como risco à permanência dos agricultores produtores de porongos.

Todo ano, o agricultor busca novas áreas no distrito, em outros distritos do município ou mesmo em municípios próximos, geralmente, aqueles que fazem divisas com Santa Maria (RS). Devido à procura pela terra e a boa produtividade, os agricultores anualmente percorrem longos trajetos, para garantir o local que possibilitará, antes de tudo, sua permanência, enquanto agricultor familiar, como pode ser observado no relato do depoente,

 

Desde que começamos a cultivar porongos, sempre foi em outros distritos. Agora já estamos pensando na possibilidade de outro município, ... as terras são de melhor qualidade possibilitando o desenvolvimento de um porongo de melhor qualidade, também o custo do arrendamento é menor (P-11, 2018).

 

O tamanho das áreas destinadas aos cultivos e o número de agricultores, em cada segmento para a safra 2018/2019, podem ser observados na figura 11. Os vinte e um agricultores familiares, pesquisados, ocuparam entre áreas próprias e arrendadas o equivalente a 245 hectares. Desse total, quatro agricultores desenvolveram os cultivos em áreas de 0 a 5 ha e representam 19% do grupo, três agricultores utilizaram áreas de 5 à 10 ha e abrangem 14% dos pesquisados, dez agricultores ocuparam áreas de 10 à 15 ha e correspondem a 48% do grupo, o maior percentual de agricultores está nesse segmento e quatro agricultores em áreas de 15 à 20 ha, estes representam 19%. Os agricultores colhem de 7.000 a 10.000 porongos por hectare. Essa diferença ocorre pela fertilidade e tipo de solo disponível.

 

Figura 11 - Distribuição das áreas de plantios 2018/2019

Fonte: Trabalho de campo, 2018

 

O cultivo dos porongos, mantém-se ao longo dos anos, na medida em que possibilita maior retorno de recursos financeiros em pequenas áreas de cultivo, uma vez que, 81% dos entrevistados, cultivam áreas que vão até 15 hectares, o que viabiliza a continuidade da atividade.

Todas as sementes utilizadas são próprias e selecionadas anualmente a cada novo cultivo. Quando os porongos colhidos chegam à propriedade, o agricultor realiza uma seleção, separando alguns exemplares por tipo, de acordo com as exigências do mercado. No momento do corte, escolhem-se porongos que tem uma semente boa, a qual é visualizada pelos conhecimentos tradicionais (P-3, 2018). No entanto, apesar dessa pré-seleção, o cultivo ocorre diversificadamente, pois a polinização realizada pelas abelhas acaba miscigenando e misturando todos os tipos, resultando em diferentes formatos em uma mesma área de cultivo.

Todos os entrevistados salientam que o cultivo e seu posterior pré-processamento exigem muito trabalho, mas é o que mais dá retorno financeiro, pois a comercialização é fácil, "com o porongo o retorno é garantido, a venda é fácil, nem precisa sair de casa, as agroindústrias batem em nossa porta" (P-12, 2018). Todas as cuias são comercializadas prioritariamente para as agroindústrias.

No que se refere à composição total da renda, os agricultores estão compostos por dois grupos: aqueles que possuem a renda somente proveniente das atividades agropecuárias compõem 76% do grupo, enquanto aqueles que as rendas resultam entre a justaposição das rendas de atividades agropecuárias e não agrícolas representam 24% do total. Os agricultores pluriativos, no momento da pesquisa, não informaram o valor das rendas advindas das atividades não agrícolas, contudo salientaram que esta é secundária, sendo a proveniente do cultivo dos porongos maior e central para a reprodução da família, motivo pelo qual permanecem nessa atividade (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

No primeiro grupo, 48% das famílias entrevistadas, possui renda mensal de dois a três salários mínimos, destas, 80% cultivam porongos e 20% associam porongos com a criação gado de corte. As famílias, com renda de 1 a 2 salários, representam 9,5%, sendo que 50% destes somente cultiva porongos, e os demais 50% associam a cultura do porongo com a melancia. Famílias que possuem uma renda de 3 a 5 salários mínimos representam 28,5% do grupo, destes, 67% obtém somente com o cultivo dos porongos e 33% na associação entre porongos/arroz e porongos/soja. Por sua vez, aqueles com renda superior a 5 salários constituem 14% dos pesquisados, dos quais, 67% somente cultivam porongos e 33% associam porongos com criação de gado de corte. Existe uma grande diferença econômica em relação à entrada de rendas agropecuárias nas propriedades entrevistadas, o que está diretamente relacionado à disponibilidade de recursos e terra. Ainda que, a diversificação das atividades esteja presente e auxilie na composição final da renda, para a maior parte do grupo a renda provém unicamente do cultivo dos porongos. Para todo o grupo pesquisado, o retorno que obtém com o porongo é central e essencial para a permanência e reprodução social dos referidos agricultores.

No segundo grupo, os pluriativos, está composto por cinco famílias, as quais além das atividades agropecuárias, trabalham em atividades complementares. Os trabalhos são desenvolvidos na indústria de bombas de chimarrão e nas agroindústrias familiares processadoras de cuias do próprio distrito, não necessitando de maiores deslocamentos, oportunizando que os trabalhos com o cultivo dos porongos ocorram em horários paralelos ao trabalho formal (DIÁRIO DE CAMPO, 2018).

Entre os motivos citados pelo grupo, que os levaram a buscar e desenvolver atividades fora da agricultura, estão a garantia de renda e dos direitos, a partir da carteira de trabalho assinada, como pode ser observado na fala dos depoentes P-15 e P-18.

 

Trabalho a semana toda na industria de bombas, planto poucos hectares de porongos, assim não tenho muitos gastos com mão de obra e com o arrendamento, estes gastos pago a vista, é caro, mas o retorno financeiro do porongo é bom, vale a pena. Tiro férias da indústria no período da colheita, com a carteira assinada garante os direitos. A limpeza faço nos finais de semana com minha esposa, se precisar utilizo diaristas. A renda do porongo é maior que a do trabalho na industria, vale a pena (P- 15,  2018).

 

A renda da agroindústria é complementar, ganho mais com os porongos. O trabalho na agroindústria é uma renda certa, paga INSS posso usufruir de direitos. O trabalho no cultivo é todo feito por mim. Me sinto muito satisfeito com a renda proveniente dos porongos e não tenho vontade de realizar outros cultivos, o retorno financeiro é bom (P - 18, 2018).

 

A pluriatividade passa a ser adotada, como uma das muitas alternativas que historicamente o agricultor familiar utiliza, a fim de garantir sua permanência e sobrevivência. As estratégias podem ser exclusivamente agropecuárias, não agrícolas ou ambas, cada momento e/ou período histórico oferece possibilidades, as quais podem ou não ser utilizadas, os desejos da família e suas aspirações definirão os rumos a serem adotados.

Nesse contexto, para os agricultores entrevistados, a pluriatividade  apresenta-se, como uma estratégia de reprodução, a partir do momento em que possibilita a entrada de renda proveniente de atividades não agrícolas na unidade. Uma alternativa utilizada sempre que necessário e não como uma passagem para o abandono das atividades primárias. A oportunidade de poder realizar as atividades no interior do próprio distrito de moradia das famílias configuram-se, como atrativa, assim como a flexibilidade de horários também contribui, especificamente, aqueles que estão empregados nas agroindústrias familiares, pois em períodos de menor demanda organizam seus horários, de maneira que possam realizar os tratos culturais na área de cultivo.

Na composição da renda total das famílias, as remunerações provenientes das atividades pluriativas ocupam papel secundário, a renda originária do cultivo dos porongos é maior e central tanto às unidades familiares pluriativas, quanto às não pluriativas.

Em relação ao número de cuias processadas/comercializadas pelas agroindústrias de Arroio do Só, no ano de 2018, o volume chegou a 1.200.000 cuias, valor que se mantém em maior ou menor proporção desde o ano de 2014. Segundo a fala dos agricultores, nos períodos de auge 2012/2013 chegou a processar três milhões de cuias ao ano (DIÁRIO DE CAMPO, 2018), apesar de ter retraído nos últimos anos, ainda é expressivo. Esse volume expressa a importância do cultivo produzidos pelos agricultores familiares. Estas cuias são comercializadas em maior intensidade com diferentes regiões do Brasil, bem como com a Argentina, Uruguai e Paraguai e em menor proporção com demais países, já ocorrendo com a China, Holanda e Estados Unidos. 

O valor pago ao agricultor por unidade de cuia oscila ano a ano de acordo com a qualidade da matéria prima e sua disponibilidade. No ano de 2018, a unidade foi comercializada por valores que oscilavam entre R$1,30 à R$1,50, valores que os agricultores consideram satisfatórios, na medida em que produzem em torno 80.000 unidades (P-21, P-6, 2018).

O elevado número de agroindústrias instaladas no município de Santa Maria (RS), possibilita ao agricultor relativa tranquilidade em relação à comercialização de seus produtos, visto que a demanda das cuias brutas é maior que à oferta.

No que tange ao artesanato, verificou-se que apesar da disponibilidade da matéria prima ser abundante, o mesmo, enquanto uma atividade econômica não se desenvolveu amplamente no distrito. As dificuldades encontradas na comercialização das peças constituem um dos principais obstáculos ao desenvolvimento dessa atividade. O distrito não possui atrativos turísticos, fica afastado do centro de Santa Maria e, de qualquer via, onde ocorra maior fluxo de pessoas/veículos, razão pela qual a atividade não é representativa.

Num contexto amplo, compreendemos que os agricultores produzem e se reproduzem, a partir dos saberes tradicionais, mantendo a herança que, a princípio, não é apenas de conhecimento, e sim genética com a preservação das sementes de origem, as quais podem ser consideradas um patrimônio, pela autonomia que possibilitam.

 

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS

O porongo, um fruto vastamente utilizado, transcende gerações. No continente Americano foi descoberto e, inicialmente, utilizado pelos índios para amplas utilidades, entre elas, como recipiente para apreciar o chimarrão. Neste sentido, importa compreender que cada lugar é marcado por singularidades, costumes próprios/particulares, os quais representam a identidade do povo.

Realizar um estudo sobre a trajetória histórica do porongo e a diversidade de artefatos produzidos em diferentes espaços foi um desafio. A inexistência de dados e pesquisas levaram a redirecionar o olhar à elementos que possibilitassem compreender as formas de utilização nos mais distintos tempos-espaços. Como também, demandou um trabalho transdisciplinar de diálogo e articulação dos autores da Geografia com outras áreas do conhecimento.

Com a trajetória histórica que o fruto possui junto a diversas civilizações, evidenciou-se que a sua presença/utilização já ocorria nas ilhas do Pacifico, há 11.000 anos e no Continente Americano há 12.000. Sendo o México considerado o centro inicial de domesticação e o ponto do qual difundiu-se e dispersou-se por todo o Continente Americano, pelo deslocamento das populações nativas nos territórios em busca de alimentos e pela utilização como recipientes de armazenamento e transporte.

O porongo existiu no Velho e Novo Mundo, constitui-se um fruto multicultural, versátil, de fácil cultivo e manuseio, suas diferentes formas e tamanhos possibilitaram, ao longo dos anos, múltiplos usos. As práticas e tradições culturais determinam distintos usos aos frutos, com destaque nos países do Cone Sul, onde são utilizados, predominantemente, para a produção das cuias do chimarrão. Nesta direção, os porongos são frutos que conectam diferentes partes do mundo. Estão, atualmente, presentes em vários espaços, inclusive no distrito de Arroio do Só, importante área produtora dessa cucurbitácea, no município de Santa Maria (RS), cuja destinação prioritária é a confecção de cuias para chimarrão.

Neste contexto, a cuia possui significativo valor simbólico, pois está presente no dia a dia dos que dividem o hábito de consumir o chimarrão. Porém, muitos dos que partilham o costume não têm conhecimento da origem do porongo e dos processos necessários para chegar-se à cuia pronta. Mesmo pouco difundida no Brasil enquanto atividade comercial, a cultura do porongo é essencial para a confecção das cuias, prioritariamente no sul do Brasil.

No distrito de Arroio do Só, o cultivo dos porongos apresenta-se como uma opção de trabalho e renda, a qual corrobora na geração de receitas para o agricultor familiar e aos demais sujeitos que se encontram inseridos direta ou indiretamente em toda sua cadeia produtiva.

Apesar da importância material e simbólica da produção de porongos/cuias, no distrito de Arroio do Só, em que pese a extensão da área produzida e também ao total estimado de produtores, não são mobilizados os estudos e reflexões de ordem acadêmica, não só na área agronômica, como também das ciências humanas e sociais. Considera-se que os agricultores familiares produtores de porongos existem, em maior ou menor número, desde a primeira metade do século XX. Ao longo dos anos, o cultivo dos porongos passou a ser central na composição da renda dos agricultores familiares. O que demonstra a viabilidade em manter cultivos tradicionais, mantidos a partir de saberes históricos.

A partir do contexto apresentado, compreende-se, ser este um fruto global, de múltiplas funcionalidades, presentes em distintos tempos e espaços, utilizado e trabalhado de diferentes formas. No Brasil, enquanto atividade econômica, vem permitindo a permanência e a reprodução social dos agricultores familiares. 

 

 

REFERÊNCIAS

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[i] O presente artigo é resultante do projeto de pesquisa de Pós-doutorado “As interações espaciais constituídas no Cone Sul a partir da produção dos porongos/cuias de Santa Maria-RS”, desenvolvido no Programa de Pós-graduação em Geografia (PPGGEO), da Universidade Federal de Santa Maria. A pesquisa foi realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – Brasil (CAPES) – Programa Nacional de Pós-doutorado (PNPD).