Universidade Federal de Santa Maria

Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 99-115, 2022

DOI: 105902/2179219468957

e-ISSN 2179-2194

Submissão: 04/01/2022 • Aceito: 13/05/2022

Um livro para começo de conversa

Um enunciado

Por uma continuação necessária

Um livro e um enunciado em nossa formação social1

A book and a statement in our social formation

Vanise MedeirosI

I Universidade Federal Fluminense, UFF, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

RESUMO

Neste artigo, parto do livro Água de barrela, de Eliana Cruz, um romance inscrito na formação discursiva da descolonização, para promover uma reflexão sobre um enunciado, corrente em nossa sociedade, que sustenta e justifica desigualdades sociais profundas. Inscrito na formação discursiva da branquitude, trata-se de um enunciado que institucionaliza certos sentidos e encobre outros. Pode ser submetido a leituras outras que foram impedidas de circular. É o que o livro põe em cena. Neste exercício, retorno à virada do século XIX para trazer três posições que permitem pensar na ancoragem, nos efeitos e nos silenciamentos de tal enunciado.

Palavras-chave: Enunciado, trabalho, Água de barrela, Análise de discurso materialista.

ABSTRACT

This article starts from the book Água de barrela, by Eliana Cruz, a novel inscribed in the discursive formation of decolonization, to promote a reflection on current statements in our society, that sustains and justifies deep social inequalities. Inscribed in the discursive formation of whiteness, these statements institutionalizes certain meanings and covers up others. They can be subjected to other readings that have been prevented from circulating. That’s what the book brings into play. In this exercise, I return to the turn of the 19th century to bring three positions that allow us to think about the anchoring, the effects and the silencing of such statements.

Key-words: Statement, work, Água de barrela, Materialist discourse analysis.

A noção de memória foi e permanece ainda aqui

um investimento interpretativo de grande alcance (...)

Não há memória sem história.

(COURTINE, 2008, p. 17)

Um livro para começo de conversa

O que trago com este artigo são algumas reflexões a partir de leituras que tenho feito e de inquietações que dizem respeito a desigualdades sociais profundas na nossa sociedade. Se as perguntas que nos fazemos são sempre perguntas do presente, este presente não é sem fios entrecortados de memória, sem história, como nos fala Courtine. É sobre tais fios que me debruço ao eleger um certo enunciado corrente na nossa atualidade: Eu trabalhei, eu venci. Parto de um romance emblemático, Água de Barrela, de Eliana Alvez Cruz.

Vencedor, em 2015, do prêmio Oliveira Silveira, da Fundação Palmares2, Água de Barrela é um romance memorialístico que narra a saga de uma linhagem escravizada. Pelo horror da captura e do aprisionamento de corpos em uma aldeia africana e da travessia dos antepassados da autora que ao Brasil chegam em 1850 – ano da lei Eusébio de Queiroz que abole o tráfico de escravizados e que resulta na intensificação desta prática dantesca tornada ilegal e ampliada em sua ilegalidade –, somos levados a percorrer a vida de vários membros desta família. Vamos conhecer de perto suas mulheres – sim, as mulheres negras são centrais. Elas rememoram uma história que tem sido silenciada, nos contam de uma ancestralidade; por elas, somos conduzidas a conhecer os homens da família. Mas não somente, por elas nos vemos diante um já sabido: da exploração dos corpos negros e da força de seu trabalho; das crueldades praticadas por homens brancos. Por elas, acompanhamos as escaramuças dos homens e mulheres brancos para se manter na posição de domínio.

Com efeito, esse romance percorre o universo de desumanização que as práticas escravagistas, inscritas na formação ideológica da colonização, teceram e marcaram de forma constitutiva (MODESTO, 2020) nossa sociedade, nossas relações, nosso imaginário. Vamos rever o pós-abolição e a condição de abandono e desamparo dos sem direito à terra, sem direito ao produto de seu trabalho, sem direito à própria vida. Esse romance também nos joga diante de diferentes posições discursivas relativas às formas de lutar, de resistir, de tentar sobreviver e também de morrer. Diria tratar-se de um livro de memórias que se abre com fotos de: Damiana; Pedro, irmão de Adônis; Damiana e João Paulo.

Figura 1: foto de Damiana

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)

Figura 2: foto de Pedro, irmão de Adônis

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)

Figura 3: foto de Damiana e João Paulo

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)

São fotos posadas em estúdio de fotógrafo. Fotos que acenam e engendram para uma outra memória de futuro (MARIANI, 1998): não aquela dos escravizados servindo de brinquedo para brancos, não aquela indicadora de uma subalternidade, mas aquela em que qualquer um que tivesse direito à vida na sociedade pudesse fazer. Uma foto que traz a pose, as vestes, o enquadramento, na qual são naturalizadas as fotos de brancos. No livro, ficamos sabendo da história dessas fotos que funcionam como gestos simbólicos de inscrição em uma posição possível na sociedade que não a do sofrimento. Após as fotos, eis uma árvore genealógica.

Figura 4: foto da árvore genealógica

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)

A partir de folhas mais altas, aparecem os nomes mais ancestrais. São dois nomes em língua de territorialidade africana, Olufemi+Ayoola, em galhos finos, frágeis. E outros vão lhe sucedendo no movimento descendente para outras folhas. Aparecem, em seguida, como diria Guimarães Rosa (1970), os binominados – Ekin (Firmino) e Ewa (Helena) –, os que perderam o direito aos seus nomes e foram renomeados pelos senhores de escravos. Outros nomes vão surgindo no movimento descendente para galhos cada vez mais resistentes até ladearem um tronco robusto. A árvore evoca uma descendência que segue em busca de enraizamento; que segue em busca do direito ao solo e às raízes. A árvore se faz entranhas no livro.

Ao final do romance, novas surpresas. Outras fotos significativas:

Figura 5: foto do final dos anos 30

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)

Uma foto de Damiana e Martha ao lado de outra descendente dos escravizados no final dos anos 30 do século XX. Assim como naquelas fotos que abrem o livro, algo permanece: a altivez dos corpos. E algo muda. Vestes, cenário e ambiência humildes não mais espelham a posição do branco nas fotos do século XIX, mas aquela possível aos negros no século XX. Deslocamento preciso que dá conta de deslocamentos em que não se alteram as condições sociais. Em seguida, uma foto da casa de engenho: elemento representativo da sociedade colonialista e escravagista.

Figura 6: foto da Casa do engenho Nossa Senhora da Natividade

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)

Da casa, vamos para a foto do fio de contas de Xangô que pertenceu a Martha: um fio de contas que traz consigo a travessia e mostra a força da resistência e a capacidade de resiliência dos povos que para aqui vieram. Contas que tecem o fio da vida.

Figura 7: fio de contas de Xangô

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)

Ao fio de contas segue a foto de dois objetos: “Bonecos de porcelana de Nunu, xícara e pires de porcelana de Celina. Duas das únicas quatro peças do enxoval de casamento que não foram quebradas por Nunu”, nos diz a legenda (CRUZ, 2018, p. 313). Foto de objetos que não se perderam enunciando as perdas. Concretude simbólica de objetos outros, de haveres que lhes foram interditados.

Figura 8: dois objetos

Fonte: Água de barrela (foto do livro feita por Vanise Medeiros)

Em seguida, cartas: “Cartas de Mary Santos Silva. Descendente dos Tosta que escreveu para Celina” (CRUZ, 2018, p. 315). Cartas com palavras sublinhadas, com riscos, rasuras, correções, parênteses. Com letra espremida para caber na folha o tanto que cabe e o tanto que não cabe na vida.

No corpo do livro, esbarramos ainda em notas de pé de página. São onze notas com funcionamentos distintos: trazem fontes bibliográficas, indicam pontos clandestinos de chegada de barcos com escravizados, explicam termos em iorubá trazendo um pouco desta cultura, descrevem instrumentos de suplício, recuperam nomes antigos de lugares, traduzem termos quimbundos, assinalam nome de general francês, portam explicações para formas populares de nomear, por exemplo, menstruação, explanam com vagar o que vem a ser pedra de raio em um cântico de Xângo e, em outra nota, indica-se o modo como tal pedra foi revelada aos mortais. O romance traz termos, cantos em línguas outras. No caso do cântico a Xangô, temos o canto e sua tradução lado a lado, funcionando como modo de dar a saber de línguas.

Fotos, árvore, cartas, notas de rodapé indiciam e metaforizam os muitos espaços de sua inscrição na sociedade: no corpo e nas margens da sociedade. São lugares outros, fendas abertas para dar a saber de sua historicidade, de sua descendência, de suas lutas, de suas formas de resistência, de sua resiliência. A trajetória de uma linhagem africana que para cá foi trazida e submetida à escravidão não se esgota, pois, na narrativa.

Com efeito, o livro produz conhecimento sobre línguas, hábitos, mitos, religiosidades, saberes vários de uma parcela maior da nossa sociedade: aquela que adveio com escravizados. Água de Barrela, romance histórico que se impõe como patrimônio, narra uma história sabida que já deveria ser divulgada há mais de um século; uma história que se tenta silenciar em nosso país. O livro se inscreve na formação discursiva da descolonização. Seu recorte temporal começa em meados, como já dito, do século XIX, e percorre o momento pós-abolição até os dias atuais. Sua forma de escrita não linear ilumina um passado que não é passado; embaralha temporalidades embaralhadas; expõe mazelas de uma sociedade adoecida em função de uma diáspora racial e social. Seu título, Água de Barrela, já denuncia o engodo, a falácia da democracia racial. Observe-se o que se lê nas páginas iniciais do livro:

Sentada na cadeira de rodas, ela [Damiana] olhava aquela gente ao seu redor. (...)

Seus olhos também já não eram os mesmos, mas registravam muito bem o brilho das roupas imaculadas naquele dia de festa. Aqueles moços e moças que ali estavam, certamente, nunca tinham visto uma barrela – aquela água com cinzas de madeira que se colocava na rouparia para branqueá-la. (...)

No fundo achava que o que se queria mesmo era que tudo fosse mergulhado nessa água que branqueia. As roupas, as vidas, as pessoas... Todos mergulhados na água de barrela. Riu intimamente, imaginando a cena. (...) (CRUZ, 2018, p.15)

Eis ainda nota da autora após o sumário:

Não queremos mais aquilo que embranquece a negra maneira de ser

Não queremos mais o lento e constante apagamento da cor de terra

molhada, suada, encantada...

Queremos os remendos dos panos, nas tramas dos anos

sofridos, amados....

E acima de tudo,

apaixonadamente vividos. (CRUZ, 2018, p.11)

Água de barrela e árvore genealógica: a primeira, metaforizando e denunciando o desejo do branco de espelho; a segunda, metaforizando a luta de mulheres negras e homens negros por suas raízes, por terra, por vida. Árvore da vida.

Um enunciado

Há muito o que interessa neste livro. Há muito o que ouvir e aprender. Quero registrar agora algo que nele há a exaustão e algo que não há. Há a exaustão o trabalho do homem negro e da mulher negra. Geração após geração a exploração do trabalho braçal não cessa, não diminui, não resulta em melhoria de vida, em condições dignas de moradia, em escolarização; o que assistimos é um deslocamento para outras formas de exploração atravessadas por discursos de caridade, por tratamentos falaciosos de suposta igualdade (“é como se fosse uma filha...”). Como deveríamos saber, não há nada na nossa sociedade que tenha sido feito sem o labor do negro ou da negra e, no entanto... o que não ocorre no livro é a possibilidade de um enunciado como Eu trabalhei, eu venci.

É sobre ele que quero começar uma reflexão. Este é um enunciado corrente na nossa sociedade atualmente. Ele indica e justifica o mérito por se ter o que se tem; um mérito por se ser quem se é. Trata-se de um enunciado sustentado pela posição discursiva da meritocracia. Tomei como exercício pensar este enunciado a partir de algumas posições discursivas inscritas na nossa formação social já na virada do século XIX, isto é, tomando o momento propalado como de libertação dos escravizados. Vou neste exercício apontar três posições para pensar a ancoragem e os efeitos de tal enunciado.

Uma primeira posição seria aquela herdeira da casa grande, aquela cuja riqueza advém de herança de bens, terras, valores, saberes, estéticas e cujos direitos e méritos decorrem de tais transferências de poder. Tal enunciado não me parece se colocar para esta posição que chamo de herdeira, afinal trabalho aí não é valorizado; aí se desfruta do trabalho do outro e se naturaliza o que se tem. Um enunciado que teríamos seria: Eu herdei; é meu!

Uma outra posição seria a do colono que aqui chegou para promover o embranquecimento. Este ganha ou não terras e labora a terra que vai se tornando sua. Julgo que tal enunciado comparece com vigor nesta posição, afinal, tal posição se orgulha por ter trabalhado, se orgulha por seu avô ter construído algo a partir do qual ele desfruta, seja trabalhando ou não. Aí temos: Eu trabalhei, eu venci.

Uma terceira posição seria aquela dos escravizados e dos libertos, cuja história lemos em Água de Barrela. Sua porta de entrada não foi a mesma dos colonos; seu trabalho não adentra o imaginário da nossa formação social produzindo os mesmos sentidos positivos que o trabalho feito por colonos. Aí tal enunciado também não se sustenta.

O ponto que quero começar a investigar é o da memória discursiva que suporta o discurso da meritocracia. Me pergunto pelas condições de produção de emergência da possiblidade deste enunciado e me parece que ele se ancora na ilusão do trabalho dignificado de uns – que venceram – em oposição ao trabalho silenciado e desprestigiado de outros. Cito Pêcheux (2011, p. 147), para explicar meu caminho de leitura e lembrar que é preciso: “[...] sublinhar o papel do interdiscurso dentro da análise interfrástica (ou intradiscurso), tanto quanto a importância da análise léxico-sintática enunciativa na apreensão do interdiscurso como corpo de traços que formam memória.”.

Tomemos então o enunciado Eu trabalhei, eu venci. Como analistas de discurso, sabemos que o discurso se assenta na materialidade da língua, e, como Pêcheux nos lembra em vários de seus textos, é preciso atentar para as relações no intradiscurso, é preciso atentar para a sintaxe. Em Eu trabalhei, eu venci, temos um enunciado composto de duas orações coordenadas unidas por uma vírgula que se abre para uma oração conclusiva que pode ser assim parafraseada:

Eu trabalhei, eu venci.

Eu trabalhei, por isso eu venci.

Se fizermos o exercício de negarmos a primeira oração, seremos instados a negar a segunda:

Eu trabalhei, eu venci.

Eu não trabalhei, eu não venci.

Noutras palavras: não posso ter como negativa correlata a Eu trabalhei, eu venci enunciados com a negativa incidindo somente em uma das orações.

Eu trabalhei, por isso eu não venci.

Eu não trabalhei, por isso eu venci.

Eu trabalhei, por isso não venci e Eu não trabalhei, por isso eu venci não tecem uma rede parafrástica com Eu trabalhei, eu venci. Com efeito, Eu trabalhei, eu venci impede que se possa dizer que se venceu sem trabalho. Aí reside, como sabemos, o discurso da meritocracia. Merecem os que trabalham.

O mesmo vai ocorrer com a relação explicativa, correlata da conclusiva:

Eu venci, porque eu trabalhei.

Eu trabalhei, por isso eu venci.

O equívoco está na formulação que alinhava uma relação explicativa ou conclusiva entre vencer e trabalhar. Ora, como sabemos, mulheres negras e homens negros trabalharam e muito. O livro Água de barrela não é o único a comprovar isto. O trabalho de negros e negras na construção e na possiblidade de nossa sociedade é inegável. E o fizeram em condições piores que as de qualquer colono, que as de qualquer ser humano. Por que não venceram? O que desfaz a lógica perversa deste enunciado? A resposta talvez esteja naquilo que é silenciado no enunciado, nas paráfrases impedidas de circular que podemos ler abaixo:

Eu venci, porque recebi fruto do meu trabalho; porque recebi terras; porque era branco; porque tive direito a saúde, educação, a salário...

Eu não venci, porque não recebi nenhum fruto do meu trabalho; porque não recebi terras; porque não era branco e porque não tive direito à saúde, à educação, ao salário...

Eu trabalhei, por isso eu venci ou Eu venci, porque trabalhei silencia as condições de produção de trabalho para uns e outros. Faz parecer que uns trabalharam e outros não. Faz parecer que todos tiveram e têm as mesmas condições de trabalho. Faz parecer que todo e qualquer trabalho é dignificado na sociedade. Faz apagar também as condições de não trabalho para uns e o modo de significar tais condições; faz apagar o desemprego. Enfim, há muito outros fios a serem puxados a partir de tal enunciado3.

Eu venci, porque eu trabalhei é, pois, um enunciado da branquitude; é o brado branco diante do medo branco de qualquer possibilidade de alçada social daquele que não é branco. Este não é um enunciado possível em Água de Barrela; um livro que narra a história dos tantos muitos que morreram trabalhando sem nunca ter direito a nada. Aí, o enunciado que se apresenta é: Eu trabalhei e muito, mas fui impedido de ter um mínimo de retorno do meu trabalho.

Por uma continuação necessária

É constitutivo das formações sociais a circulação de enunciados que operam na produção e sedimentação de sentidos. Orlandi (1993) principia seu artigo “Vão surgindo sentidos”, em que tece uma reflexão teórica vigorosa acerca do que vai indicar como discurso fundador, nos falando de enunciados fundadores. A autora nos lembra que são espaços de identificação histórica, que constroem um imaginário social, que aproveitam fragmentos do já instalado, de retalhos, e instauram sentidos onde outros já se instalaram. Ela nos alerta que são as imagens enunciativas que funcionam e que enunciados servem como argumento. Não são alheios às formações ideológicas, às formações discursivas, às posições discursivas. O que a autora nos fala sobre enunciados fundadores pode ser aqui trazido para pensar enunciados vários que circulam na sociedade produzindo efeitos sobre sujeitos e para nosso enunciado em questão.

Ferreira (1993), neste livro que Orlandi organiza e que nos fala de enunciados e discursos fundadores, se volta para a compreensão do funcionamento do enunciado clichê em seu funcionamento corrosivo e em seu esvaziamento, enfraquecimento. A autora nos chama atenção para o que vai indicar como automatismos desencadeados pelo clichê. Estes não podem ser associados à “[...] falta de tempo para pensar ou a uma ausência de pensamento próprio por parte do sujeito” (Id., ano, p. 72), mas sim como envolvendo “[...] mecanismos sociais, históricos e culturais, presentes nos modos de sustentação do status quo que se realizam pela reiteração de enunciados” (Id., ano, p. 72). E indica que: “O efeito de impregnação de tais automatismos funciona como a possibilidade de institucionalização dos sentidos, fazendo-os corresponder, ética e moralmente, às expectativas construídas pela sociedade”. (FERREIRA, 1993, p. 72). No entanto, como lembra Ferreira (1993, p. 73), tais enunciados, “[...] enquanto construção de aparência linguisticamente cristalizada, encobre[m] sob sua forma sentidos que não se encontram petrificados”.

Estas são reflexões importantes para nosso enunciado em foco: Eu trabalhei, eu venci. Este atua como espaço de identificação; projeta-se no imaginário social funcionando como argumento para certas posições discursivas que asseguram práticas que operam com a desigualdade social. Inscrito na formação discursiva da branquitude, institucionaliza sentidos e encobre outros sentidos. Pode ser esvaziado; pode ser submetido a leituras outras que foram impedidas de circular. É o que o livro Água de barrela põe em cena. É preciso investir em tais enunciados e na análise do que engendram, de onde se ancoram e o que silenciam no espaço de disputas várias em nossa sociedade. Como um ponto provisoriamente final e para efeito de fechamento, trago uma citação de Pêcheux (1990, p. 8), sobre a reflexão necessária acerca da relação da língua com a ideologia:

Através das estruturas que lhe são próprias, toda língua está necessariamente em relação com o “não está”, o “não está mais”, o “ainda não está” e o “nunca estará” da percepção imediata: nela se inscreve a eficácia omni-histórica da ideologia como tendência incontornável a representar as origens e os fins últimos, o alhures, o além e o invisível.

Referências

COURTINE, J.-J. Discursos sólidos, discursos líquidos: a mutação das discursividades contemporâneas. In: SARGENTINI, V.; GREGOLIN, M. do R. (Org.) Análise do discurso: heranças, métodos e objetos. São Carlos: Claraluz, 2008.

CRUZ, E. A. Água de barrela. Rio de Janeiro: Malê, 2018.

FERREIRA, M. C. L. A antiética da vantagem e do jeitinho na terra em que Deus é brasileiro (o funcionamento discursivo do clichê no processo de constituição da brasilidade). In: ORLANDI, E. (org.) Discurso fundador. Campinas: Pontes, 1993.

GUIMARÃES ROSA, J. Uns índios. In: GUIMARÃES ROSA, J. Ave palavra. Rio de janeiro: Livraria José Olympio, 1970.

MARCEL, P., PERINI, R., MEDEIROS, V. Notas sobre o verbete trabalhador essencial: língua, pandemia, luta de classes. In: PETRI, V. et al. Ditos e não-ditos: discursos na, da e sobre a pandemia. Campinas: Pontes Editores, 2021.

MARIANI, B. O PCB e a imprensa: os comunistas no imaginário dos jornais 1922-1989. Rio de Janeiro: Revan; Campinas: UNICAMP, 1998.

MODESTO, R. Os discursos racializados. Revista da Abralin, [s.l.], v. 20, n. 2, p. 1-19. 2021.

PÊCHEUX, M. Delimitações, inversões, descolamentos. Caderno de Estudos Linguísticos, Campinas, n. 19, 1990.

PÊCHEUX, M. Leitura e memória: projeto de pesquisa. In: ORLANDI, E. Análise de discurso: Michel Pêcheux. Textos selecionados. 2. ed. Campinas: Pontes Editores, 2011.

Como citar este artigo

MEDEIROS, V. Um livro e um enunciado em nossa formação social. Fragmentum, Santa Maria, p. 99-115, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219468957. Acesso em: dia mês abreviado. ano.


1 Uma primeira versão deste artigo foi apresentada no evento III Colóquio Internacional Museus, Arquivos e Lugares de Memória no/do espaço urbano, em agosto de 2021.

2 Um prêmio instituído para valorização e visibilidade das manifestações culturais da população afro-brasileira (https://biblioo.info/eliana-alves-cruz-a-voz-da-liberdade/).

3 Neste sentido, ver Marcel, Perini, Medeiros (2021).