|
|
Universidade Federal de Santa Maria
Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 11-18, 2022
DOI: 105902/2179219473599
e-ISSN 2179-2194
Apresentação
Randal JohnsonI
Luiz Carlos Martins de SouzaII
I University of California, UCLA, Los Angeles, United States of America
II Universidade Federal do Amazonas, UFAM, Manaus, AM, Brasil
No momento em que começamos a escrever esta apresentação, estávamos vivenciando duas situações nacionais com repercussão mundial: encontraram os corpos do indigenista Bruno Pereira e do jornalista inglês Dom Philips na selva amazônica brasileira e a nossa frágil democracia continuava sofrendo ameaças de dissolução por um presidente da república que promove delírios golpistas. Neste momento de revisão desta apresentação, Lula foi eleito e bolsonaristas se unem para tentar ampliar a guerra civil que mata a população negra, indígena, feminina e lgbtqia+ do país. A necropolítica (MBEMBE, 2018) continua fazendo vítimas em todas as regiões de nossa nação. Pelo menos Dom e Bruno receberam destaque internacional. Muitas outras vítimas cotidianamente são esquecidas e ignoradas. Mas o que isso tem a ver com este número da revista Fragmentum?
Quando definimos a chamada para o número 59 da Revista Fragmentum, queríamos aqui reunidas análises que pensassem as ideologias e disputas de interpretação que nos constituem como povo, reunido sob os significantes “brasilidade”, “brasileiro” ou sobre suas expressões e disputas territoriais, regionais, étnicas, sociais, ideológicas, artísticas e políticas, dentre outras. Acreditamos que os estudos e as interpretações sobre a brasilidade, sobre as discursividades que nos constituem, suas relações e contrastes com os outros povos e outros processos de identificação podem nos dar a dimensão de como combater e como resistir à necropolítica que ora vivenciamos.
Buscávamos, então, reflexões e interpretações sobre os efeitos, sobre as implicações e sobre os intérpretes dos colonialismos, dos neocolonialismos, de descolonizações, ou sobre as formas de identificação, de subjetivação, de contraidentificação, de relações de poder e de resistência dos sujeitos e das sociedades do Brasil, a partir de produções, processos, materialidades e manifestações culturais, acadêmicas, artísticas e simbólicas de diversos domínios e temas. O efeito de identidade, posto em questão, revela violências simbólicas e históricas que precisam ser combatidas diuturnamente. A imposição de um certo universo de sentido é uma faceta basilar da violência simbólica que a linguagem encarna, como Zizek (2014) já destacou. Por isso acreditamos que é estratégico, para as lutas pelos direitos humanos e para a democracia em nosso país, o enfrentamento de nossas mazelas, fincados na realidade e na consciência da disputa de interpretações que constituem os fatos nacionais.
É esse o alinhamento dos textos que aqui estão organizados. Dos pesquisadores que se interessaram por essa chamada, qualificaram-se treze textos. Assim, os textos que compõem essa constelação refletem o caleidoscópio identitário nacional: são de diferentes linhas teóricas, analisam diferentes materialidades simbólicas e apontam para a diversidade de propostas com o intuito de nos fazerem entender as origens dos nossos universos de sentido, seus diagnósticos e os rumos da coletividade que habita este país continental. O trabalho frutífero resulta prazeroso.
O texto “After Utopia: Negotiating Hope and Fatalism in João Almino’s Literary Brasília”, de Ben Burt, abre nosso número. Ele examina a utopia como discursividade no pensamento artístico e acadêmico e, abordando dois romances de João Almino, “Ideias para onde passar o fim do mundo” (1987) e “As cinco estações do amor” (2001), examina como esse autor rejeita o consenso anti-utópico a respeito de Brasília no final do século XX, consenso muito recorrente sobre a identidade nacional. Nas duas obras, o pesquisador aponta o incômodo de Almino com a falência do legado da projeção utópica que constitui simbolicamente o Distrito Federal, entre a pendular desilusão individual e coletiva. O artigo argumenta que este retrato matizado e ambíguo do utopismo, suas derivas de sentido, representa uma abordagem pós-utópica da transformação social que, não obstante, desafia significativamente o desprezo prevalecente com as utopias, como sentido dominante na época da publicação dos romances.
Bárbara Pavei Souza e Nádia Neckel analisaram, em “A Moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura”, um conjunto de capas da revista Vogue Brasil, perquirindo os sentidos do corpo feminino negro na moda. No artigo, elas registram como compreendem as discursivizações desses corpos em diferentes períodos. Com o produtivo conceito de “interseccionalidade”, adequando-o ao nosso contexto, as autoras destacam que, dependendo do lugar social que se ocupa, o gênero é vivenciado de maneira diferente, isso porque a situação das mulheres negras e de classes populares possui desafios maiores para o acesso a direitos. Assim, explicitam forças que produzem o branqueamento da população brasileira e as contradições que o determinam e o localizam entre o desejo, o estupro e a rejeição segregadora. O corpo negro feminino é um corpo-mercadoria, um corpo exposto, com valor de troca, o que faz dele um corpo contraditoriamente visibilizado e invisibilizado, constituindo-se em um corpo de lutas e interdições. O conceito discursivo de memória, também aplicado ao material analisado, ajuda a entender como se fornecem e reafirmam os elementos e as normas para a representação desses corpos. Dessa forma, demonstram como os dispositivos “mídia” e “moda” investem em repetições de estereótipos, a fim de manter os corpos femininos negros aprisionados, silenciados, apagados, moldados e (in)visibilizados.
André Cavalcante trata, em “Uma Luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória”, do imaginário do sujeito-indígena sobre língua, luta, resistência indígena e povos indígenas, utilizando como corpus os livros “Índios na visão dos índios: Fulniô” e “Índios na visão dos índios: Potiguara”. Esses livros buscam materializar a fala, a voz e os discursos desses povos indígenas, para além dos “discursos sobre”, já estabilizados no imaginário brasileiro que interditam que os povos indígenas se expressem por si mesmos. O autor mostra como a internet surge como possibilitadora de manifestações discursivas dos próprios povos indígenas, o que também provoca uma ruptura do imaginário sedimentado sobre o primitivismo do ser indígena e como o acesso a tecnologias produziria a perda de sua identidade. Seu corpus mostra as interpretações sobre a constituição da brasilidade, e sobre os espaços possíveis para se dizer indígena e brasileiro.
Em “A Transcendência dos trópicos no pensamento indígena”, Livia Penedo Jacob se debruça em textos de alguns intelectuais indígenas para avaliar o conceito de “brasilidade” e de “cultura brasileira” em suas obras. Ao abordar produções literárias de culturas originárias, ela destaca a necessidade de pensarmos em outras categorias, ainda não instituídas nos estudos acadêmicos, para analisarmos fenômenos do nosso continente. Também destaca a recorrência de personagens transmorfos, o que nomeia como “metamorfoses ameríndias”, sintetizando algumas características: impermanência da natureza; personagens que se metamorfoseiam em espíritos, em elementos da natureza, em animais ou em híbridos; também percebe que criaturas não humanas se transformam em humanos, nos fazendo entender o universo povoado por outros sujeitos, além dos humanos. Destaca ainda a fauna múltipla, variada, diversa, que compõe a categoria dos humanos, concluindo que há muitos Brasis e que a brasilidade não é estanque, mas uma categoria prismática, de ampla definição. Isso faz com que essa brasilidade mais ampla, cujas origens germinam da ancestralidade, da anterioridade do próprio país, seja muitas vezes ignorada.
Em “Um livro e um enunciado em nossa formação social”, Vanise Gomes de Medeiros toma como corpus o romance “Água de barrela”, de Eliana Cruz, identificando-o como inscrito na formação discursiva da descolonização, focando o universo das práticas escravagistas desumanizadoras. A partir desse corpus, analisando fotos e documentos que compõem o livro, a autora reflete sobre o poder dos sentidos sobre produtividade e trabalho, em que orbitam as diferentes posições discursivas relativas às formas de lutar, de resistir, de tentar sobreviver e de morrer em nossa sociedade. A partir desses significantes, ela mostra como eles remetem a posições de classe e posições étnicas, sustentando e justificando desigualdades sociais profundas.
“Homem de bem”, “cidadão de bem”, e “homem médio brasileiro” são termos muito em voga na discursividade midiática em nossa conjuntura, para dar conta da imagem coletiva de uma parcela de nossa sociedade. É o que Marcelo Peloggio vai abordar em “Confissões de um homem de bem: a radiografia de um modelo”, procurando mostrar que as concepções de mundo equacionadas nesse molde não se restringem a uma classe altamente despolitizada, mas, antes, desdobram-se em sentidos moralistas, pernósticos e violentos em seus fundamentos históricos e literários.
O romance “Desde que o samba é samba”, de Paulo Lins é o corpus de análise em “Integrados por exclusão: negritude e mobilidade…”, artigo de Paulo Cesar Silva de Oliveira. Também aqui o campo literário é o espaço de discussão das formações ideológicas que disputam os sentidos das inúmeras contribuições das culturas negras, em nossa formação cultural. Entre elas estão as religiões de matriz africana, o samba e a constituição do Rio de Janeiro como esse jorro da multiplicidade e da diversidade, que encantam o planeta. Inspira-se em Florestan Fernandes como referência para entender a integração dos negros em uma sociedade de classes na perspectiva da oposição entre ordem social moderna e ordem estamental. Ao se instrumentalizar com o pensamento social, o autor aborda o romance de Lins como locus privilegiado da discussão sobre as modernidades negras no Brasil e o discurso literário como uma arena de múltiplas narrativas postas em debate.
“Grande Sertão: Veredas” é um romance que materializa uma certa interpretação da formação do Brasil. É disso que trata Monica Gama em “Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade”. Ela, analisando os modos possíveis de relação com a alteridade e a diferença, defende que Riobaldo ecoa discursividades sobre pobreza, sobre doença e a retórica da modernização. Por isso, Monica Gama elege a sequência narrativa que vai do encontro com os catrumanos ao pacto com o diabo para analisar como Riobaldo surpreende-se na relação com o Outro. A subjetividade e a ética, na dinâmica envolvida na responsabilidade por outrem, são postas em questão a partir da perspectiva de Lévinas, para entender a reação de Riobaldo ao deparar-se com a pobreza extrema, passar por um povoado devastado pela varíola e encontrar um fazendeiro que queria os jagunços como escravos.
A negação da gravidade da situação epidemiológica da Covid-١٩ no Brasil e os consequentes movimentos de (in)visibilização de uma parcela da sociedade são analisados em “Ressignificação e resistência no sintagma ‘distanciamento social’: uma análise discursiva sobre a luta pelos sentidos em tempos de covid-١٩ no Brasil”, de Mariana Jantsch de Souza e de Naiara Souza da Silva. Na interpretação das autoras, o encadeamento significante “distanciamento social” estabeleceu um efeito de sentido que materializou um gesto de resistência e de denúncia, fazendo emergir contradições que constituem a sociedade brasileira dividida em classes, afetada pelos graves problemas da pandemia. Os pressupostos teóricos de Michel Pêcheux e sua proposta de uma Análise de Discurso Materialista guiam a descrição e a interpretação sobre a produção de sentidos, problematizando as determinações sócio-históricas, e os efeitos de sentido que reforçam e naturalizam as condições materiais de produção de nossa formação social.
Um dos trabalhos que estabelece relações e contrastes com os outros povos é o texto de Ariel Amador Valdez e Rosani Úrsula Ketzer Umbach, “Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha’’. O foco desse cotejamento é a representação das atitudes e agires sexuais dos trabalhadores das Bananeiras, em Honduras, e do Ciclo da Borracha do Amazonas brasileiro, etapas socioeconômicas também postas em relação. E o corpus para isso são as obras de Ramón Amaya Amador, sobretudo a “Biografía de un machete”, e as obras de Álvaro Maia, sobretudo o romance “Beiradão”. Em comum na biografia dos romancistas estão o exercício político, o jornalismo e a literatura. A abordagem do corpus se fundamenta na teoria da sexualidade de Michel Foucault e na literatura comparada. Com estas referências, analisam as representações da intimidade e da sexualidade dos trabalhadores em Honduras e no Amazonas brasileiro, durante o Ciclo da Borracha. Os autores defendem que estes dois ciclos econômicos mudam não só as estruturas sociais, econômicas e culturais, mas também as arquitetônicas, as formas de viver e as relações interpessoais. O corpus e a abordagem analítica deles os fazem concluir que os romancistas habitam uma mesma formação ideológica, por conduzirem à interpretação de que existem estratégias reguladas para o prazer cujo rompimento produz desarmonias na coletividade e consequências negativas e trágicas.
Em “Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho”, Éderson de Oliveira Cabral e Ernani Mügge discutem, a partir da designação “brasileiro”, como uma exceção linguística, aspectos da identidade e da cultura brasileira. Segundo os autores, as noções de trabalho e exploração teriam uma singularidade própria no contexto brasileiro desde suas origens, por isso se debruçam em compreender como tais noções se relacionam com a cultura e, em especial, com a literatura. O estudo parte da etimologia da palavra “brasileiro” e se abre para seus efeitos e sentidos na história, na sociologia, dentre outras áreas. Além disso, os autores refletem sobre aspectos do trabalho, da mão de obra industrial, de questões históricas brasileiras, trazendo ligações com narrativas literárias, caracterizando-as como um meio de contrapoder.
A entrevista com o professor Randal Johnson, realizada por Felipe Moraes, traça a trajetória deste estudioso que dedicou sua carreira a diversos aspectos da cultura luso-brasileira, e especialmente à literatura e ao cinema. Co-editor deste volume, o professor Randal ocupou diversos postos administrativos na Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Foi, por duas vezes, chefe do Departamento de Espanhol e Português, e do Programa sobre o Brasil. Também serviu como diretor do Instituto de Estudos Latino-Americanos, diretor interino do Instituto de Estudos Internacionais, bem como diretor do Programa de Educação no Exterior da Universidade da Califórnia. Como autor ou editor, são treze livros e dezenas de artigos de pesquisa, como Cinema Brasileiro (com Robert Stam), Cinema Novo x 5, A Indústria Cinematográfica no Brasil: Cultura e o Estado, Brasil Negro: Cultura, Identidade e Mobilização Social (com Larry Crook), Manoel de Oliveira, e O Campo da Produção Cultural, uma coleção editada de ensaios por Pierre Bourdieu. A entrevista vai ajudar a dar a dimensão do interesse, no exterior, sobre o Brasil e sobre nossa produção cultural.
Além da área de pesquisa do professor Randal Johnson, outra inspiração para nossa chamada foi sem dúvida a coletânea “Redes de pesquisa no acontecimento do V SEDISC”. É ela que ganha uma resenha neste número nas mãos de Andreia da Silva Daltoé e de Claudia Pfeiffer. Alinhada com a perspectiva materialista de Análise de Discurso, a obra tratou a temática como uma prática de resistência, de luta e de urgência. A coletânea é resultado dos trabalhos apresentados no evento. “Ler o Brasil hoje” traz o que as autoras da resenha caracterizam como “leituras surpreendentes, inéditas, plurais, experimentadas em coletivo, em falar com e não por”. Só isso já nos estimula a ler a obra, que foi organizada em 6 sessões, com questões fundamentais de Análise de Discurso, como arquivo, cultura, sentido, sujeito, memória, materialidades, dentre outras para pensar criticamente a arte, o corpo, a tecnologia, a escola, a pandemia, o urbano, o pedagógico e a mídia. É uma obra rica para quem se interessa por estudos de processos coletivos de identificação em sua relação com os funcionamentos ideológicos.
Foram muitos os percalços para que este número da Fragmentum saísse. Uma travessia alegórica da condição desse momento pandêmico e dessa pátria, amada, odiada, satirizada, desvalorizada, disputada, mas, contraditoriamente, sempre maravilhosa e encantadoramente fascinante, para os que nela habitam, para os que a ela visitam e para os que a estudam. Impossível dar conta dessa complexidade enquanto a vivenciamos, mas certamente os pesquisadores que aqui se debruçaram nesta tarefa, fizeram um trabalho primoroso. Velhos sentidos foram diagnosticados e descritos. Novos sentidos foram apontados. Que as questões aqui abertas reverberem em outros trabalhos e em melhores propostas políticas para lidarmos com a complexidade de nossa formação social. Que os novos universos de sentido promovam o fortalecimento da nossa democracia e de novos processos de identificação. Que a morte de Bruno e Dom seja um marco para a transformação desse país, e que nunca mais ativistas de direitos humanos sejam assassinados, para que a vida e a democracia prevaleçam entre nós, para todos nós.
REFERÊNCIAS:
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. Tradução de Renata Santini. São Paulo: N-1 edições, 2018. 80 p.
ŽIŽEK, Slavoj. Violência: seis reflexões laterais. Tradução de Miguel Serras Pereira. São Paulo: Boitempo, 2014. 195 p.