Geografia Ensino & Pesquisa, v. 24, e4, 2020

DOI: https://doi.org/10.5902/2236499437147

Recebido: 03/03/2019   Aceito: 03/01/2020

 

 

Produção do espaço e dinâmica regional

 

 

Razões da ausência de associação entre sucesso escolar e capital social na Escola Judith Bezerra de Melo - Natal/RN

 

The reasons for absence of association between success at school and social capital in the Judith Bezerra de Melo School - Natal/RN

 

Weber SoaresI

Rejane Maria SoaresII

Sergio Donizete FariaIII

 

I   Professor Associado do Departamento de Geografia da Universidade Federal de Minas Gerais. weber.igc@gmail.com

II   Doutoranda em Geografia do Programa de Pós-graduação em Geografia do Instituto de Geociências. rejanemsoares@gmail.com

III Professor Associado do Departamento de Cartografia da Universidade Federal de Minas Gerais. fariamaracai@yahoo.com.br

 

 

RESUMO

 

A literatura registra uma associação positiva entre o sucesso escolar e o capital social de alunos da educação básica. Causa estranheza a inferência, lastreada em parte dos achados empíricos resultantes de pesquisa realizada na Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo – Natal/RN, de que não haveria associação entre o bom desempenho em língua portuguesa dos alunos da 2ª série do ensino médio dessa escola e o capital social existente na rede pessoal deles. Para realizar uma espécie de crítica interna aos inusitados achados empíricos dessa pesquisa, o arcabouço teórico e metodológico da análise de redes sociais mostrou-se o mais apropriado. As repostas mais prováveis para essa ausência de associação entre sucesso escolar e capital social admitem a seguinte discriminação: i) o sucesso escolar depende da natureza da relação que o aluno mantém com o saber; ii) as métricas de capital social podem ser insuficientes para captar, em sua plenitude, a associação entre as duas variáveis; iii) a singularidade, a diversidade, a incerteza, as trajetórias inesperadas que afloram do campo das possibilidades individualizantes, tecido pelas conexões entre espaço e redes pessoais, sinalizam certos fatores de ordem socioespacial que condicionam e singularizam as distintas formas de sociabilidade; e iv) as pesquisas referentes à aplicação dos princípios educativos da nova pedagogia em alguns países europeus revelam como principais fatores do sucesso escolar a pedagogia do esforço e a qualidade do professor.

 

Palavras-chave: Análise de redes sociais; Desejo; Habitus; Sociologia da educação; Singularidades socioespaciais

 

 

ABSTRACT

 

This paper aims to conduct a critical analysis of the unusual empirical findings of a research on the nature of the links between school success and social capital, carried out in the school Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo located in the metropolitan region of Natal. Among the research conclusions, one is indeed surprising:  the statement that there would be no association between the good performance of the students in Portuguese Language and the social capital existing in their personal networks. In view of this, the theoretical and methodological framework of social networks analysis was used to assess the degree of association between social capital and school success. Results point out that: school success depends on the nature of the student's relationship with knowledge; the social capital metrics may be insufficient to fully capture the association between those two variables; the singularity, the diversity, the uncertainty, the unexpected trajectories that emerge from the field of individualizing possibilities woven by the connections between space and personal networks signal certain sociospatial factors that determine and singularize the different forms of sociability; the researches concerning the application of the educational principles of the new pedagogy in some European countries reveal the pedagogy of effort and the quality of the teacher as the main factors of school success.

 

Keywords: Social network analysis; Desire; Habitus; Sociology of education; Sociospatial singularities

 

 

INTRODUÇÃO

 

Os indicadores sobre a qualidade da educação no Brasil delineiam um quadro, para dizer o mínimo, preocupante. Além das altas taxas de reprovação e de evasão escolar, em especial na escola pública, o desempenho dos alunos do ensino básico em matemática, leitura e ciências pode ser considerado pífio consoante os resultados do Programme for International Student Assessment - PISA. Em 2015, levando em conta os 72 países que foram objeto de pesquisa, os alunos brasileiros ficaram abaixo da média: matemática - 377 pontos e média 490; leitura - 407 pontos e média 493; e ciências - 401 pontos e média 493 (OECD, 2016).

A classificação dos níveis de proficiência em matemática e português realizada pelo Ministério da Educação reforça os contornos desse quadro problemático. Numa escala de proficiência que varia de 0 a 9, o ensino médio foi classificado, em 2017, no nível 2: em matemática, 71,67% dos alunos situaram-se no nível que varia de 0 a 3, considerado nível insuficiente de aprendizado; e, em português, o percentual de alunos que ocuparam esse mesmo nível foi de 70,88% (FARJADO; FOREQUE, 2018).

Não é diferente o leque de dificuldades que enfrenta a educação pública no estado do Rio Grande do Norte. Para as escolas públicas potiguares, o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), que varia de 0 a 10, foi, em 2009, baixo tanto para os anos iniciais quanto para os anos finais do ensino fundamental - 3,5 e 2,9 respectivamente. Quanto ao município de Natal, os índices foram praticamente os mesmos - 3,7 para os anos iniciais e 3,0 para os anos finais do ensino fundamental (INEP, 2009).

Foram esses de sinais de declínio da educação básica no Brasil e, como seria de se esperar, também no Rio Grande do Norte, que motivaram a realização da pesquisa intitulada "O Habitus de Estudar: construtor de uma nova realidade na educação básica da Região Metropolitana de Natal"[1]. Partilhando dos esforços que tencionam identificar as razões desse declínio, sumariza o campo de preocupações dessa pesquisa o intento de verificar o grau de associação entre o sucesso escolar e o capital social presente na rede pessoal dos alunos de língua portuguesa da 2ª série do ensino médio da Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo. Assim, realizar uma espécie de crítica interna aos inusitados achados empíricos dessa mesma pesquisa é o que se pretende neste texto.

O primeiro passo dado na consecução dessa crítica interna consiste na exposição dos marcos teóricos que sinalizam as limitações da sociologia da educação de Pierre Bourdieu, arroladas por Bernard Charlot, quanto à conveniência de levar em conta a perspectiva relacional para apreender os determinantes do sucesso escolar e de identificar, em conformidade com a análise de redes sociais, o capital social com os recursos materiais e simbólicos circulantes nas redes bem como com as posições estruturais ocupadas pelos atores que as constituem. Na sequência, breve descrição da metodologia empregada na pesquisa de campo conduzida na Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo antecede a apresentação e a análise, em especial, dos dados que servem ao propósito de descortinar a associação entre o sucesso escolar e o capital social. Nas notas finais, a crítica interna às limitações teóricas e metodológicas da pesquisa de Natal fornece maior precisão quanto à abrangência explicativa do capital social em relação à categoria aprendizagem e, por isso mesmo, permite traçar rumos mais certeiros na busca pelos determinantes do sucesso/insucesso escolar dos alunos pertencentes à rede do ensino básico.

 

1 BOURDIEU, CHARLOT E CAPITAL SOCIAL: MARCOS TEÓRICOS DO PROBLEMA

 

A sociologia da educação de Bourdieu, em parte, falha quanto à explicação do fracasso escolar porque, segundo Charlot, desconsidera o peso da história pessoal e as singularidades dos contextos relacionais. Se de fato os contextos relacionais, ou melhor, o capital social exerce influência sobre o desempenho dos alunos da educação básica, então o arcabouço teórico e metodológico da análise de redes sociais desponta como recurso heurístico apropriado para esclarecer a natureza da associação entre o capital social e sucesso escolar.

 

1.1 Sociologia da educação de Bourdieu

 

Mecanismo da vida social pelo qual os indivíduos assimilam as normas, os valores e as crenças correspondentes à cultura de um grupo, a socialização inicia-se na família, socialização primária, e prossegue na escola, nos grupos de referência, no trabalho, na Igreja etc., socialização secundária.

Na base da legitimação da ordem social, está o habitus que é adquirido pelos indivíduos no curso da socialização. Para Bourdieu (1990), a ação não é a simples execução de uma regra: os agentes sociais estão investidos de um sistema de disposições adquiridas pela experiência que varia de acordo com o tempo e o lugar. As condutas podem, então, estar orientadas a determinados fins, sem que sejam, conscientemente, dirigidas a tais fins, isto é, as práticas rituais são produto de um senso prático e não de uma espécie de cálculo inconsciente ou da obediência cega a uma regra, o que outorga às práticas rituais a coerência parcial, nunca total, das construções práticas.

O habitus corresponde, a estruturas mentais, por meio das quais os agentes apreendem o mundo social; é o jogo social incorporado, transformado em natureza; é a disposição regrada para gerar condutas regradas e regulares à margem de referência às regras. Conjunto de padrões adquiridos de comportamento, pensamento e gosto, com traduções em diferentes domínios da prática, o habitus faz a ligação entre as forças do coletivo e as práticas individuais (BOURDIEU, 1990). Assim, com o social inscrito no corpo, estaria o indivíduo habilitado a atuar num registro de semi-improvisação tornando coisa sua o que todos sabem pertencer a um fundo comum de experiências.

As condições para o cálculo racional nunca são dadas na prática – o tempo é escasso, a informação é limitada etc. –, no entanto, os agentes fazem, com muito mais frequência do que se agissem ao acaso, a única coisa por ser feita. Abandonados às instruções de um senso prático, que é produto da exposição continuada a condições de natureza semelhante, os agentes antecipam a necessidade imanente ao fluxo do mundo; comportam-se de certa maneira em determinadas circunstâncias, porque possuem um sistema de disposições para a prática, que é fundamento objetivo de condutas regulares, logo, da regularidade das condutas (BOURDIEU, 1990).

Ademais, no espaço social, onde se articulam as posições sociais, as disposições e as tomadas de posição, o habitus responde pela mediação entre essas mesmas posições sociais e as escolhas que os agentes sociais fazem nos mais diferentes domínios da prática(BOURDIEU, 2011). O espaço social

 

[...] está construído de tal modo que os agentes que ocupam posições semelhantes ou vizinhas estão colocados em condições semelhantes e submetidos a condicionamentos semelhantes, e têm toda a possibilidade de possuírem disposições e interesses semelhantes, logo, de produzirem práticas também semelhantes. (BOURDIEU, 1990, p.155).

 

Ora, a posição que os agentes ocupam no espaço social deve-se, basicamente, a dois princípios de diferenciação: o capital econômico e o capital cultural, ou seja, a distribuição dos agentes na primeira dimensão do espaço social depende do volume global desses dois tipos de capital que eles dispõem e, na segunda, do peso relativo do capital econômico e do cultural no volume global de capital (BOURDIEU; PASSERON, 1996). Logo, a cada classe de posições corresponderia uma classe de habitus, produzida pelos condicionamentos sociais associados a uma classe particular de condições de existência, e um conjunto sistemático de bens e de propriedades vinculadas entre si por uma afinidade de estilo (BOURDIEU, 2011)

Na reprodução da estrutura de distribuição do capital cultural e, portanto, na perpetuação do espaço social, a instituição escolar desempenha papel fundamental. Uma vez que as famílias tendem a perpetuar seu ser social, com seus poderes e privilégios, investem tanto mais em educação escolar “...quanto mais importante for seu capital cultural e quanto maior for o peso relativo de seu capital cultural em relação ao capital econômico” (BOURDIEU, 2011: p. 36).

Se a permanência da estrutura social decorre da ação habitual dos indivíduos conforme o conjunto de disposições típico da posição estrutural na qual foram eles socializados, se a ocupação de uma posição estrutural depende, em larga medida, do volume de capital cultural com que contam esses mesmos indivíduos, a escola desponta, para Bourdieu, como instrumento de reprodução e legitimação das desigualdades sociais, como espaço de transferência de capital de uma geração a outra.

À noção de que a escola seria uma instituição neutra encarregada de difundir um conhecimento racional e objetivo, de selecionar os alunos segundo critérios racionais e equânimes, de que serviria ao propósito de superar o subdesenvolvimento, o autoritarismo e os privilégios das sociedades tradicionais, e, por isso mesmo, teria ela papel capital na construção de uma sociedade moderna, justa e democrática, Bourdieu (2011) contrapõe a concepção de que a escola seria uma das principais instituições de manutenção e legitimação dos privilégios sociais.

A sociologia da educação de Bourdieu confere, portanto, ao capital cultural um peso maior, se comparado ao econômico, sobre o desempenho escolar. Esse desempenho não dependeria tão somente dos atributos individuais, mas da origem social dos alunos porque a educação escolar recebida pelos que pertencem a meios culturais mais favorecidos é uma espécie de prolongamento da educação recebida em família: o capital cultural herdado por esses alunos no ambiente familiar confere a eles competência maior para lidar com situações a que são expostos na escola, situações essas que, não raras vezes, já foram vivenciadas em família. Além disso, os alunos costumam ser avaliados pela quantidade e pela qualidade do capital cultural por eles incorporado, aliás, os conteúdos escolares são organizados de tal modo que se identifiquem com o capital cultural comum às classes mais favorecidas (BOURDIEU, 1996).

Em síntese, a origem social do aluno importa, quando se tem em conta o êxito escolar, porque o capital cultural acumulado por ele no seio familiar, isto é, as competências intelectuais, os esquemas mentais, as habilidades linguísticas, a habilidade de falar em público, as preferências estéticas, a postura corporal etc., facultam melhor desempenho nos processos formais e informais de avaliação. Para Bourdieu, o êxito escolar remete, na verdade, a uma hierarquia social velada pela ideologia do dom que imputa às desigualdades de aptidão o sucesso ou o insucesso escolar e, ao mesmo tempo, pressupõe que qualquer pessoa pode ter acesso a posições sociais mais elevadas, se o esforço e os talentos dela assim permitirem. Ora, se a instituição escolar impõe e legitima o arbítrio cultural dominante, se ela representa e cobra dos alunos os gostos, as crenças, as posturas e os valores dos grupos dominantes, não caberia sustentar, em vista disso, algo como a neutralidade do ensino (BOURDIEU, 1996; 2011).

 

1.2 Sociologia da educação de Bernard Charlot

 

Conforme Charlot (2000, p.20), é clara e irrefutável a existência de uma “[...] correlação estatística entre a posição social dos pais e a posição social dos filhos no espaço escolar”; correlação essa que a sociologia da educação de Bourdieu busca explicar pela homologia de estrutura entre sistemas de diferenças posicionais, o que, por isso mesmo, deixa entrever a associação entre o fracasso escolar e as desigualdades sociais, ou melhor, entre sucesso escolar e origem social. Assim, a reprodução da posição social da família de uma geração a outra dependeria da transmissão da herança econômica e cultural, da transferência para os filhos tanto do capital econômico quanto do capital cultural.

As sociologias da reprodução, que encontram a na obra de Bourdieu sua forma mais acabada, sustentam que a origem social e a origem étnica de certas crianças responderiam pelo fracasso delas na escola. Ora, existe uma correlação estatística entre posições sociais dos pais e posições escolares dos filhos; o fracasso escolar guarda alguma relação com a desigualdade social, mas é uma interpretação abusiva dizer que a origem social é a causa do fracasso escolar, porque uma correlação estatística não pode ser interpretada como causalidade (CHARLOT, 2000).

Atribuir o fracasso escolar à origem familiar, à deficiência sociocultural do aluno “[...] é não só pensá-lo como objeto, mas também pensar esse objeto pelo que lhe falta: suas ‘lacunas’, suas ‘carências’” (CHARLOT, 2000, p. 27). Essas carências remetem ao pertencimento do aluno a uma família que também se define pela falta de recursos financeiros, de diplomas, de cultura etc. A retroprojeção produz uma espécie de deslocamento da falta, de montante à jusante, até a origem. Origem essa que permite enxertar um princípio de causalidade na noção de falta. “A cadeia da falta pode ser recorrida, portanto, de montante a jusante, dessa vez com base no domínio da causalidade: a origem familiar produz a deficiência, que produz o fracasso escolar, o que significa dizer que a origem familiar é a causa do fracasso escolar” (CHARLOT, 2000, p. 28).

O fracasso escolar, segundo Charlot (2000, p. 16) não existe; “[...] o que existe são alunos fracassados, situações de fracasso, histórias escolares que terminam mal”, como é o caso de alunos que não conseguem acompanhar os conteúdos ministrados em aula, que não adquirem os saberes que deveriam adquirir, que não alcançam certas competências, que naufragam e reagem a isso por meio de condutas de retração, desordem, agressão. Essa é uma perspectiva analítica que considera o fracasso escolar como desvio, como diferença entre alunos, entre currículos, entre estabelecimentos escolares, e da qual lança mão as sociologias da reprodução. O fracasso escolar não é, entretanto, “[...] apenas diferença; é também uma experiência que o aluno vive e interpreta, que pode constituir-se em objeto de pesquisa” (CHARLOT, 2000, p. 18); e, a essa luz, ganha evidência outra perspectiva analítica que centra atenção nas situações, nas histórias, nas condutas e no discurso dos alunos.

Por ignorar a história singular dos alunos no sistema escolar, as sociologias da reprodução mostram-se incapazes tanto de compreender casos marginais: o de crianças de famílias populares que, apesar de tudo, obtêm sucesso na escola; e o de algumas crianças de famílias favorecidas que fracassam -, quanto de revelar as formas modernas de desigualdade social no terreno escolar (CHARLOT, 1996). Daí a inferência de que a posição social dos pais não determina necessariamente o sucesso ou fracasso escolar dos filhos. Ora, vale repisar, a existência de correlação estatística entre a origem social e o sucesso ou fracasso escolar não significa determinismo causal. E mais, a posição social e o que acontece na escola são passíveis de interpretação, implicam a produção de sentido, a distinção entre a posição social objetiva e a posição social subjetiva: se a sociedade é também o lugar da produção de sentido “[...] não se pode  compreender esta produção de sentido a não ser em referência a um sujeito” (CHARLOT, 2005, p. 51). Por último, se a escola é um lugar de atividade, é preciso levar em conta o que a criança faz aí, os motivos que orientam esse fazer e, por consequência, a questão do desejo e a eficácia desse mesmo fazer (CHARLOT, 2005).

Não se pode,  segundo Charlot (1996), definir o indivíduo unicamente por sua posição social ou pela posição de seus pais, tem ele uma história pessoal e passa por experiências; história e experiências que são por ele intepretadas; que servem para conferir sentido ao mundo, aos outros e a si mesmo. Considerar, então, o sujeito na singularidade de sua história e as atividades que ele realiza, sem esquecer que essa história e essas atividades se desenvolvem num mundo social, isto é, entender que o sujeito é a um só tempo social e singular constitui passo capital para trabalhar o fracasso escolar da perspectiva da relação com o saber e a escola.

Logo, o estudo da educação não deve desconsiderar o sujeito nem se esquecer de que o sujeito da educação é um ser social. “Surge aí uma importante dificuldade: como pensar o sujeito como ser social, quando a sociologia se construiu separando-se das teorias do sujeito?” (CHARLOT, 2000, p. 34). Uma sociologia do sujeito não se pode dissolver em discurso vago sobre o sujeito, mas, sim, adotar uma perspectiva relacional que reconheça a relação com os outros como unidade básica da análise sociológica, que entenda o sujeito como conjunto de relações e processos. O princípio fundamental de construção dessa sociologia consistiria, então, em admitir que cada pessoa leva em si o fantasma do outro, o que significa dizer que as relações sociais afetam as pessoas, que elas não são existências independentes antes de toda a relação, mas encontram a plenitude de seu ser por meio das relações que lhes são predicadas (CHARLOT, 2000).

Estruturas sociais e instituições organizam uma sociedade, no entanto, ela abriga representações e valores que desencadeiam ações. Assumir que a sociedade inculca nas pessoas representações e valores que regem de maneira mais ou menos secreta suas ações, não significa recusar “[...] a existência de um psiquismo, suporte das representações, dos valores e dos móveis da ação”. Ora “[...] não há um psiquismo senão individual, não há psiquismo senão o de um sujeito” (CHARLOT, 2000, p. 35). Apesar de todo sujeito pertencer a um grupo, a posição que ele ocupa nesse grupo e a posição ocupada por esse mesmo grupo no campo social, isto é, o padrão relacional que expressa a sociabilidade correspondente a determinado contexto sócio-espacial não é bastante sequer para realizar uma hermenêutica de inspiração relacional. O sujeito interpreta sua posição no campo social, confere sentido ao mundo, atua nesse mundo, defronta-se “[...] com a necessidade de aprender e com formas variadas de saber; e sua relação com o saber é o fruto desses múltiplos processos” (CHARLOT, 2000, p. 38).

Para Charlot (1996, p. 49), a relação com o saber é uma relação de sentido, “[...] e portanto de valor, entre um indivíduo (ou um grupo) e os processos ou produtos do saber". Qualquer elemento de dado ambiente e de dada situação vivenciada por uma pessoa só irá influenciá-la se fizer sentido para ela. Assim, estudar é condição "sine qua non" para que uma pessoa possa formar-se, adquirir saber e obter sucesso, todavia, ela só estudará se a escola e o fato de aprender tiverem algum sentido para ela.

Ora, Charlot deixa claro que a relação com o saber é uma relação de sentido; todavia, não ignora que a perspectiva relacional, vale repisar, fundamenta a sociologia do sujeito, pois o sujeito é um ser social, é um conjunto de relações e processos que comportam circularidade, isto é, a estrutura social determina e é determinada pelas interações entre os indivíduos que integram essa mesma estrutura. Esse entendimento de Charlot abre espaço para averiguar o alcance explicativo da análise de caráter relacional sobre a associação entre o capital social e sucesso escolar.

 

1.3 Análise de redes sociais e capital social

 

Rede social consiste num conjunto de pessoas ou de organizações interligadas por algum tipo relação. Ainda que o conjunto de pessoas ou de organizações seja o mesmo, tipos diferentes de relações dão margem a distintos tipos de redes. Estruturas sociais dinâmicas e abertas, as redes podem crescer de forma ilimitada pela integração de novos atores que compartilham as mesmas regras, valores e objetivos; e permanecem estáveis se a taxa de mudança na topologia delas diminui à medida que o tempo passa ou se as oscilações prejudiciais por elas sofridas ocorrem dentro de certos limites (LEWIS, 2009). E mais, as redes sociais funcionam como circuito de tráfego no ambiente social, como trajetórias relacionais prováveis que ligam certos atores/nós e fornecem, a um só tempo, oportunidades e constrangimentos (SOARES, 2002).

A análise de redes sociais lança luz sobre as interações humanas, considera as relações estabelecidas entre os atores sociais como blocos de construção da estrutura social e entende que o ambiente social se expressa pelos padrões ou regularidades presentes nessas relações. O foco analítico está voltado, nesse caso, para as relações e estruturas sociais, ou melhor, para o padrão regular de relações entre as posições ocupadas pelos atores - estrutura social - e para os fluxos relacionais que determinam a posição estrutural de cada um dos atores na rede (WELLMAN, 1999).

Se assim é, o interesse do arcabouço teórico e metodológico da análise de redes sociais tem como foco a lógica organizacional das posições ocupadas pelos atores na estrutura social e na forma pela qual essa mesma estrutura facilita ou constrange as ações (KNOKE; KUKLINSKI, 1982). Assim, a análise das propriedades estruturais das redes nas quais se inserem os atores intenciona dar conta do modo pelo qual o contexto social, os padrões de relacionamento, influenciam o comportamento individual.

A estrutura reticular subjaz ao que se entende por capital social, ou seja, é a teia de relações sociais, mantida por um conjunto de expectativas mútuas e de determinados comportamentos entre os atores integrantes dessa teia, que constitui o capital social. Em conformidade com a Análise de Redes Sociais, a perspectiva relacional do capital social se funda em duas concepções: i) a de fechamento de rede (SIMMEL, 1950 e 1955; COLEMAN, 1990; GRANOVETTER, 1973); e ii) a de buracos estruturais (BURT, 1992; 2000). Essas duas principais perspectivas relacionais põem-se em harmonia pela combinação conceitual proposta por Lin (2001). Nessa combinação o capital social passa a ser entendido como o conjunto de recursos materiais e simbólicos inseridos na rede social e os posicionamentos nessa mesma rede. A teoria de redes sociais identifica o capital social tanto com os recursos que estão presentes nas estruturas reticulares, tais como riqueza, poder e status, quanto com a quantidade ou variedade de laços sociais que vinculam os atores e suas posições estruturais a esses recursos (FAZITO; SOARES, 2011). Recursos esses aos quais Lin (2001) denomina de recursos de rede e de recursos de contato. Assim,

 

[...] os recursos de rede são os que se encontram presentes na rede de um ator e aos quais ele tem acesso; e os recursos de contato referem-se aos contatos dos quais um ator lança mão como auxiliares na ação instrumental, como, por exemplo, na procura de um emprego. Assim, os recursos de rede são os que estão disponíveis na rede, e os recursos de contato correspondem aos recursos que se mobilizam na ação instrumental (LIN, 2001, p. 13 - tradução livre).

 

Uma vez que o capital social é criado nas estruturas reticulares e expressa a associação entre esse tipo de estrutura e os indivíduos nela estrategicamente posicionados, sua especificidade deriva, grosso modo, da natureza das relações estabelecidas entre os atores sociais, individuais e coletivos. O capital social não se acumula na estrutura ou nos indivíduos de forma independente e, em razão disso, nem a estrutura nem os indivíduos podem exercer controle efetivo e independente sobre ele. Logo, o acesso ao capital social depende das disposições estruturais dos atores e das relações por eles estabelecidas nas redes. Não pode ser produzido nem mantido individualmente, pois às conexões existentes entre as diferentes posições ocupadas pelos diversos atores reticulares está ele, o capital social, subordinado (FAZITO; SOARES, 2011).

Ora, se as redes, em sua instância objetivista, são, a um só tempo, expressão formal das regularidades encontradas nos padrões relacionais de atores concretos - estrutura social - e topologias de interação social, pois servem à análise de situação e à análise das posições relativas dos atores e das relações objetivas entre essas posições; se o capital social pode ser entendido como o conjunto de recursos estratégicos ao qual os atores individuais e coletivos têm acesso em virtude das posições estruturais por eles ocupadas nas redes, então, esse tipo de capital se mostra visceralmente ligado à dinâmica das redes sociais; e, por isso mesmo, certos conceitos, métricas, técnicas e ferramentas específicas da análise de redes sociais revelam-se úteis para captar o capital social.

A aprendizagem é, em larga medida, fruto das recorrentes interações que acontecem no ambiente escolar, daí a pertinência de adotar o capital social, recursos incorporados na estrutura social, acessíveis através de laços e posições estratégicas, como variável explicativa para o sucesso escolar. É justamente isto o que pretende a pesquisa de Costa (2015): reconhecendo a importância do capital social para o desenvolvimento cognitivo, em especial, para o processo de aprendizagem, os efeitos desse capital sobre a aprendizagem e, por consequência, sobre a conduta que implica sucesso escolar são analisados nessa pesquisa.

 

2 CAPITAL SOCIAL E SUCESSO ESCOLAR NA ESCOLA ESTADUAL PROFESSORA JUDITH BEZERRA DE MELO

 

A pesquisa de Costa (2015) se atém à estrutura relacional das redes pessoais de alunos da Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo. Inaugurada em 1986, essa escola se localiza no bairro de Nossa Senhora de Nazaré, zona oeste da cidade de Natal, bairro esse que abriga grandes contrastes sociais. Com o objetivo de verificar a associação entre o capital social e a aprendizagem escolar - principal indicativo do êxito escolar -, essa pesquisa serviu-se de recursos metodológicos desenvolvidos por Chris McCarty (McCarty et al. 1997; McCarty, 2002) para aplicar a redes pessoais análises típicas de redes totais. O tipo de informação relacional que operacionaliza essa adaptação analítica de McCarty tem como base informações relativas ao nome de conhecidos, de amigos e de parentes que compõem a rede pessoal do informante, à existência ou não de relações entre os componentes dessa mesma rede e ao grau de proximidade que tais relações sugerem a esse mesmo informante.

Para a montagem das redes pessoais, foram colhidas as informações reticulares de 27 alunos de uma das turmas de língua portuguesa da 2ª série do ensino médio da Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo. Cada aluno elaborou uma lista livre de 45 pessoas para compor sua rede pessoal e acusou a existência ou não de laços entre cada par de membros da rede (990 pares para uma rede de 45 pessoas), bem como o grau de proximidade de cada um desses laços. Para o conjunto das 27 redes pessoais, os alunos  listaram 1.215 pessoas e deram conhecimento do grau de proximidade (força dos laços) de 26.730 pares ordenados.

Para operacionalizar a concepção relacional de capital social que orienta sua pesquisa, isto é, para captar a natureza, a qualidade e a intensidade das relações entre as posições e os atores nas redes pessoais, Costa (2015) utiliza as seguintes medidas: densidade, centralidade de grau, centralidade de intermediação, centralidade de autovetor e cliques.

A densidade corresponde ao número de laços existentes expresso como proporção do total possível de laços numa rede qualquer; informa, portanto, o nível de coesão reticular, ou seja, dá a conhecer o quão interligada está uma rede.

A centralidade de grau consiste no número de atores com os quais um ator tem laços diretos. Essa medida apoia-se na concepção de que atores que possuem mais laços com outros atores estão em posição vantajosa, pois a maior acessibilidade aos recursos presentes na rede que desfrutam esses atores confere a eles maior grau de independência.

A interação entre dois atores não adjacentes pode depender de outros atores que se interpõem entre eles, é essa a dimensão que captura a centralidade de intermediação. Ela tem lastro no entendimento de que um ator está numa posição favorável se desempenha o papel de intermediário das interações entre pares de atores da rede. A centralidade de intermediação leva em conta, portanto, não só o número de conexões que um ator possui mas também a posição por ele ocupada na rede, ou melhor, mede a frequência com que um ator aparece nos caminhos mais curtos entre pares de atores da trama reticular.

A centralidade de autovetor pode ser encarada como extensão da centralidade de grau, pois identifica os atores que possuem vínculos com os atores que ocupam posição central na rede. O prestígio de um ator resulta, então, da importância dos seus vizinhos; dessa forma ainda que um ator estivesse conectado com poucos atores na rede, seria ele um ator de prestígio se os atores com os quais ele mantém vínculos forem importantes.

Um dos maiores interesses da análise de redes sociais são as subestruturas que uma rede pode comportar. A identificação da subdivisão de uma rede em subgrupos de nós que estão mais fortemente ligados entre si do que com outros atores que integram outro subgrupo revela aspectos essenciais da estrutura social. Numa rede em que os grupos se sobrepõem, é provável encontrar situações de menor conflito: a mobilização e a difusão de uma característica, informação etc. pode ocorrer mais rapidamente; ao passo que noutra rede em que não haja essa sobreposição, a difusão não ocorre com tanta eficiência. O subgrupo reticular de mais alto grau de coesão interno, clique, é constituído por três ou mais nós que possuem vínculos diretos entre si.

A descrição, por meio dessas métricas relacionais, da estrutura reticular dos alunos da turma de língua portuguesa da 2ª série do ensino médio da Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo serviu, de acordo com Costa (2015), ao propósito de verificar o grau de associação entre o capital social e o êxito escolar. Êxito esse dado pelas notas médias parciais de cada bimestre e da nota média geral anual de língua portuguesa, como registra a Figura 1. As médias permanecem em torno de 7 em todos os bimestres do período letivo, na realidade, oscilam pouco, de 6,5 no primeiro bimestre a 7,5 no último.

 

Figura 1 — Médias em língua portuguesa dos alunos da 2ª série do ensino médio da EEPJBM, Natal-RN, 2014

 

 

Fonte: Costa, 2015

 

A Figura 2, que registra o índice de leitura, o índice de participação dos responsáveis na vida escolar do aluno, a frequência escolar e o tempo médio de estudo fora da escola, mostra que é baixo o índice de leitura desses alunos da segunda série do ensino médio, porque, para a maioria deles, esse índice, que varia de 0 a 1, situa-se no intervalo de 0,2 a 0,3. Quanto ao índice de participação dos responsáveis na vida escolar do aluno, que também varia de 0 a 1, verifica-se que os pais são pouco participativos na vida escola do aluno, pois a distribuição dos dados evidencia uma concentração nos valores mais baixos. O terceiro diagrama, que exibe a média geral final padronizada em língua portuguesa para o intervalo de 0 a 1, revela que as notas dos alunos variam pouco, mantiveram-se em torno de 0,7. O índice de frequência escolar faz saber que os alunos da segunda série do ensino médio passam em média 25 horas por semana na escola, o que é esperado porque essa é a carga horária ministrada durante a semana. O último diagrama, que se refere aos dados sobre o tempo médio de estudo fora da escola, informa que 75% dos alunos estudam em média duas horas ou menos por dia.

 

Figura 2 — Índice de leitura, índice de participação dos responsáveis na vida escolar do aluno, índice de desempenho em língua portuguesa, frequência escolar e tempo médio de estudo fora da escola dos alunos dos alunos da 2ª série do ensino médio da EEPJBM, Natal-RN, 2014

 

 

Fonte: Costa, 2015

 

O primeiro passo dado por Costa (2015) para verificar o grau de associação entre o capital social e a aprendizagem/êxito escolar dos alunos da segunda série do ensino médio da Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo consistiu em realizar uma análise de agrupamento com base nas medidas de capital social para identificar os grupos homogêneos e a quantidade de capital social presente nas redes pessoais desses alunos. Por meio do método hierárquico de Ward, foram obtidos três grupos homogêneos referentes ao capital social, a saber: grupo 1, nível de capital social intermediário; grupo 2, nível de capital social baixo; e grupo 3, nível de capital social elevado. Ademais, por recurso ao escalonamento multidimensional, foram identificadas a proximidade entre as pessoas no interior de cada grupo e as distâncias entre as pessoas de grupos diferentes (COSTA, 2015).

A detecção desses 3 grupos homogêneos conforme a semelhança estrutural de capital social transitante na rede pessoal dos alunos facilita e torna mais concisa a análise, porque o esforço analítico se volta para a rede mais representativa do padrão relacional de cada grupo em vez de focalizar cada uma das 27 redes pessoais.

No grupo 1, composto pelas redes pessoais de sete alunos, a densidade, isto é, a proporção dos laços existentes em relação aos laços possíveis, é de 32% - pouco abaixo da densidade encontrada para o grupo 3 e quase duas vezes e meia maior do que a densidade pertinente ao grupo 2. Em média, as pessoas do grupo 1 compartilham laços diretos com 40% dos demais componentes da rede; possuem grau médio de intermediação correspondente a 3,7; contam com uma centralidade de autovetor média de 27, e as redes abrigam, em média, 80 cliques (COSTA, 2015). O sociograma do aluno 3 (Figura 3), que representa o padrão relacional característico do grupo 1, revela que: as redes comportam apenas laços familiares e de amizade; os laços são fortes pelo que indica a espessura das linhas; a rede é densa uma vez que os amigos estão bem conectados entre si e com as pessoas da família (COSTA, 2015).

 

Figura 3 — Sociograma do aluno 3

 

 

Fonte: Costa, 2015

Nota: Os nós vermelhos correspondem às pessoas pertencentes ao círculo familiar e os verdes, ao círculo de amizade.

 

As redes pessoais que constituem o grupo 2 possuem, conforme os dados de Costa (2015), baixa densidade - em média 13% dos laços possíveis nas redes desses alunos estão de fato presentes. Em referência aos grupos 1 e 3 é pequena a centralidade de grau do grupo 2, já que, em média, as pessoas desse grupo partilham laços diretos com 26% dos integrantes da rede; no que diz respeito à centralidade de intermediação, o grau médio é bem abaixo dos correspondentes aos outros grupos, 1,7; a centralidade de autovetor que, na média, desfrutam os componentes do grupo 2 é de 44; e as redes pessoais comportam, em média, 25 cliques. O padrão relacional característico do grupo 2 encontra representação no sociograma do aluno 22 (Figura 4): na sua maioria, os laços constantes nesse sociograma são os de amizade, em menor proporção, comparecem os laços familiares e a esfera de sociabilidade escolar encontra na professora de língua portuguesa sua única representante. De resto, verifica-se pelo sociograma a predominância de laços fracos e a baixa densidade da rede, já que as pessoas que dela fazem parte pouco se conectam (COSTA, 2015).

 

Figura 4 — Sociograma do aluno 22

 

 

Fonte: Costa, 2015

Nota: Os nós vermelhos correspondem às pessoas pertencentes ao círculo familiar; os verdes, ao círculo de amizade e o azul, ao círculo escolar.

 

As redes pessoais de onze alunos compõem o grupo 3. Nesse grupo, a proporção dos laços presentes em referência aos laços possíveis, densidade, é de 34%. Quando se tem em conta a centralidade de grau, os que integram esse grupo compartilham, em média, laços diretos com 44% dos participantes da rede; possuem um grau médio de intermediação de 3,5; dispõem de uma centralidade de autovetor média de 25, e as redes encerram, em média, 33 cliques (COSTA, 2015). O sociograma do aluno 24 (Figura 5), que representa o padrão relacional característico do grupo 3, mostra que a rede é composta apenas de laços familiares e de amizade, que a proporção de laços fortes é alta, em especial, no interior dos segmentos reticulares formados pelos amigos. A densidade da rede é alta, pois tanto os amigos quanto os membros da família estão bem conectados entre si, todavia, não se verificam conexões entre estes dois grandes grupos: o dos amigos e o da família do aluno (COSTA, 2015).

 

Figura 5 — Sociograma do aluno 24

 

 

 

Fonte: Costa, 2015

Nota: Os nós vermelhos correspondem às pessoas pertencentes ao círculo familiar e os verdes, ao círculo de amizade.

 

Para aferir o grau de associação entre os diferentes níveis de capital social dos grupos 1, 2 e 3 e o desempenho em língua portuguesa/êxito escolar, Costa (2015) utilizou o teste de Kruskal-Wallis com nível de significância de 5%. Realizado esse teste, Costa (2015) sustenta que não se verifica a confirmação da hipótese de associação positiva entre o capital social e o desempenho em língua portuguesa.

Em suma, para o remate da crítica interna que veicula este texto, basta ressaltar: i) bom desempenho em língua portuguesa alcançado pelos alunos da 2ª série do ensino médio da Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo; e ii) inexistência de associação entre esse desempenho e o capital social presente nas redes pessoais desses alunos.

 

3 NOTAS FINAIS: RUMOS PARA PESQUISA FUTURA

 

Que alguns alunos dos meios populares obtenham êxito na escola é algo que não desperta dúvida; todavia, causa estranheza que os alunos da 2ª série do ensino médio da Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo tenham alcançado bom desempenho em língua portuguesa e não haja nenhuma associação entre esse desempenho e o capital social existente nas redes pessoais deles. Daí, as respostas prováveis para esses inusitados achados empíricos, garimpadas na obra de Charlot (1996, 2000, 2005), Lahire (2004), Philo (1996), Foucault (2008) e Inger Enkvist (2011, 2014), podem ser submetidas ao crivo de pesquisa futura e, com isso, conferir norte a ela.

Se, de acordo com Charlot, o sucesso escolar depende da natureza da relação que o aluno mantém com o saber, se a relação com o saber é uma relação de sentido, uma vez que o esforço destinado ao estudo, um dos fundamentos da aprendizagem, só vai ocorrer se fizer algum sentido para ele, se esse mesmo sentido guarda estreita aderência com o desejo, então não haveria relação com o saber senão da parte de um sujeito desejante; e mais, a dinâmica do desejo não pode ser ignorada quando se tem em conta essa relação. A questão-chave consistiria, então, em dar conta da maneira pela qual “[...] o desejo que visa ao gozo pode um dia se tornar desejo de aprender este ou aquele saber, esta ou aquela disciplina” (CHARLOT, 2005, p. 37). Assim, caberia investigar se há ou não, no campo de desejos dos alunos da Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo, o desejo de aprender a norma culta da língua portuguesa.

Ao sustentar que o desempenho dos alunos dessa escola estadual é indiferente aos níveis de capital social, Costa (2015) fornece elementos para por em dúvida a suficiência das métricas de capital social, que dão a conhecer o padrão relacional das redes pessoais, para captar, em sua plenitude, a associação entre esse tipo de capital e o êxito escolar. Ora, circulam nas redes recursos simbólicos, valores, atitudes, desejos miméticos, representações sociais etc. que medidas de capital social, tais como densidade, centralidade, intermediação, cliques etc., não dão conta de apreender. É o que deixam entrever certas situações típicas do campo relacional de aprendizagem: i) os que pertencem ao círculo mais próximo da rede pessoal do aluno, em particular o pai ou a mãe, podem não possuir o tipo de saber que seja propício ao sucesso escolar do aluno; ii) ainda que dominem esse tipo de saber, o pai ou a mãe, talvez não disponham de tempo para ajudar o aluno nas tarefas escolares, quem sabe vivenciem uma relação emocionalmente distante ou conflituosa com o filho; iii) o aluno pode adotar uma conduta congruente ou contraditória com o modelo que faculte o sucesso escolar - o desejo mimético pode se orientar ou não para modelos que valorizem o estudo, a escola; e vi) o lugar simbólico ocupado pelo saber na rede pessoal do aluno, ou seja, a admiração, o interesse que os pais, ainda que de forma não intencional, manifestam pelo conhecimento e pelo estudo podem exercer grande peso sobre o êxito escolar. Essas situações típicas mostram que o aluno se submete a um conjunto singular de experiências socializadoras resultante da configuração específica das relações sociais e dos recursos materiais e simbólicos que comporta a rede pessoal dele. O aluno tenderia a incorporar um conjunto mais ou menos diferenciado ou mesmo contraditório de disposições que se podem desdobrar de forma oposta ou inapropriada a certas situações, ou seja, o aluno estaria mais ou menos apto a atender as exigências escolares conforme o patrimônio de disposições por ele incorporado no curso de suas vivências contextuais (LAHIRE, 2004). Em razão disso, Lahire reconhece que o sucesso escolar nos meios populares é factível nos casos em que ocorre uma consonância, pelo menos parcial, entre as lógicas socializadoras prevalecentes na família e os princípios educativos norteadores da escola. A sociologia na escala individual proposta por Lahire, uma sociologia que toma como foco analítico os múltiplos processos de socialização do aluno, sobretudo os familiares, e as operações concretas das disposições em escala micro, pode fornecer as bases epistemológicas sobre a razão de ser do desempenho dos alunos da 2ª série do ensino médio da Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo.

Além disso, o espaço possuí participação irredutível na consecução de resultantes temporais, ou seja, os relacionamentos espaciais, a distribuição territorial dos fenômenos e a forma pela qual os fenômenos se combinam fazem uma diferença crucial na dinâmica histórica (PHILO, 1996; FOUCAULT, 2008). Se assim é, o espaço, a geografia, desponta como elemento-chave da sociabilidade, em especial, nos contextos de pobreza urbana (MARQUES, 2011). As redes sociais não estão no vazio, daí os vínculos entre elas e a segregação espacial podem ser tratados de duas perspectivas analíticas distintas: i) a do localismo – as redes das pessoas pobres estão contidas espacialmente; e 2) a do diferencial entre padrões relacionais - as redes das pessoas diferem entre si, de acordo com o grau de segregação social a que estão submetidas no espaço urbano (MARQUES, 2011). A preensão das articulações entre espaço e redes pessoais, dos elementos que, com maior ou menor intensidade, condicionam e singularizam as distintas formas de sociabilidade instrui o olhar sobre certos fatores de ordem socioespacial que, em parte, responderiam pela ausência de associação entre sucesso escolar e capital social na Escola Judith Bezerra de Melo.

Grosso modo, a obra de Inger Enkvist (2004, 2014) se serve de dados, de casos concretos, de estudos qualificados para indicar os erros e as experiências positivas em educação. Sustenta, com base nos relatórios do Programme for International Student Assessment - PISA, elaborados pela OCDE, que o declínio da educação em alguns países europeus, tais como a França, Grã-Bretanha, Espanha e Suécia, decorre de propostas pedagógicas "[...] que promueven más la igualdad y una supuesta modernización con respecto a los conocimientos escolares 'de siempre'" (ENKVIST, 2011, p. 33). Essas propostas que se mostram menos exitosas nas avaliações internacionais fundam-se em duas ideias centrais: i) a de que seria possível dar educação a uma pessoa sem que ela tivesse de se esforçar; e ii) a de que o conteúdo da educação não importa, mas, sim, o aprendizado de um conjunto de métodos (ENKVIST, 2011). Para Enkivist (2014), a educação de um aluno é um processo que depende da colaboração do próprio aluno, da família, da escola e da sociedade; todavia o fator-chave na consecução da excelência educacional é o professor: em consonância com dois relatórios, o McKinsey e o Fölster, assinala que "[...] el factor más importante para la calidad de la enseñanza es la calidad del profesor" (ENKVIST, 2011, p. 45). Na análise comparativa realizada por Enkvist (2011) sobre a aplicação dos princípios educativos da nova pedagogia em vários países, despontam a pedagogia do esforço e a qualidade do professor como os principais responsáveis pelo sucesso escolar. Daí, a necessidade de verificar se, no caso dos alunos da 2ª série do ensino médio da Escola Estadual Professora Judith Bezerra de Melo, a pedagogia do esforço e a qualidade do professor têm algo a dizer sobre o bom desempenho em língua portuguesa.

Por fim, a identificação, no trabalho de Charlot, Lahire, Philo, Foucault e Enkvist, das prováveis respostas para os inesperados resultados da pesquisa levada a cabo nesta escola estadual da zona oeste de Natal abre novas possibilidades heurísticas e, com isso, fornece os marcos orientadores de investigação futura.

 

REFERÊNCIAS

 

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[1] Projeto financiado pelo Programa Observatório da Educação – CAPES e coordenado pelos professores Moises Alberto Calle Aguirre, Weber Soares e Dimitri Fazito de Almeida Rezende.