Universidade Federal de Santa Maria

Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 213-237, 2022

DOI: 105902/2179219469133

e-ISSN 2179-2194

Submissão: 28/01/2021 • Aceito: 11/09/2022

À guisa de introdução

O gentilício brasileiro

Nomes enterrados

Brasileiro: o termo incita outros trânsitos

Brasil: identidade e cultura do trabalho

O Brasil trágico: identidade e cultura

Sobrevivendo no inferno

Para tentar concluir: o trabalhador brasileiro ou o brasileiro trabalhador

Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho

Brazilian brazil: etymology, identity, culture and work

Éder CabralI

Ernani MüggeII

I Universidade FEEVALE, Novo Hamburgo, RS, Brasil.

II Universidade FEEVALE, Novo Hamburgo, RS, Brasil.

RESUMO

Este trabalho discute, a partir de uma exceção linguística – o termo “brasileiro” –, aspectos da identidade e da cultura do território nacional. Para tal, apresenta noções de trabalho e exploração, as quais têm uma singularidade própria no contexto brasileiro desde sua origem como nação. O estudo parte da etimologia da palavra “brasileiro” e perpassa pelas áreas da história, da sociologia, entre outras. Ademais, traz referências literárias diversas, as quais apontam e problematizam questões que estão no cerne do eixo literatura-trabalho-cidadania. Para embasar tal reflexão, centra-se, em especial, no capital teórico de Giorgio Agamben, Roberto Damatta, Byung-Chul Han, Darcy Ribeiro e Roberto Vecchi. A reflexão evidencia que o trabalhador brasileiro sempre enfrentou uma trajetória de atrocidades, tanto no âmbito do trabalho quanto no da cidadania.

Palavras-chave: cultura, identidade, história, trabalho, literatura.

ABSTRACT

Este trabalho discute, a partir de uma exceção linguística – o termo “brasileiro” –, aspectos da identidade e da cultura do território nacional. Para tal, apresenta noções de trabalho e exploração, as quais têm uma singularidade própria no contexto brasileiro desde sua origem como nação. O estudo parte da etimologia da palavra “brasileiro” e perpassa pelas áreas da história, da sociologia, entre outras. Ademais, traz referências literárias diversas, as quais apontam e problematizam questões que estão no cerne do eixo literatura-trabalho-cidadania. Para embasar tal reflexão, centra-se, em especial, no capital teórico de Giorgio Agamben, Roberto Damatta, Byung-Chul Han, Darcy Ribeiro e Roberto Vecchi. A reflexão evidencia que o trabalhador brasileiro sempre enfrentou uma trajetória de atrocidades, tanto no âmbito do trabalho quanto no da cidadania.

Palavras-chave: cultura, identidade, história, trabalho, literatura.

À guisa de introdução

Os produtos culturais, nos quais se situam as narrativas literáriasI, podem ser vistos como um espaço ou um dispositivo de contrapoder, em que, ocasionalmente, há a inscrição de uma espécie de mundo alternativo, quiçá mais próximo da realidade que do efeito de real. Esse contrapoder contesta o poder constituído e evoca um poder desconstituinte, uma força que se movimenta de encontro ao que foi pensado com uma baliza histórica. Nessa ordem, é possível afirmar que parte da literatura remete a um poder outro, estabelecendo uma oposição ao poder constituído, abrindo a possibilidade de se pensar sua potência. É necessário ressaltar que, embora este artigo traga referências da ficção, não se pretende apresentar uma análise literária propriamente dita. O que se almeja, em palavras simples, é articular reflexões a partir do posicionamento de que, em nossa sociedade, há um poder opressivo e explorador, contra o qual os produtos culturais – dentre eles a literatura – se afirmam como um contrapoder.

Em Machado de Assis, no conto “Pai contra mãe”, em narrativas de Lima Barreto, entre eles “Sua excelência” e “O caso do mendigo”, em textos de Euclides da Cunha, como Os sertões, o leitor encontra a captura do contrapoder. Já no Modernismo, ocorre uma (re)aproximação da elite. Mário de Andrade (1983, 1942), contudo, percebe que o movimento não entendeu onde estava o povo. Assim, em textos de 1942, publicados em O Estado de São Paulo, em função dos vinte anos da Semana de Arte Moderna, critica a tendência artístico-cultural. Ao evocar Alencar, revela sua incapacidade de instalar a língua brasileira na literatura de seu país, outorgando o desafio para a posteridade: “[...] mas isso ficará para outro futuro movimento modernista, amigo José de Alencar, meu irmão. Nós fracassamos […]” (ANDRADE, 1942, s/p). Guimarães Rosa, já considerado um pós-modernista, em O recado do morro, mostra que são os marginais que salvam uma vida, porque as comunicações formais não funcionam. A narrativa é emblemática, pois quem decodifica as comunicações é aquele que está à margem da sociedade. Há, nesse texto, uma espécie de mundo alternativo, no qual a comunicação funciona dentro de uma outra lógica – exótica e excêntrica. Esse contrapoder também está no grupo do Romance de 30; nele, assoma a questão do subalterno, que chega à contemporaneidade e, com ela, pode-se destacar as obras de Roniwalter Jatobá e Luiz Ruffato.

Portanto, a presença do contrapoder nos processos e manifestações culturais, em especial na literatura, é uma constante. Para alcançar o que se objetiva neste artigo, apresenta-se o texto da seguinte forma: inicialmente, discute-se o adjetivo pátrio ‘brasileiro’, traçando um caminho epistemológico; em seguida, apresenta-se um paralelo histórico entre a concepção do termo ‘brasileiro’ no Brasil colonial, no período da instalação da República e nos dias atuais. Esse paralelo serve de guia para as seções seguintes, as quais tratam sobre outras percepções acerca do gentílico; sobre a identidade e a cultura do trabalho no país, com destaque ao trágico implicado nessas esferas. Com tais aspectos alicerçados sobre o trágico, pode-se concluir que o trabalhador brasileiro enfrenta uma trajetória de atrocidades no âmbito laboral. Para isso, o artigo se aporta, em especial, nos referenciais teóricos de Giorgio Agamben, Roberto Damatta, Byung-Chul Han, Darcy Ribeiro e Roberto Vecchi.

O gentilício brasileiro

Capítulos de história colonial (1500-1800)II, do historiador Capistrano de Abreu, publicado em 1907, entre outros, tem, em seu horizonte temático, a chegada dos portugueses ao Brasil. Nos textos, a adjetivação da terra se dá a partir de termos como brasílica, brasilis ou brasiliana.

Os sufixos -is e -iano/a são resgatados por autores, como Capistrano de Abreu, de outros contextos, como a recuperação de uma vertente erudita (ou se apresenta como), mas que, no uso comum, atualmente, não se aproveita. Esses adjetivos se perderam no tempo. O termo brasileiro surge muito tempo depois da chegada dos portugueses. Usa-se, na própria língua portuguesa, o adjetivo pátrio ‘brasileiro’; contudo, em outros idiomas, encontra-se o seu equivalente como brasiliano, brazilian, brasileño, brésilien. Há, assim, uma renovação ou uma reutilização do termo: diz-se ‘brasileiro’, logo o (uso do) termo é uma exceção.

Quando se pensa em exceção, é de uma forma substancial, pois ela se realiza dentro de um estado de exceção – “terra de ninguém”, apresentando-se “como a forma legal daquilo que não pode ter forma legal” (AGAMBEN, 2004, p. 12), o qual remete não apenas a uma instância do poder, mas também a uma discursividade que surge – muitas vezes impropriamente – e tenta realizar uma regulação das exceções.

Para Agamben, o estado de exceção constitui um ponto de desequilíbrio entre o direito público e o fato político. O filósofo italiano, a partir dos conceitos do pensamento conservador de Carl Schmitt, traz, como exemplo do estado de exceção, a guerra civil, a insurreição e a resistência, eventos que estão em uma faixa ambígua, indefinida, a qual faz uma espécie de intersecção entre o jurídico e o político. Ele expõe o estado de exceção da seguinte forma:

[...] dado que é o oposto do estado normal, a guerra civil se situa numa zona de indecidibilidade quanto ao estado de exceção, que é a resposta imediata do poder estatal aos conflitos internos mais extremos. No decorrer do século XX, pode-se assistir a um fenômeno paradoxal que foi bem definido como uma ‘guerra civil legal’ [...]. O totalitarismo moderno pode ser definido, nesse sentido, como a instauração, por meio do estado de exceção, de uma guerra civil legal que permite a eliminação física não só dos adversários políticos, mas também de categorias inteiras de cidadãos que, por qualquer razão, pareçam não integráveis ao sistema político (AGAMBEN, 2004, p. 13-14).

Em Homo Sacer, Agamben (2007, p. 15, grifo do autor) distingue exceção e exemplo: a exceção, para ele, é uma parte que é recolocada dentro de uma totalidade, pelo gesto soberano, o qual tem o poder de exclusão inclusiva:

[...] como uma exclusão inclusiva (uma exceptio) da zoé na pólis, quase como se a política fosse a lugar em que o viver deve se transformar em viver bem, e aquilo que deve ser politizado fosse desde sempre a vida nua. A vida nua tem, na política ocidental, este singular privilégio de ser aquilo sobre cuja exclusão se funda a cidade dos homens.

Em outras palavras, o soberano tem o gesto (ação, prática, procedimento) de excluir e incluir a seu bel prazer, pois o próprio gesto é o seu poder. O exemplo, por sua vez, é o ato de se retirar uma parte de um todo e singularizá-la a posteriori, elegendo-a como representação do todo. Exemplo e exceção, nessa ordem, são dois movimentos simétricos, pois são o mesmo tipo de gesto e de relação entre as partes e o todo, no entanto opostos. O problema se estabelece quando o excepcional se torna exemplar, pois essa operação se origina no campo da ideologia, sempre necessária para transformar exceções em exemplos.

Essa transmutação, trazida para a compreensão dos fenômenos do Brasil contemporâneo, exige um olhar a partir do caminho discursivo, para que não se corra o risco de afirmar que as exceções são exemplos.

O gentilício brasileiro diverge de uma norma linguística, ou seja, é, também, uma exceção – ou resultado de uma. Assim, neste texto, faz-se uma figuração, uma escrita de uma cultura material, mas numa perspectiva quase invencional, pois, se nomear é ter poder, consequentemente, institui-se como um gesto, também, soberano. Diz-se, aqui, invencional, por um motivo: ecoam, nesta reflexão, algumas palavras de Edward Said, tais como “[...] todas as famílias inventam seus pais e filhos, dão a cada um deles uma história, um caráter, um destino e até mesmo uma linguagem” (SAID, 2004, n.p.). Pensa-se, desse modo, que o Brasil é um mistério inventado, e, logo, reflete-se sobre alguns pontos de sua realidade identitária.

Nomes enterrados

Se o termo “brasileiro” é uma exceção ou uma invenção, o que se pode fazer é tentar montar um breve resgate dos nomes do Brasil a partir de um excerto de História da Província de Santa Cruz, a que vulgarmente chamamos Brasil (1576)III, de Pero de Magalhães Gandavo, historiador e cronista português:

Por onde não parece reação que lhe neguemos este nome, nem que nos esqueçamos dele tão indevidamente por que lhe deu o vulgo mal considerado, depois que o pau da tinta começou de vir a estes Reinos: ao qual chamaram Brasil por ser vermelho, e ter semelhança de brasa, e daqui ficou a terra com este nome de Brasil. Mas para que nesta parte magoemos ao Demônio, que tanto trabalhou e trabalha por extinguir a memória a Santa Cruz e desterrá-la dos corações dos homens [...] (GANDAVO, 2008, p. 93).

O nome Província de Santa Cruz, de cunho religioso, não vingou: o “demônio”, ao contrário das intenções de Gandavo, não ficou tão magoado, porque a designação vulgar venceu na boca daqueles homens que estavam ali naquela época. O nome Brasil já estava no imaginário dos navegadores portugueses. Dessa forma, o “demônio” fez um trabalho melhor e, por certo, extinguiu da memória e do uso a Ilha de Vera Cruz, pelo menos da designação pátria. Por mais que se desejasse, Província ou Terra de Santa Cruz ou Terra dos Papagaios, o “demônio” fez que se chamasse essa terra de Brasil. Não houve restituição; tais nomes foram enterrados e, hoje, se o país se chama Brasil, quem nasce nele é brasileiro – uma convenção quase que sem rastros ou questionamentos.

Por um lado, o termo “brasílico” também não seria o mais adequado. Por outro, vem a calhar nesta reflexão, pois deriva da palavra “brasil”, que tem uma longa e distante história epistemológica. Entretanto, o uso de “brasílico” faz referência apenas aos indígenas brasileiros ou àquilo que é próprio das culturas autóctones, de sua arte e de suas línguas. Avisa-se, de antemão, que as etimologias não precisam ser verdadeiras: elas podem ser inventadas, desde que façam pensar. Dessa forma, a relação da designação do país Brasil com o pau-brasil, paubrasilia echinata ou ibirapitanga, abundante antes da chegada dos colonizadores, é rápida, lógica e evidente; no entanto, “às vezes é útil pedir à evidência que se justifique” (BENVENISTE, 1988, p. 284), pois a derivação é um caminho muito fácil e simples, no entanto, esconde muitos detalhes.

Verifica-se, no documentário Matriz TupiIV (2005), o seguinte trecho, o qual ilustra o desenvolvimento do pensamento que se propõe neste artigo:

Há mil anos [...], de lá para o ano mil, tem cartas que falam da Ilha Brasil e isso significa que o nome Brasil não vem do pau-brasil não. Isso aqui era a Ilha Brasil, que alguns navegantes sabiam, mas, um dia, os portugueses precisaram fazer uma descoberta oficial, mandando até um escrivão do cartório: “declarar que foi descoberto [...]”. Isso foi em 1500, mas preexistia há muito fisicamente, biotericamente, biologicamente e humanamente como humanidade indígena. Uma humanidade diferente, de uma gente que agradecia a Deus por o mundo ser tão bonito, que existia para viver a vida, para gozar a vida. A finalidade da vida era viver. Os brasis, como eram chamados nossos antepassados indígenas [...].

Entre os séculos IX e X, uma ilha com designação similar, a Ilha Brasil, já estava presente em cartas náuticas e mapas marítimos, a qual alguns navegantes conheciam ao menos (pel)o nome, uma vez que pertencia ao imaginário celtibero e à mitologia gaélica como Hy-BrasilV (Hy-Brazail), a qual fora a ilha divina, um lugar paradisíaco, abençoado, enigmático, de pessoas bonitas, de sol e de descanso, de onde os seres humanos descendiam e que, em algum momento, desapareceu no Atlântico Norte. Nos séculos XIII e XIV, os monarcas ibéricos patrocinavam expedições com o intuito de localizar a ilha fantástica, a qual nunca fora encontrada pelos navegadores, contudo lendariamente visitada por São Brandão (DONNARD, 2009).

Raymundo Faoro, jurista, sociólogo e historiador contemporâneo, em Os Donos do poder, também aponta que

O próprio português – O português da corte, estadista, e o português colono – viu Brasil, desde o primeiro momento da conquista, uma entidade geográfica envolvida no mito. Ainda Brasil, envolvida pelo oceano e pelos rios da prata e Amazonas, tinha, ao centro, lugar do nascimento das duas grandes correntes, um vasto lago (FAORO, 2000, p. 178).

O próprio Darcy Ribeiro, não só em Matriz Tupi (2005) como também em A América Latina existe? afirma que o nome Brasil não vem do pau-brasilVI, senão dessa Ilha Brasil e aponta que “[...] suspeitava-se, é verdade de sua existência imaginando tratar-se de mais um (Novo Mundo) ocultamente mágico, de anti-ilhas, ou de brasis miraculosos registrados em velhos mapas” (RIBEIRO, 2010, p. 93, grifo nosso). Além desses teóricos citados anteriormente, Lilia Schwarcz e Heloisa Starling, em Brasil: uma biografia, também apresentam e exploram esse tema:

[...] “Hy Bressail” e “O’Brazil” — cujo significado era “ilha afortunada”. [...] Ilhas são lugares, por excelência, da projeção idealizada na utopia. A ilha do “Brazil” dos irlandeses é originalmente uma ilha fantasmagórica que sofre um deslocamento e reaparece no século XV próxima aos Açores e ao mito da ilha dos Bem-Aventurados de São Brandão. A perfeição do lugar descrito por Caminha aproxima-se da utopia da ilha do “Brazil”. Essa explicação daria conta, também, do nome “Obrasil”, encontrado em vários mapas do início do XVI. A inspiração irlandesa era religiosa e de tradição paradisíaca, e perseguiria com teimosia os cartógrafos do período. Apareceria pela primeira vez em 1330 designando uma ilha misteriosa, e ainda em 1353 estaria presente numa carta inglesa (SCHWARCZ; STARLING, 2015 p. 33).

O Novo Mundo, aos olhos dos navegadores europeus, era o paraíso terrestre de pessoas deslumbrantes. Essa é uma relação provável de que eles tivessem encontrado um lugar celestial, lendário, ou transcendental, uma vez que o nome ‘Brasil’ aparece na mitologia irlandesa muito antes da chegada dos portugueses, da data oficializada e registrada do “descobrimento” da Terra de Santa Cruz, primeiro nome das terras recém-pisadas pelos navegadores (CANTARINO, 2004). O nome do país, ‘Brasil’, relaciona-se muito mais com a ilha lendária do que com a árvore pau-brasil. O nome das novas terras, Brasil, espalha-se pela Europa rapidamente, uma vez que era conhecido dos navegadores e toma lugar das outras designações, tais como Província de Santa Cruz, Vera Cruz ou Terra dos Papagaios. No entanto, insiste-se em obscurecer a origem mítica do nome e a relacioná-lo ao pau de tinta, objeto de exploração e comercialização no período colonial (SCHWARCZ; STARLING, 2015). Dessa forma, a palavra “brasil” pode estar relacionada a uma ilha mítica, que, posteriormente, formará o gentilício ‘brasileiro’.

Alguns historiadores refletiram sobre as designações gentilícias das pessoas naturais do Brasil e questionam o porquê de não serem conhecidos como brasilianos, brasilenses ou mesmo brasileses, termos formados por sufixos empregados normalmente em gentílicos (SOUZA, 1939). O caminho mais provável é que o termo “brasileiro” não emerja como adjetivo pátrio, pois, em seu surgimento, designava uma profissão: tirador de pau-brasil. Essa hipótese também é corroborada por Darcy Ribeiro: “[...] uns passaram a se chamar brasileiros (cortadores de pau-de-tinta)” (RIBEIRO, ٢٠١٠, p. ٧٣). O autor, portanto, faz referência, também, àqueles que trabalham com o pau-brasil.

Muitos discursos apontam que os extratores dessa madeira eram criminosos condenados (degredados ou perseguidos), os quais teriam a “liberdade” na nova colônia, caso aceitassem explorá-la. O “serviço” prestado compensaria a condenação, ou seja, “valeria a pena” – expressão muito utilizada no Brasil (também de origem controversa, em função da polissemia da palavra “pena”). Todavia, em contextos remotos, de fato, ser exilado era a própria pena (COSTA, 1998)VII. Por ter relação com aqueles que foram banidos, o atual gentilício ‘brasileiro’, por muito tempo, portou um significado pejorativo e era rechaçado.

Embora não faça referência a sua fonte de pesquisa – infelizmente – Márcio Bueno, em A origem curiosa das palavras (2003), afirma que foi Frei Vicente de Salvador quem ousou, pela primeira vez, usar o termo “brasileiro”, não apenas para designar o ofício de extrator de madeira, desempenhado por ex-condenados, que praticavam um serviço muito lucrativo à metrópole, como também para fazer referência àquele que era nascido na própria terra Brasilis, no solo da colônia, no novo país, o Brasil.

A etimologia apresenta diversas explicações para o advento da palavra “brasil”, que parece navegar no oceano linguístico do globo. Encontram-se resíduos da palavra em diversas línguas, como o árabe, o celta, o francês, o grego, o italiano (incluindo os dialetos toscano, genovês e vêneto), o latim, o sânscrito, o tupi, etc. O pau-brasil navegava pelos mares, junto com seus traficantes e comerciantes de diversas nações. Logo, a Terra de Santa Cruz não foi conhecida pela imperativa designação de ordem religiosa, senão pelo produto de exploração. Assim, era muito mais fácil falar da terra do pau-brasil, o lugar dos brasis, terra do brasil, do que de outros nomes ligados à ideologia cristã e à intenção portuguesa de posse. Além disso, como referido anteriormente, a palavra “brasil” já era conhecida em diversos territórios europeus ligados à navegação. Por sorte, o país Brasil não foi nomeado por meio de homenagem respeitosa aos navegadores ou patrocinadores das expedições, como se tem a América, em relação a Américo Vespúcio. Se assim o fosse, talvez se chamasse Manoélica, em sinal de obediência a Dom Manuel I, rei de Portugal no período do descobrimento (SILVA, 1852).

Para a historiadora Therezinha de Castro (1972), o termo “brasileiro” era um termo de caráter econômico e não político, uma vez que se ligava aos que se dedicavam ao comércio desse pau de tinta. Assim, tem-se não somente toda uma história da palavra “brasileiro”, como, também, conforme aponta o historiador Bernardino José de Souza (1939), uma visível anomalia gramatical – a qual se perscruta aqui. Todavia, à medida que o tráfico de pau-brasil diminuiu e, finalmente, acabou, o uso dessa palavra, com esses sentidos, profissional e pejorativo, também desapareceu, e sua popularização vai ao encontro da gradual formação de uma identidade nacional (SOUZA, 1939).

Brasileiro: o termo incita outros trânsitos

Outras origens são possíveis para a palavra “brasileiro”, pois, não se pode esquecer que as palavras remetem a contextos nos quais vivem sua existência socialmente subjugada e chegam a seu próprio contexto atual, vindas de outro, invadidas pelo sentido dado por outros. No entender de J. Authier Revuz (2004), as palavras são habitadas, sempre atravessadas por discursos. Mikhail Bakhtin (1999) denomina esse fenômeno de “saturação da linguagem”, expressão que aponta para a lógica de atribuição, aos termos, de significados sociais determinados por intenções. As palavras “brasil” e “brasileiro”, nessa ordem, não fogem desses atravessamentos.

Pedro Calmon (2013), outro historiador que se debruçou sobre a questão, indica uma origem diversa ao termo “brasileiro”, relacionando-o tanto a viagens quanto a viajantes. O pesquisador compara a construção com outros termos que carregam o mesmo sufixo: romeiro e santiagueiro. O primeiro, que designou aquele que peregrinava em direção a Roma; o segundo, o que peregrina para Santiago de Compostela. ‘Brasileiro’, logo, seria aquele que viajou ao Brasil.

Ademais, os escritores portugueses Camilo Castelo Branco e Eça de Queirós utilizam a palavra “brasileiro”, em suas narrativas, para designar àqueles que retornam a Portugal, depois de viajarem ao Brasil e de aí terem feito riqueza. Obviamente, o termo é estabelecido primeiramente no plano da língua, em meados do século XIX, para, depois, emergir no plano literário. Apresentam-se, a seguir, três excertos extraídos de obras literárias de Camilo Castelo Branco, nas quais o termo ‘brasileiro’ surge com esse valor:

O brasileiro da Rita Chasca, que chegou agora, diz que ele tem quatrocentos contos fortes, para riba, que não para baixo (CASTELO BRANCO,1984, n.p.).

E os Srs. Mourões disseram pouco mais ou menos o seguinte: Que, seis anos antes, ele, brasileiro, lhes havia comprado um adereço de brilhantes, composto de gargantilha, brincos, broche e bracelete, por 6.500$000 réis, com o fim de presentear sua noiva, segundo ele comprador declarara (CASTELO BRANCO, 1966, n.p.).

Neste tempo, aconteceu chegar ao convento a notícia de ter aparecido em Barrosas um brasileiro muito rico, procurando novas de uma irmã que deixara, quando, em criança, fora para a América. Ora a irmã do brasileiro era Rita de Barrosas, criada da abadessa. Grande alvoroço, e alegrias, e invejas no mosteiro! (CASTELO BRANCO, 1966, n.p.).

As narrativas A brasileira de Prazins (1882), Coração, cabeça e estômago (1862), Os brilhantes do brasileiro (1869), de Camilo Castelo Branco, ou a Ilustre casa de Ramires (1900), Alves & Cia (1925), O Primo Basílio (1878), de Eça de Queirós, mostram que o Brasil era um lugar que servia como fonte de exploração e enriquecimento dos europeus, dos portugueses, sobretudo, pois um brasileiro, originário dessas terras, descendente de indígenas e/ou africanos escravizados, jamais (ou excepcionalmente) obteria e ostentaria tal riqueza. Percebe-se, claramente, que esse ‘brasileiro’, ao qual os escritores portugueses se referem, é o viajante europeu que enriqueceu no período da exploração da cana-de-açúcar.

A palavra “brasileiro”, portanto, pode ser concebida como um navio que viaja no tempo e é tripulado por diversas narrativas. É uma palavra habitada, invadida e, hoje, designa aqueles que são naturais de uma nação que, muitas vezes, recebe o estereótipo de ser o país dos cinco “S” (sun, sand, samba, soccer e sex).

A palavra “brasileiro”, portanto, que, nas primeiras décadas de colonização, fez referência a uma atividade industriosa, ou a uma pessoa que faz uma espécie de jornada do herói em um contexto de colonização, ou que, no período da exploração da cana-de-açúcar, que, posteriormente retorna com uma riqueza, produzida pelo suor e dor de pessoas escravizadas, evidencia uma relação com a identidade e cultura do trabalho no Brasil.

Brasil: identidade e cultura do trabalho

Desde os tempos “do encontronaço”, “da Invasão ou Choque”, expressões utilizadas por Darcy Ribeiro (2010) para designar o descobrimento do território que viria a ser o Brasil, constata-se, conforme Roberto DaMatta (2000), que há uma multidão de explorados e uma concepção de cidadania e de trabalho que é nitidamente negativa(da), desqualificada, posta em vida nua.

Embora, como apontou Kathryn Woodward em “Identidade e diferença”, a respeito da mídia, a qual, na atualidade, “diz como se deve ocupar uma posição-de-sujeito particular” (WOODWARD, 2000, p. 18), como “o trabalhador em ascensão” (WOODWARD, 2000, p. 18), nota-se que o Brasil não é um lugar para a melhoria da classe trabalhadora. Em relação ao âmbito do trabalho, o Brasil não se deixa comparar com outros contextos que não tenham um passado colonial similar.

Woodward (2000) afirma que as formas de representação dos sujeitos, em qualquer sociedade, seja como mulheres, como homens, como pais, como pessoas trabalhadoras, têm mudado radicalmente nos últimos anos. Segundo a autora, pode-se passar por experiências de fragmentação nas relações pessoais e no trabalho, as quais são vividas no contexto de mudanças sociais e históricas, tais como mudanças no mercado de trabalho e nos padrões de emprego. Essas mudanças e experiências implicam a heterogeneidade dos sujeitos. No Brasil, entretanto, há uma constante degradaçãoVIII em relação aos trabalhadores, à classe trabalhadora, pois, mesmo que se fragmentem suas relações, ou tenham jornadas infinitas e esforços descomunais, a dignidade que viria pelo viés do trabalhoIX é apenas uma ilusão, pois essa classe e a pobreza, ao longo do tempo, continuam de mãos dadas. Em outras palavras, a identidade do trabalhador está, geralmente, em determinada continuidade, conjugada com a condição de pobreza, seja ela vista dentro da ótica de uma sociedade disciplinar, ou do controle ou do desempenho (FOUCAULT, 2007, DELEUZE, 2010, HAN, 2018).

Louis Althusser, em Aparelhos ideológicos de Estado, indica que o salárioX “é determinado pelas necessidades de um mínimo histórico (Marx sublinhava: é preciso cerveja para os operários ingleses e vinho para os proletários franceses) – portanto historicamente variável” (ALTHUSSER, 1985, p. 56-57). No entanto, ao se pensar no salário-mínimo do trabalhador brasileiro, vê-se o trágico, pois, nesse mínimo, nem se poderia pensar que a cachaça está inclusa. Sem retirar a ironia, no Brasil, o salário, visto dessa forma, apresenta-se como pena e como chiste, pois não vai ao encontro de uma remuneração ajustada pela prestação de serviços em razão de contrato de trabalho. O trabalhador brasileiro, na esfera das urbes, muitas vezes, ainda está na posição de migrante, como Fabiano, personagem de Vidas Secas, de Graciliano Ramos (2018): sem salário (ou sub-remunerado), sem endereço, sem sobrenome, sem dignidade, em busca de uma esperança de vida, ou melhor, de uma sobrevivência, na qual a cachaça, a cerveja ou vinho são uma suntuosidade.

Assim, tem-se representações em produtos culturais de uma classe trabalhadora cercada por um envoltório do trágico, geralmente em queda, buscando a manutenção da vida dentro de uma lógica social exploratória, a qual raramente dá chance para ascensões e bem-estar.

O Brasil trágico: identidade e cultura

A degradação que circunscreve a atividade laboral no contexto brasileiro remete à ideia do trágico. O termo “trágico” tem um caráter complexo e polissêmico. Segundo Barnaba Maj, em Idea del tragico e coscienza storica nelle “fratture” del Moderno,

[...] c’è il tragico quando è in gioco un’idea che sta al di sopra ed è più forte della stessa vita umana, che le viene perciò sacrificata [...]. Il tragico è il tentativo di dare un nome al nome al dolore. Il che non si può fare senza il nome degli dèi [...] i nomi o il nome di Dio [...]. Dire che c’è stato un ‘tragico’ incidente stradale è un absurdo, se riferito all’incidente in sé. Ma poterebbe non esserlo, se nominasse per chi e per quale la perdita è [...]XI (MAJ, 2003, p. 9).

O trágico pode ser entendido, neste texto, não somente como a exploração capitalista da força-trabalho, mas, também, como um trágico histórico, pois se apresenta como um impasse, ou uma impossibilidade de superação de uma determinada posição social. Pode-se, inclusive, dizer que ele tem uma orientação mais genérica, pois é trágico que as sociedades contemporâneas (que antes foram colônias) carreguem, como um traço constituinte, essa marca.

O trágico geralmente é relacionado à polis (VERNANT, 1999), sendo, assim, um fato político, no qual as pessoas que pertencem a um determinado contexto possuem, também, os códigos para entender o núcleo trágico de um discurso específico. Portanto, neste artigo, não se está apenas diante de um fato genericamente trágico, como também de um trágico histórico, que remete a uma história que não consegue ir além das próprias contradições: uma história que gira em falso é, mesmo assim, uma história, e, sob essa ótica, remete a um trágico – por mais redundante que isso possa parecer. Não se pode dizer que esse trágico nada tenha a ver com tragédia convencional, porém é a ideia de um trágico que inclui toda a negatividade que ele tenta representar. Para Roberto Vecchi (2004, p. 88), há

[...] o trágico moderno, mais exactamente, para distingui-lo do género aristotelicamente canonizado da tragédia ou do trágico antigo com que ao mesmo tempo mantém relações complexas, residuais, sendo uma sua actualização – ou melhor uma sua “tradução” – fora do contexto mitológico.

Em suma, o trágicoXII, na perspectiva deste texto, é o mal, a violência, a dor extrema, a falta, a impossibilidade, etc. Ele se caracteriza como um adjetivo sintético, mas que se mostra como um impasse diante de uma representação catártica de um determinado fato. Levanta-se, nessa ordem, a conexão entre o trágico e a história, que acaba por ser um traço identitário do pensamento, em oposição ao trágico como fato estético relacionado com a tragédia. Dessa forma, examina-se, neste estudo, o trágico que acontece na história, “um trágico se torna uma possibilidade de reler a história cultural brasileira do século XX” (VECCHI, 2004, p. 5).

Na trajetória brasileira, milhões de pessoas enfrentaram enormes obstáculos para ascender da condição de escravos à de proletários, os quais se concentram nas camadas mais pobres da população (RIBEIRO, 2010). E essa é a ascensão mais notável que se tem registrada na contra-história do Brasil, o que não é uma exceção. Toma-se, por referência, o conceito trabalhado por Michel Foucault (2010), que mostra que a história é o discurso do poder, das obrigações pelas quais o poder submete. Além disso, é o discurso do brilho pelo qual o poder fascina, aterroriza e imobiliza. O que na história é lei ou obrigação, na contra-história é o abuso, a violência e a extorsão. A história do trabalhador no Brasil é, nesse sentido, uma contra-história. O estudo da representação do trabalhador, por exemplo, dentro da literatura brasileira, não deixa de ser uma contra-história, uma vez que ela serve, também, de suporte para as narrativas das lutas de classes. Nas palavras de Foucault, a contra-história “vai falar do lado da sombra, a partir da sombra” (FOUCAULT, 2010, p. 59).

Os trabalhadores do Brasil, além de enfrentar a pobreza, proveniente da exploração de que são padecedores, defrontam-se com a discriminação, que impõe a obrigatoriedade da continuação permanente em posições subalternas, as quais complexificam uma suposta ascensão a postos de trabalhos dignos ou mais altos na escala social. Dentro de um contexto mais específico, como o Brasil atual, situando o problema geral, os produtos culturais (dentro deles a literatura brasileira) atestam, com uma extraordinária força crítica, multíplices casos do recalcamento da pobreza da cena principal, em que se espelha o idealismo vazio de pertença a uma pressuposta nação. Um dos exemplos canônicos mais evidentes – mas o repertório poderia se estender quase ad infinitum – é um breve conto de Rubens Fonseca, no conhecidíssimo Feliz ano novo. Trata de “O outro”, no qual o leitor pode perceber que o poder se funda na vida nua do excluído, como atesta de maneira incisiva o seu assassinato ‘sem culpa’: “que culpa eu tinha de ele ser pobre?” (FONSECA, 1989, p. 90). É possível, também, destacar o número de ocorrências da palavra “pobre” no conjunto de Feliz ano novo, as quais são empregadas como algo a ser desaprovado, desviado, rejeitado, repudiado e condenado (VECCHI; CABRAL, 2019).

No cenário brasileiro, em diversos momentos, o trabalhador teve apenas a esperança de alguma ascensão, e, talvez, essa expectativa seja mais explícita em um discurso que raramente se torna efetivo no cotidiano: o discurso do “chegar lá”, tendo-se o “lá” quase como um lugar transcendental, pois o sujeito, na condição de força de trabalho, embora necessário para colocar a sociedade em movimento, não raramente é tratado com descaso, impossibilitado de avançar socialmente. Ele é, até mesmo, vítima de eufemismos, como, por exemplo, quando é “elevado” à condição de “empreendedor”. No contexto atual, sob a “égide” do governo, o empreendedorismo nada mais é que uma tentativa de fugir do desemprego, do subemprego ou, pior, do desalento.

A força centrífuga social proveniente da classe dominante, e que resulta de uma longa jornada de imposição de poder (VECCHI, 2004), em seus mais diversos formatos, seja em contextos teóricos, científicos, literários, seja na vida social em suas mais diversas instâncias, faz com que se tenha, no Brasil atual, uma massa trabalhadora que os detentores do poder desejam sempre subalterna, extraindo dela o “[...] direito de reivindicar direitos”XIII (TASSARINI, 2009, tradução nossa). Para isso, a classe dominante lança enunciados imperativos para direcionar a massa, tais como: “Não pense em crise, trabalhe”XIV. Esse enunciado, do ex-presidente interino Michel Temer, por exemplo, foi impactante e polêmico, proferido na posse dos novos ministros ao governo provisório em virtude do afastamento da presidenta Dilma Rousseff. Enunciado problemático, pois muitos brasileiros o relacionaram com a frase que servia de ornamento nos portões de Auschwitz, “Arbeit macht frei”. O enunciado soou como sardônico, pois remete não somente ao lager mais sombrio, mas, também, a um excerto de Primo Levi (2010, p. 15), em “O degelo”, relato integrante de A trégua:

Fui içado à carroça por Charles e Arthur, junto com uma carga de moribundos, de quem eu não me sentia muito diferente. Chuviscava, e o céu estava baixo e fosco. Enquanto o lento passo dos cavalos de Yankel me conduzia para a tão distante liberdade, desfilavam pela última vez sob os meus olhos os barracões, onde eu sofrera e amadurecera, a praça da convocação, onde ainda se erguiam, lado a lado, a forca e uma gigantesca árvore de Natal, e a porta da escravidão, na qual, agora inúteis, liam-se ainda as três palavras de escárnio: “Arbeit macht frei”, “Só o trabalho liberta”.

É um enunciado que tenta instituir uma norma, uma verdade, conforme Foucault (٢٠١٠), e explicita que a norma é o discurso (que se quer) verdadeiro, pois, ao menos em parte, decide, veicula e propulsa efeitos de poder. Esse enunciado imperativo tenta julgar, condenar, classificar, obrigar a tarefas, destinar os modos de viverXV da população trabalhadora. Tal enunciado faz parte de um discurso que se pretende verdadeiro e tenta trazer consigo efeitos específicos de poder.

Sobrevivendo no inferno

O contingente brasileiro está conscrito como força de trabalho e, em nenhum momento (ou em raros), desde a colonização, o grupo inserido na produção se constitui em uma nação que viva para si. Fica evidente que a população “empreendedora”, para usar eufemismos atuais, que mascaram a realidade da multidão trabalhadora, é tratada, historicamente, como “combustível humano em forma de energia muscular, destinado a ser consumido para gerar lucros” (RIBEIRO, 2010, p. 40). Opõe-se, neste texto, a expressão “massa trabalhadora” de “multidão trabalhadora”, pois massa está para o conjunto das camadas populares não subjetivada, assujeitada, bloco de manobra passiva. Por sua vez, multidão trabalhadora está para sujeitos em situação de trabalho, com identidade, passível de reconhecimento, com desejos e vontades, reconhecidos como seres humanos que usam de si em atividade laboral, tendo e formando, sim, um conjunto de subjetividades.

O termo “brasileiro”, oriundo de uma atividade laboral vinculada à colonização e, consequentemente, à exploração, poderia, nessa ordem, estar relacionado a uma nação trabalhadora, como realmente é. Mas, na prática, não é o que acontece. Parte majoritária da população que labuta é constantemente desqualificada por diversas práticas sociais que a fazem permanecer em uma vida nuaXVI, sempre sacrificada, no sentido banal, em um jogo constante de recolonizações por parte de corporações globais. Essas são trazidas no colo por um corpo político entreguista, que projeta a precarização do trabalho a qualquer custo, ou melhor, à custa das vidas que são destinadas a apenas trabalhar para viver e viver para trabalhar, à custa da vida nua, a qual é excluída e “incluída” – conforme a necessidade do capital.

Ainda sobre a vida nua (AGAMBEN, 2007) vale dizer que esse conceito entra em uma dimensão de natureza histórica. Nesse viés, insere-se, neste estudo, o conceito no interior do processo de formação do Brasil, no qual há toda uma residualidade colonial que, apesar das provações históricas, acabam sendo uma espécie de permanência. O período colonial, assim, torna-se um elemento para pensar o contemporâneo, tendo a vida nua como uma factualidade constante. Agamben (2007), quando pensa a vida nua, traz uma citação de Walter Benjamin, a qual se encaixa muito bem no que é posto sobre a vida desqualificada (o mínimo viver, apenas viverXVII), sobre a vida nua no Brasil dos últimos séculos (ainda mais na atualidade): “A tradição dos oprimidos nos ensina que o ‘estado de ‘exceção’ em que vivemos é na verdade a regra geral” (BENJAMIN apud AGAMBEN, 1987, p. 226). Pensar a formação do Brasil conjuga essas duas realidades, essas duas temporalidades, como se fosse possível uma inscrição do passado colonial no tempo presente. Caso se pense na formação, há uma dialética captada, mas também se pode acrescentar a possibilidade de verificar o uso do passado (TRAVERSO, 2012).

A reutilização do passado funda outros passados, na maioria das vezes, com interesses específicos. Tal uso do passado conduz, geralmente, a uma discursividade complexa e, portanto, compreender os mecanismos (de construção) do passado é a forma ideal e crítica para pensar o que a história divulgará sobre ele. A história, portanto, sob esse ângulo, pode ser percebida como uso possível do passado.

Nessa ordem, a literatura, como manifestação cultural, também pode ser tocada pelo passado (por exemplo, nos romances históricos). Uma reflexão sobre a economia ou capitalXVIII do passado tanto é instigante quanto relevante. Mais importante, entretanto, é estar ciente dos riscos eminentes do uso do passado, ou seja, é ter a capacidade crítica de entender os mecanismos nos quais esses usos são engendrados, pois, entender os dispositivos desse uso significa construir uma posição crítica para revê-los e avaliá-los. A literatura é um lugar de reuso do passado; percorre-se esse caminho nesta reflexão, pois nela o passado pode ser negado, reformulado, reconstruído, revisitado.

Além disso, a literatura traz um efeito de real, por meio de signos que são capazes de fazer o leitor atar sua intepretação com aspectos da sociedade. A literatura que traz, em seu leitmotiv, personagens e enredos que perpassam pela esfera do trabalho, inevitavelmente, reflete sobre aspectos econômicos que permeiam a classe trabalhadora.

Portanto, quando se fala em economia, pode-se pensar em Aristóteles, na Política. O filósofo grego define a economia como o lugar do oikos, da casa, e parece subtrair a economia da centralidade da polis, isto é, da centralidade pública. Há, também, outra passagem sobre oikos, mas, agora, com Agamben (2011), na qual ele afirma que economia, a partir do século VI, significa exceção. É produtivo trazer a economia ao lado da exceção, pois os dois termos remetem ao exercício de poder, ou seja, o poder de subtrair, de reduzir o espaço da polis, a política, a um espaço privado, próprio, econômico. Esse gesto de subtração é um ato de soberania. Isso fica evidente nos produtos culturais que têm no seu projeto personagens dos estratos sociais que sofrem os efeitos do poder constituído, o qual, atualmente, apenas subtrai direitos e debilita, desestabiliza ainda mais as condições dos brasileiros trabalhadores que se desdobram ao largo da história, desde a colonização até a atualidade. A constituição do estado de exceção, em que o soberano atua sobre a polis, seu espaço de poder, permite uma aproximação dessa circunstância com a exceção linguística, uma vez que o ‘brasileiro’, o brasileiro-trabalhador, encontra-se em uma condição subalternizada, imerso nas circunstâncias de seu contexto, de maneira a não conseguir mais visualizar o que lhe afeta negativamente, ou seja, acatando as atrocidades do estado de exceção em seu cotidiano sem uma percepção crítica ou tentativa de resistência.

Ainda sobre as temporalidades brasileiras, é possível defender a ideia de que a paisagem edênica dessas terras foi substituída por um panorama triste de um povo, o qual sempre foi colocado na condição de mera força de trabalho, de um meio para a produção, como aponta Ribeiro (2010, p. 59), “[...] primeiro escravo, depois assalariado; sempre avassalado. Suas aspirações, desejos e interesses nunca entraram na preocupação dos formuladores dos projetos nacionais, que só tem olho para a prosperidade dos ricos”.

O brasileiro comumXIX vive uma tensão diária, pois é destinado a ser o componente mais vil de qualquer produção e empreendimento. A pessoa humana, na esfera laboral, é elemento mais barato do que a terra, o gado, as máquinas e os insumos, portanto, não há nenhum limite em relação a sua atividade. Tenta-se (e na maioria das vezes com êxito) gastá-lo e desgastá-lo, pois há um excedente de pessoas fabricadas culturalmente para trabalhar (RIBEIRO, 2010), tal como um homo sacer (AGAMBEN, 2007), mas em um “homosacerização” à brasileira (MÜGGE, KERNIEW, CABRAL, 2021).

Para tentar concluir: o trabalhador brasileiro ou o brasileiro trabalhador

Após apresentar as nuances do adjetivo pátrio ‘brasileiro’, por meio de um roteiro epistemológico e instituir uma contraposição em relação a um paralelo histórico circunscrito desde o Brasil colonial até a atualidade, pode-se ponderar tanto a identidade quanto a cultura, além de toda a tragicidade que acompanha a ambas.

Dessa forma, nesta reflexão, que se iniciou por uma exceção linguística do termo “brasileiro”, tentou-se atingir as questões embrionárias de identidade e cultura, circunscrevendo-as no âmbito do trabalho, em que, na ordem do dia, há milhões de subocupados, desempregados e desalentados. Por isso, apresenta-se a seguinte questão: o que fazer com tantas pessoas que excedem os postos de trabalho, já precários no Brasil atual? Talvez, a lógica dominante seja tão velha como o pensamento de que a força do trabalho, no seu ideal, é infinita; em outras palavras, quanto mais tal força exista, mais plena e corretamente o sistema da produção capitalista poderia funcionar (FOUCAULT, 2010). O que é velho e retrógrado ainda encontra funcionamento no país da ordem e do progresso. Tem-se, portanto, uma atmosfera laboral montada para desgastar os corpos dos trabalhadores, com uma eficácia incomparável, tal como moinho de gastar gentes (RIBEIRO, 2010).

Por fim, se o Brasil é um mistério inventado, o brasileiro também foi moldado por mãos e vontades não apenas estrangeiras. Com o passar dos séculos, o seu povoXX foi remoldado por si próprio como em um autoimperialismo, sempre trabalhando, privado de consciência crítica – bem como ocorre em todos os países colonizados. Todavia, o trabalhador brasileiro, ao largo de sua trajetória, tem uma identidade ambígua: nem indígena, tampouco africana, muito menos europeia, dominada econômica e culturalmente por outras nações. Além disso, parece que foi feito para não ser, nem parecer, nem se reconhecer jamais com aquilo que é. Talvez, por isso, nos produtos culturais e na própria literatura brasileira, sua representação seja tão fragmentada.

A partir deste artigo pode se derivar outros estudos e apresentar outras faces desse universo, pois, relacionando a vida nua com o trabalhador brasileiro, encontra-se uma figura constante tanto na história quanto na cultura (e consequentemente em produtos culturais) do brasileiro-trabalhador, noção que tem como intuito dar uma forma dialética e tensionar a expressão do senso comum “trabalhador brasileiro”. Isso, porém, fica para o porvir.

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Como citar este artigo

Cabral, E.; Mügge, E. Brasil brasileiro: etimologia, identidade, cultura e trabalho. Fragmentum, Santa Maria, p. 213-237, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219469133. Acesso em: dia mês abreviado. ano.


I O posicionamento do teórico francês Michel Foucault sobre poder e contrapoder é apenas um ponto de partida para a discussão dos conceitos, os quais são problematizados pelos autores em outra perspectiva.

II A obra descreve a terra brasílica desde seus predecessores indígenas, evidencia as ações dos descobridores e os conflitos da colonização, a forma de administração do território colonial, as guerras com outras nações, entre tantos outros episódios do período colonial.

III Trata de uma narrativa não somente sobre a apoderação de Portugal no e do Novo Mundo, mas também de uma descrição detalhada da América, pois nela há especificações e mapeamentos de alguns povos indígenas, de plantas e de animais do novíssimo território.

IV Há esse pequeno trecho (1’50” – 3’01”), que é parte constituinte do primeiro episódio de uma série intitulada O povo brasileiro, baseado no famoso livro homônimo de Darcy Ribeiro, dirigida por Isa Grinspum Ferraz, lançada no ano de 2005, coproduzida pela TV Cultura, GNT e Fundar. A série conta com a participação de Chico Buarque, Tom Zé, Antonio Candido, Aziz Ab´Saber, Paulo Vanzolini, Gilberto Gil, Hermano Vianna, entre outras personalidades. A série discute a formação dos brasileiros, sua origem mestiça e a singularidade do sincretismo cultural que dela resultou.

V O lugar foi chamado de Hy-Brasil por São Brandão e designado como o lugar dos abençoados, ilha dos afortunados, em irlandês, que, aos olhos do monge, parecia o Éden terrestre.

VI Darcy Ribeiro, no registro audiovisual citado anteriormente, fala sobre a Ilha Brasil. Ele também faz referência à Ilha Brasil no livro homônimo, mas não chega a adentrar nas questões sobre o imaginário que Lilia Schwarcz e Heloisa Starling exploram em Brasil: uma biografia (2015).

VII Ver mais no artigo de Emília Viotti da Costa intitulado Primeiros povoadores do Brasil: o problema dos degredados, publicado na Revista Bueno - Textos de História, Vol. 6 – n° 1-2 de 1998.

VIII Embora se tenha um discurso que tenta positivar as diversas formas precárias de trabalho no Brasil contemporâneo. Em relação a isso, Ricardo Antunes apresenta e discute a uberização em Privilégio da servidão.

IX Ou que vem em outros lugares por meio do trabalho, no Brasil contemporâneo, não acontece.

X A menção ao salário mínimo é realizada mais como uma provocação que uma construção teórica a respeito do salário (embora a ironia seja uma figura do trágico).

XI Tradução nossa: [...] existe o trágico quando se tem uma ideia, a qual está acima e é mais forte que a própria vida humana, que, portanto, é sacrificada [...]. O trágico é a tentativa de dar um termo ao nome da dor. Isto não pode ser feito sem o nome dos deuses [...] os nomes ou o nome de Deus [...]. Dizer que houve um “trágico” acidente de carro é um absurdo, se se refere ao incidente em si. Mas poderia não ser, se nomeasse para quem e para os quais tiveram a perda [...].

XII Há duas compilações teóricas importantes sobre o trágico moderno e o pós-trágico: Formas e mediações do trágico moderno: uma leitura do Brasil (FINAZZI-AGRÓ; VECCHI, 2004) e Travessias do pós-trágico: os dilemas de uma leitura do Brasil (FINAZZI-AGRÓ; VECCHI, AMOROSO, 2006).

XIII No original: “[...] diritto di rivendicare diritti”.

XIV Há um notável artigo sobre esse enunciado, analisado sob as luzes da análise do discurso, intitulado “Não pense em crise, trabalhe”: o jogo da história na trama da língua, publicado pela Revista Fórum linguístico, em 2018, de autoria de Dantielli Assumpção Garcia e Lucília Maria Abrahão e Sousa.

XV Ou o modo de morrer. Refere-se, aqui, à biopolítica foucaultiana, à gestão e transformação da vida humana, por meio de dispositivos biopolíticos, tais como regulação da saúde, da higiene, alimentação, natalidade, sexualidade, etc.

XVI Cabe salientar que o conceito de vida nua é trabalhado anteriormente por Walter Benjamin, em Crítica da violência: crítica do poder. Para Agamben, esse conceito é central na reestruturação do poder. Benjamin usa tal conceito para criticar a violência mítica e pura sobre todas as vidas. Agamben retoma essa figura de pensamento benjaminiana e consegue traduzi-la e situá-la para seus propósitos de análise. Assim, esse conceito lhe permite constituir a forma de qualificação e de desqualificação da vida. Está em vida nua a parte da sociedade que é desprezada em diversos aspectos de sua cidadania.

XVII Agamben (2017) faz uma série de dicotomias entre vida política, a vida protegida e a vida nua, isto é, a vida sob constante ameaça de morte. A vida nua também se resume ao “viver”, de modo desamparado, assim como a vida política, a forma-de-vida, está ampliada para o “viver bem”.

XVIII Acúmulo de informações e invenções sobre o passado.

XIX Aquele que trabalha de sol a sol, edificando, construindo, cultivando tudo o que se planta para exportar, fabricando todos os tipos de produtos em indústrias multinacionais, fábricas ou fabriquetas, tanto no trabalho formal ou informal, no seu empreendedorismo de subsistência, comprando produtos importados de baixa qualidade, para vender para outros que também trabalham de sol a sol, nas ruas, debaixo das marquises do prédios centrais das urbes, obtendo, se é que se pode dizer assim, um “lucro” irrisório. Esse é o “cidadão” comum que, para Ribeiro, “é só preto, mestiço e branco pobre, que, afinal, é a mesma coisa” (RIBEIRO, 2010, p. 77).

XX Se bem que existe, no Brasil de sempre, o Povo e o povo.