Universidade Federal de Santa Maria

Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 265-27, 2022

DOI: 105902/2179219470419

e-ISSN 2179-2194

Submissão: 18/05/2022 • Aceito: 04/09/2022

Redes de pesquisa no acontecimento do V Sedisc

Andréia da Silva Daltoé (UNISUL)I

Claudia PfeifferII

I Professora do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem – PPGCL da Universidade do Sul de Santa Catarina – UNISUL; Doutora em Letras (2011) pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS; Líder do Grupo de Pesquisa Relações de Poder, Esquecimento e Memória (GREPEM- CNPq/UNISUL) e do Coletivo Pró-Educação (Tubarão/SC); Integrante do Grupo de Estudos Pecheutianos (GEP-CNPq/Unipampa).

II Pesquisadora do Laboratório de Estudos Urbanos da Unicamp e professora do Programa de Pós-Graduação em Linguística do IEL/UNICAMP; Doutora em Linguística (2000) pela UNICAMP; líder do Grupo de Pesquisa Interdisciplinar em Políticas de Saúde, junto com Carlos Correa da FCM/UNICAMP.

FLORES, Giovanna B.; GALLO, Solange L. M.; NECKEL, Nádia R. M.; DALTOÉ, Andréia S.; SILVEIRA, Juliana; MITTMANN, Solange; LAGAZZI, Suzy; PFEIFFER, Claudia C.; ZOPPI-FONTANA, Mónica G. (Orgs.) Análise de Discurso em Rede: Cultura e Mídia. Vol. 5. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.

em la lucha de clases

todas las armas son buenas

piedras

noches

poemas

Paulo Leminski (2013, p. 93)

Estar no terreno da Análise de Discurso de linha materialista (AD) é comprometer-se com a luta de que fala Leminski (2013) em epígrafe e com as demais lutas que daí derivam. É deste lugar, desta implicação e deste afetamento de que falamos.

Desde o surgimento da AD com Pêcheux na França – poderíamos dizer com a AAD-69, mas o caminho sempre começa antes –, nossa prática teórico-analítica compromete-se com uma luta política que, não dissociada da prática discursiva, propõe-se a enfrentar as forças de poder que tentam justamente apagar esta relação para melhor exercer seus fins. Por isso que, ao encontro da nossa epígrafe, recuperamos também Althusser (apud PÊCHEUX, [1975] 1988, p. 210), para dizer que:

[...] na luta política ideológica e filosófica, as palavras são também armas, explosivos, ou ainda calmantes e venenos. Toda a luta de classes pode, às vezes, ser resumida na luta por uma palavra, contra uma outra [...]. O combate filosófico por palavras é uma parte do combate político.

Se antes já compreendíamos a força e a necessidade de nosso fazer neste campo do saber, hoje mais ainda quando enfrentamos ameaças cada vez mais concretas contra uma já frágil democracia e mesmo contra nossa própria existência. Nesta trincheira, nossa arma é a palavra, é a ousadia a que nos impele Pêcheux, é a potência de uma teoria que nos ajuda a dessuperficializar os discursos que nos dominam, mas é também tudo isso potencializado na insurreição de construir laços quando nos querem isolados e desarticulados.

Nosso agir, portanto, não é um agir individual, solitário entre os gabinetes, departamentos e salas de aula, mas um agir coletivo que explica a motivação e a beleza da criação do Seminário Análise de Discurso em Rede: Cultura e Mídia - SEDISC, que se organiza como um espaço de integração em redes de pesquisa, congregando grupos de pesquisa de todo o território nacional e da América Latina – “Um verdadeiro acontecimento” como assim significa Pfeiffer (2017, p. 9).

Este preâmbulo para dizer que resenhar o Livro da 5ª edição do SEDISC de 2021, em suas 420 páginas, é dizer desta força coletiva que desde o início era inspiração, mas que no anos de 2021 ganhou uma importância singular: apesar de contornarmos a distância territorial pela opção de um encontro virtual, ainda vivíamos os horrores e as incertezas da tragédia pandêmica da Covid-19 e as consequências de decisões políticas que nos abandonaram à própria sorte.

O V SEDISC se deu, portanto, nas contingências deste momento tão difícil e que assim se mantém: na época, eram mais de 170.000 vidas perdidas para a Covid e um silêncio sobre elas ensurdecedor, em 2021 já passávamos do meio milhão; eram e são Joões Albertos; Kauãs; Zezicos Guajajaras; continuamos sem saber quem mandou matar Marielles; estávamos e estamos em meio a ataques permanentes à ciência, às universidades, à escola, às instituições públicas do país; eram as queimadas no Pantanal e na Amazônia; são as populações ribeirinhas, indígenas e quilombolas ameaçadas constantemente pela Covid, pelo agronegócio, pela grilagem, pela mineração... É a necropolítica (MBEMBE, 2018) que assola o Brasil de modo devastador.

Com a emoção à flor da pele, é que dizemos deste Vol. ٥ na confluência da rememoração do encontro, do contato com a força e a urgência dos textos ali reunidos, todos comprometidos com o desafio de 2021, quando o V SEDISC se propôs a Ler o Brasil hoje, apesar da angústia e da dor, sustentando-se por um gesto de interpretação que, conforme Orlandi (2014, p. 49), é “uma questão ética e política, é uma questão de responsabilidade, pois ciência e política se atravessam em conjunturas sócio-históricas sempre particulares, por isso mesmo, muito significativas”.

Em meio a tudo isso, o V SEDISC se deu como um sopro de resistência e de persistência e se fez um encontro de múltiplas dimensões para muito além do que prevíamos quando discutíamos como manter a realização do evento prevista para 2020. Pensamos em postergá-lo, ansiando pela possibilidade de ser presencial em 2021, mas sabendo que havia uma chance muito grande de ainda ser necessário fazê-lo de modo remoto. Decisão tomada quanto à sua manutenção em 2020, muitas reuniões foram necessárias para que déssemos a forma que imaginávamos ser a mais acolhedora e possível nas agendas de pesquisadores com seus corpos exauridos pelas telas, pelas cadeiras, pelo Brasil. Também não queríamos uma mera transposição de um evento presencial em remoto. Com isso pudemos abrir para outros formatos e modos de exposição, com vídeos, áudios, pôsteres, debates ao vivo e na plataforma da Unisul; também ocupamos 8 semanas, a partir do dia 08 de outubro, nas terças e quintas das 17h00 às 19h00 para os encontros ao vivo de abertura, das mesas-redondas, simpósios, lançamento de obras e das conferências de encerramento.

Naquele período, as terças e quintas já amanheciam melhores com a expectativa do encontro que viria a acontecer. Encontro de reflexões, proposições, indagações, análises; encontro de compromisso, luta, resistência; encontro de emoções, afeto, laço, suporte, grupo. Trabalho vigoroso, rigoroso, amoroso. O SEDISC foi um grande e retumbante encontro.

E só foi assim porque foi um gesto coletivo. Somos 9 organizadoras desta 5ª. edição de três instituições de ensino e pesquisa – UNISUL, UNICAMP e UFRGS. Trabalhamos muito. Rimos muito. Nos desesperamos juntas e juntas fomos encontrando caminhos possíveis. Nossas reuniões de organização às sextas-feiras no fim de dia se tornaram festivas. E mais festiva a cada sim que recebíamos das parcerias convidadas para serem conferencistas, palestrantes nas mesas, coordenadores de simpósio e de sessão de comunicação, e monitores; para realizar o vídeo de abertura de nosso SEDISC; para criar o ambiente digital onde o SEDISC se daria; e muito mais, tivemos muito apoio efetivo e afetivo. Queremos fazer uma menção especial ao apoio infindável dos profissionais de TI da UNISUL; aos monitores fantásticos; ao trabalho lindo de Mara Sala da UNISUL, que orientou a montagem do vídeo de abertura pela discente Juliana Antonello; ao trabalho sensível da Juliana da Silveira, nos demais vídeos e vinhetas, contando com as fotos fortíssimas de Narciso Tenório; e, finalmente, ao trabalho hercúleo de Giovanna Flores e Juliana da Silveira na execução diária das inúmeras dimensões de trabalho que permitiram que o V SEDISC acontecesse.

Dentre tudo que aprendemos e vivenciamos, um muito deste SEDISC materializado, após leitura de pares avaliadores, na valiosa contribuição de parte das pesquisadoras e pesquisadores que integraram a programação do Evento, mostrando-nos, usando palavras de Lagazzi (2021, p. 139) que:

Em nosso olhar discursivo, falar de interpretação é pensar em possibilidades de diferentes leituras, em derivas que questionam e desorganizam o que nos parece evidente e natural, localizando a interpretação em suas determinações históricas, em relações que se tecem materialmente.

O SEDISC tradicionalmente se ancora em 6 eixos temáticos, que procuram perscrutar, a partir de diferentes ordens significantes, processos discursivos importantes de serem trazidos à discussão. Há, também, atravessando esse olhar discursivo, outros gestos sensíveis que se nutrem em práticas, campos disciplinares e teóricos distintos da análise do discurso materialista, promovendo um profícuo diálogo.

Nesses atravessamentos, propusemos que o ponto de ancoragem comum de reflexão fosse o de ler o Brasil hoje enquanto uma prática de resistência, de luta, de urgência. Em relações parafrásticas, já estávamos familiarizados com Ler o Capital; Ler o arquivo hoje; (Re)ler Michel Pêcheux hoje... mas Ler o Brasil hoje do V SEDISC nos brindou com leituras surpreendentes, inéditas, plurais, experimentadas em coletivo, em falar com e não por.

Neste compromisso, o Livro de 2021 trouxe em seus textos, distribuídos em 6 sessões, questões fundamentais de arquivo, cultura, sentido, sujeito, memória, materialidades e tantas outras que nos ajudaram a pensar criticamente a arte, o corpo, a tecnologia, a escola, a pandemia, o urbano, o pedagógico, a mídia... implicados num fazer teórico-analítico que não sucumbe à força de uma ideologia dominante que se esforça em separar os saberes sobre o sujeito do conhecimento científico e os efeitos que produzem uma formação social capitalista, como nos alertava Pêcheux ([1969] 2011).

Todavia, não foi fácil ler o Brasil hoje e continua não sendo, mas cá estamos, do outro lado da trincheira, fazendo valer o que Pêcheux (1988) nos ensinou: não há prática científica fora da prática política. Vamos fazendo resistência ao dizer quando muitos nos querem calados e vamos procurando, conforme Leminski, “a porta que esqueceram de fechar, o beco com saída, a porta sem chave, a vida”. Afinal, como nos diz Orlandi (2012, p. 234), “é porque a língua, a ideologia e o Estado falham em sua articulação do simbólico com o político, que a resistência é possível: não aquela da forma heroica, mas aquela que se dá na divergência de sujeitos que teimam em (r)existir”.

Nos parece que nosso ler sempre será da ordem desta teimosia de que fala Orlandi e que toca Guimarães Rosa (1985), em “A vida também é para ser lida. Não literalmente”, indo ao encontro do que fazemos em Análise de Discurso (AD): teimamos em ler a palavra em vida, em sua práxis, enlaçada na teoria, em batimento. E o fazemos mesmo nesta ambiguidade que engendra Guimarães: lida como adjetivo, do ato de ler, mas também como substantivo, de labuta, de esforço fora do comum, a lida nossa de todo dia. Esta ambiguidade nos ajuda a pensar que lemos a vida em sua crueza, rudeza, mas também em toda sua beleza e potência. E isso é possível, continuando com Guimarães, porque “O caminho é resvaloso” “a gente cai, mas levanta”, só que, para isso, precisamos “de pés livres, de mãos dadas e de olhos bem abertos”.

Esta passagem diz muito do que aconteceu nesta edição do Evento, mas também nos leva de volta àquele final de tarde de 14 de novembro de 2018, quando, no auditório da Pedra Branca, fechávamos o IV SEDISC com um grande círculo, gritando para quem quisesse ouvir: “Ninguém solta a mão de ninguém!”. De lá para cá, tantas lutas seguiram e, enquanto lutávamos, entramos na maior crise sanitária do Século XXI com a Pandemia da Covid-19. Mas não esquecemos desta promessa e viemos cada vez mais entrelaçando-nos em parcerias teóricas e de afeto: esta é a boniteza do SEDISC e é a boniteza da AD.

Finalmente, queremos dizer que o que se abre a ler no livro que aqui resenhamos são reflexões teóricas e analíticas que contribuem para que nos lembremos de nossa responsabilidade de persistirmos enlaçados na delicadeza e agudeza de nossas leituras discursivas, mantendo o fôlego e a coragem necessários para continuarmos nossa escuta do social, recusando o idealismo de uma língua e de um sujeito fora da história, firmando nossa posição “ética e política: uma questão de responsabilidade” (PÊCHEUX, ١٩83/2008, p. 57).

Referências:

MBEMBE, A. Necropolítica. 1ª edição [2003]. São Paulo: N-1, 2018.

LAGAZZI, Suzy. A arte da ilustração materializando o social. In: FLORES, Giovanna B.; GALLO, Solange L. M.; NECKEL, Nádia R. M.; DALTOÉ, Andréia S.; SILVEIRA, Juliana; MITTMANN, Solange; LAGAZZI, Suzy; PFEIFFER, Claudia C.; ZOPPI-FONTANA, Mónica G. (Orgs.) Análise de Discurso em Rede: Cultura e Mídia. Vol. 5. Campinas, SP: Pontes Editores, 2021.

LEMINSKI, Paulo. Toda poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

ORLANDI, E. P. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas, SP: Pontes Editores, 2012.

ORLANDI, Eni P. Ciência da Linguagem e Política: anotações ao pé das letras. Campinas: Pontes Editores, 2014.

PÊCHEUX, Michel. Semântica e discurso: uma crítica à afirmação do óbvio. [1975] Campinas: Editora da UNICAMP, 1988.

PÊCHEUX, Michel. [1983]. O Discurso: estrutura ou acontecimento. Campinas: Pontes Editores, 2008.

PÊCHEUX, Michel. As Ciências Humanas e o “momento atual” [1969]. In: Análise de Discurso: Michel Pêcheux. Textos selecionados: Eni P. Orlandi. Campinas: Pontes Editores, 2011.

PFEIFFER, Claudia. Apresentação. In: FLORES, G. B.; GALLO, S. L. M.; LAGAZZI, S.; NECKEL, N. R. M.; PFEIFFER, Claudia C.; ZOPPI-FONTANA, Mónica G. (Orgs.) Análise de Discurso em Rede: Cultura e Mídia. Vol. 3. Campinas, SP: Pontes Editores, 2017.

ROSA, João Guimarães. Tutaméia (Terceiras Estórias). - 6ª ed.- Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.

Como citar este artigo

DALTOÉ, A. da S.; PFEIFFER, C. Redes de pesquisa no acontecimento do V Sedisc. Fragmentum, Santa Maria, p. 265-271, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219470419. Acesso em: dia mês abreviado. ano.