Universidade Federal de Santa Maria
Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 41-63, jan./jul. 2022
DOI: 105902/2179219469016
e-ISSN 2179-2194
Submissão: 12/01/2022 • Aceito: 20/06/2022
A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura
Brazilian fashion and bodiues in (re)view: a gesture of reading
Bárbara Pavei SouzaI
Nádia NeckelII
I Centro Universitário para o Desenvolvimento do Alto Vale do Itajaí, UNIDAVI, Rio do Sul SC, Brasil
II Universidade do Sul de Santa Catarina, Unisul, Palhoça, SC, Brasil
Resumo
O lugar de filiação deste trabalho é o da Análise de Discurso (AD) de orientação materialista, considerando os trabalhos de Michel Pêcheux (França anos 60), os quais buscavam responder algumas questões sobre fatores extralinguísticos articulando o Materialismo Histórico, a Linguística e a Psicanálise; e os trabalhos de Eni Orlandi (Brasil, a partir dos anos 80), os quais buscam investigar as relações linguagem-sociedade-ideologia e a produção de sentidos e sujeitos em diferentes modos de significar. É deste lugar que pretendemos tecer nosso gesto de leitura sobre os Brasis, analisando um conjunto de capas da Vogue, questionamos: Como o corpo negro-feminino é discursivisado?
Palavras-chave: Análise de Discurso; Corpo feminino negro; Hipersexualização.
Abstract
The place of affiliation of this work is Discourse Analysis (DA) of materialist orientation, considering the work of Michel Pêcheux (France, in the 1960s), which sought to answer some questions about extralinguistic factors articulating Historical Materialism, Linguistics and Psychoanalysis; and the work of Eni Orlandi (Brazil, from the 1980s), which seek to investigate the relations language-society-ideology and the production of meanings and subjects in different ways of meaning. It is from this place that we intend to weave our reading gesture about Brasis, analyzing a set of Vogue covers we question: How is the black-female body discursivized?
Keywords: Discourse Analysis; Black Female Body; Hypersexualization.
Consideramos a linguagem marcada pelo processo histórico e social, ou seja, é pelo funcionamento da Ideologia que se estabelecem as condições de produção dos sentidos e os processos de identificação dos sujeitos, inscrevendo-os, portanto, em determinadas discursividades e não em outras. Ou, como diria Michel Pêcheux ([1988] 2014, p. 246, grifo do autor), “[...] a forma-sujeito do discurso, na qual coexistem, indissociavelmente, interpelação, identificação e produção de sentido, realiza o non-sens da produção do sujeito como causa de si sob a forma da evidência primeira”.
Ou seja, conforme nos ensina Orlandi (2001), é pelo processo de interpelação do indivíduo em sujeito, pela forma sujeito histórica do capital e pelo funcionamento dos aparelhos ideológicos em uma segunda instância, que se estabelece os modos de subjetivação e individuação dos sujeitos e dos sentidos do/no discurso.
Interessa-nos aqui pensar a instância material de sujeitos e sentidos no discurso, por isso mesmo, tomamos o corpo enquanto materialidade discursiva. Corpo e sujeito estão materialmente inscritos em discursividades que circulam em diferentes espaços, como: as mídias, a publicidade, a moda, as artes, entre outros.
É importante explicitarmos então nosso recorte teórico-analítico. Lançamos nosso olhar sobre o corpo feminino negro na moda, de forma a compreendermos os modos de discursivização desses corpos em diferentes períodos. Porém, não se trata de uma visada histórico-temporal, mas sim fazer funcionar a noção discursiva de historicidade, explicitando as marcas do sistema escravista que permanece produzindo seus efeitos estruturalmente na sociedade, nos corpos, na língua, nos sujeitos e nos sentidos. Segundo Mbembe (2018, p. 199),
Olhar e ver têm em comum solicitar o juízo, encerrar o que se vê ou o que não se vê em inextricáveis redes de sentido - as tramas de uma história. Na distribuição colonial do olhar, sempre existe quer um desejo de objetificação ou de supressão, quer um desejo incestuoso, quer um desejo de posse ou quiçá de estupro.
Assim, entendemos que o pensamento de Mbembe encontra o que nos propunha Michel Pêcheux ([1982] 1990, p. 8),
A existência do invisível e da ausência está estruturalmente inscrita na formas linguísticas da negação, do hipotético, das diferentes modalidades que expressão um “desejo”, etc., no jogo variável das formas que permutam o passado e o futuro, a constatação assertica com o imperativo da ordem e da falta de asserção do infinitivo (...) toda a língua está necessariamente em relação com o “não está”, o “não está mais”, o “ainda não está” e o “nunca estará” da percepção imediata: nela se inscreve assim a eficácia omni-histórica da ideologia como tendência incontornável a representar as origens e os fins últimos, o alhures, o além e o invisível.
É na e pela ideologia que se dá o que pode e o que deve ser visto ou que não se pode ver, o que deve se tornar invisível, aquilo que não corresponde à um certo padrão. E esses regimes de visibilidade ou de invisibilidade se marcam também nos dispositivos, como as mídias e a moda, por exemplo. Logo, entendemos que a história dos corpos femininos negros não é contada apenas por palavras, também são contadas pela via das imagens, dos corpos, das memórias, exclusões, práticas e pelos discursos.
Compreendemos que os sentidos dados ao corpo mantêm uma relação direta não só com a história e a ideologia, mas com o próprio sujeito, por ser seu suporte material. Logo, o conceito de corpo se constitui na relação sujeito/ história/ sociedade/ ideologia. Mas como funciona a sobredeterminação de gênero, classe e raça no modo como esses corpos são discursivisados em capa de revistas de moda que circulam no Brasil? Faz parte de um certo imaginário de brasilidade a hipersexualização do corpo da mulher negra? É sobre esse recorte que pretendemos nos debruçar.
Analisar o discurso sobre o corpo feminino negro nas revistas de moda, partindo do campo da Análise de Discurso, é convergir nosso olhar a horizontes maiores e apreendê-lo nas suas entrelinhas e na sua dimensão linguística e sócio-histórica. Assim, a proposta central deste artigo é compreender e estudar as regularidades e a produção de sentidos investida sobre o corpo feminino negro a partir de um recorte teórico-analítico que propõe analisar a presença dos corpos de mulheres negras em algumas capas da revista de moda Vogue Brasil.
Com a finalidade de trabalharmos com as imbricações entre corpo, gênero e raça na constituição dos sentidos do corpo feminino negro na moda, faz- se necessário discutirmos sobre o conceito de interseccionalidade, que focaliza múltiplos sistemas de opressão, em particular, articulando raça, gênero e classe1. Embora esse termo tenha sido cunhado apenas em 1989, pela teórica feminista estadunidense Kimberlé Crenshaw (1989), a preocupação em entrelaçar distintas formas de diferenciações sociais (e de desigualdades) é bem anterior, data do século XIX2. No livro O que é interseccionalidade?, Carla Akotirene (2020) pontua que o termo ganhou espaço a partir de uma palestra realizada por Kimberlé Crenshaw na cidade Durban, na África do Sul, em 2001. Segundo Akotirene (2020, p. 19),
A interseccionalidade visa dar instrumentalidade teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado- produtores de avenidas identitárias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais.
Nesse sentido, a interseccionalidade permite uma maior compreensão acerca das desigualdades raciais existentes. Esse conceito nos mostra como e quando mulheres negras são discriminadas e estão mais vezes posicionadas em “avenidas identitárias” (AKOTIRENE, 2020, p. 19), as quais farão delas vulneráveis à colisão das estruturas e fluxos modernos. Ou seja, dependendo do lugar social que se ocupa, o gênero é vivenciado de maneira diferente, isso porque a situação das mulheres, em especial das mulheres negras e de classes populares, possui desafios adicionais para o acesso a direitos.
O corpo, enquanto objeto de análise e reflexão, é de natureza histórico-social, e falar sobre o corpo, especificamente o corpo feminino negro nas capas de revista de moda no Brasil, é interpretá-lo partindo de determinados lugares sociais e discursivos, de determinadas formações imaginárias, ideológicas e discursivas, de determinadas memórias, em determinadas condições de produção, a partir de um modo de subjetivação que objetifica o corpo da mulher negra. Portanto, é fundamental ressaltarmos que trabalhamos sob uma perspectiva materialista a qual nos permite olhar o corpo enquanto uma materialidade significante, porque ele é constituído historicamente.
As textualidades que mobilizam sentidos sobre o corpo feminino negro no Brasil são marcadas por certas condições de produção que passam por um corpo racializado3. No caso do corpus de análise deste artigo, são algumas capas da revista Vogue Brasil4.
Recortamos capas que trouxessem o corpo feminino negro como protagonista. A seleção das capas protagonizadas por esses corpos deu-se em razão do fenótipo (conjunto de características observáveis num organismo), afinal, no Brasil a miscigenação ocorreu de forma violenta. Fontes históricas afirmam que fora por meio do estupro institucionalizado como direito do senhor de escravos e como um dos modos de implementar um projeto de branqueamento da população brasileira. Sendo assim, nossa leitura social acontece não pela genética, mas pelo tom de pele, traços e características físicas visíveis dos corpos. O que pretendemos mostrar, em nosso gesto de leitura/interpretação dessas capas de revista, é que, tal como já expôs Orlandi ([1990] 2008, p. 261), a história “[...] não é uma questão de evolução do tempo, é uma questão de sentidos e da sua duração. E estes podem circular indefinidamente”.
Hofbauer (1999) afirma que o termo branqueamento5 pode ser entendido sob dois sentidos: ora como a interiorização dos modelos culturais brancos pelo segmento negro, implicando a perda do seu ethos de matriz africana; ora como o processo de “clareamento” da população brasileira, registrado pelos censos oficiais e previsões estatísticas do final do século XIX e início do XX.
Moutinho (2003, p. 169), ao analisar as relações inter-raciais na literatura brasileira do fim do século XIX e início do XX, notou que as mulheres teriam seus corpos tidos mais uma vez como objetos e sua feminilidade vinculada ao útero, ou seja, “a de reproduzir a espécie”. Além disso, ao racializar esse acontecimento, a autora notou que as mulheres brancas e negras possuíam papéis distintos dentro do ideal de branqueamento da população: as primeiras deveriam manter a “pureza” de seu útero para conservar a branquitude (dentro do matrimônio), enquanto as segundas deveriam cumprir o papel de branquear a população através do contato sexual com o homem branco. Assim, entendemos a violência sexual como um dos modos de dominação e uma das características históricas mais marcantes do racismo: os homens brancos, especialmente aqueles com alto poder econômico, possuiriam o direito de acesso aos corpos das mulheres negras. Logo, a exploração sexual das mulheres negras é um fator determinante na relação de opressão e dominação em nossa sociedade. Davis (2016, p. 180) afirma que
A escravidão se sustentava tanto na rotina do abuso sexual quanto no tronco e no açoite. [...] Em outras palavras, o direito alegado pelos proprietários e seus agentes sobre o corpo das escravas era uma extensão direta de seu suposto direito de propriedade sobre pessoas negras como um todo. A licença para estuprar emanava da cruel dominação econômica e era por ela facilitada, como marca grotesca da escravidão.
Historicamente, as mulheres negras tiveram seus corpos sexualizados e reprodutores de trabalho, isto é, possuíam a função tanto de amantes como de mães, por isso, em seu ensaio, Sexismo e a experiência da mulher negra escravizada, Bell Hooks (2020, p. 47) escreve que “[...] a mulher negra foi explorada como trabalhadora do campo, em atividades domésticas, como reprodutora e como objeto para o assédio sexual perpetrado pelo homem branco”. Sobre as mulheres negras, Kilomba (2019, p. 141, grifo do autor) afirma que “[...] durante o colonialismo, seu trabalho foi usado para nutrir e prover a casa branca, enquanto seus corpos foram usados como mamadouros, nos quais as crianças brancas sugavam o leite”. Ou seja, é essa imagem controladora que confina as mulheres negras à função de serventes maternais, justificando sua subordinação e exploração econômica ao longo da história. Logo, o racismo construiu a imagem da mulher negra com tripla função: “a doméstica assexual obediente”, a “prostituta primitiva sexualizada” (KILOMBA, 2019, p. 141) e a “mulata como objeto sexual” (GONZALEZ, 2020, p. 165).
É durante os desfiles das escolas de samba que a mulata, em seu esplendor máximo, perde o anonimato e se transforma em uma Cinderela: adorada, desejada e devorada por aqueles que já foram até lá justamente para cobiçá-la. [...] Como acontece em todos os mitos, o da democracia racial oculta mais do que revela, especialmente quando diz respeito à violência simbólica contra as mulheres afro-brasileiras. [...] é devido a conexão com o sistema simbólico que o lugar da mulher negra em nossa sociedade como um lugar de inferioridade e pobreza pode ser codificado em uma perspectiva étnica e racial. Essa mesma lógica simbólica determina a inclusão da mulata na categoria objeto sexual (GONZALEZ, 2020, p. 165).
Corpo feminino negro: corpo que se constitui como lugar de conflito e disputa, não só de saberes e discursos, mas também como um conflito do sujeito com o seu próprio corpo: ora ele o cultua, ora o nega e o segrega. Ora se apropria, ora é apropriado pelo outro. Assim como qualquer outro, o corpo feminino negro é um corpo memória/história atravessado pela ideologia. Ou seja, um corpo que se marca por uma historicidade do corpo negro mostrado por uma história escravista6 e por uma cultura que o afasta através da diminuição.
Desse modo, é possível afirmar que, constantemente, ainda são recuperados processos de diferenciação, classificação e hierarquização para fins de exclusão, expulsão e erradicação desses sujeitos.
Sabemos que a escravização se caracteriza pela sujeição de um sujeito por outro, de forma tão completa, que não apenas o escravizado é propriedade do senhor, como sua vontade está sujeita à autoridade do dono. Na sociedade escravista, temos a transformação de um ser humano em propriedade do outro, a ponto de ser anulado seu próprio poder deliberativo. A perversidade da escravização como relação de produção organiza a sociedade de forma a criar um mundo de senhores e escravos, proprietários e propriedade, donos e mercadorias, sobretudo em países colônias como o Brasil.
Ao reduzir o corpo e o ser vivo a uma questão de aparência, de pele e de cor, outorgando à pele e à cor o estatuto de uma ficção de cariz biológico, os mundos euro- americanos em particular fizeram do negro e da raça duas versões de uma única e mesma figura: a da loucura codificada. [...] homens e mulheres originários da África foram transformados em homens-objeto, homens-mercadoria e homens-moeda. Aprisionados no calabouço das aparências, passaram a pertencer a outros (MBEMBE, 2018, p. 13-14).
A condição negra permanece sofrendo com golpes racistas até os dias de hoje, o que marca substancialmente a construção de uma subjetividade e objetificação dos sujeitos. Desde a Abolição da Escravatura, em 13 de maio de 1888, negros foram libertos dos cativeiros, mas nem sempre libertos das condições de escravizados. Entendemos que essas dificuldades são subproduto do “não-lugar” social dos sujeitos escravizados e dos sujeitos negros, cujas identidades não correspondiam a um lugar de sujeito, no corpo social, mas sim, um lugar de peça, de objeto, de mercadoria (MBEMBE, 2018).
Se partirmos do pensamento que a formação social está relacionada às diferentes formações ideológicas, as quais estão materializadas nas diferentes relações de poder que perpassam instituições, como a mídia e a moda, temos a disciplinarização dos saberes, sustentada pelos efeitos de verdade, funcionando no conflito das formações imaginárias com as relações de poder. Assim, o sujeito do discurso, ao mesmo tempo em que é interpelado ideologicamente pela formação social, inscreve-se em um dos lugares sociais que lhe foi determinado.
Ou seja, o lugar social que o sujeito ocupa numa determinada formação social e ideológica, afetada pelas relações de poder, determina o lugar discursivo através do movimento da forma- sujeito e da própria Formação Discursiva com a qual o sujeito se identifica. Então, é possível afirmarmos que é pela prática discursiva que se estabiliza um determinado lugar social. O conjunto de representações que constituem uma determinada sociedade está condicionado a uma norma, a qual determina que viver em sociedade é estar sob a dominação de um conjunto de regras que se fixam, constituem e estabelecem valores e significações que norteiam a comunicação dos sujeitos em seus grupos sociais.
Ao analisarmos a representação social dos corpos, é concebível entendermos a estrutura das sociedades as quais eles pertencem. Isso significa que os corpos estão sempre investidos de sentidos que estão na origem da vida social, ou seja, todo corpo é carregado de signos e nele estão inscritos a cultura de uma determinada sociedade.
Portanto, é possível afirmarmos que as sociedades constroem contornos demarcadores das fronteiras entre aqueles que representam a norma e aqueles que ficam fora dela, às suas margens. Em nossa sociedade, a norma estabelecida historicamente remete ao homem branco, jovem, cristão, heterossexual, elitizado, passando a ser a referência que não precisa ser nomeada, e os Outros serão os sujeitos sociais marcados.
Os corpos das mulheres negras trazem consigo não apenas a história individual de cada uma, mas também a história coletiva de uma segregação social, de um ser e estar no mundo, que se faz presente nas mais diversas formas de sentir e agir. Davis (2016, p. 35-36) destaca que vale sempre repetir:
[...] as mulheres negras eram iguais a seus companheiros na opressão que sofriam; eram socialmente iguais a eles no interior da comunidade escrava; e resistiam à escravidão com o mesmo ardor que eles. Essa era uma das grandes ironias do sistema escravagista: por meio da submissão das mulheres à exploração mais cruel possível, exploração esta que não fazia distinção de sexo, criavam-se as bases sobre as quais as mulheres negras não apenas afirmavam sua condição de igualdade em suas relações sociais, como também expressavam essa igualdade em atos de resistência.
A complexidade das representações em torno da população negra e, principalmente, da mulher negra, indica um alicerce formulado historicamente no sentido de vigiar os corpos, aprisioná-los em identidades atribuídas socialmente, construídas por uma rede de significações, que tem como intuito preservar hierarquias sociais.
Em seu texto, Intelectuais Negras, Bell Hooks (1995) considera que os estereótipos, enaltecidos por um imaginário racista e sexista sobre as mulheres negras desde a escravização, impediram que elas fossem vistas além de seus corpos, impondo-lhes papéis fixos que circulam recorrentemente e sustentam o sistema de dominação patriarcal e racista que ainda vivem as sociedades contemporâneas.
Essas representações incutiram na consciência de todos a ideia de que as negras eram só corpo, sem mente. A aceitação cultural dessas representações continua a informar a maneira como as negras são encaradas. Vistos como “símbolo sexual”, os corpos femininos negros são postos numa categoria, em termos culturais, tida como bastante distante da vida mental. Dentro das hierarquias de sexo/raça/classe dos Estados Unidos, as negras sempre estiveram no nível mais baixo. O status inferior nessa cultura e reservado aos julgados incapazes de mobilidade social, por serem vistos, em termos sexistas, racistas e classistas, como deficientes, incompetentes e inferiores (HOOKS, 1995, p. 469, grifo do autor).
Assim, como mostrou Hooks (1995), o corpo feminino negro é, a todo o momento da história, hipersexualizado, estigmatizado, estereotipado, por meio dos mais diferentes dispositivos. Borges (2012), em seus estudos sobre os discursos midiáticos em torno do corpo feminino negro, aponta que há estigmas e estereótipos que parecem se repetir indefinidamente, não em termos de conteúdo, mas de articulação, fazendo permanecer referências do passado. Logo, os estereótipos em torno das mulheres negras constituem-se no entrecruzamento de discursos que repetem e atualizam sua significação prevalente pela centralidade que conferem ao corpo. É nessa fronteira de sentidos e através das condições de produção das sociedades capitalistas que se formaram, desde o início, dizeres comuns do imaginário de construção do que é ser mulher negra (BORGES, ٢٠١٢).
É sobre essa formação de imaginários que incide as determinações do Discurso Fundador, tal como nos ensina Orlandi (٢٠٠١, p. ١٣-١٤), é “[...] esse efeito que o identifica [o discurso] como fundador: [ou seja] a eficácia em produzir o efeito do novo no que arraiga, no entanto, a memória permanente (sem limite). Produz desse modo o efeito do familiar, do evidente, do que só pode ser assim”.
Esse discurso fundador em torno da raça faz com que as mulheres negras sejam significadas pelo corpo: um corpo investido de sentidos sexualizados e racializados ao longo da história. Sentidos estes que são projetados através das Formações Imaginárias, nas memórias discursivas da sociedade em geral, fazendo com que os estereótipos em torno dos corpos negros se cristalizem e permaneçam como regimes de verdade. Em contrapartida, o corpo da mulher negra é configurado por um funcionamento duplo, em que, de um lado, é um corpo-mercadoria, um corpo exposto, com valor de troca, e, de outro, é um corpo (in)visibilidade, constituindo-se em um corpo de lutas e interdições: resistência/revolta/dominação.
Em tempos de mundialização do capital e de mudanças tecnológicas, quando destacada pela mídia, a mulher negra e seu corpo são colocados em um contexto de exploração e/ou exposição, na qual seu corpo é exposto de forma sexualizada. Nesse cenário, é importante considerar que os discursos das revistas de moda influenciam diretamente na construção de imaginários sobre os corpos dos sujeitos leitores. As revistas, assim como a moda, são dispositivos de subjetivação dos corpos e dos sujeitos, pois é através desses dispositivos que os corpos se constituem enquanto espaços de memória no nível discursivo. Hooks (2019, p. 147) afirma que, nas revistas de moda,
[...] quando a pele é exposta em trajes usados para evocar sexual, a modelo que os veste não é branca. De acordo com a mitologia sexual/ racista, ele corporifica o melhor da mulher negra selvagem, temperada com elementos de branquitude que suavizam a imagem, conferindo uma aura de virtude e inocência. Na imaginação pornográfica racializada, ela é a combinação perfeita da virgem e da puta, a sedutora perfeita.
Reinseridos como espetáculo, mais uma vez em exibição, os corpos das mulheres negras aparecem nas capas das revistas de moda não como registro de suas belezas, mas para chamar atenção para outras preocupações (HOOKS, 2020). Tais corpos são protagonistas dessas revistas para que os leitores percebam que o periódico é racialmente inclusivo, ainda que suas fotografias hipersexualizem e distorçam suas imagens.
Nas capas que compõem o nosso recorte, as mulheres negras tiveram seus corpos hipersexualizados, sendo apresentadas como sexy, e extremamente expostos, ora pela pose/posição em que estavam ao serem fotografadas, ora pelas partes do corpo evidenciadas na imagem, ora pelo enquadramento da foto, ora pelas vestimentas, ora pelas expressões faciais.
Figura 1- Sequência de imagens analisadas 1
Outubro de 2015- ed. nº 446 |
Dezembro de 2018- ed. nº 484 |
Maio de 2019- ed. nº 489 |
Julho de 2019- ed. nº 491 |
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Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022.
Na edição nº 446 de outubro de 2015, Naomi Campbell protagoniza a capa juntamente com o estilista Ricardo Tisci e a modelo Mariacarla Boscono. Nessa imagem, as duas modelos estão com áreas do corpo expostas devido ao uso de um body e com as pernas por cima do estilista. A mão de Ricardo Tisci está em cima da perna de Naomi, refletindo uma identidade submissa por parte da modelo. O mesmo acontece nas edições: nº 484 de dezembro de 2018, protagonizada pela modelo sul-sudanesa Shanelle Nyasiase; nº 489 de maio de 2019, com a cantora carioca Lellê; e nº 491 de julho de 2019, protagonizada pela rainha do futebol brasileiro, Marta. Em todas essas capas, as pernas estão em evidência. Nas três últimas citadas, essa parte do corpo das protagonistas está à mostra devido às poses das fotografias e às grandes fendas em suas vestimentas.
De acordo Crane (2009, p. 401), essas posições fazem parte da “ritualização da subordinação”, na qual a mulher é identificada como um sujeito passivo e que essa caracterização pode ser construída para agradar os olhares masculinos. Esse fato acontece fortemente com a imagem da jogadora Marta, dado que ela foi retirada completamente do seu lugar: o futebol; para ser transformada em uma super top model e ter seu corpo tomado como um objeto de consumo. Ou seja, esse componente reafirma mais uma vez a objetificação do corpo feminino negro: quando se têm corpos de modelos, padronizados pela mídia e pela moda, como, por exemplo, os de Naomi Campbell, Shanelle Nyasiase e de Lelê, percebemos que esses corpos já são formatados e descaracterizados de um corpo padrão afro, pois já tiveram seus traços afinados, cabelos alisados, entre outros. Porém, quando se tem um corpo como o de Marta, que vem do esporte, nota-se fortemente como há uma objetificação extrema em cima desse corpo, uma vez que tiram a jogadora do seu lugar, descaracterizam seu corpo de jogadora e a colocam como “mulherão objeto”, fazendo uma pose que remete à figura grega de Apollo.
Outro destaque muito importante dessas capas mostradas anteriormente, são os enunciados verbais. Porém, para analisá-los, é necessário retomarmos as discussões de Suzy Lagazzi (2007) em torno do conceito de imbricação material. A formulação imbricação material interessa-nos principalmente porque, ao ser mobilizada, desfaz a dicotomia verbal e não-verbal, ou seja, não se toma as imagens em detrimento das palavras, são as materialidades em composição que constituem as redes de sentidos possíveis. Foi pensando nesse movimento que Lagazzi (2007, p. 3) formula a noção de imbricação material da seguinte maneira:
O batimento estrutura/acontecimento referido a um objeto simbólico materialmente heterogêneo, requer que a compreensão do acontecimento discursivo seja buscada a partir das estruturas materiais distintas em composição. Realço o termo composição para distingui-lo de complementaridade. Não temos materialidades que se complementam, mas que se relacionam pela contradição, cada uma fazendo trabalhar a incompletude da outra. Ou seja, a imbricação material se dá pela incompletude constitutiva da linguagem, em suas diferentes formas materiais. Na remissão de uma materialidade a outra, a não-saturação funcionando na interpretação permite que novos sentidos sejam reclamados, num movimento de constante demanda.
Conforme afirma a autora, é possível vermos que, para a AD, o que dá textualidade e constitui os sentidos é justamente a “imbricação material entre língua e discurso”.
Quando tomamos para análise materiais que se estruturam por imagens, músicas, sons, gestos, ... nos colocamos uma questão de cunho teórico-analítico, já que nesse caso o discurso se materializa em outras relações que não verbais [...] a materialidade do discurso é a linguagem em suas diferentes materialidades significantes, quais sejam: a palavra, a imagem, o gesto, a musicalidade, o aroma, a cor, o enunciado, o corpo, a melodia, a sonoridade enfim, diferentes relações estruturais simbolicamente elaboradas pela intervenção do sujeito. Vejamos que a língua concebida como materialidade do discurso não está associada ao sujeito, que por ela se constitui. Da mesma forma, o aroma, a cor, a imagem, o gesto... se constituem em materialidade significante quando em relação com o sujeito, constituindo memória discursiva e, assim, se constituindo em linguagem (LAGAZZI, 2017, p. 36).
Logo, para a teoria materialista do discurso, os elementos significantes não são considerados tendo como parâmetro apenas o signo, mas a cadeia significante, o que permite ao analista buscá-los sempre em uma relação de movimento, de estabelecimento e entrelaçamento das relações. É um trabalho que perscruta o acontecimento do significante de um sujeito afetado na/pela história, tomando a forma material no batimento entre estrutura e acontecimento.
Na edição nº 446, de outubro de 2015, o enunciado “GANGUE FASHION” aparece no centro da capa, em primeiro plano, em cima dos corpos das modelos e do estilista. Ao analisarmos o termo “gangue”, compreendemos que é um termo derivado do inglês gang que significa “grupos formados por criminosos e malfeitores, que se reúnem com o propósito de concretizar atos que fogem à lei. Os membros das gangues são conhecidos por gangsters, termo este que também é de origem inglesa, traduzido como criminoso, contrabandista ou ladrão”7.
Ainda nesse escopo de bando/gangue, retomamos o mito grego de Procusto8. Procusto era o líder de uma gangue que dizia e moldava o corpo segundo seus conceitos. Ao analisar o enquadramento da fotografia da capa de outubro de 2015, edição nº 446, observamos que o estilista, homem, está no centro da imagem, o que produz o seu papel de liderança e, ao mesmo tempo, de posse do corpo das mulheres, especialmente, do corpo negro. O corpo branco não requer sua mão sobre ele, parece já docilizado e submisso o suficiente, já o corpo da mulher negra só se significa a partir da mão do homem branco sobreposta sobre si. Os sentidos de gangues também recuperam uma certa memória de guetificação da população negra, sobretudo, no continente americano, como os bairros suburbanos dos Estados Unidos ou as favelas brasileiras.
A capa da edição nº 484, por sua vez, conversa com o enunciado da capa analisada anteriormente. O enunciado da edição de dezembro de 2018, “LEVE E SOLTA”, em ambiente natural e árido, mesmo que a veste branca ao vento produza sentidos de liberdade e leveza, o cindir do seu corpo, o olhar plongée9 marca o quanto de luta há para um corpo negro assumir o lugar de capa dessa revista.
E, para finalizar a análise de enunciados das capas, trazemos para o debate a edição nº 491, protagonizada pela brasileira Marta, a rainha do futebol, eleita seis vezes como a melhor jogadora do mundo pela Federação Internacional de Futebol (Fifa). O enunciado marca “A VEZ DE MARTA”. No entanto, nos perguntamos, a vez de Marta do que? Ela é a última da fila? A bola precisa lembrar o seu lugar, que não é o de uma modelo de capa de revista, mas de jogadora de futebol, um esporte completamente monopolizado pelo masculino.
Dando sequência à análise das capas marcadas pela hipersexualização do corpo feminino negro, temos as edições de nº 453, de maio de 2016, e nº 479, de julho de 2018, protagonizadas por Naomi Campbelle e Jourdan Dunn respectivamente, ambas as modelos aparecem através de fotografias de rosto: Naomi está com o dedo na boca e Jourdan com a língua de fora, remetendo a um pré-construído de sexualidade e provocação. Hooks (2019, p. 136) afirma que “[...] o corpo da mulher negra só recebe atenção quando é sinônimo de acessibilidade, disponibilidade, quando é sexualmente desviante”. Logo, compreendemos que a regularidade da hipersexualização é fortemente marcada pela objetificação racista e classista de corpos socialmente lidos como não brancos e ainda são constantemente vinculados a formações imaginárias marginalizadas e/ou sexualizadas.
Figura 2- Sequência de imagens analisadas 2
Maio de 2016- ed. nº 453 |
Julho de 2018- ed. nº 479 |
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Fonte: Acervo pessoal das autoras, 2022.
Analisando todas essas imagens, compreendemos que os textos midiáticos apontam, como os demais sistemas de subjetivação, para a padronização dos corpos. Esse movimento de “seleção” de qual corpo pode, ou não, ser mostrado funciona pela contradição. E é pela contradição que se dá o movimento de identificação e contraidentificação do sujeito, que por sua vez, sempre dividido, subjetiva-se pelos esquecimentos, produzindo um efeito do “bom” e “mau” sujeito, sendo que a primeira modalidade é sempre identificação plena. Segundo Indursky (2007, p. 80-81),
[...] a segunda modalidade, caracteriza o discurso do “mau sujeito”, discurso em que o sujeito do discurso, através da “tomada de posição”, se contrapõe à forma-sujeito e aos saberes que ela organiza no interior da Formação Discursiva. Essa segunda modalidade consiste em uma separação, um distanciamento, uma dúvida, em relação ao que diz a forma-sujeito, conduzindo o sujeito do discurso a contra-identificar-se com alguns saberes da formação discursiva que o afeta. [...] Desta superposição incompleta e, por conseguinte, imperfeita resulta um certo recuo que permite a instauração da diferença e da dúvida, as quais são responsáveis pela instauração da contradição no âmbito dos saberes da Formação Discursiva e, consequentemente, pelo surgimento de posições-sujeito no interior da Formação Discursiva. Ou seja: esta segunda modalidade traz para o interior da FD o discurso- outro, a alteridade, e isto resulta em uma FD heterogênea.
Tomando as capas da revista “Vogue Brasil” protagonizadas por corpos femininos negros como textualidade, é possível marcarmos, neste instante, a relação heterogênea das Formações Discursivas (FD), em que de um lado produz um efeito de inclusão, porém, operando pela exclusão. Nessa contradição de uma FD heterogênea advém por um lado a construção do discurso “politicamente correto” de inclusão, que diz que todo corpo deve estar incluso em todas as instâncias. Por outro lado, existe, um discurso produzido pelo mercado de moda. É, portanto, nas condições de produção de uma FD heterogênea que se instaura a relação de contradição. Afinal, ao mesmo tempo em que nasce um movimento de inclusão, existe também uma forma de formatação, em que os padrões continuam sendo iguais, porém “contados” de outra maneira. A reiterada circulação desses textos interdita certos corpos, enfim, não é possível mostrar qualquer corpo.
Nessa perspectiva, podemos pensar ainda o corpo através do conceito desenvolvido por Neckel (2013) sobre corpo-imagem: “um corpo que se faz imagem” (NECKEL, 2015, p. 277). Através dessa noção formulada pela autora, compreendemos que esse corpo-imagem é um resultado próprio das condições de produção da contemporaneidade e do sistema capitalista, e o sujeito que nele (no/do corpo-imagem) se constitui, consequentemente, se expõe e se inscreve em um processo específico de individua(liza)ção (ORLANDI, 2012). É um corpo pensado/atravessado/constituído e já circula como imagem. E essas capas da revista “Vogue Brasil”, mostradas anteriormente, afirmam constantemente o trabalho do capital sobre os corpos dos sujeitos negros de forma discreta, quase imperceptível, pois, quando a mulher negra aceita ou se coloca em determinadas posições, vestindo determinadas roupas e fazendo algumas poses, logo já se coloca como um corpo-imagem para aquele determinado padrão. Um corpo pensado para ser visto,
[...] o corpo-imagem é um corpo já sujeito de mídia e, por isso mesmo, um corpo mercadoria, um corpo exposto com valor de troca. Um corpo de resistência e contradição tanto na instância artística, quanto na instância midiática. Também concluímos que o corpo é atravessado pela história, pela memória e pela ideologia temos então um corpo materialidade no qual se textualizam as lutas de classe e gênero (FERRARI; NECKEL, 2017, p. 221).
Tomando essas imagens como lugares de memória, percebemos que elas refletem as representações sociais sobre o corpo: indicam, difundem, sedimentam e legitimam os modos de ver os corpos negros. Ao observar esse conjunto de capas, percebemos que as regularidades em torno das fotografias de moda, são sempre as mesmas, indiferente do modelo corporal que está sendo fotografado. Ou seja, essas marcas recuperam memórias de como o corpo, seja ele branco e/ou negro, gordo e/ou magro, deve/pode ser mostrado mercadologicamente, pois o padrão se estabelece a partir do que é mais rentável para a indústria cultural e afasta tudo o que é diferente de um padrão pré-estabelecido e fortemente determinado pelo discurso colonizador branco europeu.
Um elemento bastante relevante para a Análise de Discurso é a questão da memória, esta compreendida não como uma memória coletiva, mas como uma memória sócio-histórica que constitui os sujeitos e os sentidos. Diferentemente da memória cognitiva, a memória discursiva não pertence a um sujeito, ela é uma memória histórica e coletiva constituída de palavras e enunciados. Segundo Pêcheux ([1983], 2015, p. 44), a “[...] memória deve ser entendida aqui não no sentido diretamente psicologista da ‘memória individual’, mas nos sentidos entrecruzados da memória mítica, da memória social inscrita em práticas”.
Ou seja, há uma memória de corpo negro e uma memória do corpo da mulher que não cessa de se inscrever através do enquadramento da foto, na caracterização da modelo e na composição tipográfica da capa. Dessa maneira, é pela paráfrase (pela repetição e retomada) que a memória se materializa, mas é também pela paráfrase, pelas falhas e buracos gerados pelo dizer, que o sentido deriva e pode ser outro.
O lugar de onde se fala, como se fala, por exemplo, é responsável por regular esses sentidos. Logo, as condições de produção propiciam um movimento que determina os sentidos, fazendo com que eles sejam constantemente (re)visitados e (re)construídos.
A valorização do corpo como imagem de valor simbólico é um dos elementos mais importantes na constituição da identidade dos sujeitos, pois ele é interpelado por sentidos oriundos de um olhar sócio-histórico e ideologicamente determinado. E, com o advento do capitalismo, o corpo passou a ser compreendido como instrumento de poder, tornou-se mercadoria e, um meio de criar vínculos e distinções sociais, disponibilizando, assim, ao sujeito, uma condição de existência.
Entendemos ao longo desta pesquisa que o corpo é resultado de uma produção histórica, um corpo fabricado a partir de certos padrões vigentes em determinados períodos. Logo, o corpo feminino é sempre provisório, está em constante (re)construção, um corpo in suspenso (RUBIN, 2015), produzido pelos efeitos dos discursos, em que a ideologia e a historicidade determinam, através de práticas discursivas, quais são os corpos possíveis de serem vistos e/ou mostrados em determinados espaços.
Logo, compreendemos que as imagens de moda, assim como, as imagens midiáticas, em torno do corpo feminino negro, são imagens cristalizadas e preservadoras de uma concepção eurocêntrica e que não cessam de fornecer e reafirmar os elementos e as normas para a representação desses corpos. E, ainda, os dispositivos, mídia e moda, investem em retornos, em repetições de estereótipos, a fim de manter os corpos femininos negros aprisionados, silenciados, apagados, moldados e (in)visibilizados. Ou seja, a (in)visibilidade de corpos femininos negros nas capas da revista “Vogue Brasil” pode ser considerada como um processo de ressignificação das práticas técnicas e das práticas de gestão social (PÊCHEUX, [1981] 2012) que sobredeterminam os papéis e os espaços que os sujeitos negros podem ocupar na sociedade contemporânea.
A história da colonização do Brasil foi marcada por uma série de acontecimentos que nos faz refletir sobre a sociedade que foi construída e reconstruída, através do longo processo histórico, e sobre seu reflexo e/ou resultado na sociedade atual. Um dos fatos mais determinantes e mais nocivos para a nossa sociedade foi a escravização de sujeitos vindos de outros continentes: a escravização é uma história de dizimação, expropriação e destruição de culturas. Durante esse processo, esses sujeitos foram invadidos como um pedaço de terra. Seus corpos foram explorados como continentes, suas histórias receberam novos nomes, suas línguas mudaram e, acima de tudo, os estereótipos construídos em torno da imagem do sujeito negro se cristalizou ao longo dos anos e continuam, ainda hoje, produzindo sentidos de submissão e exclusão. Por isso, encerramos este percurso nos colocando em uma posição de luta: até quando isso irá acontecer? Até quando essas (in)visibilidades, apagamentos, silenciamentos e formatações dos corpos negros existirão?
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Como citar este artigo
SOUZA, B. P.; NECKEL, N. A moda brasileira e os corpos em (re)vista: um gesto de leitura. Fragmentum, Santa Maria, p. 41-63, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219469016. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
1 Considerando a historicidade da formação do campo interseccional, na primeira metade da década de 1980, Angela Davis e Bell Hooks publicaram, em, respectivamente, Women, Race and Class e Ain’t I a Woman? Black Women and Feminism, contribuições e críticas acerca da problemática da estabilidade homogeneizante da categoria mulher e a necessidade de se atentar igualmente às formas combinadas das diferenciações e desigualdades como raça e classe social, entrecortando as experiências de mulheres.
2 Sojourner Truth, mulher afro-americana que foi escravizada ainda criança, tornou-se pioneira do feminismo negro após sua fala em 1851, na Convenção de Direitos das Mulheres, em Akron, Ohio. Em seu discurso, Truth articula raça, classe e gênero, questionando a categoria de mulher universal.
3 Que adquiriu caráter racial. O termo racializado/racialização surgiu na década de sessenta do século XX para exprimir o processo social, político e religioso a partir do qual certas camadas da população de etnia diferente eram identificadas em relação à outra parte da população, tendo em conta que esta identificação estava diretamente associada ao seu aspeto, características fenotípicas ou à sua cultura étnica.
4 Ressaltamos que a Vogue é uma das revistas de moda mais importantes, conceituadas e influentes do mundo. Dados apontam que, em 2018, circularam no Brasil, de forma impressa e digital, aproximadamente 78 mil exemplares da revista Vogue Brasil. Segundo Novelli (2014, p. 93, grifo do autor), “[...] no contexto brasileiro é possível afirmar que Vogue se constrói enquanto termômetro de tendências, que guia e inspira”. Mensalmente em suas páginas, com base numa perspectiva sofisticada do mundo da moda, são publicados trabalhos de famosos estilistas, fotógrafos e designers.
5 Baseados nos ideais europeus de eugenia que surgiram na Europa por volta do século XIX, o governo de Dom Pedro II, a partir de políticas, como o incentivo à imigração de mão de obra europeia e a proibição à imigração de africanos, impulsionaram o branqueamento como uma prática social. “Antes da noção de democracia racial, a ideologia do branqueamento serviu como justificativa para uma política desenvolvida pelos governos brasileiros para branquear a população do país ao encorajar uma massiva imigração europeia, sobretudo no período de 1890- 1930” (GONZALEZ, 2020, p. 168-169). Esse ideal de branqueamento surgiu de uma preocupação das elites brancas com o progresso da raça e também com a intenção de se manter como maioria e garantir-se como grupo diferenciado. De acordo com certas teorias que circulavam na Europa no final do século XIX, os homens brancos seriam os responsáveis por esta miscigenação, por esse processo de branqueamento da população, pois possuíam a “missão” de ter filhos mestiços e cada vez mais claros.
6 Sociedade escravista é qualquer sociedade em que haja a prática do trabalho escravo, ou seja, qualquer forma de trabalho coercitiva, que geralmente se limita por critérios étnicos ou socioeconômicos. Segundo Davis (2016, p. 17), “[...] o sistema escravista definia o povo negro como propriedade”, é uma sociedade/sistema em que os trabalhadores são considerados propriedades dos seus patrões e não possuem salário.
7 Disponível em: <https://www.significados.com.br/gang/>. Acesso em: 12 de julho de 2021.
8 “[...] os gregos, ao transitarem entre as cidades de Atenas e Mégara, frequentemente se deparavam com um bando liderados por Procusto. O líder do bando ordenava que seu bando prendesse e saqueasse os viajantes, porém, a característica mais marcante desse ‘assalto’ era a crueldade, pois a principal ordem era, obrigar os viajantes a se deitarem em um leito onde eles tinham seus corpos moldados pela medida de uma cama que possuía as medidas corporais de Procusto, o líder do bando. Devido a isso, os pequenos viajantes teriam seus corpos distendidos até atingirem o tamanho da cama e os grandes, cujos membros ultrapassariam as medidas da mesma, seriam mutilados, de forma a se adequarem ao tamanho do leito. Assim, todos os corpos tornavam-se uniformes, tendo como ‘padrão’ o corpo de Procusto” (SOUZA, 2017, p. 16, grifo do autor).
9 Plongée: palavra francesa que significa “mergulho. É quando a câmera está acima do nível dos olhos, voltada para baixo; também chamada de ‘câmera alta’”. Disponível em: <https://www.primeirofilme.com.br/site/o-livro/enquadramentos-planos-e-angulos/>. Acesso em: 10 de junho de 2021.