Universidade Federal de Santa Maria

Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 131-149, 2022

DOI: 105902/2179219468334

e-ISSN 2179-2194

Submissão: 31/10/2021 • Aceito: 14/05/2022

Introdução

2. História, memória e discurso literário em Desde que o samba é samba

3. Literatura, cultura e religião: reescrituras da história

Conclusão

Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins

Integrated by exclusion: blackness and mobility in Desde que o samba é samba, by Paulo Lins

Paulo Cesar Silva de OliveiraI

I Universidade do Estado do Rio de Janeiro, UFRJ, Rio de Janeiro, RJ, Brasil

Resumo

Este artigo é um estudo do romance Desde que o samba é samba, de Paulo Lins, e toma o campo literário como espaço de discussão das formações ideológicas em torno da contribuição negra, particularmente do samba, para nossa formação cultural. A integração dos negros em uma sociedade de classes opõe ordem social moderna e ordem estamental, conforme Florestan Fernandes (2007). Neste sentido, o diálogo com o pensamento social toma o romance de Lins como locus privilegiado da discussão sobre as modernidades negras no Brasil e o discurso literário como uma arena de múltiplas narrativas postas em debate.

Palavras-chave: Desde que o samba é samba. Pensamento social. Modernidades negras. Teoria.

Abstract

This article is a study of the novel Desde que o samba é samba, by Paulo Lins, and takes the literary field as a space in the discussion of the ideological formations around the black contribution, particularly of the samba, to Brazilian cultural formation. The integration of blacks into a class society opposes modern social order and state order, according to Florestan Fernandes (2007). Therefore, the dialogue with Brazilian social thinking takes Lins’ novel as a privileged locus in the discussion on Brazilian black modernities and the literary discourse as an arena in which multiple narratives clash.

Keywords: Desde que o samba é samba. Social thinking. Black modernities. Theory.

Introdução

O romance Desde que o samba é samba, de Paulo Lins (2012), representa ficcionalmente a trajetória de um grupo de artistas negros que empreenderam na cidade do Rio de Janeiro, nas primeiras décadas do século XX, uma revolução poético-musical e estética que inicialmente marcou a cena carioca e fluminense e se transformou em pouco tempo em um dos símbolos mais potentes da chamada identidade cultural nacional.

O romance de Lins é uma ficção que toma por base personagens históricas como os sambistas Ismael Silva e Brancura, protagonistas da trama e arautos de uma ideia artística cujo percurso se confunde com as lutas culturais, sociais, políticas e econômicas da chamada Primeira República, República Velha ou República das Oligarquias (1889-1930) e da modernidade pretendida após a chegada de Getúlio Vargas ao poder, cunhada pela historiografia como Revolução de 30.

Ismael Silva (Milton de Oliveira Ismael Silva) é considerado o artista mais importante no desenvolvimento da arte do samba e de sua trajetória na ordem cultural da Segunda República, também conhecida como a Era Vargas (1930-1945). Brancura (Silvio Fernandes) foi um sambista representativo da margem e sua jornada expõe as antinomias de uma sociedade recém-saída da escravização, cujos negros, vítimas preferenciais dos descasos da jovem república, foram lançados em um processo de integração social que se constituía pelas vias da exclusão. Ambas as personagens são centrais para o desenvolvimento da linha narrativa do romance de Lins e protagonizam uma espécie de saga dos marginalizados no campo cultural.

Já na primeira cena da obra, além dos protagonistas Ismael Silva e Brancura, a narrativa apresenta aos leitores algumas personagens-chave, dentre elas, a prostituta Valdirene e seus amantes: o português Sodré e o malandro Valdemar. Também somos apresentados a Tia Amélia, mãe de Valdemar. Estamos em meados da década de 1920, no bairro do Estácio, Rio de Janeiro, em que está prestes a se desenrolar uma tragédia de sangue, passional, entre o “português” Sodré e o jovem Valdemar, pela exclusividade da prostituta Valdirene, em um conhecido bar da antiga Cidade Nova. O embate foi planejado pelo malandro Brancura, que explorava a prostituição na antiga Zona do Mangue, pois Valdirene era sua “protegida” e amante. Brancura planejara vingar-se de Sodré, que, ou morreria nas mãos de Valdemar ou seria preso caso assassinasse o jovem. O plano contava com a cumplicidade de Valdirene, porém, frustrando as expectativas de Brancura e dos leitores, chega ao local Tia Amélia, mãe de Valdemar. Informada da contenda, ela evita a tragédia e conduz o filho de volta à casa. O leitor vai aos poucos se inteirando do papel de algumas personagens da enorme galeria de sujeitos que o romance contempla, situando-se ainda no espaço geográfico e nos ambientes de uma região crucial para a compreensão ampliada e renovada dos eventos culturais que marcaram a cidade do Rio de Janeiro e a cultura brasileira nas primeiras décadas do século XX.

Como dito, o tempo histórico situa o leitor na década de 1920, logo após a reforma urbana do prefeito Francisco Franco Pereira Passos (1902-1905), também conhecida como “Bota-abaixo”, um conjunto de iniciativas como demolições, expulsões e expropriações que redefiniram a área do centro do Rio recém-republicano, capital e principal cidade do país. O acelerado desenvolvimento urbano carioca ocorreu pari passu com os fluxos migratórios que impulsionaram a ideia das reformas que, como de praxe, atingiriam profundamente as camadas médias baixas e baixas da população. Higienizar, demolir, sanear, organizar e, principalmente, “civilizar” a capital da República, livrando-a da má fama de cidade insalubre e acometida por doenças como a dengue, a leptospirose, a malária, dentre outras, foram as palavras de ordem do prefeito. Para a consumação do projeto, foram alargadas, modernizadas e prolongadas as até hoje essenciais e principais vias urbanas da cidade, como as Avenidas Rio Branco, Mem de Sá, Marechal Floriano e Passos (batizada em homenagem ao alcaide). Alguns morros, como o do Castelo e o do Senado foram removidos, aplainados. Ruas, como a antiga Matacavalos, hoje Riachuelo, foram reurbanizadas; cortiços e casas de pequenos comércios foram expropriados, enfim: muito do que impedia o avanço civilizatório de Pereira Passos foi removido da paisagem carioca. Cerca de 700 a 3 mil construções foram demolidas .

O deslocamento forçado, provocado pelas ações de Pereira Passos, levou populações de negros (e) pobres para os subúrbios e para as encostas dos morros, próximos ou distantes do Centro. Na área central da cidade, o Morro do Livramento, onde nasceu Machado de Assis; o Morro da Providência e, no caso da ambientação geográfica do romance de Paulo Lins, o Morro do São Carlos, foram algumas áreas densamente ocupadas. A grande diversidade racial, cultural e religiosa dessas populações contou com a presença marcante das “tias” baianas, um grupo de mulheres vizinhas ou com laços de amizades, a grande maioria negras, que exerceram um papel vital na formação cultural do samba. Além delas, retirantes fugindo das secas do Nordeste ou da Guerra de Canudos; judeus asquenazes e europeus oriundos de áreas empobrecidas do velho continente formaram na região um caldo étnico-cultural heterogêneo, um mosaico social na cidade que se queria moderna. Outra amostra desse ambiente variado pode ser encontrada no romance O preto que falava iídiche, de Nei Lopes (2018), cuja trama central é a história do amor entre o inteligente preto Nozinho e a judia branca Rachel, contada por um narrador homodiegético que assim define sua tarefa:

E de tudo isso me veio o gosto, o prazer de estudar a condição humana. De estudar o comportamento dos grupos sociais em função do meio; os processos que interligam os indivíduos em sua vida social; a evolução social desses grupos; e os costumes, as crenças e as tradições transmitidas de geração em geração, que permitem a continuidade de uma determinada cultura ou de um sistema social (LOPES, 2018, p. 14).

Recorremos a esse diálogo com o romance de Lopes para ilustrar mais um olhar de ficcionista contemporâneo para a complexa história da formação social da cidade do Rio de Janeiro:

Aquele povo fazia parte de contingentes livres e libertos que, com a Abolição, se instalaram nas precárias casas de cômodos das ruas vizinhas à Praça, e que depois, com os espaços esgotados, começaram a levantar casebres improvisados nas encostas dos morros, como o da Providência – que, depois da Guerra de Canudos, acabou ganhando o apelido de morro da Favela, como todo mundo sabe (LOPES, 2018, p. 16).

Estamos diante de ambientação e passagens histórico-geográficas que Paulo Lins, em outra mirada, também ficcionalizará. A essas ficções, classifico de “literatura de repovoamento”: elas nutrem reflexões políticas que demandam “respostas” engajadas, por conta de as camadas subalternizadas da capital do Brasil de então terem protagonizado as transformações mais abrangentes da cena sociocultural carioca e de forma decisiva. Embora reconheçamos a essencial contribuição de escritores como Coelho Neto, Lima Barreto, João do Rio, Benjamin Costallat, além de Marques Rebêlo, dentre outros, ao acentuarmos o caráter civilizatório e demarcador de fronteiras culturais que até hoje marcam as antinomias do pensamento social brasileiro, precisamos pensar outras formas de construção da cidade moderna. Conforme Manuel Bomfim (2013, p. 34), em análise pioneira, “a realização social se faz, necessariamente, em esforços individuais; mas é na tradição que se definem as possibilidades de harmonia entre o indivíduo e o conjunto social”.

1. Paulo Lins e a reescrita da história

Voltando mais atrás no tempo, deparamos com uma narrativa de repovoamento originária, a seminal obra de Manuel Antônio de Almeida, Memórias de um Sargento de Milícias. Lida sob ótica renovada, é o grande documento literário canônico que em meados do século XIX se desviava da Corte para as regiões onde viviam as populações marginalizadas e periféricas da capital do Império. Desde que o samba é samba é um romance que bebe daquela fonte e dela herda o gosto pela ficcionalização da vida miúda, por histórias encenadas em becos, ruas pobres e vielas enviesadas e íngremes dos morros e cortiços cariocas, habitadas pela gente humilde que escreveu história forte na memória da nação. No romance de Lins, aprofundamos o conhecimento dos sujeitos representativos de uma história ainda a ser contada.

O já mencionado Brancura era o apelido de Silvio Fernandes (Rio de Janeiro, circa 1908 – 1935). Junto com Milton de Oliveira Ismael Silva (Niterói, RJ – 14 de setembro de 1905 – Rio de Janeiro, 14 de março de 1978); Bide (Alcebíades Maia Barcelos, Rio de Janeiro, Niterói, RJ, 25 de junho de 1902 – Rio de Janeiro, 18 de março de 1975); Baiaco (Osvaldo Caetano Vasques, Rio de Janeiro, 1913- 1935); Mano Edgar (Edgar Marcelino dos Passos, Rio de Janeiro, 1900 – 1931), dentre outros, fundaram a primeira escola de Samba, a “Deixa Falar”, em 1928, lançando as bases do que hoje se chama “samba de sambar”: produção musical-literária diversa das antigas marchas, maxixes e lundus que dominavam a cena musical carioca. O grupo ficou conhecido como a “Turma do Estácio”, frequentadores das rodas de samba da Cidade no final da década de 1920 na chamada Pequena África, berço do samba carioca.

Não é demais lembrar que, antes da emergência desse grupo, “Pelo Telefone”, de Ernesto Joaquim Maria dos Santos, conhecido como Donga, possibilitara em 1916 a primeira gravação de um samba no Brasil, obviamente não sem discussões acaloradas a posteriori sobre esta primazia. O fato é que, bem antes da ascensão do grupo responsável pela criação da primeira Escola de Samba, o ritmo ganhava notoriedade através de registros técnicos e modernos para a época que permitiram não somente a rápida reprodução das canções, mas também sua divulgação em massa. Assim sendo, não é possível ignorar a importância dos movimentos empreendidos pela população negra e que impactaram no crescimento das rádios, no desenvolvimento das gravadoras e na difusão em larga escala de uma nova arte popular, aspectos da modernidade que já Walter Benjamin (1985, p. 166) havia pensado como “reprodutibilidade técnica”: [...] a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados por longos intervalos, mas com intensidade crescente”.

Benjamin admitia que no interior dos grandes períodos históricos o modo de existência das coletividades se transformava toda vez que a percepção do mundo se alterava, confirmando o condicionamento histórico da percepção. Com a reprodução técnica e com o surgimento de artes concentradas nos novos meios de produção artística como, por exemplo, o cinema, a música em disco e a fotografia, a unicidade e a singularidade antes determinantes do caráter de aura em torno das obras começam a ceder à volatilidade do objeto contemplado, não mais determinado apenas pelo critério da autenticidade e pelo valor de culto. O valor de culto das obras começava a recuar, junto com seu valor de eternidade, daí emergindo o caráter de exposição perante o público. Segundo Benjamin (1985, p. 185), se “a técnica atua sobre uma forma de arte determinada”, “as formas artísticas tradicionais tentam laboriosamente produzir efeitos que mais tarde serão obtidos sem qualquer esforço pelas novas formas de arte”, o que nos leva a compreender que “transformações sociais muitas vezes imperceptíveis acarretam mudanças na estrutura da recepção, que serão mais tarde utilizadas pelas novas formas de arte”.

Em Desde que o samba é samba, a ficcionalização dos pioneiros na criação da primeira Escola de Samba deve ser lida conjuntamente com os primeiros momentos da história do disco e da música popular. Lins recorda a importância da população negra em um pensamento social e cultural dominado pelo caráter de exclusão que refletia a descontínua modernidade fabricada à revelia dos sujeitos subalternos, especialmente os escravizados recém-libertos. Pretos e pobres eram sujeitos de uma ordem não moderna, não especializada, segundo o pensamento hegemônico. Feita a Abolição, era preciso integrar, na sociedade, a massa liberta, mas essa incorporação deveria ser liderada pelos “civilizados”, que tinha em alta conta um padrão de modernidade que se alinhava às ideologias estrangeiras, principalmente ao modelo europeu. Nada mais distante do que trata o romance de Lins. Nele, vemos o drama da modernidade brasileira, debatendo-se em meio ao desejo de se criar “uma ordem social competitiva capaz de absorver os diferentes setores da população, ainda que parcialmente, nos estratos ocupacionais e sociais do sistema de produção” dentro de um sistema que carregava no seu interior o “problema da cor”: uma complexa herança do passado escravocrata acentuada por um capitalismo dependente que, longe de promover encontros, consolidava-se na exclusão manifestada por “atitudes preconceituosas e comportamento discriminativo” (FERNANDES, 2007, p. 93). Surpreende, pois, como afirma Humberto M Franceschi (2010, p. 167), que “um pequeno grupo do bairro do Estácio, desconhecido e inteiramente livre, inventou o samba de carnaval”. Mesmo com uma “música nova e surpreendente”, nada, porém, “podia prever sua rápida expansão, logo consolidado pela divulgação, tanto pelo disco como pelo teatro musicado e, pouco mais tarde, pelo rádio”.

Em 1928, foi fundada a Escola Deixa Falar, no Morro de São Carlos, gestada nos botequins Apolo e Cumpadre, na subida do Morro de São Carlos, postos em evidência no romance de Lins. Esses bares eram ainda pontos de encontro dos que vinham das rodas de samba e atraíram gente de Benfica, Madureira, da Providência e da Gamboa, dentre outras áreas da cidade. Nesta confederação de artistas negros, pobres e periféricos destacaram-se Paulo da Portela, Geraldo Pereira, Cartola, Aniceto do Império, Manacéia, Alcides Malandro Histórico, Carlos Cachaça, Chico Santana e Nelson Cavaquinho, para ficarmos em alguns poucos e representativos nomes de um tempo mais distante .

No romance, personagens anônimas se confundem com figuras históricas determinantes para a cultura negra. Tia Amélia, por exemplo, personagem citada no início de nosso artigo, é referência a uma das “tias baianas” da região. Lins deve ter tomado liberdade em relação aos fatos históricos, se considerarmos a Tia Amélia histórica, mãe de Ernesto Joaquim Maria dos Santos – o famoso compositor Donga (Rio de Janeiro, 5 de abril de 1889 – 25 de agosto de 1974), autor de “Pelo telefone”, como dito – e não esposa de personagem homônimo do romance. Os demais sujeitos que compõem a cena romanesca com que iniciamos este artigo são exemplos da diversidade de tipos humanos que circulavam pela região da Cidade Nova: prostitutas, rufiões, descendentes de portugueses, imigrantes, ex-escravizados etc.

A trama inicial, algo rocambolesca, recria ficcionalmente o ambiente social que expressa a história de uma cultura e de um grupo – seus processos de transmissão e construção artística – formado majoritariamente por descendentes de escravizados três décadas após a abolição. O romance discute, sem ser panfletário, as tentativas de se minimizar o papel dessas populações nos movimentos identitários de formação da cultura nacional. Humberto M. Franceschi (2010, p. 198) nos aponta que a força criativa daquele grupo

[...] surpreendeu os pseudodonos da cultura, que jamais poderiam imaginar que aquele pequeno agrupamento inteiramente desconhecido, filhos da primeira geração saída da escravidão, pudesse exercer tal força na alma popular a ponto de botar em risco a tranquilidade das elites ainda abaladas com as consequências da abolição e do encilhamento .

No entendimento de Franceschi, a comunidade multifacetada que ocupava a região do mangue e seu entorno, por onde o grupo do Estácio circulava, ameaçava o status quo das elites, cujas regras e normas eram, no todo ou em parte, ignoradas. Aquele grupo acabou estabelecendo uma ordem particular que, ao mesmo tempo em que fundava uma tradição, por meio de diversas práticas de sociabilidade questionava e/ou rejeitava fortemente o tradicionalismo da cultura hegemônica, testando os limites e alcances da arte que criara. Suas práticas se consolidavam através de mobilidade intensa: eram atores que transitavam tanto pelo submundo dos bares, das zonas de prostituição, por morros e mangues, quanto pelas áreas nobres da cidade, em contato com pessoas de prestígio e em ascensão, como o cantor Francisco Alves, responsável pela compra e difusão dos sambas do grupo do Estácio.

Essas negociações entre classes implicariam o reconhecimento e a implantação do novo estilo poético, literário e musical, o qual não somente expressava artisticamente um pensamento de grupo, mas, principalmente, inseria no âmbito da cultura urbana de uma cidade cujas elites optavam por se afrancesarem, uma “outra modernidade” na qual vários baluartes do modernismo beberiam. Em uma passagem do romance, Lins ficcionaliza um diálogo ilustrativo entre um interessado e entusiasta Manuel Bandeira com um algo irônico e falso modesto Ismael Silva:

O poeta não tinha voz para falar sobre os sambas daquele crioulo de fala mansa, educado, simples, com tanta riqueza de arte e tanta sabedoria com as palavras.

– Você que inventou esse ritmo?

– Sim, eu venho pensando nisso há muito tempo.

– É dois por quatro também. Mesmo compasso. Ficou mais bonito mesmo, o ritmo mais elaborado na percussão, tudo redondamente tocado, boa a harmonia, as letras são maravilhosas.

– Puxa, Seu Manuel.

– Que Seu Manuel, rapaz! Senhor aqui é você, meu rei! O senhor é que merece pronome de tratamento à altura de sua vocação artística, inovadora, de vanguarda – E voltando-se para o garçom: – Por gentileza, meu querido, pode servir mais um uísque aqui pro meu amigo.

– Vanguarda é o pessoal de São Paulo, são os senhores da literatura, do Modernismo, eu tô sabendo.

– Pare, por gentileza, de me chamar de senhor. Cante mais um samba, cante, cante, por favor (LINS, 2012, p. 231-232).

O encontro se deu em um elegante restaurante da Zona Sul do Rio de Janeiro, em companhia de Francisco Alves. Estamos na década da Semana de Arte Moderna de 1922, a qual já havia causado comoção nas paisagens da arte brasileira. A deferência de parte a parte reflete um momento em que as elites culturais, dos “ricos inteligentes da zona sul” (LINS, 2012, p. 230), aproximavam-se da arte popular e não é sem alguma ironia que Silva faz reverência a Bandeira. Quando diz que vanguarda é o pessoal de São Paulo, o “eu tô sabendo” informa ao poeta famoso que também ele está bem informado sobre os caminhos da arte consumida pela intelectualidade. O grupo ruma para o Café do Compadre, no Estácio, onde Silva, Alves, Bandeira e a cantora Carmem Miranda, que a eles se junta, encontram Brancura, Bide e Juvenal, que promovem uma sessão de samba no pandeiro, tamborim, surdo e violão. Dali vão a um terreiro de Umbanda, no morro, a pedido de Carmem Miranda. As casas de Candomblé e Umbanda, além dos cultos religiosos, eram também locais onde o samba escapava das perseguições policiais. Ao conluio entre religião e samba, acresceu a afluência de artistas, poetas, intelectuais em um mundo cada vez mais representativo das vanguardas populares que aos poucos dominariam a cena musical, com ecos na cultura, na política e nas diversas áreas do pensamento. A própria Carmem Miranda foi um instrumento potente da propaganda getulista e na difusão mundo afora de uma certa brasilidade.

O samba passa de marginalizado a protagonista da cena carnavalesca. Em 2 de março de 1935, ocorre o primeiro desfile oficial das Escolas de Samba. Pela primeira vez, as agremiações receberam subvenção oficial da Prefeitura. A trajetória meteórica das Escolas foi um contraponto ao descaso com que as autoridades trataram a produção cultural das camadas baixas da população. O pesquisador Eduardo Granja Coutinho (2011) entende que o grande desafio daqueles artistas era transformar suas narrativas em manifestações concretas de uma concepção de mundo particular, seja, ao mesmo tempo, falando de sua história seja defendendo os interesses do grupo na consolidação de uma memória coletiva.

Quanto a isso, Michael Pollak (1992, p. 2), ao tratar das relações entre memória individual e memória coletiva, mostrou que os elementos comuns às duas são “os acontecimentos vividos pessoalmente e os “acontecimentos “vividos por tabela”, ou seja, acontecimentos vividos pelo grupo ou pela coletividade à qual a pessoa se sente pertencer”. Neste sentido, as narrativas ficcionais apresentam problemas teóricos que precisamos enfrentar: sendo criação de um autor que no presente dirige-se a um passado, não para historiar, mas para representá-lo, a ficção revela-se problemática tanto mais os critérios de invenção e ficcionalização do passado são submetidos às estratégias do discurso literário. Vejamos então como são estruturadas as relações entre história, memória e a enunciação literária.

2. História, memória e discurso literário em Desde que o samba é samba

Desde que o samba é samba é romance de escritor contemporâneo, lançado em 2012, e sua escrita é a representação ficcional de um capítulo de nossa história cultural: a emergência da arte do samba e de seus protagonistas e coadjuvantes no contexto social da Primeira República. Seu processo de representação se concentra na ficcionalização de sujeitos históricos e dialoga com o passado diferentemente das abordagens históricas. A ficção opera por meio de um como se no qual identificamos, ao mesmo tempo, o fato histórico a que personagens e ações remetem e a tutela de um narrador sujeito de uma enunciação que remete à instância autoral, regente desses processos. Isso não invalida o papel do discurso literário como espaço de interpretação, registro e manutenção da memória, pois as narrativas orais, embora não partam da relação autor, narrador e narrativa, recuperam memórias de pessoas que intercalam suas funções de sujeitos históricos com as de personagem e narrador. A memória dos sujeitos é atravessada não somente pelo que viveram, mas também pelo que presenciaram ou ouviram de terceiros. Daí a ideia de uma memória mais “verdadeira” ou próxima ao real ser discutível. Michael Pollak chamou de “projeções” ou “transferência por herança” as memórias que revelamos e são codependentes das memórias a mim reveladas por outros.

A ficcionalização da história do samba por Paulo Lins entrelaça diálogos e referências. É de notar que ao final da obra haja uma “Bibliografia” com uma lista de obras consultadas; uma seção com sites especializados em samba; e uma pequena lista de estudos específicos sobre o samba, em que aparece uma inusitada Presença da literatura brasileira III: Modernismo, de Antônio Candido e José Aderaldo Castello. A presença de uma bibliografia crítico-literária em uma obra de ficção é um elemento a se destacar. Indica pesquisa acadêmica, embora o fiel propósito do autor seja narrar a história do ritmo e de seus protagonistas através de uma linguagem em consonância com os atos de fala e o universo das classes populares representadas. A preferência pela narrativa realista com tons por vezes naturalistas é coerente sob o ponto de vista da verossimilhança. Além disso, a pesquisa teórica listada, embora sejam evidentes as formas com que os dados históricos se mesclam à invenção ficcional, jamais desfavorece o literário e ajuda os leitores interessados na busca por um entendimento teórico do fenômeno cultural samba-enredo e sua importância como arte de vanguarda.

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães (2021) vai dizer que a “modernidade negra” está vinculada a uma série de eventos, dentro e fora do Brasil, que buscaram o protagonismo negro, como a Harlem Renaissance, movimento dos negros da periferia de Nova Iorque, que redefiniu a paisagem negro-moderna americana, na música, na literatura, no teatro e nas demais formas artísticas. No Brasil, salienta Guimarães (2021, p. 84-85), houve uma busca de reconhecimento da parte dos negros – palavra que começa a substituir “preto” ou “homens de cor” – como brasileiros e não como africanos. A palavra negro havia ganhado um sentido bastante pejorativo nos anos que antecederam a Abolição; naquele mesmo período, o termo “raça” passou a figurar em detrimento da palavra “classe”, usada, segundo Guimarães, no século XIX para se referir tanto aos senhores escravocratas quanto aos escravizados.

Florestan Fernandes (2007, p. 93) afirmou que o “problema da cor” reflete uma “complexa herança do passado, continuamente reforçada pelas tendências assumidas pela desigualdade sob o capitalismo dependente, e preservada através da manifestação conjunta de atitudes preconceituosas e comportamentos discriminativos baseados na cor’”. Fernandes entendia que a estrutura de uma sociedade de classes sob o capitalismo dependente, como em nosso caso, é um fator que agrava a concentração da riqueza e dificulta a mobilidade social ascendente e o posicionamento em uma ordem social que requer sujeitos competitivos sob os parâmetros do grande capital (hoje, acrescidos do imperativo tecnológico).

Em 1930, Manoel Bomfim já defendia que o Brasil, no contexto mundial, poderia ser um jogador forte no mundo do capital, desde que fizesse uma defesa intransigente da história nacional (BOMFIM, 2013, p. 43). Bomfim promoveu uma crítica contundente de nossas elites, segundo ele, retrógradas e amantes dos privilégios. Nunca é demais recordar, baseada nessa colocação de Bomfim, a informação trazida por Pierre Verger, em seu seminal Fluxo e refluxo (2021, p. 32), de que, em 14 de dezembro de 1890, Rui Barbosa emitiu um despacho em que ordenava a destruição de livros e documentos a respeito da escravidão depositados no Ministério das Finanças, sob o pretexto de evitar uma sangria nos cofres públicos, com pedidos de indenização. Uma nova circular do Ministério das Finanças, emitida pelo conselheiro Tristão de Alencar Araripe, de 29 de maio de 1891, decretou a destruição dos arquivos provinciais, privando as gerações futuras de documentação essencial ao estudo da escravização.

Restavam, portanto, as fontes orais e as obras artísticas sobreviventes da devassa e da destruição. A recuperação do passado pela literatura revela aspectos não absorvidos ou devidamente esmiuçados pela história oficial. Ainda que operando na imaginação-invenção, as relações entre os discursos literário e histórico lançam luzes sobre as lacunas provenientes do apagamento dos arquivos. Podemos compreender, por meio do texto literário, a importância das periferias em um romance como Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida, espécie de narrativa inaugural que deslanchou uma série de outras das quais o romance de Paulo Lins é um exemplo contemporâneo. Almeida estreou no romance sem aplauso público e mesmo as edições que se sucederam não fizeram jus à importância que a obra viria a ter ao longo do século XX. Marques Rebêlo (1943, p. 115), por exemplo, disse que Almeida foi “o escritor que pela primeira vez escreveu como se fala no Brasil”, mas “teve a sua obra inteiramente deturpada, quase irreconhecível”. Em 1941, Mário de Andrade reconhecia em Almeida o caráter pioneiro de documentarista excepcional e folclorista musical, precursor de estudos de música popular, tendo inclusive descoberto que o fado, derivado do lundum afro-colonial nacionalizado por Portugal, já era dança muito usada pelos ciganos do Brasil. Quanto à escrita de Almeida, ao defendê-lo da pecha de escrever mal, Mário concorda que ele “se exprimia numa linguagem gramaticalmente desleixada”, mas adverte que era “coisa aliás muito comum no tempo dele” (ANDRADE, 1941, p. 14). Ao “desleixado da linguagem”, Andrade contrapõe “um vigoroso estilista”, de “vocabulário variadíssimo e coerente”, o que as Memórias testemunham, com seus “brasileirismos, prolóquios, modismos, ditos e frases-feitas”, sem esquecer as “transformações fonéticas populares”, que fazem com que as “pílulas” da tradição escrita sejam pronunciadas pela comadre como “pírulas” (ANDRADE, 1941, p. 14).

Parece-nos sintomático que o romance de Lins também tenha sido alvo das mesmas críticas. De fato, a edição é descuidada. Há inúmeros problemas de revisão, inclusive nas “Principais referências do texto” (LINS, 2012, p. 296), nas fontes bibliográficas e a linguagem por vezes parece ser “desleixada”. Se Andrade estranhou que no romance de Almeida, tão rico documentalmente, além da citada tradição afro-colonial do lundu, “haja ausência quase total de contribuição negra” (ANDRADE, 1941, p. 11), e sequer haja um personagem negro, embora se saiba que os barbeiros de então, que aparecem no romance, eram geralmente negros, assim como eram negras as baianas dançarinas da procissão dos Ourives, sendo o romance prodigioso em “referências desatentas a escravos e às crias de d. Maria” (ANDRADE, 1941, p. 12), o protagonismo dos sujeitos negros no romance de Lins é total.

Entretanto, devemos observar que reações à homossexualidade de Ismael Silva (CABRAL, 2012), no romance, revelam outras faces da recepção das obras artísticas que tomam a história como interlocutora. É mérito de Lins não evitar a polêmica, como se lê na passagem: “Esse tempo na vida de Silva foi de felicidade daquelas que se quer para sempre. Quem diria que aquele sifilítico, homossexual, negro, pobre iria trabalhar com o maior cantor da época” (LINS, 2012, p. 230). Sem atentar para o crivo moral, o modo de entrada na obra requer novas formas de abordagem. A despeito de falhas, encontramos nele “uma” história do samba muito mais representativa da realidade de um grupo social do que polêmica.

Autor contemporâneo, Lins teve a seu dispor um manancial documental que lhe permitiu narrar com menos amarras e mais propriedade a saga de um povo, sujeitos integrados por exclusão em uma sociedade de favores e privilégios (FERNANDES, 2007, p. 290), na qual o desmantelamento da estrutura colonial não favoreceu os escravizados. A questão negra se daria na luta contra o preconceito, a exclusão e pelas reivindicações por direitos usurpados em uma sociedade que tentava (tenta) apagar o passado e negava (nega) o preconceito racial (GUIMARÃES, 2021, p. 93). Demanda-se dos movimentos negros um posicionamento “antibranco”, conforme Florestan Fernandes (2007, p. 313), que deve “mostrar aos brancos o verdadeiro sentido da revolução democrática da personalidade, da sociedade e da cultura”.

Paulo Lins é membro da confraria literária inaugurada por Manuel Antônio de Almeida. A narrativa contemporânea revela-se espaço de memória e fonte de estudos, reflexão e crítica sobre os processos formadores da cidade. A constituição de uma cultura negro-brasileira e/ou negro-carioca encontra, nas poéticas literárias do agora, reflexões consistentes sobre as flutuações e movimentações das classes subalternas no espaço urbano marcado por omissões e esquecimentos, lacuna que o romance de Lins ajuda a preencher.

3. Literatura, cultura e religião: reescrituras da história

Na abertura de Desde que o samba é samba, há uma espécie de “prólogo”, assinado por um eu-narrador chamado Paulinho Naval, que se dirige a um ou mais narratários. Ele é uma espécie de locutor-apresentador de uma Escola de samba prestes a entrar na avenida e cujo enredo se confunde com a trama do romance. A passagem é entrecortada por citações, algumas anacrônicas, em relação ao tempo histórico do romance (por exemplo, “a vitória de nossos ancestrais”, é de Marcelo Yuka, um dos criadores da banda O Rappa e falecido em 18 de janeiro de 2019). Em seguida, a trama em si apresenta aos leitores Sodré, Brancura e Valdirene circulando pelas ruas do Estácio, bairro-personagem, pelo Bar do Apolo, o baixo meretrício, na Rua do Estácio, no Largo do Estácio, frente os sobrados, como já vimos.

A Umbanda é outro traço fundamental na trama. O marco de seu nascimento, na Rua Floriano Peixoto, no bairro de Neves, em São Gonçalo, deu-se em 15 de novembro de 1908 (atualmente Dia Nacional da Umbanda, segundo a Lei 12.644, de 17 de maio de 2012) e teve na figura de Zélio de Moraes um precursor-fundador . A história da Umbanda insere-se no contexto do romance como capítulo especial na história da cultura negro-carioca. Zélio de Moraes tinha sido acometido de um grave problema de saúde e teria sido levado a uma sessão na Federação Espírita, onde pela primeira vez se manifestou o Caboclo das Sete Encruzilhadas. Naquela sessão, espíritos de negros escravizados e indígenas começaram a se manifestar e logo foram rejeitados pelos membros da Federação, que os consideravam atrasados, cultural e moralmente. Foi então que o Caboclo proferiu um discurso em defesa das entidades: se ali não havia espaço para a manifestação daqueles espíritos, a casa de Zélio de Moraes se tornaria o local onde eles poderiam se expressar, o que efetivamente ocorreu, no dia seguinte, 16 de novembro de 1908. Fruto da luta e da resistência espiritual contra a intolerância religiosa, social e racial da Federação, a Umbanda aliou-se às demandas das populações subalternizadas e oprimidas que nas primeiras décadas do século passado fizeram sua revolução cultural. Em 1908, firmava o nascimento da Umbanda e seu crescimento confundia-se com a emergência do samba de sambar do Estácio, dois eventos determinantes na história cultural do país:

A Umbanda só fala coisa boa, mesmo quando é ruim, porque nada é por acaso na eternidade. É a reunião de toda espiritualidade que andou por essa terra nas religiões. A junção de tudo, tá tudo mudando, a espiritualidade vai mudando também. Umbanda é uma religião de vanguarda, modernista, que nem o samba. Tá me entendendo? A fila anda. Umbanda é evolução (LINS, 2012, p. 243).

Faz todo sentido, retornando ao romance, que a pendenga entre Valdemar e Sodré tenha sido resolvida com a intervenção de Tia Amélia (mãe de Donga, apelido de Ernesto Joaquim Maria). A presença das tias baianas foi elemento central da vida social na região do Estácio e seu entorno. As tias baianas – Tia Ciata, Hilária Batista de Almeida (Santo Amaro, BA, 1854 – Rio de Janeiro, 1920), na trama referida como Tia Almeida – foram responsáveis por reunir e acolher cantores, compositores e músicos que transformariam o panorama cultural da cidade do Rio de Janeiro, como Hilário Jovino Ferreira, Donga, Sinhô (José Barbosa da Silva) e João da Baiana (João Machado Guedes), dentre outros.

A ideia de uma vanguarda liderada por sujeitos subalternizados perpassa o romance. O nascimento da Umbanda, como vimos, se deu pela recusa da Federação Espírita de aceitar a manifestação de “espíritos não evoluídos”, de pretos, pobres, marginalizados, prostitutas etc. No romance de Lins, as diretrizes na nova religião são assim descritas: “Será uma religião que falará aos humildes, simbolizando a igualdade que deve existir entre todos os irmãos, encarnados e desencarnados” (LINS, 2012, p. 41). É o próprio Caboclo quem arremata: “Será uma nova religião baseada no Evangelho” (LINS, 2012, p. 41); “– Não, é Umbanda! Palavra de origem sânscrita que quer dizer “Deus ao nosso lado” (LINS, 2012, p. 43).

Também o Candomblé foi determinante no conjunto de forças culturais que rondaram a revolucionária arte nascente: “Eram várias as baianas mães de santo do Candomblé a tomarem conta da Pequena África, que, segundo Heitor, se estendia da zona do cais até a Cidade Nova e tinha como capital a Praça Onze”, região onde surgiram “músicos que fizeram apresentações no exterior, com músicas gravadas pelos maiores cantores da época” (LINS, 2012, p. 130). Em outra passagem, lemos: “Samba de verdade tinha que ter o sal do batuque dos terreiros de Umbanda e Candomblé, uma batida grave para marcar, umas agudas para recortar” (LINS, 2012, p. 161). Essas interseções socioculturais se expandiram para os campos da culinária, da vestimenta, pelos quintais (os novos salões literários e musicais, espaços de reunião e de convívio, visto que ali os conflitos, as lutas culturais, as guerras de narrativas faziam parte de um caldo cultural que, embora tivesse a harmonia como ideal, era palco das diferenças em jogo). As diferenças apontavam para o diálogo com a tradição e a cultura hegemônicas: o samba se tornaria Patrimônio Imaterial do Brasil e símbolo da cultura nacional, não mais periférico ou regional. Da mesma forma, ganhavam destaque as áreas marginalizadas do Rio de Janeiro (a Pequena África, o Estácio) em meio a uma rede cultural disseminada pelas diversas regiões da cidade, como podemos ver em breve extrato da poesia de Mestre Monarco (Hildmar Diniz), compositor da Portela e de Oswaldo Cruz e Madureira, com a qual encerramos essa reflexão:

Passado de glória (1970)

(Monarco)

A Mangueira de Cartola

Velhos tempos do apogeu

O Estácio de Ismael

Dizendo que o samba era seu

Em Oswaldo Cruz

Bem perto de Madureira

Todos só falavam

Paulo Benjamin de Oliveira

Conclusão

Na literatura de Paulo Lins, ainda que sob o risco de resvalar para certa idealização, podemos dizer que há uma opção pela exaltação da cultura popular. O tom mais naturalista desfaz certa pureza da escrita em favor de uma verve dionisíaca que nos leva a (re)conhecer a beleza dos becos, das ruas e vielas esquecidos. Não é a cidade apolínea que surge das páginas de seu romance, mas o espaço do sujo, do marginal, do que esteve e está envolto em um lusco-fusco com lampejos de luminosidade. É nesta região de pretos, miseráveis, judeus, portugueses pobres e migrantes de toda ordem, habitada pelos sujeitos expulsos das áreas nobres da cidade com pretensão a Paris, que o romance de Paulo Lins elabora uma saga do samba, produto maior de uma arte que se afirmou sem deixar de denunciar e testemunhar os percalços de uma modernidade aparentemente luminosa, mas que no fundo era claudicante e alijava as periferias e os subúrbios de suas promessas de progresso, mobilidade e emancipação.

Repleto de elementos essenciais acerca do percurso das formas artísticas que se desenvolveram no Rio de Janeiro moderno, e aqui introdutoriamente analisadas, as novas cartografias literárias abrem produtivas e instigantes trilhas no circuito crítico. Do desbravador romance de Manuel Antônio de Almeida à narrativa de Desde que o samba é samba, de Paulo Lins, uma história dos contornos da cidade do Rio de Janeiro está sendo escrita e reescrita e é pela contribuição decisiva do discurso literário que a roda dos saberes gira e os aprendizados atendem por vários nomes, mas podem ser englobados pela ideia de mathesis, termo pensado por Roland Barthes (1987) para definir a força maior da literatura: os saberes.

Referências

ANDRADE, Mário de. Introdução. In: ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. São Paulo: Livraria Martins, 1941, p. 5-19.

ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um Sargento de Milícias. São Paulo: Livraria Martins, 1941.

BARTHES, Roland. Aula. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São Paulo: Cultrix, 1987.

BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica. In: ___. Magia e técnica, arte e política: obras escolhidas, v. I. 4. ed. São Paulo: Brasiliense, 1985, p. 165-196.

BOMFIM, Manoel. O Brasil na história: deturpações das tradições degradação política. 2. ed. Rio de Janeiro: Topbooks; Belo Horizonte: PUC-Minas, 2013.

CABRAL, Sergio. Apesar do título, livro de Paulo Lins tem mais intriga que samba. Folha de São Paulo, Caderno Ilustrada, 29 de abril de 2012. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/ilustrada/39878-apesar-do-titulo-livro-de-paulo-lins-tem-mais-intriga-que-samba.shtml. Acesso em 12 de julho de 2020.

CANDEIA FILHO, Antônio. Sou mais samba. In: CANDEIA et al. Quatro grandes do samba. Rio de Janeiro: RCA Victor, 1977.

COUTINHO, Eduardo Granja. Velhas histórias, memórias futuras: o sentido da tradição em Paulinho da Viola. 2. ed. Revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2011.

FERNANDES, Florestan. O negro no mundo dos brancos. 2. ed. revista. São Paulo: Global, 2007.

FRANCESCHI, Humberto M. Samba de sambar do Estácio: de 1928 a 1931. São Paulo: Instituto Moreira Salles, 2010.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Modernidades negras: a formação racial brasileira (1930-1970). São Paulo: Editora 34, 2021.

LINS, Paulo. Desde que o samba é samba. São Paulo: Planeta, 2012.

LOPES, Nei. O preto que falava iídiche. Rio de Janeiro: Record, 2018.

POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, 1992, p. 200-212.

REBÊLO, Marques. Vida e obra de Manuel Antônio de Almeida. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde; Instituto Nacional do Livro, 1943.

VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo: do tráfico de escravos entre o golfo de Benim e a Bahia-de-Todos-os-Santos, do século XVII ao XIX. Trad. Tasso Gadzanis. São Paulo: Companhia das Letras, 2021, p. 19-33.

Como citar este artigo

OLIVEIRA, P. C. S. de. Integrados por exclusão: negritude e mobilidade em Desde que o samba é samba, de Paulo Lins. Fragmentum, Santa Maria, p. 131-149, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219468334. Acesso em: dia mês abreviado. ano.