Universidade Federal de Santa Maria

Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 87-97, 2022

DOI: 105902/2179219468938

e-ISSN 2179-2194

Submissão: 30/12/2021 • Aceito: 11/09/2022

A transcendência dos trópicos no pensamento indígena1

Transcendence of the tropics in indigenous thinking

Livia Penedo JacobI

I Universidade do Estado do Rio de Janeiro - Fundação de Amparo à Pesquisa

do Estado do Rio de Janeiro (FAPERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo

O texto investiga o impacto da literatura e outras produções indígenas sobre o conceito de “brasilidade” e de “cultura brasileira”, a partir da análise de obras escritas por intelectuais indígenas. Se durante muitas décadas as culturas originárias permaneceram ignoradas pelos grandes intérpretes do Brasil, no século XXI já não é possível ignorar essas diferenças. O tema da “literatura nos trópicos”, por sua vez, que foi pensada por Silviano Santiago, Antonio Candido, Luiz Costa Lima, ganha novos olhares e interpretações com a intervenção das produções nativas e dos estudos antropológicos, conforme atesta estudo recente de Luís Augusto Fischer.

Palavras-chave: literatura indígena, história do pensamento social brasileiro, intérpretes do Brasil

Abstract

In this essay I reflect on the impact of Brazilian Indigenous literature and arts on the concept of “Brazilian culture”, based on the analysis of Indigenous theories. For many decades native cultures were ignored by the intelligentsia, but in the 21st century this attitude is no longer possible. In this sense, a recent book by Luís Augusto Fischer shows how the theme of “literature in the tropics”, traditionally debated by Silviano Santiago, Antonio Candido, and Luiz Costa Lima, may be read under new prospect thanks to native thinking and anthropological studies.

Keywords: Indigenous literature, Brazil interpreters, Brazilian socio-political theories

Publicado originalmente em 2020, o texto intitulado “Ailton Krenak, um intelectual além dos trópicos”2 obteve um número de acessos acima da média mensal alcançada pelo suplemento literário que o divulgou. É que o tema em pauta, a literatura indígena brasileira, vinha recebendo especial atenção naquele ano, em partes devido às associações imediatas entre a pandemia então em curso e o discurso ecológico tradicionalmente proferido pelos povos nativos. Não coincidentemente, o começo da década foi marcado por uma indicação de Ailton Krenak para o Prêmio Jabuti pela obra Ideias para adiar o fim do mundo (2019) e sua respectiva condecoração com o Prêmio Juca Pato de intelectual do ano, reconhecimento até então nunca concedido a um indígena.

Se no referido ensaio busquei explicar como o pensamento “selvagem” de Ailton Krenak nos ajuda a questionar a noção de brasilidade difundida pelos clássicos intérpretes de outrora – Sílvio Romero, Euclides da Cunha, Sérgio Buarque de Holanda, Caio Prado Jr, para citar alguns – objetivo, no presente texto, analisar a mesma questão sob uma ótica mais ampla, refletindo sobre outras produções nativas. Interessa, por fim, chamar a atenção para a influência desse movimento sobre os estudos literários recentes, a exemplo de Duas formações, uma história (2021) de Luís Augusto Fischer, obra que procura afinar a análise literária brasileira a pesquisas recentes de áreas diversas, aí incluindo-se os estudos antropológicos de Eduardo Viveiros de Castro.

Antes de abordar as atuais incursões da indigeneidade sobre o pensamento social brasileiro e seus possíveis influxos na gênese de novas percepções sobre o Brasil, julgo válido enfatizar que entre o final do século XIX e início do século XX, nossa intelligensia se preocupou mais em refletir sobre as subjetividades nacionais do que em entender o país a partir do contexto latino-americano. Houve, porém, exceções, como Manoel Bonfim e seu A América Latina: males de origem (1905), análise à época progressista porque adaptava conceitos europeus então dominantes – como o darwinismo social – a um olhar mais socialista dos fatos. Tentando entender a elite do atraso, Bonfim denunciou o conservadorismo latino-americano dos donos do poder, herança cultural daquilo que denominava “parasitismo social” ibérico.

Esses estudos, apesar de seu valor histórico, estavam imbuídos pela ideia então corrente de que existia um “espírito nacional”, marcado pelo “caráter de uma coletividade”. Tal interpretação, mais ou menos vigente até meados do século XX, refletiu-se no desenvolvimento dos estudos literários, que tradicionalmente adotaram divisões disciplinares fundamentadas em critérios nacionais, a exemplo da própria ideia de “Literatura Brasileira”. Trata-se de modelo que teve e tem aspectos negativos e positivos, segundo análise de Jobim (2013), sendo muitas vezes contestado, na contemporaneidade, devido à emergência e consolidação dos blocos transnacionais.

Foi somente nos anos 1970 que o tema das fronteiras, finalmente visto sob o prisma literário, recebeu um olhar mais cuidadoso a partir da obra de Silviano Santiago, no ensaio “O entrelugar do discurso latino-americano”, publicado em Uma literatura nos trópicos (1978). Santiago refletiu, então de forma inédita, sobre o impacto da dizimação massiva dos povos nativos na produção literária latino-americana, visto que o contexto histórico e social do “descobrimento” interferiu na produção cultural posterior da região. De forma visionária, o teórico conclui pelo fracasso do projeto colonial, o que teria possibilitado que a América Latina viesse a dar sua maior contribuição ao mundo ocidental: a destruição dos conceitos de unidade e pureza.

Desse modo, Silviano Santiago antecipou a tese do hibridismo cultural latino-americano divulgada por Nestor García Canclini em 1989. Na obra Culturas Híbridas, o platense sustenta que uma das contradições latino-americanas foi a ocorrência do Modernismo – enquanto movimento artístico intelectual –, sem que tenha havido uma real modernização industrial da região durante o mesmo período. Devido a essa condição, os países latino-americanos seriam “resultado da sedimentação, justaposição e entrecruzamento de tradições indígenas (sobretudo nas áreas mesoamericana e andina), do hispanismo colonial católico e das ações políticas educativas e comunicacionais modernas” (GARCÍA CANCLINI, 2008, p. 73).

Deslocando tal percepção para os estudos literários, Silviano Santiago declara, em seu supracitado texto, a falência de um método de pesquisa universitária dominante à época da publicação do seu livro: as pesquisas que conduzem ao estudo das fontes e influência. Para o teórico, esse discurso ressalta as produções colonialistas em detrimento das buscas “quixotescas” dos artistas latino-americanos, reduzindo a produção local à condição de obra “parasita”, ou seja, uma obra que se nutre de outra sem nada lhe acrescentar de novo. Difícil, portanto, precisar a importância dessa teoria que, além de desvincular a dependência econômica da dependência cultural, enalteceu as artes dos trópicos, indiscutivelmente inquietantes, antropofágicas e digressivas.

A condição econômica latino-americana e seus reflexos nos estudos literários nacionais também foram matéria de questionamentos em “Literatura e subdesenvolvimento” (1989), de Antonio Candido. No ensaio, o teórico relaciona a consciência do subdesenvolvimento na literatura à Segunda Guerra Mundial, havendo, contudo, sinais de sua percepção desde a ficção regionalista brasileira de ١٩٣٠. Candido aponta, ainda, outros elementos não mencionados por Santiago, como os altos índices de analfabetismo no mundo latino-americano, além do precário contexto da Península Ibérica, quando comparada a outros países do continente europeu, onde as taxas de leitura e os mercados editoriais são mais fortes.

Por outro lado, Candido realiza o exercício de examinar as influências externas – antes criticado por Santiago –, mas não da forma outrora prescrito pelos estudos acadêmicos. De maneira crítica, o teórico investiga a interferência da cultura de massa, de aspecto meramente comercial, que julga caótico e pernicioso em um meio de maioria iletrada. Conclama, desse modo, que a literatura latino-americana seja vigilante e consciente de sua condição de estar sob a égide e o controle das potências econômicas, para que a produção de massa não se torne instrumento de manipulação das artes locais.

Em posição que contraria o texto de Silviano Santiago, Antonio Candido afirma que as literaturas latino-americanas e as da América do Norte são “galhos das metropolitanas”. Retomando uma tese que o perseguiu na construção de toda a sua obra, a da “formação da literatura brasileira”, Candido defende que a condição de dependência cultural só pode ser superada com a produção de obras influenciadas não por modelos estrangeiros imediatos, mas por exemplos nacionais antecessores. Nesse sentido, relembra a importância de Machado de Assis, cujo valor, ele diz, não foi devidamente reconhecido no Ocidente, pela posição de pouca relevância cultural conferida à língua portuguesa.

Por fim, não poderia deixar de citar a obra de Luiz Costa Lima, notadamente Pensando nos trópicos (1991), na qual defende o abandono do modelo de literatura nacional em prol da reflexão teórica sobre o ficcional. Além de demonstrar que o critério da nacionalidade vale sob o viés político sem necessariamente se sustentar no campo da cultura, o teórico também afirma que pertencer a uma área periférica, estando subordinado a uma língua de circulação menor, significa confrontar-se com a desconfiança e o preconceito dos acadêmicos metropolitanos. Ou seja, Costa Lima denunciou, ao longo de sua produção crítica, as limitações impostas pela “brasilidade”, conceito academicamente excludente, tanto do ponto de vista interno quanto externo.

Ignorada pelos estudos críticos mencionados, a literatura indígena começa a ser escrita no contexto brasileiro a partir dos anos 1980, alcançando maior visibilidade somente em tempos mais recentes. Essas produções, conforme atesta Graça Graúna (2013), se caracterizam pela presença de denúncia política, pela ligação dos povos originários com a terra e pelas fortes marcas de oralidade. Não causa espanto que haja certas semelhanças entre essa literatura nativa produzida no Brasil e as publicações assinadas por povos originários de outros territórios. Cito, a esse respeito, estudo de Ruffo (MACFARLANE; RUFFO, 2016), segundo o qual a literatura indígena canadense pode ser teoricamente dividida em duas principais vertentes – a de viés político e a de viés mítico. Ou seja, as convergências entre as conclusões da pesquisadora potiguara e do pesquisador anishinaabe são claras.

Trata-se, portanto, de literaturas que buscam afirmar as diferenças dessas populações, duvidando da noção de “cultura nacional” e de “subdesenvolvimento”, pois, afinal, “[...] a periferia não está apenas no Hemisfério Sul, não é dado territorial, mas refere-se às margens da sociedade” (BASTOS, 2020, p. 684). Desse modo, a desterritorialização promovida pelas obras nativas abrange a política e a própria noção de arte: 1) por um lado, promove-se a ideia de que os povos não estão separados por fronteiras nacionais, integrando a “terra”, que pode ser, por exemplo, “Pachamama”, para os povos andinos, “Abya Yala”, para os kunas ou “Mikinoc Waajew” para os anishinaabes; 2) a escrita produzida pelos escritores nativos não se encaixa nos padrões ocidentais, contestando-os quanto à estética, classificação em gêneros e até mesmo comercialização das obras (JACOB, 2020), levando-nos de volta à pergunta tantas vezes debatida pelos estudos teóricos: “afinal, o que é literatura?”.

Sobre o primeiro aspecto enumerado, isto é, a terra – e não o país – enquanto identidade cultural, me parece relevante lembrar que a presença dessas populações no território é anterior ao estabelecimento das fronteiras nacionais. A fala da escritora e artista da etnia puri Aline Rochedo Pachamama relembra que a exclusão desses povos dentro do conceito de “cidadania” marca sua relação com o Estado e os demais brasileiros: “Consolidou-se uma hierarquia científica no campo da História, atribuindo, direta ou indiretamente, às mulheres e também aos Povos Originários, a invisibilidade e um lugar de inferioridade, passividade e exclusão” (SOUZA et al., 2019, p.111). A par dessa rejeição ocidental às alteridades, prevalece, entre os indígenas, uma oposição à ideia de Estado, organização política marcada pela separação de poderes, em contraste com as sociedades tradicionais, indivisas, conforme atestou Pierre Clastres (1974).

Sobre a desterritorialização literária, nota-se uma despreocupação, por parte dos escritores indígenas, em se “encaixar” nos gêneros prescritos pelos manuais de escrita ocidental, optando, pelo contrário, por uma maior liberdade. Essa fenômeno se explica pela oralidade que subjaz como alicerce para essa escrita, de modo semelhante ao que se observa nas sociedades nativas norte-americanas, por exemplo, conforme documentado por Roemer (1983). Ignorando o conceito de ficção, os escritores indígenas veem suas obras como transposição, para a escrita, de memórias ancestrais, colhidas a partir da tradicional arte de contar histórias. Essa opinião da mencionada autora Aline Rochedo encontra respaldo em testemunhos de outros intelectuais indígenas que compõem o livro Literatura indígena brasileira contemporânea (2018), merecendo destaque a fala de Márcia Kambeba: “Os escritos indígenas existem para esse fim, deixar aos novos uma continuidade de legado. Existem para que lembrem que a cultura é um tesouro que não se pode deixar roubar ou perder” (DORRICO et al., 2018, p.44).

E tendo em vista que essas obras não se classificam a partir dos gêneros literários estabelecidos pela crítica ocidental, alguns autores – a exemplo de Olívio Jekupe – vêm intitulando suas produções como “literatura nativa brasileira”. Ou seja, não se trata mais de uma literatura estritamente brasileira, pois, afinal, antes de pertencer ao país, pertence à etnia de origem e, de maneira mais generalizada, às culturas originárias, lembrando-nos que “a identidade plenamente unificada, completa, segura e coerente é uma fantasia” (HALL, 2003, p. 13). Parece-me relevante destacar novamente que muitos desses povos habitam territórios que extravasam as fronteiras nacionais, como os ticunas (Brasil, Colômbia, Peru), os guaranis (Bolívia, Brasil, Paraguai, Argentina), os tucanos (Brasil e Colômbia), os macuxis (Brasil, Guiana e Venezuela) etc, surgindo, dessa realidade, uma desfronteirização.

Em suma, a literatura indígena se opõe de forma deliberada às instituições ocidentais, contradizendo as expectativas sociais sobre o “índio”, que, na verdade, sendo “o outro”, não deixa nem de ser nativo, brasileiro e cidadão da aldeia global. Há, vale notar, um claro espelhamento dessas características nas produções visuais desses povos, conforme atestam Elemar Favreto e Paulo Neves (2020, p.110) quando analisam os quadros do escritor e artista macuxi Jaider Esbell, que “[...] nas suas ações em defesa da arte indígena contemporânea, promove uma política de desestabilização do status quo, buscando um outro estilo, não ditado pela indústria”.

Mas, vale dizer, esse movimento não ocorre sem contradições. Alçado a maior destaque da 34ª Bienal de São Paulo (2021) após a aquisição de algumas de suas obras pela Galeria Pompidou, de Paris, Jaider Esbell foi encontrado sem vida em seu apartamento à época da exposição. Sua morte, de causa ainda não esclarecida, revela que a arte indígena segue incompreendida por uma sociedade que vê apenas mercadoria onde outras populações enxergam transcendência. Essa diferença está bem explicada em A queda do céu, pelas palavras do ianomami Davi Kopenawa: “Nossos verdadeiros bens são as coisas da floresta, suas águas, seus peixes, sua caça, suas árvores, seus frutos. Não são as mercadorias! É por isso que quando alguém morre logo damos um fim em todos os seus objetos” (KOPENAWA; ALBERT, 2016, p.410).

Também a literatura é entendida pelos indígenas como uma extensão da floresta, constituindo-se uma construção espiritual que visa civilizar os homens brancos, conforme revela a tese de doutorado de Daniel Munduruku, posteriormente publicada no formato livro, intitulada O caráter educativo do movimento indígena. Diversas vezes vencedor do Prêmio Jabuti, Munduruku nos ensina:

Que o movimento indígena educou após ser educado parece ser uma verdade incontestável. Certamente é perceptível que muito do que acontece hoje dentro da sociedade brasileira - em termos educacionais, políticos e sociais – é fruto da sociedade civil organizada (MUNDURUKU, 2012, p. 222).

A literatura indígena, portanto, espelha esse “caráter pedagógico” do movimento político indígena, tanto porque visa educar as novas gerações de crianças brancas sobre a diversidade cultural brasileira, como por sua proximidade com a oralidade. É que as narrativas orais tradicionais não se emolduram em parâmetros ocidentais que ditam o que vem ou não a ser literatura. A leitura cuidadosa de histórias nativas evidencia, com frequência, uma fusão entre o humor, a botânica, as cosmogonias, a pedagogia, além de outros saberes. Nesse mesmo sentido, o sagrado e o profano parecem se fundir, visto que tudo está permeado por uma sacralidade criadora, expressa pelas narrativas etiológicas, isto é, histórias que tratam sobre o surgimento do mundo e das coisas, não raramente incorporadas pela literatura escrita por esses povos. Ou seja, os fazeres nas comunidades originárias são rizomáticos, não se restringindo a um objetivo específico e não se submetendo à divisão de “campos do conhecimento”, tão cara às culturais ocidentalizadas.

Se essas especificidades foram, quando não ignoradas pelos intérpretes da “cultura brasileira”, reduzidas à folclorização, a literatura indígena se estabelece não apenas como contraponto ao mainstream, levando, finalmente, à compreensão de aspectos culturais difundidos por nosso território geográfico e abordados por autores consagrados, a exemplo de Guimarães Rosa. Cito, a esse respeito, o recente Duas formações, uma história (2021) de Luís Augusto Fischer, obra cuja principal tese consiste em revisar os pontos falhos do clássico Formação da literatura brasileira: momentos decisivos (1959), de Antonio Candido. Fischer sustenta, em oposição a Candido, que houve dois pontos de elaboração literária no Brasil: 1) uma alicerçada no meio urbano (e este reconhecido como exclusivo por Candido), tendo em Machado de Assis seu marco inaugural; e 2) outra, com base no relato rural, do qual Guimarães Rosa seria o máximo representante.

Sem adentrar nos pormenores dessa teoria, chamo atenção para a valorização que Fischer imprime à contribuição indireta do antropólogo Eduardo Viveiros de Castro aos estudos literários. O teórico percebe a importância das pesquisas de Viveiros de Castro para compreender que defender a inexistência dos indígenas em nosso território é uma forma de “[...] negar umas tantas evidências óbvias da forte permanência de práticas sociais e de visões de mundo de origem ameríndia” (FISCHER, 2021, p.327). Interessa particularmente a Fischer aquilo que o supracitado antropólogo nomeou “perspectivismo ameríndio”, ou, mais recentemente, “multiculturalismo”, certa característica recorrente em diversas cosmogonias dos povos da Amazônia. Dando a palavra ao autor:

Tipicamente, os humanos, em condições normais, veem os humanos como humanos e os animais como animais; quanto aos espíritos, ver estes seres usualmente invisíveis é um signo seguro de que as ‘condições’ não são normais. Os animais predadores e os espíritos, entretanto, veem os humanos como animais de presa, ao passo que os animais de presa veem os humanos como espíritos ou como animais predadores: “O ser humano se vê a si mesmo como tal. A lua, a serpente, o jaguar e a mãe da varíola o veem, contudo, como um tapir ou um pecari, que eles matam”, anota Baer (1994, p. 224) sobre os Matsiguenga. Vendo-nos como não-humanos, é a si mesmos que os animais e espíritos veem como humanos (CASTRO, 2016, p. 350).

Observando, nas obras produzidas por autores indígenas, a recorrência de personagens transmorfos, nomeei esse fenômeno “metamorfoses ameríndias” (JACOB, 2020) em filiação à produção científica de Eduardo Viveiros de Castro, embora consciente de que a palavra “ameríndio” não seja considerada adequada, dada à remissão imediata à colonização. Em suma, muitas cosmogonias nativas se baseiam na impermanência da natureza, uma percepção de mundo que acaba por ser espelhada nas literaturas nativas, nas quais não faltam personagens que se metamorfoseiam em espíritos, elementos da natureza, animais ou híbridos; ou, ainda, vice-versa, criaturas não humanas que se transformam em gente.

Também seguindo o lastro teórico de Eduardo Viveiros de Castro, Fischer observa uma perceptível referência à indigeneidade no conto “Meu tio, o iuaretê”, de Guimarães Rosa, considerando-o ponto alto da produção sertanista, que ganharia novos contornos na contemporaneidade de Alberto Mussa (Meu destino é ser onça, 2009), Wilson Bueno (Mar Paraguayo, 1992), Paulo Scott (Habitante irreal, 2011) etc. Mesmo não se aprofundando sobre o legado de Ailton Krenak, Olívio Jecupe, Daniel Munduruku, Graça Graúna ou Eliane Potiguara, Duas formações, uma história se destaca por apresentar outras maneiras de pensar o Brasil. Enxerga-se que nosso universo (e por que não dizer, nosso país?) está povoado por outros sujeitos além dos humanos e, entre os humanos, também compomos uma fauna múltipla, variada, diversa.

Notório, portanto, que são muitos os Brasis e que a brasilidade não é estanque. Trata-se, pelo contrário, de categoria prismática, de definição tão ampla quanto são os sujeitos por ela englobados. Na medida em que a intelectualidade indígena transcende os trópicos, supera-se, por tabela, a ideia de que as artes das antigas colônias são galhos ou reproduções, exaltando-se, em contrapartida, tudo o que nos é inerente. Nesse sentido, os escritores indígenas representam, para além de seus povos, aqueles que rejeitam por completo o Estado, ignorando as outras “aldeias”. Nesse caso, a brasilidade, arrisco dizer, deve existir mesmo para aqueles que a ignoram, visto que germina da ancestralidade, da anterioridade ao próprio país; encontra-se, pois, justificada pela precedência e se alicerça no direito à autonomia. Em outras palavras, a ameaça à existência desses indivíduos e de suas culturas simboliza a ruína de toda a coletividade, para além de qualquer fronteira.

REFERÊNCIAS

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Como citar este artigo

JACOB, L. P. A transcendência dos trópicos no pensamento indígena. Fragmentum, Santa Maria, p. 87-97, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219468938. Acesso em: dia mês abreviado. ano.


1 Em consonância com a portaria 206/2018, informamos que a presente pesquisa foi realizada com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.

2 Texto originalmente publicado na Revista Suplemento Araçá, 6ª edição, em 23 de novembro de 2020. <https://suplementoaraca.com.br/2020/11/23/capa-6a-edicao-artigo-ailton-krenak-um-intelectual-alem-dos-tropicos-por-livia-jacob/> Acesso em: 05 set.2022.