Universidade Federal de Santa Maria

Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 151-171, 2022

DOI: 105902/2179219469080

e-ISSN 2179-2194

Submissão: 23/01/2022 • Aceito: 11/09/2022

O flagelo e o Outro

A doença e o nós

O outro e a palavra

A responsabilidade por outrem

Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: identidade e sentidos de Brasil em Grande Sertão: Veredas

Judging yourself free and facing the Other: identity and meanings of Brazil in The Devil to Pay in the Backlands

Mônica GamaI

I Universidade Federal de Ouro Preto, UFOP, Mariana, MG, Brasil

Resumo

Em Grande Sertão: Veredas, romance que oferece uma interpretação da formação do Brasil, Riobaldo discorre, entre tantos assuntos, sobre a pobreza, a doença e a retórica da modernização. A partir de uma sequência narrativa (do encontro com os catrumanos ao pacto com o diabo), analisa-se como Riobaldo surpreende-se na relação com o Outro. Ao deparar-se com a pobreza extrema, passar por um povoado devastado pela varíola e encontrar um fazendeiro que queria os jagunços como escravos, Riobaldo sente-se convocado a tornar-se pactário, o que coloca em questão a subjetividade e a ética na dinâmica envolvida na responsabilidade por outrem (Lévinas,1988).

Palavras-chave: Grande Sertão: Veredas; alteridade; pacto; doença; interpretação do Brasil

Abstract

In The Devil to Pay in the Backlands (1956), a novel that offers an interpretation of the formation of Brazil, the narrator discusses his confrontation with illness, misery and the rhetoric of modernization. The narrative sequence that goes from the encounter with the catrumanos to the pact with the devil we analyze how Riobaldo surprises himself in his relationship with the Other. When facing extreme poverty, passing through a small village devastated by smallpox, and meeting a farmer who wanted the jagunços as slaves, Riobaldo feels summoned to become a pact-maker, whenwe see how subjectivity and ethics are called into question in the dynamics involved in responsibility for others (Lévinas, 1988).

Keywords: The Devil to Pay in the Backlands; Alterity; pact; disease; interpretations of Brazil

Em 2020, revisitamos muitos livros que tematizavam o papel devastador das epidemias e doenças. Esse é caso de um dos mais ilustres, A peste (1947), de Albert Camus. Logo no início, o narrador aponta um sentimento coletivo de negação diante do horror da doença que se alastra:

Nossos concidadãos, a esse respeito, eram como todo mundo: pensavam em si próprios. Em outras palavras, eram humanistas: não acreditavam nos flagelos. O flagelo não está à altura do homem; diz-se então que o flagelo é irreal, que é um sonho mau que vai passar. Mas nem sempre ele passa e, de sonho mau em sonho mau, são os homens que passam, e os humanistas em primeiro lugar, pois não tomaram suas precauções. Nossos concidadãos não eram mais culpados que os outros. Apenas se esqueciam de ser modestos e pensavam que tudo ainda era possível para eles, o que pressupunha que os flagelos eram impossíveis. Continuavam a fazer negócios, preparavam viagens e tinham opiniões. Como poderiam ter pensado na peste, que suprime o futuro, os deslocamentos e as discussões? Julgavam-se livres, e nunca alguém será livre enquanto houver flagelos. (CAMUS, 2019, p.5)

Nessa passagem de A peste (1947), de Camus, o narrador avalia o caráter de irrealidade que o flagelo da peste assume para a população. Na história da literatura, vemos esse tipo de incredulidade em diversas narrativas que tematizam as epidemias, como é o caso de obras tão distantes entre si como O diário do ano da peste (1722), de Daniel Defoe, e O mez da gripe (1981), de Valêncio Xavier. Esse descompasso com a natureza, que não responde positivamente ao lugar que imaginamos ser o que está reservado aos humanos, só poderia, nessa perspectiva, ser resultado de um pesadelo. A falta de modéstia, que define a peste como impossibilidade, faz com que as pessoas não se revoltem imediatamente contra a doença, mas contra a ideia de sua existência, já que ela suprimiria o futuro (e seus negócios), os deslocamentos (em suas viagens preparadas) e as discussões (com suas opiniões) – o ser humano aqui não se reconhece submetido à natureza e, importante notar, seu humanismo se resume em se reconhecer como um ser econômico e cultural que, diante da doença, não se pode realizar com eficiência.

A avaliação final é a ponte para visitarmos a obra de Guimarães Rosa: ninguém é livre com a existência do flagelo. É justamente essa a percepção de Riobaldo em Grande Sertão: Veredas (1956) ao ver a peste no arraial do Sucruiú e a compreensão, construída aos poucos (ao contrário do tom categórico assumido pelo narrador de A Peste), de que havia uma iniquidade na base dos desarranjos sociais. A cena, que ocupa poucas páginas no romance, tem um impacto (emocional e cognitivo) decisivo nas ações de Riobaldo.

Antes de ingressar no Itamaraty, Guimarães Rosa atuou como médico em uma cidade do interior de Minas Gerais, Itaguara. Essa experiência na medicina está pontuada em toda a sua obra. Lembre-se, nesse sentido, que Sagarana (1946), em sua primeira versão intitulava-se Sezão, nome de um dos contos que depois é renomeado como “Sarapalha”, que traz o diálogo entre dois homens com malária, tema que já tinha sido abordado no poema “Maleita”, do volume Magma (1997 [1936])1. Note-se que sezão significa febre alta e é um dos nomes dados para a malária, o que mostra a importância do tema naquele primeiro momento de produção do livro.

Em Itaguara, o médico e escritor conheceu o vilarejo de Pará dos Vilelas, uma das vilas mais antigas de Minas Gerais, que ficava em posição privilegiada (cogitada até para ser capital do Estado), tornando-se, por isso, um ponto de parada de tropeiros e boiadeiros. Esse passado ilustre acabou, contudo, com a malária, que dizimou a região, sendo imortalizado, porém, no conto “Sarapalha”. O narrador descreve que a doença chegou aos poucos: “Ela veio de longe, do São Francisco. [...] Cada ano avançava um punhado de léguas, mais perto, mais perto, pertinho, fazendo medo no povo, porque era sezão da brava – da ‘tremedeira que não desmontava’, matando muita gente” (ROSA, 1967). O conto descreve os sintomas e, entre uma crise e outra de febre e frio, há um diálogo autorreflexivo entre os dois doentes.

Nas obras posteriores, as narrativas também tematizaram o adoecimento e seus cuidados ou mesmo a revolta diante da impossibilidade de tratamentos. Não pretendemos aqui elencar tais momentos, mas compreender, como afirmamos anteriormente, o efeito do enfrentamento da doença e da miséria no narrador de Grande Sertão: Veredas.

O flagelo e o Outro

Nos romances sobre surtos de doenças há algumas recorrências que revelam o modo como a sociedade se relaciona com o fenômeno epidêmico. Um desses elementos que se repetem em livros como O diário do ano da peste (1722), A peste (1947) e O mez da gripe (1981), é a representação do Outro como sendo aquele para quem é compreensível a pestilência: há um desejo de compreensão do flagelo como sendo algo que atinge o outro, primeiro, o estrangeiro, depois, o pobre. Esse Outro é menos cidadão e sonha-se coletivamente que a morte se sacie com ele.

Em O diário do ano da peste, que narra a epidemia de 1764 em Londres, o narrador relata que as pessoas se animavam porque a “cidade estava sã”, já que 97 paróquias não apresentavam casos e “somente” as 54, “dos rincões da cidade”, estavam infectadas, o que os fez esperar que, estando “entre o povo naquele fim da cidade, não fosse mais longe” (DEFOE, 2020, p.7). A cidade pode estar sã com infectados e mortos em 54 partes de seu território? A morte do outro não atesta a proximidade da doença, pois esse outro não é o cidadão; para o cidadão, humanista, como diria Camus, a doença é impossível porque ela interrompe o futuro – e o futuro está garantido para o cidadão.

O “Brasil, país do futuro”, já foi “o Brasil é um imenso hospital”. A primeira expressão, espécie de ameaça a favor da não realização social no presente e delírio de uma confirmação conjectural de uma grandeza sem lastro, foi antecedida por essa avaliação do médico Miguel Pereira, companheiro de Carlos Chagas na época do movimento pelo saneamento do Brasil, ocorrido entre 1916 e 1920 e que reuniu médicos, cientistas e políticos em torno da avaliação de que o atraso brasileiro era resultado dos prejuízos promovidos pelas endemias e descaso do Estado com as populações rurais.

Mas se o interior do país era pouco sanitarizado, as capitais não estavam em situação ideal. Pouco antes, o país viveu a Revolta da Vacina, uma resposta à violência do Estado carioca, que estava expulsando as pessoas de suas casas para uma reforma urbana. A revolta popular foi insuflada por grupos de monarquistas e militares que estavam disputando o poder.

A situação guarda uma semelhança desoladora com a pandemia de Covid-19: os grupos mais desassistidos socialmente foram manipulados para não se vacinarem, sendo usados para atingir alguns governantes (municipal e federal, visto que se tratava da capital da jovem República) do Rio de Janeiro. A mítica contra a vacina da varíola já vinha sendo elaboradaalgum tempo, pois foi desenvolvida no século anterior a partir de vacas contaminadas por meio das quais se tirava um soro – daí correr o boato, à época, de que aqueles que se vacinassem ficariam com cara bovina. É importante lembrar que, tendo chegado ao Brasil por volta de 1830, a vacinação contra a varíola era obrigatória para crianças desde 1837 e para adultos desde 1846, porém, não havia produção suficiente para suprir a demanda até 1884 e acabava destinada apenas à elite. A mudança é promovida por Oswaldo Cruz, que reinstaura a obrigatoriedade da vacinação em território nacional em 1904 e organiza uma campanha de vacinação com táticas militares e que se somou à reformulação urbana, resultando na revolta popular que, reprimida, acabou com a morte de muitas pessoas e o degredo de cerca de 1400 pessoas para a Sibéria Tropical, o Acre.

Pouco lembrado, esses degredos políticos do início do século evidenciam a visão de cidadania e territorialidade da primeira República: o brasileiro que, revoltando-se contra a violência do Estado, tem como destino ser enviado para o outro Brasil, distante, desconhecido, em viagem tão perigosa e desrespeitosa que resultava em alta mortalidade, sendo vítima de mais uma diáspora.

Porém, sabemos que não é apenas em situações desse tipo que temos o choque entre dois países, tema amplamente explorado por Grande Sertão: Veredas. É o que vemos desde a escolha do diálogo monológico entre alguém do sertão e o senhor, letrado, da capital, que constrói a diferença entre o país profundo e os centros de poder, entendidos, enquanto oposição, como o Brasil do litoral. Isso fica patente em uma resposta desconcertante de Zé Bebelo a um dos catrumanos, homens pobres do sertão:

“O que mal não pergunto: mas donde será que ossenhor está servido de estando vindo, chefe cidadão, com tantos agregados e pertences?”

“Ei, do Brasil, amigo!” – Zé Bebelo cantou resposta, alta graça. – “Vim departir alçada e foro: outra lei – em cada esconso, nas toesas deste sertão...” (ROSA, 1970, p. 293)

O catrumano reconhece o poder do chefe (revelado pelos agregados, armas e pertences) e sua cidadania, que responde prontamente que vem do Brasil e tem como projeto distribuir autoridades e competências, impor outra (nova?) lei. Para compreender a força dessa enunciação, é preciso retomar alguns aspectos do enredo até esse encontro.

Sabemos que Riobaldo fica órfão muito jovem, herdando “miserinhas” da mãe e sendo enviado para seu padrinho, Selorico Mendes. Ainda que seja de fato um agregado, ele narra esse momento da vida como confortável, pois não precisa trabalhar, recebe ensino, come bem, enfim, é bem tratado pelo padrinho. Sente-se, no entanto, diminuído nas palavras do padrinho, que o aprecia, mas não o louva – relação reservada apenas ao heroísmo dos jagunços:

Meu padrinho Selorico Mendes me deixava viver na lordeza. No São Gregório, do razoável de tudo eu dispunha, querer querendo. E, de trabalhar seguido, eu nem carecia. Fizesse ou não fizesse, meu padrinho me apreciava; mas não me louvava. [...]. Mas, um dia – de tanto querer não pensar no princípio disso, acabei me esquecendo quem – me disseram que não era àtoa que minhas feições copiavam retrato de Selorico Mendes. Que ele tinha sido meu pai! Afianço que, no escutar, em roda de mim o tonto houve – o mundo todo me desproduzia, numa grande desonra. (ROSA, 1970, p. 95)

Sentindo-se desonrado ao ser identificado como filho bastardo, Riobaldo foge, pensa em casar-se com a filha do comerciante Assis Wababa, Rosa’uarda, mas descobre que ela já estava noiva, entendendo então que ela não se casaria com um bastardo e pobre. Por mãos de seu professor, mestre Lucas, é enviado para uma fazenda a fim de ensinar. Riobaldo empolga-se com o novo destino, mas ao chegar na fazenda descobre que será professor do dono da fazenda e não de alguma criança. Trata-se de Zé Bebelo, para quem passa a ensinar, mas disfarçado de secretário, pois o fazendeiro não queria que soubessem que não tinha estudos. Riobaldo descreve-o desde o início do encontro como estudioso, superando o professor em pouco tempo: “Ele era a inteligência! Vorava. Corrido, passava de lição em lição, e perguntava, reperguntava, parecia ter até raiva de eu saber e não ele, despeitos de ainda carecer de aprender, contra-fim” (ROSA, 1970, p.100).

Zé Bebelo desejava ser Deputado. Fazendeiro, homem inteligente e corajoso, queria acabar com o jaguncismo e trazer a modernidade – legal, política e social2. Admirava apenas o jagunço Joãozinho Bem Bem, a ponto de incorporar em seu nome a sonoridade do herói jagunço (Bebelo/Bem Bem). Essa contradição de base em sua identidade, ou seja, admirar um jagunço a ponto de incorporar seu nome e projetar um sertão sem o poder dos jagunços para modernizá-lo por meio das leis da República, vai fundamentar a personagem, uma das mais instigantes do romance.

Riobaldo passa a acompanhar Zé Bebelo como secretário, vivendo confortavelmente a seu lado. Quando o fazendeiro decide agir e guerrear contra os grupos jagunços, chama-o para acompanhá-lo como amanuense do grupo. No convite, evidencia a independência de Riobaldo, sendo esse aceno de liberdade que o anima:

Vinha, para conhecer esse destino-meu-deus. O que me animou foi ele predizer que, quando eu mais não quisesse, era só opor um aceno, e ele dava baixa e alta de me ir m’embora. Digo que fui, digo que gostei. A passeata forte, pronta comida, bons repousos, companheiragem. O teor da gente se distraía bem. Eu avistava as novas estradas, diversidade de terras. Se amanhecia num lugar, se ia à noite noutro, tudo o que podia ser ranço ou discórdia consigo restava para trás. Era o enfim. Era. (ROSA, 1970, p. 103)

Se a liberdade de abandonar o trabalho acenava como valor, o contínuo deslocamento com conforto o distrai e permite que supere o “ranço ou discórdia consigo”. Diante da violência do combate, vendo os prisioneiros, decide repentinamente fugir. Sem rumo e sem compreender ao certo porque fugiu ao invés de lançar mão de sua autonomia, vaga por quase um mês até encontrar, hospedado na casa de um fazendeiro, com um grupo de jagunços, dentre os quais Reinaldo. Reconhecendo “o menino” com quem atravessou o rio na infância, seu destino revela-se na força de amizade (e “amizade dada é amor”) por Reinaldo e ingressa no grupo de Joca Ramiro.

Para o que nos interessa aqui, cabe lembrar (a fim de recriar as ligações entre as ações) que, nessa guerra, Zé Bebelo é derrotado e só não é morto porque Riobaldo engana os companheiros, dizendo que o chefe Joca Ramiro o queria vivo e articulando um julgamento para o antigo patrão. Essa cena é decisiva no livro, pois revela, mais uma vez (e por outra perspectiva), a complexidade das relações sociais: no seio do sistema jagunço, o julgamento é a legalidade moderna, estranha às regras desses homens empenhados por fazendeiros para a defesa de interesses locais3. A decisão de Joca Ramiro que, por fim, liberta o inimigo, desagrada os jagunços Hermógenes e Ricardão, os quais, pouco depois, assassinam o chefe.

É aí que Riobaldo se junta novamente a Zé Bebelo, pois este volta para vingar o grande chefe, reconhecido por todos por sua justiça, tornando-se, para tanto, ele mesmo um chefe jagunço, anunciando sua disposição com a fórmula singular quanto ao novo papel que desempenhará: “Vim por ordem e por desordem. Este cá é meus exércitos!...” (ROSA, 1970, p. 71).

Quando Riobaldo, acompanhando Zé Bebelo como chefe, encontra o grupo de catrumanos, é essa linha narrativa que está por trás: órfão; agregado; descobre-se filho bastardo e sente vergonha; torna-se professor e secretário/amanuense; luta ao lado de Joca Ramiro e guerreia no grupo de Zé Bebelo. O encontro é da ordem da desorientação, pois o narrador não alcança uma compreensão acerca desses homens, os catrumanos:

Um eu vi, que dava ordens: um roceiro brabo, arrastando as calças e as esporas. Mas os outros, chusmote deles, eram só molambos de miséria, quase que não possuíam o respeito de roupas de vestir. [...]

Para o nosso juízo, eles eram doidos. Como é que, desvalimento de gente assim, podiam escolher ofício de salteador? Ah, mas não eram. Que o que acontecia era de serem só esses homens reperdidos sem salvação naquele recanto lontão de mundo, groteiros dum sertão, os catrumanos daquelas brenhas. O Acauã que explicou, o Acauã sabia deles. (ROSA, 1970, p.290-1)

Acauã, sábio, explica esse outro sertão para Riobaldo. Catrumano, em sentido geral é caipira, matuto, mas é uma palavra que retoma o sentido animal de como são vistos, pois vem de quadrúmano – aquele que tem quatro mãos4. Contudo, se há na palavra catrumano uma diminuição do outro em certa escala evolutiva, o encontro remete Riobaldo para a situação de um embate com uma Esfinge, pois encontra uma nova qualidade de medo, inquietação que o consome como se fora o “decifra-me ou devoro-te”5.

Esses indivíduos de um outro sertão (de um “recanto lontão de mundo”) são portadores também de outro tempo: Riobaldo tem dificuldade em entender sua língua, percebe que estão com “peças de armas de outras idades”, assim como trazem a “um dobrão de prata, antigo do Imperador”, tudo dos tempos antigos:

E renuía com a cabeça, o banglafumém, mesmo quando falava, com uma voz de

qualidade diversa, costumada daquela terra de lugar; e os outros renuindo também! — Ah, pode não... Pode não... — com o vozeio soturno.

Nos tempos antigos, devia de ter sido assim. (ROSA, 1970, p.290, grifos nossos)

A excentricidade provoca Riobaldo. Ele percebe que os catrumanos estão com medo, novamente comparando-os a animais: “que nem mansas feras; isto é, que no comum tinham medo pessoal de tudo neste mundo.” (ROSA, 1970, p. 294). Essa simplicidade que os liga ao mundo natural e a outra temporalidade resulta não só em curiosidade, pois o narrador vai percebendo que está diante de outra sensibilidade e outra racionalidade, mais ligada ao natural e ao místico. Sem conseguir abarcar essa alteridade, estúrdia em simplicidade, complexa em singularidade, o resultado é o medo, recorrendo inclusive à memória do sobrenatural repassada na tradição oral: “Aqueles homens eram orelhudos, que a regra da lua tomava conta deles, e dormiam farejando. E para obra e malefícios tinham muito governo. Aprendi dos antigos” (ROSA, 1970, p. 294).

Riobaldo sente medo desses homens que, por estarem mais ligados à natureza que eles poderiam rogar praga, “soprar quente qualquer ódio nas folhas, e secar a árvore”, abrir buracos na terra com palavras rosnadas para armadilhas, entre outras possibilidades que vão sendo elencadas vertiginosamente por Riobaldo – “De pensar nisso, eu até estremecia; o que estremecia em mim: terreno do corpo, onde está a raiz da alma” (ROSA, 1970, p. 294).

O medo tem essa face mística e imaterial, porém tem outra, econômica e histórica:

De homem que não possui nenhum poder nenhum, dinheiro nenhum, o senhor tenha todo medo! O que mais digo: convém nunca a gente entrar no meio de pessoas muito diferentes da gente. Mesmo que maldade própria não tenham, eles estão com vida cerrada no costume de si, o senhor e de externos, no sutil o senhor sofre perigos. Tem muitos recantos de muita pele de gente. Aprendi dos antigos. (ROSA, 1970, p. 294)

Ironicamente, Riobaldo encerra essa avaliação novamente com “aprendi dos antigos”, ou seja, esse estatuto da miséria extrema não é de fato desconhecida, ela é narrada pelos “antigos” como algo a ser temida, aqui não significando apenas pessoas com saberes tradicionais, mas por coronéis, por exemplo, que, antigos, detinham o poder da terra e temiam os que não estavam subjugados a seus poderes – índios, quilombolas, entre outros6.

O medo de que esses despossuídos, com “os poderes da pobreza inteira e apartada”, se multiplicassem e se unissem para reivindicar o que os demais tinham toma conta do narrador:

Há-de, que se eles tivessem me pegado sozinho, eu apeado e precisado, decerto me matavam, para roubar minhas armas, as coisas e minhas roupas. [...] E de repente aqueles homens podiam ser montão, montoeira, aos milhares mis e centos milhentos, vinham se desentocando e formando, do brenhal, enchiam os caminhos todos, tomavam conta das cidades. Como e que iam saber ter poder de serem bons, com regra e conformidade, mesmo que quisessem ser? Nem achavam capacidade disso. Haviam de querer usufruir depressa de todas as coisas boas que vissem, haviam de uivar e desatinar. (ROSA, 1970, p. 294-5)

Compreendendo que há uma variedade desconcertante de pessoas – diferentes das que já são “finos de sentir e proceder, acomodados na vida, tão perto de outros, que nem sabem de seu querer, nem da razão bruta do que por necessidades fazem e desfazem”, ou seja, moldadas na civilidade que afasta-as de seus instintos e dos sentidos de seus quereres – Riobaldo entende que o encontro só pode significar mau agouro, sobretudo porque o bando de jagunços, liderado por Zé Bebelo, desobedecem o aviso dos catrumanos e seguem viagem.

Mais que curiosidade, o narrador vai percebendo que, sendo muito diversos de todos e desprovidos de tudo, esses sujeitos davam a ver não apenas o que eram, mas impunham, como a Esfinge, um enigma, por isso Riobaldo conclui que, a partir de então, “duvidava dos fojos do mundo”. Essa alteridade que o faz questionar as profundezas (fojos) do mundo, abre a cena do encontro com a peste e, em seguida, do pacto com o diabo.

A doença e o nós

O encontro com os catrumanos é um dos momentos chave para a construção da singularidade de Riobaldo. Enquanto Zé Bebelo e os outros jagunços acham graça, desrespeitando-os, Riobaldo faz o caminho para o Sucruiú pensando no “inferno feio deste mundo”, e, como apontamos, vê ali um mau presságio e esse encontro modifica-o definitivamente: “Mas eu não ri. Ah, daí, não ri honesto nunca mais, em minha vida” (ROSA, 1970, p. 293).

Os catrumanos, vistos em sua miserabilidade, estavam, contudo, protegendo os viajantes para evitar contaminação, pois sabiam que o vilarejo do Sucruiú estava arrasado pela doença. Sem a presença do Estado, são eles que se organizam para evitar o pior, porém, são menosprezados pelos jagunços. Depois de uma hora andando com medo, montado em um cavalo ruim de nome Padrim-Selorico, Riobaldo continua a viagem entre Zé Bebelo e Diadorim, e, narrando de forma retrospectiva, parece ver nesse episódio um ponto de inflexão de sua identidade: “mas, eu, o que é que eu era? Eu ainda não era ainda. Se ia, se ia. O cavalo pombo de Zé Bebelo era o de mais armada vista, o maior de todos. Cavalo selado, montado, e muito chão adiante. Viajar! — mas de outras maneiras! transportar o sim desses horizontes!...” (ROSA, 1970, p. 296, grifos nossos).

A esperança que Riobaldo pega emprestado de Zé Bebelo vai se esvaindo ao chegar no Sucruiú, cuja paisagem, ao longe, já mostra desolação: não dava mais tempo de aprender rezas especiais, há fogo e fumaça, é difícil ver pessoas ou animais, o ar está carregado de morte. Riobaldo, que nos narra essa história em sua velhice, aguarda ainda o esquecimento: “Algum dia, depois de hoje, hei de esquecer aquilo” (ROSA, 1970, p. 297).

São poucos parágrafos reservados para a passagem dos jagunços pelo povoado que estava devastado pela varíola:

Casas – coisa humana. [...] Voz nem choro não se ouviu, nem outro rumor nenhum, feito fosse decreto de todas as pessoas mortas, e até os cachorros, cada morador. [...] Nem davam fé de nossa vinda, de seus lugares não saiam, não saudavam. Do perigo mesmo que estava maldito na grande doença, eles sabiam ter quanta cláusula. Sofriam a esperança de não morrer. Soubesse eu onde era que estavam gemendo os enfermos. Onde os mortos? Os mortos ficavam sendo os maus, que condenavam. A reza reganhei, com um fervor. Aquela travessia durou só um instantezinho enorme. [...] Deus que tornasse a tomar conta deles, do Sucruiú, daquele transformado povo. (ROSA, 1970, p. 297)

O encontro do grupo de jagunços com os catrumanos é narrado em detalhes, o medo de Riobaldo durante e depois é pormenorizado, mas a visão do colapso do povoado é relativamente breve. Não nos enganemos, contudo, com essa brevidade. As duas visões preparam Riobaldo para um debate ético que trava consigo ao se deparar com o oposto de tudo aquilo logo a seguir.

Depois de ver a pobreza e a doença, os jagunços chegam na fazenda de Seô Habão. O episódio é alvo de muitas análises na fortuna crítica rosiana, mas quero chamar a atenção aqui para a sequência: encontro com a pobreza extrema, passagem pelo povoado empesteado (varíola), encontro com o fazendeiro Seo Habão e o pacto com o diabo.

Ao sair do vilarejo doente, os jagunços acham uma casa, de onde fogem pessoas que estavam furtando as últimas coisas de valor da casa quase vazia, entre eles uma criança, o Guirigó, que revelava no corpo ter conhecido todo tipo de sofrimento, mas que se negava a se entregar: “O que ele afirmava, no descaramento firme de seu gesto, era que nem era ninguém, nem aceitava regra nenhuma devida do mundo [...]. Ah, queria salvar seu corpo, queria escape. Se abraçava com qualquer poeira” (ROSA, 1970, p. 300). Agora, diferente do que ocorre com os catrumanos, o menino que nada tinha, nem tristeza, ainda que experenciado na dor, não assusta Riobaldo. Ao contrário, há um fascínio por aquele indivíduo e aceita esse mistério – lembremos de que, quando se torna chefe jagunço, Riobaldo faz questão de levar junto o menino Guirigó.

Querendo fugir da doença, os jagunços, no entanto, vão adoecendo um a um. Mesmo não sendo da varíola, aquele corpo coletivo enfraquece-se com febres e dores. Alguns jagunços avaliam que esse estado de tristeza e doença se devia ao fato de não estarem batalhando e o remédio natural seria invadir algum povoado, matar, divertir-se, exercitando a violência. É então que Riobaldo percebe a fragilidade de sua relação com o mundo – não fosse jagunço, poderia ele estar em algum vilarejo invadido, sofrendo violências e vendo os seus serem mortos apenas para que isso melhorasse o estado de ânimo de guerreiros entediados. Ele vê agora mais uma qualidade de outro – o fraco – desconcertando-se com o que é aceito sem questionamento:

A verdade dessa menção, num instante eu achei e completei: e quantas outras doideiras assim haviam de estar regendo o costume da vida da gente, e eu não era capaz de acertar com elas todas, de uma vez! Aí para mim – que eu não tenho rebuço em declarar isto ao senhor – parecia que era só eu quem tinha responsabilidade séria neste mundo; confiança eu mais não depositava, em ninguém. (ROSA, 1970, p. 307)

Ser comandado por modos que regem sua vida sem que se perceba é estarrecedor. Fazer o pacto com o diabo vai surgindo como ideia em parte por ser algo que, estando em seu controle, daria para Riobaldo a única fonte de poder capaz de lidar com o real, o que se realiza pelo último encontro com o outro dessa sequência que determina o pacto: o proprietário de terras. Seô Habão, o dono das terras onde estavam, observava tudo com “olhares de dono”, “espiava gerente para tudo, como se até do céu, e do vento suão, homem carecesse de cuidar comercial.” (ROSA, 1970, p. 312).

Não era só Riobaldo quem percebia essa distinção. Zé Bebelo ajusta sua linguagem para agradá-lo, dobrando-se aos assuntos de interesse de seu interlocutor, que, “diferido, composto em outra séria qualidade de preocupações”, não se interessa pela coragem e valores jagunços. Desprezando as mortes do Sucruiú, interessa-se pelas notícias quanto ao estado de sua plantação, expondo o plano de fazer os sobreviventes trabalharem na lavoura para produzir algo que eles mesmos consumiriam e pagariam com o dobro do trabalho. Trata-se de um homem para manter distância – ele é o que sustenta as iniquidades do mundo: “Eu pensei! enquanto aquele homem vivesse, a gente sabia que o mundo não se acabava” (ROSA, 1970, p. 312); e se sujeitos como Seô Habão sustentam o mundo, é porque ele se nutre da descartabilidade das pessoas – “conheci que fazendeiro-mór é sujeito da terra definitivo, mas que jagunço não passa de ser homem muito provisório” (ROSA, 1970, p. 312-3).

O desgosto de Riobaldo logo se torna um enjoo, pois percebe que o fazendeiro olha para os jagunços como sujeitos a serem escravizados:

espiou para mim, com aqueles olhos baçosos — aí eu entendi a gana dele! que nós, Zé Bebelo, eu, Diadorim, e todos os companheiros, que a gente pudesse dar os braços, para capinar e roçar, e colher, feito jornaleiros dele. Até enjoei. Os jagunços destemidos, arriscando a vida, que nós éramos; e aquele seô Habão olhava feito o jacaré no juncal! cobiçava a gente para escravos! (ROSA, 1970, p. 314)

Seo Habão recebe os jagunços olhando-os como mão de obra barata que poderia suprir a morte dos seus empregados pelo surto de varíola. Riobaldo percebe que ele os olha como coisas, desejando agora uma batalha com Hermógenes só para que o fazendeiro visse do que eram capazes. Num átimo, em resposta à natureza7 perversa do fazendeiro, Riobaldo assume pela primeira vez ser filho de um Selorico Mendes: “— Duvidar, seó Habão, o senhor conhece meu pai, fazendeiro Senhor Coronel Selorico Mendes, do São Gregório?!” (ROSA, 1970, p. 315). Perceba-se aqui como, mais que assumir a filiação, Riobaldo coloca-se acima de Seô Habão, mostrando uma crescente em sua apresentação: Fazendeiro, dono de terras; Senhor, dono do poder; Coronel, patente do Estado, dono da força e patente maior que a sua de Capitão. A revelação surte efeito imediatamente, pois Seô Habão sabe que, querendo, o pai de Riobaldo tomaria suas terras – há, então, homem mais definitivo que ele e Riobaldo se deleita com a revelação.

Seô Habão era o “transtorno” final – era preciso algum outro tipo de força ao seu lado – “Um tinha de estar por mim: o Pai do Mal, o Tendeiro, o Manfarro. Quem que não existe, o Solto-Eu, o Ele... Agora, por que? [...]. Senti esse intimado” (ROSA, 1970, p. 316). Se a ideia existia desde o dia que soube ser Hermógenes um pactário, para quem não havia doença, matava com exatidão e tinha o corpo protegido, a intimação vem depois dessa sequência de eventos e da relação que estabelece com a outridade: o Outro, como princípio gerador de conhecimento e de praxe ética, como apontou Lévinas, é uma experiência indecifrável e singular, comunicando uma possibilidade de real, já que nos coloca em relação a uma exterioridade. Esses encontros que Riobaldo tem com o Outro, gera conhecimento do mundo e resulta, paradoxalmente, na busca por algo que, do mundo místico, poderia reger sua vida para a vitória contra Hermógenes e os desarranjos sociais.

O outro e a palavra

Zé Bebelo não deixava de propagandear seus projetos em relação ao país:

Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas. Começava por aí, durava um tempo, crescendo voz na fraseação, o muito instruído no jornal. Ia me enjoando. Porque completava sempre a mesma coisa. (ROSA, 1970, p. 102)

Depois da morte de Joca Ramiro, no entanto, passa a liderar os jagunços para vingá-lo, sem abandonar, contudo, essa perspectiva modernizadora, como deixa claro em sua fala para o menino Guirigó: “O que imponho é se educar e socorrer as infâncias deste sertão!”, o que Riobaldo percebe ser uma impostura. Esse discurso, espécie de retórica da modernização, é violência com o Outro, pois a retórica direciona-se ao outro, mas corrompe a sua liberdade ao solicitar o seu sim em uma relação de dominação, promovendo a injustiça – “É por isso que ela é violência por excelência, ou seja, injustiça. Não violência exercida sobre uma inércia [...] mas sobre uma liberdade, que, precisamente como liberdade, deveria ser incorruptível” (LÉVINAS, 1997, p.56).

O discurso de ordem e modernidade de Zé Bebelo se mostrou vazio e fraco diante da pobreza, da doença e do poder de homens como Seô Habão. A desigualdade da força de seu discurso se revela quando o fazendeiro-chefe jagunço se encontra com Seô Habão, que não é hospitaleiro à sua fala e tem outro tipo de retórica, a que só reconhece a propriedade.

Ver a face do Outro é aceitar sua alteridade, estranhar sua fala, como um estrangeiro, reconhecer a impossibilidade de acesso total – garantindo o “direito à opacidade”, reivindicado por Glissant (2008). Essa relação traz conhecimento:

Só o absolutamente estranho nos pode instruir. Só o homem me pode ser absolutamente estranho – refratário a toda a tipologia, a todo o gênero, a toda a caracterologia, a toda a classificação – e, por consequência, termo de um ‘conhecimento’ que penetre enfim para além do objeto. A estranheza de outrem, a sua própria liberdade! Só os seres livres podem ser estranhos uns aos outros. [...] O ‘conhecimento puro’, a linguagem, consiste na relação com um ser que, em certo sentido, não é em relação a mim; ou se se preferir, só está em relação comigo na medida em que está inteiramente em relação a si [...], ser que se coloca para além de todo o atributo, o qual teria justamente como efeito qualificá-lo, ou seja, reduzi-lo ao que lhe é comum com outros seres; ser, por conseguinte, perfeitamente nu. (LÉVINAS, 1997, p.60)

A relação com o Outro pode nos instruir nesse embate com a diferença. Emmanuel Lévinas “coloca a distância que separa o sujeito do outro como o espaço para a construção de uma ética, já que o Eu-está-no mundo-com-os-outros, só definindo-se enquanto ser na medida da relação interpessoal. Dizer sobre o outro já é de alguma forma responder por ele, responsabilizar-se radicalmente por ele” (CURY, 2008, p.12).

Riobaldo, que se narra como alguém modificado pelo encontro com o menino Reinaldo-Diadorim no de-Janeiro, vai construindo sua identidade na confluência com a diferença. Se em muitos momentos dessa narrativa de viagem esse narrador se define por sua singularidade8, também se reconhece continuamente naqueles homens. A narrativa retrospectiva que faz de sua trajetória passa pela compreensão de sua vida em relação ao outro.

Depois de uma sequência de embates com a diferença, Riobaldo percebe que o homem pobre, ainda que aparentemente livre, está preso nesse mundo sempre regido por regras que não conhece e, por isso, está sempre com medo. Para Riobaldo, naquele momento, só poderia ter poder sendo pactário9.

É importante aqui lembrarmos que o pacto se realiza na aceitação do mistério, no acolhimento do diverso e na hospitalidade do desconhecido. Para além do que o leva até ali, descobre que se sentia, no momento do pacto, “desarmado de si”, e que se tratava, enfim, de uma ação voltada à sua própria identidade e sua permanência: “E, o que era que eu queria? Ah, acho que não queria mesmo nada, de tanto que eu queria só tudo. Uma coisa, a coisa, esta coisa: eu somente queria era ficar sendo!” (ROSA, 1970, p. 318).

O pacto poderia então (ao menos era o desejo) oferecer a possibilidade de ser definitivo, projeto que se mostra enganoso, com as artimanhas próprias do diabo com sua retórica que aprisiona e que é recorrente no mito fáustico. Há, como sabemos, perdas decorrentes dos pactos, mas Riobaldo sai das Veredas Mortas transformado – alegre, percebe-se com outro tipo de raciocínio – “Tudo agora reluzia com clareza, ocupando minhas ideias” (ROSA, 1970, p. 321)– dominando sua própria história, achando graça e vendo novidade até em notícia ruim, rindo dos projetos de Zé Bebelo:

Eu estava, com efeito, relatando mediante certos floreados umas passagens de meus tempos, e depois descrevendo, por diversão, os benefícios que os grados do Governo podiam desempenhar, remediando o sertão do desdeixo. E, nesse falar, eu repetia os ditos vezeiros de Zé Bebelo em tantos discursos. Mas, o que eu pelejava era para afetar, por imitação de troça, os sestros de Zé Bebelo. (ROSA, 1970, p. 321)

Até os cavalos estranham Riobaldo, em sinal de que o pacto acontecera de verdade. Quem parece ter reconhecido a estranheza foi Seô Habão, pois “homem só vendido ao dinheiro e ao ganho, às vezes são os que percebem primeiro o atiço real das coisas, com a ligeireza mais sutil” (ROSA, 1970, p. 325), dando a Riobaldo seu melhor cavalo. O poder com as palavras que revela depois da noite nas Veredas Mortas resulta, enfim, na chefia, pois, ao perguntar por seis vezes quem era o novo chefe, Zé Bebelo simplesmente o reconhece como o novo líder.

Passando a cometer excessos depois do pacto, o poder enganoso que o diabo lhe dera vai se revelando nas perdas. A relação desse narrador com a alteridade é posta à prova a partir de então, e vemos sua capacidade ver o rosto do outro e de ser hospitaleiro à singularidade ser continuamente reduzida.

Esse empobrecimento mostra-se, por exemplo, nos três episódios em que Riobaldo se vê tentado a matar. No último, ao encontrar um doente com lepra, trava um debate interior e é salvo porque pensa em Diadorim e em sua reação, mas percebe que deve esforçar-se muito para não ser regido pelo Diabo10.

A responsabilidade por outrem

Abrimos este texto retomando como alguns romances sobre epidemias colocam em questão a negação do flagelo e, posteriormente, a ideia de que se ele existe, vai ficar restrito ao Outro. Discorre-se, nesses momentos, sobre a falta de rosto do Outro – ele é aquele que não sei quem é, que vive nos limites da cidade ou que é o estrangeiro; ele é aquele que não tem um futuro a ser suprimido.

No entanto, Grande Sertão: Veredas, enquanto representação do país, discute o que fazemos quando vemos essa face do Outro. Riobaldo passa por uma educação sentimental – afinal, como já foi discutido por muitos, é uma narrativa de viagem e um Bildungsroman – e parte dela pode ser descrita por sua descoberta do Outro no inferno dos vivos. Nesse sentido, o encerramento de As Cidades Invisíveis, de Calvino, é significativo ao chamar a atenção para uma ética envolvida nessa relação com a alteridade:

O inferno dos vivos não é algo que será; se existe, é aquele que já está aqui, o inferno no qual vivemos todos os dias, que formamos estando juntos. Existem duas maneiras de não sofrer. A primeira é fácil para a maioria das pessoas: aceitar o inferno e tornar-se parte deste até o ponto de deixar de percebê-lo. A segunda é arriscada e exige atenção e aprendizagem contínuas: tentar saber reconhecer quem e o que, no meio do inferno, não é inferno, e preservá-lo, e abrir espaço. (CALVINO, 1990, p. 150)

Riobaldo aceita radicalmente a segunda opção: arriscada, exigindo um aprendizado contínuo – daí o aprofundamento da relação com o compadre Quelemém e a hospitalidade ao interlocutor do romance, o senhor da cidade, que tem sua pergunta respondida (o que é o sertão), mas só na medida em que essa resposta ilumina o desejo de conhecimento do próprio Riobaldo, impondo tantas outras perguntas.

Os catrumanos responsabilizam-se pelo Outro, cuidam, preservam; mas são vistos em sua carência absoluta. Esse olhar que é lançado a eles retorna. Eles são vistos, mas esse olhar permite uma visão acerca dos jagunços: em seu poder, deveriam temer os que nada têm e são ligados à terra, à natureza, ou seja, a outro modo de pensar e agir. Os sobreviventes do povoado, cuidando de seus mortos e doentes, são vistos, mas retornam esse olhar, informando a fragilidade do corpo e o abandono. O menino Guirigó é visto em seu sofrimento, mas responde a esse olhar repondo a perseverança de quem não aceita as regras do mundo. Já o encontro com Seô Habão, dá a dimensão da violência a que todos estão submetidos: há uma quebra nas regras de hospitalidade, pois, recebendo os jagunços em suas terras, o fazendeiro quer de fato que eles se tornem seus escravos, apagando, como é necessário nessa operação, suas identidades ao “reduzir tudo a conteúdo”. Assim, se o olhar de respeito que os jagunços lançam ao fazendeiro retorna como uma visão redutora, Riobaldo mostra a Seô Habão que também poderia reduzi-lo.

A hospitalidade enquanto cuidado e relação com a alteridade, se dá de formas complexas no romance – e a cena de enunciação é já uma cena de hospitalidade, pois Riobaldo recebe o interlocutor por três dias para lhe contar uma história a fim de responder suas questões11. Hospedando-o, torna-o refém de uma dúvida: o diabo existe ou não? Na responsabilidade de ambos está em jogo a dinâmica entre a ética e a subjetividade, como aponta Lévinas: “[...] a responsabilidade não é um simples atributo da subjetividade, como se esta existisse já em si mesma, antes da relação ética. A subjetividade não é um para si: ela é, mais uma vez, inicialmente para o outro” (LÉVINAS, 1988, p.80). Lévinas pensa a intersubjetividade como uma experiência fundamental do ego, do eu. Por isso, para ele, proximidade do outro não se dá no espaço ou numa relação de parentesco, por exemplo, mas aquele “que se aproxima essencialmente de mim enquanto me sinto – enquanto sou – responsável por ele” (Lévinas, 1988, p.80).

sou eu que suporto outrem, que dele sou responsável. [...] a minha responsabilidade não cessa, ninguém pode substituir-me. De facto, trata-se de afirmar a própria identidade do eu humano a partir da responsabilidade [...]. A responsabilidade é o que exclusivamente me incumbe e que, humanamente, não posso recusar. Este encargo é uma suprema dignidade do único. Eu, não intercambiável, sou eu apenas na medida em que sou responsável. Posso substituir a todos, mas ninguém pode substituir-me. Tal é a minha identidade inalienável de sujeito. (LÉVINAS, 1988, p.84)

Como chefe jagunço, Riobaldo escolhe Guirigó e o cego Borromeu para acompanharem seu bando na batalha contra Joca Ramiro, cuidando de esses dois indivíduos que nada ajudariam no corpo a corpo, mas que serviam para ajustar essa noção de responsabilidade por outrem.

Essa busca por identidade que estava na base do pacto – desejo de “continuar sendo” – deve ser pensada, então, nessa relação de alteridade, pensada não apenas em uma perspectiva subjetivista, mas, sobretudo, a partir de uma reflexão sobre o lugar dos sujeitos provisórios nesse país do futuro que não se realiza.

Referências

ARAÚJO, Aline Macedo de. A Jacuba do Jagunço: Alimentação, memória e processo social em Grande Sertão: Veredas. Dissertação (Mestrado em Letras: Estudos da Linguagem). Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2018. Disponível em: https://www.repositorio.ufop.br/handle/123456789/10955. Acesso em: 10 jan. 2022.

BOLLE, W. Grandesertao.br – o romance de formação do Brasil. São Paulo: Editora 34, 2004.

CALVINO, Italo. As cidades invisíveis. Trad. Diogo Mainard. São Paulo: Companhia das Letras, 1990. p. 150.

COSTA, João Batista de Almeida. Norte de Minas: cultura cratrumana, suas gentes, razão liminar. Montes Claros: Editora Unimontes, 2021.

CURY, Maria Zilda Ferreira. Novas geografias narrativas. Letras de Hoje. Porto Alegre, v. 42, n. 4, p. 7-17, dez. 2007. Disponível em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/fale/article/download/4109/3111. Acesso em: 10 jan. 2022.

FONSECA, Juliana Freire. A representação da pobreza em Grande Sertão: Veredas. Dissertação (Mestrado em Letras: Estudos da Linguagem). Universidade Federal de Ouro Preto, Mariana, 2021. Disponível em: https://www.repositorio.ufop.br/handle/123456789/13668. Acesso em: 10 jan. 2022.

Galvão, W. N. As formas do falso - Um estudo sobre a ambigüidade no Grande sertão: veredas. São Paulo: Perspectiva, 1986.

GOULART, Eugênio Marcos Andrade. O viés médico na literatura de Guimarães Rosa. Belo Horizonte: Faculdade de Medicina da UFMG, 2011. Disponível em: https://www.nescon.medicina.ufmg.br/biblioteca/imagem/3064.pdf. Acesso em: 10 jan. 2022.

LÉVINAS, Emmanuel. Entre nós: ensaios sobre a alteridade. Petrópolis: Vozes, 2005.

LÉVINAS, Emmanuel. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70, 1988.

ROSA, J. G. Sagarana. Rio de Janeiro: José Olympio, 1967.

ROSA, J. G. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: José Olympio, 1970.

SILVA, Francisco Bento da. Do Rio de Janeiro para a Sibéria tropical: prisões e desterros para o Acre nos anos 1904 e 1910. Revista Tempo e Argumento, vol. 3, n.1, p. 161-179, 2011. Disponível em: https://www.redalyc.org/jatsRepo/3381/338130374006/html/index.html. Acesso em: 10 jan. 2022.

Como citar este artigo

GAMA, M. Julgar-se livre e deparar-se com o Outro: Grande Sertão: Veredas e a construção de uma identidade. Fragmentum, Santa Maria, p. 151-171, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219469080. Acesso em: dia mês abreviado. ano.


1 O volume de poemas é premiado em 1936 mas publicado apenas em 1997.

2 “Dizendo que, depois, estável que abolisse o jaguncismo, e deputado fosse, então reluzia perfeito o Norte, botando pontes, baseando fábricas, remediando a saúde de todos, preenchendo a pobreza, estreando mil escolas. Começava por aí, durava um tempo, crescendo voz na fraseação, o muito instruído no jornal. Ia me enjoando. Porque completava sempre a mesma coisa” (ROSA, 1970, p.101).

3 A modernidade aqui diz respeito ao monopólio da violência do Estado moderno. Riobaldo garante o direito de não deixar morrer, ao contrário do Ancien Régime, quando ao soberano atribui-se o poder de deixar viver. Nesse sentido, Giorgio Agamben, em Homo sacer, chama a atenção de que o direito à vida não é universal; há o portador de uma vida qualificada (aquele que está incluído na vida social com direitos e deveres políticos) e há aqueles indivíduos com vida nua, ou seja, simplesmente vivem, sem terem em sua existência um qualificativo social – estes, excluídos, têm uma vida matável, podendo ser eliminado sem que isso implique num crime. Os indivíduos de vida nua não são exceções, são, antes, necessários para definir o lugar dos que tem bios e estão incluídos, enfim, do espaço político. Riobaldo teatraliza o Estado moderno, revelando a vida qualificada de Zé Bebelo em oposição a tantas outras que foram eliminadas na batalha. A perspicácia do narrador ficou evidenciada na estratégia de dar voz aos jagunços, como numa ágora, permitindo o posicionamento e a voz em um espaço democrático.

4 “A vinculação do catrumano com o caipira deve-se ao fato deste ser um sertanejo, ou seja, um habitante do sertão. Esta denominação − catrumano −, foi cunhada pelo viajante europeu Auguste de Saint-Hilaire (1975, p. 307 e passim), que, percorrendo o sertão, chamado por ele de deserto, surpreendeu-se ao ver que os sertanejos sempre estavam a cavalo, independentemente de sua situação econômica. Aos poucos, ao longo de seu relato, ele constrói o termo. Quando constrói o quadro geral do sertão, em um dado momento, ele afirma que o sertanejo se parece com um homem de quatro mãos, ou melhor, de quatro patas. Deriva daí, etimologicamente, a palavra catrumano. Porém, dada a força da ficcionalização construída por João Guimarães Rosa que tomou a realidade regional norte mineira para discutir o Brasil [...], a palavra passou a conter apenas os significados vinculados aos habitantes do mais fundo do sertão, ou seja, a região Urucuiana que possuía homens, considerados de pouca instrução e de convívio e modos rústicos e canhestros” (COSTA, 2021, p. 143).

5 O encontro com os catrumanos ocorre no romance depois de um momento em que se sentiam perdidos, sem rumo, como se andassem em um labirinto.

6 Para Walnice Nogueira Galvão, Riobaldo “intui que a miséria excessiva está aquém de qualquer possibilidade de convivência, de qualquer padrão moral, de qualquer romantização: ela é feia, suja e perigosa. Sente a ânsia do miserável pela posse, pelo gozo imediato, mesmo ao preço da destruição total”. (GALVÃO, 1972, p. 67).

7 Se os catrumanos são referidos como estando próximos à natureza, Seô Habão teria algo de natural também, sua capacidade de subjugar: “A raiva não se tem duma jibóia, porque jibóia constraga mas não tem veneno. E ele cumpria sua sina, de reduzir tudo a conteúdo” (Rosa, 1970, p.314). Vemos aqui um uso irônico do autor, já que não se trata de fato de natureza, mas de cultura de dominação, de relação social de organização das formas produtivas particulares que se apresentam como naturais.

8 “Eu era diferente de todos? Era. [...] Sei que eles deviam de sentir por outra forma o aperto dos cheiros do cerradão, ouvir desparêlhos comigo o comprido ir de tantos mil grilos campais. Isso me dava ojeriza, mas também com certo consolo misturado” (ROSA, 1970, p. 430).

9 Não se trata aqui de concordarmos com o argumento de Willi Bolle de que as diferenças de classe são resolvidas com o pacto. O desejo de estar acima revela suas contradições, não uma solução.

10 Ver, a esse respeito, o artigo de Raquel Bueno, “Urutu-Branco e o leproso: corpo e culpa em Grande Sertão: Veredas. Letras, Curitiba, n. 49, p. 35-51, 1998.

11 Sobre a Hospitalidade no romance, ver A Jacuba do Jagunço: Alimentação, memória e processo social em Grande Sertão: Veredas (2018), de Aline Macedo de Araújo.