Universidade Federal de Santa Maria

Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 65-86, 2022

DOI: 105902/2179219468961

e-ISSN 2179-2194

Submissão: 05/01/2022 • Aceito: 20/08/2022

Uma introdução, um retorno a algumas questões de pesquisa

Discursos em confronto

Grupos indígenas do nordeste do país: os Fulni-ô e os Potiguara

As análises: a visão indígena sobre língua e povo indígena

Lutas de nunca acabar

Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memóriaI

A nonstop struggle: indigenous-subject, language, memory

André CavalcanteI

I Universidade Federal de Pernambuco, UFPE, Recife, PE, Brasil

Resumo

Este trabalho tem como objetivo refletir sobre o imaginário do sujeito-indígena sobre língua e povos indígenas a partir da escrita de dois livros Índios na visão dos índios: Fulniô e Índios na visão dos índios: Potiguara. Livros que surgiram com o propósito de ser um espaço para que os indígenas falassem por si, um discurso de, para além do já estabilizado no imaginário brasileiro sobre os indígenas. Embasados teórico-metodologicamente na Análise do Discurso materialista, serão analisadas sequências discursivas recortadas dessas duas obras, questionando a constituição da brasilidade e quais os espaços possíveis para se dizer indígena e brasileiro. As análises nos fazem compreender que o discurso do indígena é atravessado pelo discurso sobre estes povos e o imaginário destes sobre língua e identificação se faz pela retomada de já-ditos para refutá-los ou ratificá-los.

Palavras-chave: Discurso; Sujeito-indígena; imaginário; memória; língua.

Abstract

This article aims to discuss the discourse of the indigenous-subject about indigenous people and language from the writings of two Indigenous books: Indians from the point of view of Indians: Fulniô and Indians from the point of view of Indians: Potiguara. Books that have the purpose of being a space for the indigenous to speak for themselves, in addition to the already stabilized Brazilian imaginary about them. Theoretically and methodologically based on the Materialist Discourse Analysis, discursive sequences taken from these two works will be analyzed, questioning the constitution of Brazilianness and what are the possible spaces to say indigenous and Brazilian. The analyses make us understand that the indigenous discourse is crossed by the discourse about these peoples, and their imaginary about language and identification is made by the resumption of the already-said to refute or reinforce them.

Keywords: Discourse; indigenous-subject; imaginary; memory; language.

“A Amazônia e as Terras indígenas são essenciais para o equilíbrio climático e vem sendo duramente atacados. Os povos indígenas estão lutando com suas vidas pelo futuro e presente do planeta”.

(Txai SuruiII, 2021)

Uma introdução, um retorno a algumas questões de pesquisa

Neste trabalho, retomo algumas das discussões empreendidas na minha dissertação acerca do discurso do povo Fulni-ô e Potiguara em relação ao imaginário sobre o indígena e sobre a(s) língua(s) por eles falada(s). Metodologicamente, traremos sequências discursivas, recortes do nosso corpus de pesquisa, recortadas de dois livros: Índios na visão dos índios: Fulniô e Índios na visão dos índios: Potiguara. Livros que surgiram com o propósito de ser um espaço para que os indígenas falassem por si, um discurso de, para além do já estabilizado no imaginário brasileiro sobre os indígenas.

Organizados por Sebastien Gerlic, da ONG Thydewa, esses livros e outros da coletânea estão disponíveis no site Índio EducaIII e também em outros sites. Na produção do livro dos/sobre os Fulni-ô, 20 ou 30 pessoas participaram de uma conversa a respeito do livro, escrito em 2001, para que eles escrevessem o que quisessem sobre o que é ser Fulni-ô. Também foi realizada uma entrevista com o pajé e outra com o cacique, líderes das comunidades indígenas. Junto ao editor Sebastien Gerlic, mais dois indígenas ajudaram na seleção e editoração do livro, no qual 10 autores indígenas tiveram seus textos publicados. Essa publicação foi patrocinada por empresas privadas e pelo governo do Estado da Bahia.

De forma semelhante ocorreu com a produção dos Potiguara. Contudo, passados 10 anos da publicação de um livro para o outro, há diferenças na editoração: o livro dos Potiguara tem um maior número de páginas, uma formatação mais estruturada, edição conjunta de Gerlic e Peter Zoettl e a parceria com o Ministério da Cultura. Nessa segunda produção, há a participação de 18 autores potiguara.

Objetivamos, então, a partir do aparato teórico-metodológico da Análise do Discurso materialista, refletir sobre o imaginário do sujeito-indígena sobre língua e povos indígenas na produção desses livros supracitados. Com isso, também nos questionaremos sobre a subjetivação desses sujeitos na contemporaneidade.

Discursos em confronto

Txai Suruí, ativista indígena do povo Paiter Suruí, grupo indígena dos estados de Rondônia e Mato Grosso, destacou-se por sua fala na Conferência das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP26), em novembro de 2021, em Glasgow, na Escócia, quando teceu críticas sobre a política brasileira em relação a tais mudanças climáticas. Como trouxemos na epígrafe, recorte da fala dela na COP26, também traduzida e postada em suas redes sociais. Txai destacou importância da Amazônia e das Terras Indígenas para o equilíbrio climático. A indígena, em suas redes sociais, denuncia os ataques que indígenas sofrem de grileiros, garimpeiros e de uma política nacional anti-indígena. Em outro trecho de sua fala na conferência, Txai denuncia: “Nós, povos indígenas, estamos na linha de frente da emergência climática, lutando com nossas vidas e devemos estar no centro dessa discussão. Sem povos indígenas não existe equilíbrio climático” (SURUÍ, 2021).

Este enunciado/denúncia retoma algo recorrente: a luta dos indígenas com suas próprias vidas, seus corpos colocados no campo de batalha, “na linha de frente”. Sem o cuidado desses povos com a Amazônia, com as terras brasileiras, desde sempre indígenas, não há a possibilidade de um equilíbrio climático, uma vez que as relações com a terra e com a floresta, para os povos indígenas, são distintas da forma como os não-indígenas lidam com elas. São formas diferentes de significá-las. Txai e outras indígenas presentes na COP26 sofreram vários ataques nas redes sociais, críticas e ameaças a suas existências e lutas. Essas formas de silenciar os indígenas retomam um imaginário sobre esses povos.

Tal imaginário está vinculado a cinco ideias equivocadas apontadas por Freire (2009), quais sejam:

1. O indígena genérico;

2. Culturas atrasadas;

3. Culturas congeladas;

4. Os indígenas pertencem ao passado; e

5. O brasileiro não é indígena.

No primeiro equívoco, os indígenas são vistos como um grupo homogêneo, com as mesmas crenças e língua. Há, dessa maneira, um apagamento de cerca de 200 etnias e 188 línguas indígenas (FREIRE, 2009). No segundo, não é sabido ou se desconsidera os diversos saberes produzidos por esses povos. A produção de ciência, arte, literatura e música pelos indígenas não fazem parte do que é considerado como cultura. O terceiro equívoco diz respeito a uma imagem cristalizada do indígena como sujeito isolado e nu nas florestas. No quarto, pensa-se que os indígenas vivem no passado, são seres primitivos e são um obstáculo à modernidade ou, ainda, não existem atualmente. Por último, a quinta ideia equivocada é que o indígena não é brasileiro, nega-se, assim, a nacionalidade desse povo.

Na história do Brasil, mesmo que em alguns momentos não nos demos conta, há sempre uma luta diária de sobrevivência dos povos originários, resistência à invisibilização pelo Estado, que remonta à época da invasão dos portugueses. Nos séculos XX e XXI, as disputas e violências contra os indígenas continuam, como podemos lembrar: a morte Galdino, do grupo Pataxó, queimado vivo, em 1997, na capital federal; a divulgação da carta de genocídio dos Guarani-Kaiowá, do Mato Grosso do Sul, em 2012; os protestos contra a destruição do antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro, entre 2006 e 2013, e contra a aprovação da PEC 215IV, por diversos povos indígenas, inclusive nas redes sociais, entre 2014 e 2015, a luta contra a PL 490 que prevê a alteração da demarcação das terras indígenas, entre outros episódios, relembraram, outra vez, aos incautos a existência do sujeito-indígena, aquele que sempre esteve nessas terras, à margem, mas produzindo sentidos, resistência e não submissão.

Sentidos e(m) disputas que retomam o discurso da colonização, a quem pertence as terras, quem são esses sujeitos, qual o imaginário desses sujeitos sobre si mesmos, sobre a brasilidade, sobre as línguas no Brasil. Parte das discussões que faremos aqui retomam algumas pesquisas minhas que, até então, tinham sido deixadas de lado, como o projeto de iniciação científica “Processos de identificação, sujeito de resistência e produção de discursos sobre a temática Guarani-Kaiowá”, realizado entre 2013 e 2014, e minha dissertação de mestrado “O imaginário em torno do ‘ser índio’ no Discurso do/sobre o Sujeito-indígena: Entre o Assujeitamento e a Resistência” defendida em 2017, realizados na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)V.

A princípio, a partir de Mariani (1996), é necessário discutir a relação do discurso de e discurso sobre, para adentrarmos na temática em tela. Para a autora, o discurso sobre

[...] são discursos que atuam na institucionalização dos sentidos, portanto, no efeito de linearidade e homogeneidade da memória. Os discursos sobre são discursos intermediários, pois ao falarem de um discurso de (discurso origem), situam-se entre este e o interlocutor, qualquer que seja. De modo geral, representam lugares de autoridade em que se efetua algum tipo de transmissão de conhecimentos, já que ao falar sobre transita na correlação entre o narrar, descrever um acontecimento singular, estabelecendo sua relação com um campo de saberes já reconhecidos pelo interlocutor. Do nosso ponto de vista, o discurso jornalístico, sobretudo na sua forma de reportagem, funciona como uma modalidade do discurso sobre, pois coloca o mundo como objeto. [...] E com isto estamos afirmando, em decorrência, que o discurso jornalístico contribui na constituição do imaginário social e na cristalização da memória do passado bem como na constituição da memória do futuro (MARIANI, 1996, p. 64).

As discussões de Mariani nos ajudam a compreender como os discursos sobre podem institucionalizar e cristalizar sentidos, a partir de um lugar de poder. A produção e divulgação dos conhecimentos sobre os sujeitos indígenas, por exemplo, em grande parte das vezes, é produzida por não-indígenas que veem esses sujeitos como objeto. Uma voz outra que se vale de instituições para produzir sentidos sobre o outro. A respeito disso, podemos pensar na colonização linguística que, segundo Mariani (2004, p. 23),

[...] remete para a coexistência de povos com histórias e línguas distintas em um dado momento histórico. Colonizar supõe um contato entre diferenças, contato esse que se dá pelo uso da força, não se realizando, portanto, sem tensões e confrontos. Deve-se, então, dizer que tal noção apresenta mais de um sentido, conforme seja usada no discurso do colonizador ou no do colonizado.

Conforme a autora, o discurso do colonizador materializa a ideologia eurocêntrica e justifica o povoamento, a expansão do território português e, por conseguinte, a proteção das novas terras conquistadas. Tal discurso se sobrepõe ao discurso dos povos nativos; pela força física e pela escrita da língua do colonizador, impõe-se “[...] a força institucionalizadora de uma língua escrita gramatizada que já traz consigo uma memória, a memória do colonizador sobre a sua própria história e sobre a sua própria língua” (MARIANI, 2004, p. 24).

O Estado, a colonização e as brasilidades não se dão sem uma discussão sobre a língua, conforme se discute em várias teorias, como na Análise do Discurso e na História das Ideias Linguísticas. Ao exemplo de Leal (2012) que discutiu que o gentílico brasileiro não comporta os índios, pois há uma oposição entre falar “brasileiro” e falar “índios”. Nessa seara, focando especificamente a construção e história do gentílico do Brasil, Ferrari e Medeiros (2012) dizem que essa adjetivação vai trabalhando sentidos sobre aqueles que o carregam e, retomando a pesquisa de Mazière e Gallo (2006 apud FERRARI; MEDEIROS, 2012), ratificam o imaginário que nascer no Brasil não equivale a ser indígena do Brasil, pois só há três maneiras de ser brasileiro: ter nascido no Brasil, quando já considerado como Estado, naturalizar-se como brasileiro ou ter vivido certo tempo no País. Dessa maneira, a existência dos indígenas anteriormente à invasão portuguesa é silenciada.

É importante marcar novamente a diversidade dos povos indígenas brasileiros e também a multiplicidade de formas de se identificar como tal. Aqui faremos uma breve apresentação histórica sobre dois desses povos, os Fulni-ô e os Potiguara, dos quais analisaremos seus discursos materializados em dois livros já citados.

Grupos indígenas do nordeste do país: os Fulni-ô e os Potiguara

De acordo com o Instituto SocioambientalVI, embasado na literatura histórica e antropológica existente sobre os Fulni-ô, não se sabe ao certo a data em que esse grupo indígena foi aldeadoVII. São também chamados de Carnijós ou Carijós e sabe-se que, desde o século XVIII, já se chamavam assim. Possivelmente e, como contam eles, nessa aldeia, fundiram-se diferentes grupos étnicos que se organizaram em forma de clãs e, posteriormente, adotaram o nome do grupo anfitrião, Fulni-ô. Nessas fontes encontradas pelo instituto, os dados mais antigos acerca desse povo são do ano 1749, registrados em “Informações Geral da Capitania de Pernambuco” (1906), que contabilizava 323 pessoas desse grupo.

Ainda conforme o Instituto Sociambiental, durante o período colonial, os indígenas que habitavam o litoral falavam majoritariamente línguas Tupi; já os que viviam em outros lugares falavam outras línguas, vistas, para os colonizadores, como línguas mais truncadas e de difícil aprendizado. Eram chamados de tapuias. A partir disso, a língua tupinambá, popularmente conhecida por tupi, foi tomada como protótipo de língua indígena brasileira. Nessa mesma época, esses povos começaram a ser afastados para o interior do Brasil, e a região litorânea transformou-se no lugar dos colonizadores. Assim, vários aldeamentos e povoados indígenas tiveram como sede as áreas mais interioranas dos estados.

Supostamente, o aldeamento dos Fulni-ô ocorreu no período pós-expulsão dos holandeses de Pernambuco. A partir de então, as disputas por terra e a relação conflituosa entre os indígenas e não-indígenas se intensificaram.

Em trabalho anterior (CAVALCANTE, 2013), comecei a observar as práticas de linguagem dos Fulni-ô, os quais vivem no território indígena em Águas Belas, Pernambuco, a 270 km de Recife. Estão agrupados na família linguística Macro-jê e são falantes da única língua indígena nordestinaVIII. É importante salientar que a aldeia indígena está muito próxima da cidade, 500 m, e essa relação entre indígenas e não-indígenas é bastante conflituosa, por questões políticas, religiosas, de propriedade da terra, etc. Portanto, para os fulni-ô, é de extrema importância marcar a sua identidade em oposição aos habitantes da cidade, os não-indígenas e alguns indígenas que não vivem na aldeia.

Discuti, também, no referido trabalho que

Fulni-ô significa em Yaathê “povo que vive ao lado do rio”. Esses índios têm duas moradias: a primeira é a reserva, próxima à cidade, onde está localizada a aldeia que possui aproximadamente 11 mil hectares, com lotes individuais; a segunda é um local mais distante onde passam três meses do ano para a prática do ritual religioso Ouricuri. Tal ritual é uma prática necessária aos indígenas para se afirmarem como Fulni-ô. Por isso, é sigiloso, não permitido aos não-índios. Esta prática religiosa é realizada em Yaathê que, segundo a FUNASA (2010), é falada por 4.336 pessoas, tendo funções rituais e sociais. Eles foram catequizados de 1681 a 1685 e cederam parte de seu território aos seus catequizadores. Assim, foi construída a igreja e formou-se a cidade de Águas Belas. Mas, com os conflitos ocorridos ao longo do tempo, só em 1877 as terras foram demarcadas. Há, na aldeia, escolas bilíngues para um povo também bilíngue.[...] O interesse da linguística pelo povo fulni-ô, sobretudo pela língua deles, não é novo. Já houve muitos outros estudos sobre essa língua indígena (Lapenda, 1968; Costa, 1993; Cabral, 2009 e outros), porém esses estudos abordaram a língua Yaathê apenas do ponto de vista da fonologia, morfologia e antropologia. Desses estudos observou-se que, segundo Costa (1993), a identidade étnica desse povo é preservada e definida a partir de dois aspectos da cultura: a língua e a religião. (CAVALCANTE, 2013, p, 1-2)

Quando estive, em 2013, na aldeia, percebi alguns desses fatos que mencionei no trabalho anterior acima. O primeiro deles é a importância da língua, ligada à espiritualidade. Acreditam que seu Deus a deu para que eles pudessem se comunicar com Ele; sem ela não haveria a religião indígena, ritual restrito, o qual não deve ser comentado com os não-indígena. Além disso, ser bilíngue é uma necessidade atual nas suas relações externas à aldeia. É importante nos questionar o porquê do ritual indígena começar a partir de uma missa, assim como o porquê da presença de uma igreja católica no centro da aldeia, algo que também ocorre com os povos Potiguara.

Conforme Gaspar (2009), o Ouricuri ocorre anualmente de setembro a novembro e não é permitida a entrada de não-indígenas (mesmo que tenha algum parentesco com algum Fulni-ô, é preciso ser filho de pai e mãe Fulni-ô para ser reconhecido por eles como um membro do grupo), pois esse território é sagrado, sendo localizado a 5 km da aldeia principal. Para lá, eles levam quase todos seus pertences e seus animais domésticos. O pouco que é contado sobre o ritual é que os homens dormem em um local reservado, chamado de Juazeiro Sagrado, onde as mulheres não podem entrar. Durante o evento, as rivalidades entre eles são deixadas de lado e relações sexuais e ingestão de bebidas alcoólicas são proibidas. Até os anos trinta, do século passado, as casas desses indígenas eram construídas de palha de ouricuri. Atualmente suas habitações são individuais, de taipa ou alvenaria. E, na aldeia, as ruas não são calçadas, mas há escolas, posto de saúde e uma igreja no centro do povoado.

Os fulni-ô vivem do artesanato, agricultura, pesca e caça e alguns trabalham na cidade, porém sofrem preconceito em meio à comunidade urbana. Como afirmação da sua cultura, eles se manifestam através da dança e da música, o Toré, a mais tradicional, e a Cafurna, que tem influências do coco de roda.

Essas práticas são traços da identificação desses povos. Pensar a identificação do indígena, como veremos nas análises, não se dá apenas em oposição ao branco, mas também a outros grupos indígenas (ORLANDI, 2008). A este respeito, assevera Rodrigues (1986, p. 17):

Os índios do Brasil não são um povo: são muitos povos, diferentes de nós e entre si. Cada qual tem usos e costumes próprios, com habilidades tecnológicas, atitudes estéticas, crenças religiosas, organização social e filosofia peculiares, resultantes de experiências de vida acumuladas e desenvolvidas em milhares de anos. E distinguem-se de nós e entre si por falarem diferentes línguas.

Como aponta o autor, a diferença principal entre os diferentes grupos indígenas é a história de cada grupo; a utilização de adereços, artesanatos e tecnologias diferentes, além das crenças, lendas, religiosidade, contato com os brancos. Assim, são diferentes maneiras de simbolizar, produzir sentidos e se subjetivar.

Já os Potiguara, grupo indígena do nordeste brasileiro, originalmente, falavam o tupi, língua da família linguística Tupi-Guarani, mas, atualmente, falam apenas o português e tentam reaprender a falar sua língua nativa. De acordo com o Instituto Socioambiental, tal grupo se autodenomina Potiguara, remetendo ao significado de “comedores de camarão”, mas também são chamados de índios de Acajutibiró e de São Miguel.

Constituem 32 aldeias nos municípios paraibanos de Baía da Traição, Rio Tinto e nas áreas urbanas de Baía da Traição e Mundo Novo. Em 2004, os Potiguara eram 10.837 pessoas, segundo estimativa da FUNASA. A forma de seu aldeamento tem uma estreita relação com os processos históricos dos aldeamentos fomentados pelos missionários, já em contato com os não-indígenas há mais de 500 anos, pois a história de contato com os brancos (portugueses, franceses e holandeses) se deu desde o início do processo colonizador.

A economia deles, hoje, é baseada na agricultura, pesca, caça, coleta de crustáceos e moluscos, e na criação de animais. Em quase todas as aldeias desse grupo há uma Igreja e seu santo padroeiro, assim, sempre há festas dos santos católicos. Quando há missa, cerca de uma vez ao mês, os indígenas a frequentam e também participam das festividades dos padroeiros de cada povoado. As igrejas foram construídas no centro do povoado indígena e as residências paralelamente, onde moram, sobretudo, a família nuclear e monogâmica, próximo de escolas e mercearias.

Assim como em grande parte dos grupos indígenas nordestinos, o toré é um importante ritual sagrado, com o intuito de eliminar as diferenças internas do grupo e celebrar a amizade com os demais povos. No caso dos Potiguara, tal ritual é entendido, por eles, como uma dança que os permite aprender que fazem parte da coletividade e da tradição, possuindo, portanto, um passado em comum. As letras das músicas cantadas no toré evocam, além da religiosidade católica, o mar, os eventos como guerras, seres da natureza e as figuras míticas. Diferentemente de outros grupos, este não faz seu ritual com bebida extraída da jurema, mas com catuaba e cachaça. E, durante esse evento, há rezas católicas, discurso do cacique e a dança propriamente dita, além de divisão de carne e bebida.

Do ponto de vista linguístico, o trabalho de Simas (2013) faz uma análise da educação e política linguística entre os Yanomami e os Potiguara, estabelecendo a diferença que o primeiro grupo, que é bilíngue e trabalha nas escolas com o ensino da língua yanomami e o português brasileiro, e os Potiguara, que tentam ensinar a língua “morta”, o tupi, aos estudantes, para que assim voltem a ter, de fato, uma língua nativa.

Na pesquisa de Simas (2013), o foco são as políticas linguísticas adotadas em uma escola Potiguara. Para tanto, a autora explorou certos dados etnográficos sobre esses sujeitos, apontando algumas informações, como por exemplo: como as aldeias são urbanas, existem moradores não-índios nelas; do ponto de vista escolar, a educação potiguara tem dificuldades com a implementação da língua nativa, por ser uma língua morta, o tupi. A escolha por essa língua se deu por motivações da questão identitária indígena e não por razões sociocomunicativas, revelando falta de planejamento na implementação da língua. Outros problemas são a falta de material didático, os professores não são proficientes na língua indígena ensinada, além desses povos terem a língua portuguesa como língua materna há, pelo menos, 250 anos.

Tal grupo chama a língua Tupinambá de língua Tupi, assim como também é nomeada no senso comum. Essa nominação é reatualizada devido ao curso dessa língua ministrado pelo professor da Universidade de São Paulo – USP, Eduardo de Almeida Navarro. Com esse curso, segundo Simas (2013), a presença dessa língua segunda (L2) na escola tem melhorado a autoestima dos Potiguara, apesar de apresentar alguns problemas.

Passamos agora às análises dos discursos dos indígenas.

As análises: a visão indígena sobre língua e povo indígena

Dividiremos essas análises em dois blocos. O primeiro diz respeito às sequências discursivas do livro Índio na visão dos índios: os Fulni-ô; o segundo bloco tratará do livro dos Potiguara.

BLOCO 1

SD1. Ainda hoje nos índios mesmos passando por mudanças convivendo com os brancos nos não esquecemos nossas danças nossos costumes e nossos idiomas que é muito importante para todos nós índios.

SD2. Vejo o índio como uma criação divina de (Eedjadwa, Deus) com forças, culturas e poder de criar verdadeiras verdade. O índio e um ser puro verdadeiro sem maldade sem ambição sem mentiras. Somos forças viva que talvez nos não sabemos a grande importância.

temos sabedoria de viver e fazer viver

O que (Eedjadwa Deus) nós dar quando digo que sabemos fazer viver o que (Eedjadwa Deus) nos dar me refiro a nossa cultura nossa língua o Yaathe e a fé que viver até hoje, é nosso poder de viver. Para ser índio não é preciso andar pintado ou trajado é preciso mostrar sua língua Iaathe.

SD3. Eles botaram a santa em um lago onde os índios gostavam de pescar. Quando viram pensaram que era uma pessoa, foram até ela, agarraram-na e decidiram leva-lá para a aldeia. À noite, um branco tirou a imagem às escondidas e voltou a coloca-la na lagoa. Depois disso se repetir por vários dias um índio contou o acontecido para o padre que lhe disse: “Meu filho isto significa que a Santa está pedindo terra” Foi assim que os brancos tomaram nossas terras.

Na SD1, o sujeito-indígena reconhece que há mudanças na história e que apesar disso eles não esquecem a cultura, a dança, o idioma. Os usos linguísticos no plural, “nossos idiomas”, “nós índios”, produzem um efeito de que o sujeito-indígena fulni-ô está falando não só do seu próprio grupo étnico, mas dos indígenas em geral. Sobre essa identificação como indígena, podemos pensar conforme Orlandi ([1998] 2006, p. 204): “[...] a identidade é um movimento na história”, portanto, ser indígena hoje é bem distinto do que já foi um dia.

Nessa SD, é marcada a importância da língua. Para os Fulni-ô, como comentamos na seção anterior, ter a língua indígena ainda é um dos critérios para ser considerado fulni-ô. A língua, para o sujeito-indígena fulni-ô, é, então, um bem crucial na identificação do seu povo, ela precisa ser protegida. Na SD2, há outros dizeres sobre o sujeito-indígena fulni-ô e, por conseguinte, sobre a língua yathee.

Em SD2, o indígena é uma criação de Deus, sendo assim, é “um ser puro verdadeiro sem maldade sem ambição sem mentiras”. Nos deparamos com um imaginário indígena sobre si mesmos, semelhante ao pensamento do bom selvagem de Rousseau. São dizeres que reforçam a imagem do indígena como puro e passivo. Já para pensar a relação de religião e língua, o sujeito-indígena fala que “para ser índio não é preciso andar pintado ou trajado”, “é preciso mostrar sua língua iaathe”, ou seja, para ser Fulni-ô, é necessário saber a língua indígena. Língua ligada à fé, possibilidade de “poder viver”.

A partir dessas sequências discursivas representativas do livro sobre o Fulni-ô, entende-se que é preciso resistir aos sentidos dominantes sobre o que é ser índio; não é preciso ter corpo pintado ou se vestir como tal, mas é preciso ter a língua. No caso desse grupo indígena, preservar a língua nativa, enquanto a língua do Estado, na qual são escritas as leis, apresenta mais prestígio social, é uma forma de resistência.

A língua de madeira é, para Gadet e Pêcheux (2010), a língua de dominação, pela qual o Estado absorve e anula as diferenças, produzindo, por sua vez, uma política de invasão que se efetiva pelo poder do Estado. Portanto, o Yaathê representa uma língua de resistência, na qual se pode produzir sentidos outros, que escapam à determinação da língua oficial do Estado. No entanto, para os Fulni-ô, em alguns momentos, na luta por direitos e visibilidade, eles se submetem àquela língua do Estado e produzem discursos no português brasileiro, pela necessidade de diálogo com os não-indígenas.

Na SD3, o sujeito-indígena narra como “eles”, “os brancos”, tomaram as terras indígenas. Nesses discursos, grande parte das vezes, o invasor não é denominado explicitamente, é da ordem do já-sabido, dos não-ditos. Já a santa, falada pelo indígena, é Nossa Senhora da Conceição, padroeira dos fulni-ô, a qual tem uma igreja no centro da aldeia em sua homenagem. Inscrito no discurso indígena há uma crítica ao papel da Igreja na dominação indígena. A interferência cristã na vida indígena, em muitos casos, funciona como um “apagamento do índio da identidade cultural nacional [...] escrupulosamente mantido durante séculos. E se produz pelos mecanismos mais variados, dos quais a linguagem, com a violência simbólica que ela representa, é um dos mais eficazes” (ORLANDI, 2008, p. 66).

Como aponta a autora, são diferentes as formas de violência simbólica à cultura indígena. No caso dos Fulni-ô, a questão mais latente é sobre a terra e a imposição da religião europeia, com investidas ao apagamento da língua nativa, o que, nesse caso, não foi tão eficaz, pois a língua nativa sobrevive. Essas foram estratégias de silenciamento do indígena e apagamento da sua existência na constituição identitária do povo brasileiro, mas que não se deram sem resistências, já que há, como afirma Pêcheux (2009), possibilidade de falhas na interpelação ideológica.

Essas sequências discursivas analisadas se inscrevem em uma rede de dizeres do/sobre os indígenas, isto é, em uma formação discursiva (FD), que aqui a nomearemos como FD indígena. Este conceito é retomado por Haroche, Pêcheux e Fuchs ([1971] 2011, p. 27) como “[...] aquilo que pode e deve ser dito [...] a partir de uma posição dada”.

Em uma determinada conjuntura sócio-histórica, os sujeitos discursivos inscrevem seus dizeres nas FDs, retomando já-ditos do interdiscurso (PÊCHEUX, [1975] 2009), a rede do dizível, fazendo com que seus dizeres produzam sentidos a partir da sua posição e da identificação com sentidos que podem e devem ecoar dentro daquela FD. No entanto, essas formações discursivas são heterogêneas, abrigando diversas posições e dizeres presentes em outras FDs, como veremos mais à frente.

Partimos agora para o segundo bloco, no qual analisaremos alguns dizeres inscritos no livro Índios na visão dos índios: PotiguaraIX.

BLOCO 2

SD4. Foi com a Internet que conseguimos estar mais conectados com a sociedade envolvente, tomando conhecimento de tudo que acontece fora de nossas aldeias, em uma amplitude maior do que a televisão e o rádio nos proporcionam. Com esse meio de comunicação é que também foi possível estabelecer uma relação mais próxima com outros povos indígenas e, dessa forma, fortalecer o nosso movimento. [...] Muitos podem pensar que o contato com as novas tecnologias, entre elas a Internet, nos torne “menos índios”, e também nos distancie da nossa cultura, mas a meu ver isso não ocorre. Esse pensamento existe porque as pessoas ainda têm em mente o estereótipo de índio do passado, aquele que andava nu e vivia no mato, e nos ver hoje, com as mudanças pelas quais passamos, incomoda.

SD5. Durante muitos anos ficamos na esperança de conseguir falar novamente nossa língua ancestral, até que o sonho se tornou realidade... Eduardo Navarro de Almeida [...] nos auxiliou na revitalização de nossa língua Tupi. [...] Interessei-me mais e mais pelo Tupi e consegui aprender o básico. Não quis ficar só para mim. [...] Estou muito feliz por poder partilhar o que aprendi e ao mesmo tempo aprender novamente com todo o alunado.

A língua Tupi é parte indispensável da nação Potiguara e espero que todos os parentes do nosso povo guerreiro se interessem pela recuperação da nossa língua original e de toda a cultura com carinho e amor, porque um povo sem língua e sem cultura não é um povo.

SD6. Nossa pintura retrata a história Potiguara. Com ela trazemos no corpo a marca de nossos antepassados. É um meio de nos revestirmos de nosso valor cultural. Todos os momentos em que vamos realizar o ritual Toré existe a preparação anterior onde fazemos uso do Jenipapo e do Urucum para cobrirmos o nosso corpo. [...] Para nós Potiguara estar com nossos corpos pintados é muito importante para realizarmos nosso ritual.

Na SD4, o sujeito fala sobre a internet na vida indígena, seus benefícios e o que o não-indígena pensa a respeito disso. Com ela, “foi possível estabelecer uma relação mais próxima com outros povos indígenas”. Através dela, como afirma o sujeito-indígena, eles puderam se comunicar com outros povos mais distantes e se organizarem em grupos na internet, produzirem material e informações sobre sua história. Assim, pode-se perceber que a internet funciona como um acontecimento nos discursos indígenas, propulsionando a produção de discursos, de sentidos outros e outras maneiras de subjetivação desses sujeitos.

A utilização da internet, para o indígena, produz uma imagem do outro sobre si de que eles podem se tornar “menos índios”, e também se distanciar de sua cultura. No entanto, para o sujeito-indígena, isso acontece porque as pessoas têm um imaginário sedimentado sobre o que é ser indígena, e esse imaginário produz uma imagem do indígena baseada em estereótipos, já que índio “anda nu e vivia no mato”. Há, sempre, uma luta ideológica a fim de romper com o imaginário do senso comum sobre esses povos.

A SD5 traz à tona a questão da língua indígena e sua relação nos discursos dos Potiguara. Para esse sujeito, sempre foi esperança de o povo indígena falar novamente a língua ancestral. Até que, para eles, por meio do curso de um professor não-indígena da USP, eles puderam “revitalizar” a língua Tupi. No entanto, esse sujeito aprendeu o básico e ensina para seus alunos, o que não garante a revitalização da língua TupiX.

Simas (2013), como exposto na primeira seção, refletiu sobre a problemática do ensino da língua tupi como L2. Trata-se de uma língua “morta”, ensinada por alguém que não é falante nativo da língua e que apresenta poucos materiais didáticos para seu aprendizado. Além disso, o Tupi jesuítico ensinado nas escolas potiguara é bem distinto da antiga língua desse povo, assim como o é do nheegatu, língua geral amazônica, também de origem do tronco Tupi-Guarani. Na continuidade, ao falar sobre a língua indígena, o sujeito-indígena diz: “A língua Tupi é parte indispensável da nação Potiguara e espero que todos os parentes do nosso povo guerreiro se interessem pela recuperação da nossa língua original e de toda a cultura com carinho e amor, porque um povo sem língua e sem cultura não é um povo”.

Observa-se, nos dizeres da SD5, a presença de algumas contradições constitutivas de todo discurso. Neste caso, ao mesmo tempo em que o sujeito afirma que a língua indígena é indispensável para qualquer povo, inclusive os Potiguara, ele admite que eles ficaram muitos anos sem sua “língua ancestral”. Mesmo que houvesse a memória da língua, os Potiguara passaram mais de 250 anos sem contato com a língua Tupi. Da mesma maneira que o Português de Portugal não é o mesmo do Português brasileiro pois há outra memória, as palavras ganham uma historicização diferente, produzindo sentidos outros em função das novas condições de produção; o Tupi “revitalizado”, hoje ensinado nas escolas indígenas, também não é a mesma língua ancestral. Uma língua que não é mais a língua nativa, mas uma outra, que significa diferente, e faz com que o povo Potiguara também a simbolize de um outro modo.

Ao finalizar, o sujeito-potiguara, para enfatizar a importância da língua, diz que “um povo sem língua e sem cultura não é um povo”. Ao se referir a essa língua como a língua nativa, ele põe em xeque a sua imagem como indígena e dos demais indígenas que não a têm mais. Faz-se necessário questionar: Existe um povo sem língua? E sem cultura? Pelos não-ditos, sabe-se que o povo a que o sujeito se refere são os indígenas, ou outros grupos indígenas que não eles. Assim, mais uma vez, este dizer reafirma a língua nativa e a cultura indígena como índices de identificação como indígena, ou a sua existência como sujeitos. Há outras maneiras da memória da língua se inscrever no discurso, por exemplo, no caso dos Fulni-ô, que ao nativizar palavras do português, a utilizam com os fonemas disponíveis na língua yaathê.

Conforme Cabral (2009), palavras são nativizadas quando vindas de outras línguas, são adaptadas naquela que a recebeu, pois houve uma necessidade de incorporar aquelas ao léxico da língua receptora. Esse processo linguístico, além de demonstrar a forma como a memória da língua portuguesa se inscreve no yaathê, também aponta para uma maneira dos sujeitos resistirem na língua, apesar da determinação ideológica que fez com que esses povos tivessem que utilizar tais palavras. Sobre a questão da língua indígena, Simas (2013, p. 208) aponta que “[...] antes a pressão era para deixar de usar a língua indígena e depois para voltar a usá-la”, portanto há uma cobrança mais externa, dos não-indígenas, que afeta a imagem do indígena sobre si mesmos.

Um outro exemplo de como a exigência da língua ancestral indígena como um critério de identificar(-se) como um indígena afeta as práticas indígenas é observada nos Xucuru, de Pesqueira/Pernambuco, que falam o Português, mas têm um trabalho de resgatar palavras da sua antiga língua nativa, em uma lista de vocábulos, mas que ainda não sabem o que fazer com elas. Este projeto consiste numa política de resgate da memória da língua, que contribui com afirmação indígena.

Em SD8, são trazidas a pintura e o corpo indígena na manifestação do Toré e, ao se falar dessas práticas, são trazidas as práticas indígenas que asseveram, para o indígena, o que é ser Potiguara: “Nossa pintura retrata a história Potiguara. Com ela trazemos no corpo a marca de nossos antepassados.” Com este enunciado, o sujeito-indígena traz uma memória indígena que se materializa na crença das marcas dos antepassados ganharem corpo no presente. A pintura sobre o corpo e o Toré são gestos significantes que constituem marcas identificatórias do que é ser indígena.

Sobre a questão de corpo e memória, Hashiguti (2008, p. 110) diz:

O corpo é um corpo de memória que determina e é determinado, no sentido de que é tanto corpo como espessura material do/no discurso, sendo assim materialidade determinante por sua visibilidade, quanto corpo de/na memória discursiva que constitui seus gestos, sendo assim corpo determinado. A memória de que se trata está no discurso que olha e diz o corpo e no gesto que o corpo realiza. A memória está no corpo e no olhar para ele, o que significa que ele é sempre corpo de memória.

A pintura indígena no corpo, os gestos da dança e o próprio corpo produzem uma memória do que é ser índio, assim como o olhar do outro sobre os indígenas. A cada vez que tais práticas são retomadas, quando um ritual desses acontece, reproduz-se uma memória sobre aquele corpo indígena. Ou seja, o corpo é também um lugar de produção de sentidos, pois por ele próprio são materializados sentidos, seja pela pintura corporal, pelos rituais de dança ou luta, ou pelas incisões de penas e furos no corpo, que, na visão deles, como aponta Freyre (2004), afastariam as influências malignas que sempre estão à espreita para tomar esses corpos vulneráveis. Por outro lado, no imaginário social, há uma imagem cristalizada do indígena pautada em suas características corpóreas - cabelo preto liso, pele avermelhada, despidos, etc - que remetem aos sentidos sobre uma figura estática na História.

Ao trazer esses dois blocos de análise, observamos o funcionamento da memória e do imaginário no discurso do/sobre o indígena. Há nele uma disputa de significação sobre o que é ser indígena, constituindo o imaginário sobre esses povos brasileiros. Este imaginário sobre os sujeitos-indígenas traz, a partir de já-ditos, uma rede de dizeres e sentidos estereotipados sobre estes povos como pessoas atrasadas, ingênuas, que não fazem parte da sociedade, entre outros. Sentidos que se atravessam em seus próprios dizeres, para refutá-los, afastar-se deles ou ressignificá-los. Enunciados que circulam no que poderiam chamar de FD não-indígena, mas que, pela característica heterogênea e porosa das FDs, faz-se presente também na FD indígena.

Lutas de nunca acabar

Aqui trouxemos algumas questões de pesquisa realizadas entre os anos de 2013-2017 em torno do discurso do sujeito-indígena, mas que ainda se fazem necessário discutir e dar continuidade nas reflexões sobre imaginário, língua, luta e resistência indígena. Compreendemos que os corpos indígenas desde sempre estiveram em luta, para sobreviver e para defender a terra e a ancestralidade de uma brasilidade silenciada.

A partir do nosso objeto de análise, os recortes dos livros escritos pelos indígenas, observamos que o discurso do indígena traz em si o atravessamento de outros dizeres, os sentidos sedimentados sobre o que é ser indígena na sociedade brasileira são postos em discurso também, seja para refutá-los ou para dizer de outros modos possíveis. Isto é, no discurso dos indígenas aqui analisados, não há uma distinção rígida entre o “discurso de” e o “discurso sobre”. No entanto, a institucionalização de sentidos a partir do discurso sobre não se dá apenas pelo discurso jornalístico, mas também pelo discurso cotidiano, aquilo que se repete no imaginário do brasileiro, no caso o não-indígena.

Ademais, esta discussão alerta a necessidade de pensarmos a constituição da brasilidade a partir da perspectiva indígena e colocar em evidência que a luta indígena não cessa, sendo atravessada por um racismo de Estado “[...] que uma sociedade vai exercer sobre ela mesma, sobre seus próprios elementos, sobre seus próprios produtos, o da purificação permanente, que será uma das dimensões fundamentais da normalização social” (FOUCAULT, [1975/1976] 2010, p. 52-53)

Em As formas do Silêncio, Eni Orlandi (2013) nos diz do silenciamento dos sentidos e, por conseguinte, de sujeitos também. É necessário ouvir essas vozes que ecoam no social, refletir sobre a significação do silêncio e do silenciamento de alguns povos, assim como ouvir o alerta da indígena Txai Suruí (2021) no COP26: “The Earth is speaking. She tells us that we have no more time”.

Referências

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Como citar este artigo

Cavalcante, A. Uma luta que não cessa: sujeito-indígena, língua, memória. Fragmentum, Santa Maria, p. 65-86, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219468961. Acesso em: dia mês abreviado. ano.


I Agradeço a leitura e discussão de Gustavo Pinheiro que muito contribuiu na escrita deste escrito. Agradeço também o incentivo a esta volta ao meu trabalho de mestrado.

II A apresentação de Txai Suruí na COP26 pode ser acessada no seguinte link https://www.youtube.com/watch?v=1gnUH7HNBAU, acesso em 23/12/21. Parte de sua fala foi traduzido pela indígena e publicado na sua página do Instagram, https://www.instagram.com/txaisurui .

III Disponível em:< https://www.indioeduca.org/>. Acesso em: 29 dez. 2021.

IV Projeto de emenda Constitucional (PEC) que consiste numa revisão da decisão da demarcação das terras indígenas do poder executivo para o legislativo. Ao longo da história do Brasil, nos deparamos com diversos projetos e emendas com vistas a tomar (mais uma vez) as terras indígenas, como ocorre hoje com o Projeto de Lei 490.

V A pesquisa de Iniciação Científica e a Dissertação de Mestrado foram orientados pela Prof. Dr. Evandra Grigoletto.

VI Outras informações em: <https://pib.socioambiental.org/pt/povo/fulni-o>. Acesso em: 03 ago. 2016.

VII Desde os primeiros anos de colonização, havia a política de aldeamento indígena, que consiste no agrupamento de índios que, pela legislação, tem sua “liberdade” garantida. No entanto, o que se observou é que os aldeamentos facilitavam a busca de mão-de-obra para os colonos e jesuítas, além da interferência cultural e religiosa.

VIII Os estudos indigenistas e as fontes pesquisadas discutem que, com a exceção das línguas indígenas no Maranhão, o Yaathê é a única língua indígena nordestina (SILVA, 2019). Há, pelo menos, 4 línguas indígenas no Maranhão, como guajajara, guaja; tembé e ka’apor, entre Maranhão e Pará, todas da família linguística Tupi.

IX Disponível em: <http://www.thydewa.org/downloads/potiguara.pdf>. Acesso em: 22 dez. 2021.

X Reaprender a língua indígena não consiste numa prática aleatória, mas é uma sugestão no Referencial Curricular Nacional para as Escolas Indígenas, do MEC, como uma política de afirmação da identidade dos povos indígenas. (CAVALCANTE, 2016)