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Universidade Federal de Santa Maria
Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 193-212, 2022
DOI: 105902/2179219468229
e-ISSN 2179-2194
Submissão: 22/10/2021 • Aceito: 23/10/2022
Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha
Industrialization, intimacy and displacement: sexual behavior in the Brazilian Amazon and the Honduran North Coast
Rosani Úrsula Ketzer UmbachII
I Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
II Universidade Federal de Santa Maria, UFSM, Santa Maria, RS, Brasil
Resumo
Neste artigo descreve-se a representação das atitudes e agires sexuais dos trabalhadores das Bananeiras em Honduras e o Ciclo da Borracha do Amazonas brasileiro. Tomam-se as obras de Ramón Amaya Amador (Enfatizando-se na obra “Biografía de un machete”); e as obras de Álvaro Maia (Principalmente o romance “Beiradão”); ambos autores destacados pelo exercício político, jornalista e romancista. Aplicando a teoria da sexualidade de Michel Foucault e a literatura comparada, procuram-se as representações da intimidade e da sexualidade dos atores principais destas etapas socioeconômicas: os campenhos das Bananeiras em Honduras, e os seringueiros do Ciclo da Borracha no Amazonas brasileiro.
Palavras-chave: literatura latino-americana, literatura comparada, sexualidade, literatura hondurenha, literatura brasileira
Abstract
This article describes the representation of sexual attitudes and actions of workers in banana trees in Honduras and the Brazilian Amazon Rubber Cycle. For such representation, the works of Ramón Amaya Amador are taken (Emphasizing the work “Biografía de un machete”); and the works of Álvaro Maia (Mainly the novel “Beiradão”); both authors standing out for their political, journalist and novelist labour. Applying Michel Foucault’s theory of sexuality and comparative literature, representations of the intimacy and sexuality of the main actors of these socioeconomic stages are sought: the banana farmers in Honduras, and the rubber tappers of the Rubber Cycle in the Brazilian Amazon.
Key-words: Latin-American literature, Comparative Literature, sexuality, Honduran literature, Brazilian literature.
Introdução: A vida nas florestas, uma aproximação ao diário viver nas Bananeiras e o Ciclo da Borracha
Para o Amazonas brasileiro e para Honduras, o Ciclo da Borracha e as Bananeiras, respectivamente, têm sido fenômenos socioeconômicos e culturais que mudaram sua história. Ambos ciclos se desenvolveram aos inícios do Século XX e duraram quase a metade deste. Neste período, no Brasil e em Honduras deram-se deslocações a estes territórios, na procura de melhores oportunidades. Estas deslocações promoveram novas formas de se relacionar, pois fixaram-se novas sociedades, resultado da extração do látex e da semeação da banana.
Não apenas o Brasil e Honduras, mas toda América Latina neste período de finais de Século XIX e princípios do Século XX, entraram à dinâmica econômica mundial como produtores de matéria prima (BULMER, 2017). Temos que lembrar que as independências políticas de nossos países latino-americanos se deram, também, nestas épocas. Esta relação econômica, contudo, era desigual. As políticas econômicas da maioria dos países latinos achavam que com apoiar o setor exportador, a economia nacional seria beneficiada. Na verdade, como veríamos depois, isto não seria assim.
Note-se que esta economia da exportação promoveria o deslocamento a territórios onde se desenvolveria a monocultura. No Brasil, pelo exemplo, podemos mencionar, além da borracha no Amazonas, o Ciclo do Café, cujo fluxo migratório também participaram imigrantes, europeus deslocando-se para essas regiões, como São Paulo, onde o café era o produto de exportação. No Amazonas, no Ciclo da Borracha, este deslocamento deu-se de duas formas principais. Uma que poderíamos chamar de interna: oriundos do Amazonas ou regiões próximas, e outra, a dos nordestinos (sobretudo do Ceará). Estas deslocações dariam uma distribuição de vivenda e formas de viver diferentes.
Os trabalhadores moravam em barracões superlotados nos quais compartilhavam espaço com outras famílias ou pessoas, fazendo que a “intimidade” fosse totalmente diferente a como a conhecemos. Para analisar um tema tão complexo e fascinante, utilizaremos as obras de Álvaro Maia e Ramón Amaya Amador, autores que viveram estas experiências e as representaram nas suas obras.
Como uma pequena resenha dos autores, podemos dizer que Ramón Amaya Amador foi um romancista e jornalista hondurenho, nascido em 1916, ano no qual La Standard Fuit Company (de agora em diante SFC) já estava instalada em Olanchito, Yoro, seu lugar de nascimento. Como a maioria dos nascidos no norte do país, Amaya Amador trabalhou nas bananeiras antes de se tornar jornalista. Álvaro Maia, pela sua parte, nasceu em 1893 em Humaitá, no interior do Amazonas. Ao igual que Amaya Amador, foi jornalista e romancista, mas também, poeta: em 1925, a revista Redenção daria para ele o galardão de “príncipe dos poetas amazonenses”. Ambos autores se destacaram por sua sensibilidade às realidades da sociedade na que viveram. Assim, a maioria de suas obras representam as vivências, vicissitudes e acontecimentos dos trabalhadores dos Ciclo da Borracha e as Bananeiras.
Neste contexto antes mencionado, da deslocação às regiões onde se produzia a banana e o látex, é importante a lembrar a complexidade do que nós chamaríamos intimidade ou privacidade: os campenhos e os seringueiros careciam disso, basta explorar as obras de Amaya Amador e Álvaro Maia sobre as relações e modos de viver dos trabalhadores, agrupados em barracões sobrepovoados, compartilhando redes, talheres, cozinha, banheiros e demais, incapazes de uma vida privada como tal. Casais como no conto “El Nido” de Amaya Amador, tinham mantinham suas relações conjugais ainda compartilhando o quarto com outros campenhos:
Los dos estábamos jóvenes. Él casado y yo soltero. Para los casados era un problema la vivienda pues no había en los barrancones cuartos especiales para el matrimonio sino para solteros. Vivíamos en grupo. Y en nuestro cuarto, donde nos apretábamos ocho compañeros, tenía Lucas su catre y su mujer. No sé lo que el matrimonio sentía en las noches, pero sí sé lo que nosotros, solteros jóvenes, privados durante semanas del goce sexual —las prostitutas sólo llegaban una vez al mes, el día del pago—, padecíamos al escuchar los crujidos del destartalado catre de Lucas. (AMAYA, 2017, p. 30)I
“El Nido” conta história de um casal, Lucas e Anita, sua esposa, que compartilhavam o quarto com oito campenhosII mais. Lucas e seu amigo, o narrador, Moncho, encontram um ninho de aves no “corredor do morto”, apelidado assim porque semanas antes tinham encontrado os corpos sem vida de outros campenhos, que se reuniam nos tempos livres para criar um sindicatoIII. Lucas cuidaria do ninho das aves, e o ninho tornar-se-ia uma metáfora do casamento de Lucas e Anita. Um dos outros oito campenhos era Sabino, um campenho solteiro, bom cantor, tocava o violão e era muito popular com os outros empregados (AMAYA, 2017, p. 31). Depois de uma festa de pagamento, caminhando em direção ao campo bananeiro, Lucas falaria com Moncho as suspeitas que ele tinha sobre Anita:
—Tú tienes tu nido, Lucas: nuestro cuarto. O, mejor dicho, tu catre. Ese es tu nido. Palomo y paloma.
—Eso es lo triste, compa, que no es ni nido, ni somos palomas, pero tenemos zorrillos a montones.
—Ustedes no tienen huevos para que los zorrillos se los coman…
—Estos zorrillos no comen huevos, comen palomas, compa, ¡palomas! Y eso es lo triste. —Y con un deje nostálgico, concluyó: —Me están comiendo mi paloma. (AMAYA, 2017, p. 38)IV
Utilizando a metáfora do ninho, Lucas continuava falando sobre proteger seu ninho e sua pomba. Os dias passaram, até que uma vez, na hora do almoço, Sabino e Lucas se encontraram, e numa luta com seus facões, ambos morreriam: No había ya necesidad de ayuda; se sostenía los intestinos con la mano izquierda y de la cabeza le brotaba más sangre.[...] y nada más pudo decir, porque la muerte llegó presta arrancándole la palabra (AMAYA, 2017, p. 41)V. Enclaustrados desse jeito, como já introduzimos no conto “El Nido”, as intimidades se tornariam, de uma ou outra forma, coletivas: casais compartilhando espaços com outros, compartilhar a mesma parceira sexual (seja pela prostituição, pela infidelidade, ou, como no caso dos primos fugidos do Beiradão, que chegaram a um acordo com uma viúva para ser amante dos dois).
À moral a rege a linguagem, e à sexualidade, a rege a moral, assim como explica Foucault em umas das suas grandes obras: A História da Sexualidade (١٩٨٨). E assim, a sexualidade que sempre foi relegada ao segredo, banida a recintos fechados, ao mistério e ao silenciamento, nas bananeiras e o mato amazônico, teve que mudar. E é que, essa moral, que vem de uma tradição imposta por instituições (como a igreja ou estatais), família ou amigos, não existia em uma sociedade que estava em plena construção e que, portanto, carecia destas.
O deslocamento de pessoas, idas para a Costa Norte de Honduras e para o Amazonas no Brasil, gerou uma sociedade que ia se incorporando ao ambiente e à carência de espaços que habitar; e além disso, de tradições que coagiram as interações sociaisVI. A isso também temos que ligar a carência de órgãos estatais ou igrejas. Sim, existiam os bandidos das transnacionais e os coronéis de barranco, mas eles mais que uma autoridade moral, mantinham apenas a produção e uma ordem que funcionasse para o desenvolvimento econômico. Estes mesmos, seja pela sedução a mulheres casadas, como no caso do Padre Silveira ou mister Jones com Juana; ou por frequentar as prostitutas, compartilhavam as parceiras sexuais junto aos trabalhadores. No mato, seja a Costa Norte ou o Amazonas, eram os coronéis e as transnacionais quem regulavam os bens de consumo para os trabalhadores, dentre estes, também as mulheres, que, como uma forma de trata humana, convertiam-se em um produto com o qual comerciar:
Os 500 trabalhadores não conduziam mulheres.
As despesas com a aquisição de mulheres figurava nas prestações de contas, no fim das safras, entre maquinas de costura, rifles, fazendas, sabão e café. Havia também o pagamento do valor feminino, baseado na saúde e nos encantos fisionômicos.
Era o dever sempre mais acrescido que o haver na aquisição de mulheres. O preto Anacleto Braga consumiu o saldo de três anos e ainda ficou devendo, porque se comprometeu por uma dessas gajas. (MAIA, 1997, p. 93)
E era um negócio, como o caso de Anacleto Braga, com muito sucesso. Nas bananeiras, pelo exemplo, sucedia que a cada prostituta cobrava-se um imposto, que pagava ao entrar na roça cada dia de pago. Enquanto na borracha, como fala o narrador de um dos contos de Banco de Canoa, era regulado pelas despesas, como um bem de consumo mais.
Nestas sociedades carentes de um código moral imperante, comum da urbe e que, em sua maioria, eram homens, solteiros e jovens, o sexo tornou-se num produto mais; e um muito solicitado. Deslocados de uma tradição moral, esta sociedade apresentou uma nova complexidade das condutas sexuais, que como Foucault entenderia, em termos da Antiga Grécia são a relação entre “afrodisia” (os atos de Afrodite) e “chrēsis aphrodision” (os usos do prazer):
A reflexão moral sobre os aphrodisia tende muito menos a estabelecer um código sistemático que fixaria a forma canônica dos atos sexuais, traçaria a fronteira das interdições, e distribuiria as práticas de um lado e de outro de uma linha de demarcação, do que a elaborar as condições e as moralidades de um “uso”: o estilo daquilo que os gregos chamavam chrēsis aphrodision, o uso dos prazeres. (FOUCAULT, 1984, p. 51)
Entende-se “o uso” como a maneira na qual o indivíduo orienta sua sexualidade, desde as formas de fazer até a importância que ele dava ao ato sexual, que vai estar condicionada pelo status do indivíduo, sua necessidade e sua oportunidade de satisfazer essa necessidade. Sempre baseado na tradição greco-latina e nesta correlação tripartida, Foucault descreve três estratégias do prazer: da necessidade, do momento e do status.
Como uma apologia à tese de Diógenes “o cínico”, que defendia que assim como temos necessidades de dormir, comer, e demais, também as temos sexuais, a estratégia da necessidade é satisfazer essa carência. O aphrodisia, portanto, regulado pela necessidade, o objetivo não é o de anular o prazer; trata-se, ao contrário, de sustentá-lo e de sustentá-lo pela necessidade que o desejo suscita; sabe-se muito bem que o prazer se embota quando não oferece satisfação à vivacidade de um desejo (FOUCAULT, 1984, p. 53). O prazer é uma necessidade humana e, portanto, é um bem que é desejado e que deve ser comprazido. Nas bananeiras e os seringais, a obtenção deste bem cobiçado, era regulado, assim como o álcool, a comida e demais bens, pelas transnacionais e pelos coronéis:
¿Quién se lucra con la venta de ese opio del trópico que es el guaro? ¿Quiénes cobran impuestos a las prostitutas en noches de pago, y lo principal, dime, por qué han llegado esas mujeres hasta el fango? ¿A qué arcas van tantas multas que las autoridades imponen a los campeños cuando, ebrios, dan “vivas” y “mueras”? (AMAYA, ٢٠١٩, p. ٦١)VII
Ou as andejas, que, com seus favores sexuais, pagavam nos portos suas passagens:
— Nem se diz o contrário, querido padre Fábio. Voltemos às andejas. São passageiras de terceira classe, vindas de Belém, Santarém e Manaus, rumo de Santo Antônio: desembarcam nos portos de lenha, nos aglomerados, de preferência onde não há casais, e desalteram o pessoal. Não deixam de prestar serviços e os próprios casados as admiram, porque espalham tranquilidade entre os rapazes. (MAIA, 2019, p. 68)
Em outras palavras, segundo os coronéis e as transnacionais, as andejas e as prostitutas, ajudavam a manter a tranquilidade entre os homens. Pode ser que cumprida a necessidade sexual, regulava-se a convivência entre os trabalhadores, e evitava-se também a dispunha que às vezes acontecia por mulheres. Porém, não por isso quer dizer que não sucediam.
Para tal caso podemos mencionar, pelo exemplo, ao Caboclo Sabino. O Caboclo Sabino, personagem de Beiradão, casou-se com Raimunda, uma filha de um seringueiro do Amazonas. O conflito surge da certeza que a Raimunda não era virgem e que quem havia sido o “benfeitor” antes do Caboclo, era o próprio pai dela. A história termina de forma sanguenta, com uma sequência de vinganças que daria de saldo um Sabino capado e a morte de pai e filha.
Outro caso é Mané Onça, sua esposa e um parceiro com o qual moravam juntos. Mané Onça, desejoso de ajudar ao cara mais novo que ele, decide compartilhar-lhe a casa. Nessa coabitação, o moço começa a seduzir à esposa de Mané Onça, ele descobrindo e cobrando sua vingança:
— Isso nem chega a ser crime para causar espanto. É outro, bem diferente. Mané Onça vivia com a boliviana que arranjou nas festas da igreja. Comia bem e dormia bem. Tinha um companheiro de colocação, mais novo, espécie de tutelado. Começou a namorar a falsa madrasta, e ela servia a ambos. Foi descoberta em pleno terreiro, debaixo de umas palhas. Mané Onça caceteou os dois, mas não matou logo. (MAIA, 2019, p. 80)
Este caso é similar ao de Lucas e Sabino do conto “El Nido”. As situações do espaço reduzido e de compartilhar morada, impulsavam aos trabalhadores da roça, amazonense e hondurenha, a interações sexuais como estas descritas. Lucas, o campenho jovem das bananeiras, vivia junto sua esposa, Anita, e demais campenhos, num quarto dos barracões bananeiros e Mané Onça que decidiu ajudar a seu companheiro mais novo.
Esta convivência forçosa desenvolve, como dirão os psicólogos sociais, impulsos sexuais que, como vemos no conto El Nido e no romance Beiradão, levariam a uma tragédia como a que ocorreu entre Sabino e Lucas, e entre Mané Onça e seu companheiro.
Ambas situações, da sedução de Sabino a Anita, e a de o jovem à esposa de Mané Onça e sua resolução violenta, corresponde à autoridade e poder que os esposos têm sobre suas esposas e também, à visão de mulher como uma pertença e não como uma pessoa independente a ele:
É verdade que todo homem, qualquer que seja ele, casado ou não, deve respeitar uma mulher casada (ou uma jovem sob poder paterno); mas é porque ela está sob o poder de um outro; não é seu próprio status que o detém, mas o da jovem ou da mulher contra a qual ele atenta; sua falta é essencialmente contra o homem que tem poder sobre a mulher. (FOUCAULT, 1984, p. 131)
Dessa forma, para recuperar seu honor, Lucas, Mané Onça e o Caboclo Sabino, têm que resolver violentamente esses abusos a sua propriedade. As mulheres, nestas estruturas sociais, das bananeiras e a borracha, eram vistas como um bem sumamente cobiçado e, portanto, devia ser protegido e até vingado. Por outro lado, além da dinâmica socioeconômica, está também a particularidade ética: também pode ser entendida como uma transgressão à dinâmica entre desejo e necessidade:
Se é possível satisfazer os desejos sexuais quando eles se manifestam, não se deve criar desejos que vão além das necessidades. A necessidade deve servir de princípio diretor nessa estratégia, a qual, como se vê, nunca pode tomar a forma de uma codificação precisa ou de uma lei aplicável a todos da mesma maneira e em todas as circunstâncias. Ela permite um equilíbrio na dinâmica do prazer e do desejo: ela o impede de “encher-se de ímpeto” e de cair no excesso fixando-lhe, como limite interno, a satisfação de uma necessidade (FOUCAULT, 1984, p. 54)
Portanto, a estratégia de necessidade sustenta-se no equilíbrio entre o desejo e a capacidade que o sujeito tem para satisfaze-lo. A intemperança, utilizando a nomenclatura foucaultiana, apresenta-se como uma conduta sexual que não tem sua origem no equilíbrio: as prostitutas chegavam cada dia de pago e, como já evidência o conto, os dias de pago eram dias nos quais os campenhos satisfaziam seus desejos sem restrições. Na teoria das condutas do prazer, efetivamente, apresentam-se a temperança e a intemperança:
Essa estratégia permite conjurar a intemperança que é, em suma, uma conduta que não tem sua referência na necessidade. É por isso que ela pode tomar duas formas contra as quais o regime moral dos prazeres deve lutar. Existe uma intemperança que se poderia dizer de “pletora”, de “preenchimento”: ela concede ao corpo todos os prazeres possíveis antes mesmo que ele tenha experimentado a necessidade, não lhe dando tempo de experimentar “nem fome, nem sede, nem desejos amorosos, nem vigílias” abafando, com isso mesmo, qualquer sensação de prazer. (FOUCAULT, 1984, p. 54)
Esta intemperança de preenchimento como planteia Foucault, é contrária à necessidade porque não permite ao corpo experimentar mesmo a necessidade que já está satisfazendo: come sem fome, dorme sem sonho, bebe sem sede... esta estratégia da necessidade, portanto, temos que lembrar que se baseia na máxima de que as necessidades como tais, são aquelas carências que o corpo sente obrigatórias satisfazer para seguir existindo. O equilíbrio, nesse sentido, vai surgir do limite da satisfação, evitando os excessos que seria a intemperança de preenchimento.
Estratégia do momento oportuno: o kairos
Sem muito que adicionar, como o nome diz, o kairos é saber satisfazer os prazeres quando estes sejam convenientes: Deve-se ter em mente que esse tema do “quando convém” sempre ocupou, para os gregos, um lugar importante, não somente como problema moral, mas também como questão de ciência e de técnica (FOUCAULT, 1984, p. 55). Se nós retomamos ao Diógenes “o cínico”, seu jeito de satisfazer seus prazeres no momento que sentia a necessidade, seria uma intemperança mesma, pela impossibilidade de contrastar em que momento poderia os satisfazer.
Saber o momento oportuno, pelo exemplo, podemos representa-lo com as aventuras amorosas do Padre Silveira, do romance Beiradão, com a Zefa Mixira e a Senhora Maroca, ambas casadas. O Padre Silveira aguardava à saída dos esposos para se instalar nos barracões das esposas.
Zefa Mixira era a esposa do João Caboclo, quem se dedicava à pesca, especialmente do peixe-boi, e daí o apelido de sua esposa: Zefa Mixira trouxera a antonomásia do marido, que era arpoador de peixe-boi. Sabia preparar a mixira: segundo suas explicações, tem carne de peixe, de porco e de boi (MAIA, 2019, p. 53). Aproveitando os dias em que o João Caboclo não estava em casa, o Padre Silveira aguardava às horas da noite em que ninguém poderia vê-lo para ir à barraca da Zefa Mixira:
Uma vez foi surpreendido, altas horas da madrugada, nos cerrados marginais à cachoeira. Fábio imaginou-o em delírio febril e saiu-lhe no encalço, receoso que se despenhasse das ribanceiras e se ferisse nas lajes.
Padre Silveira dirigiu-se simplesmente à barraca da Zefa Mixira, escondida entre goiabeiras e capim alto. Demorou-se e, ao regressar, olhando para os lados, viu Fábio na maqueira de tucum em embalos lentos, Zefa Mixira trouxera a antonomásia do marido, que era arpoador de peixe-boi. (MAIA, 2019, p. 53)
Às vezes, também, disfarçava as visitas como encontros para beber café, chegando também na noite, quando todo estava deserto e os moradores cada quem em suas casas (MAIA 2019, p. 59). Assim, nesta estratégia, a temperança é o equilíbrio entre as diversas atividades do homem, e uma distribuição do tempo:
A escolha do momento — do kairos — deve depender igualmente das outras atividades. Se Xenofonte cita Ciro como exemplo de temperança não é porque este tivesse renunciado aos prazeres; é porque ele sabia distribuí-los como convinha no curso de sua existência, não se deixando por eles desviar de suas atividades e somente os permitindo após um trabalho preliminar que conduzia a entretenimentos honrosos. (FOUCAULT, 1984, p. 56)
O vemos, também, no aproveitamento da Senhora Maroca em “visitar” ao Padre Silveira quando seu marido, o Caboclo Euzébio ia embora, seja pela pesca:
– Mesmo um amigalhão como padre Silveira vem vigiar-lhe a barraca, a mulher e os filhos, comendo galinhas cevadas e batizando. Desculpe. Falo ao amigo. Mas você não deve ter queixas. Ainda ganha de Euzébio para ter essa vidoca.
– Misérias, misérias, Fábio! Creio em você, que não pensa mal de ninguém.
– Não penso mal, mas estou vendo. Pois a cabocla não mudou de dormitório, quando mestre Euzébio foi pescar para o nosso almoço? Vi bem quando passou e ouvi barulho de rede, denunciando uma pessoa que se deita. Ora, vocemercê já estava deitado. A separação dos quartos é de palha. Tenha cuidado. (MAIA, ٢٠١٩, p. ١١٤)
Ou bem, quando o Caboclo Euzébio ia embora às expedições que os coronéis davam para capitanear:
Caboclo Euzébio não ouviu os conselhos, mas nada percebeu com a expedição, em que passou seis meses, atravessando matas e igarapés. Regressou, estropiado e tonto de remorsos. Foi nessa ausência que a mulher ficou de barriga, e lhe deu um curumim mais esbranquiçado, que diziam ter traços do padre Silveira, talvez pela influência nas festas e visitar ao lugar.
– Castigo de algum pajé!
– Qual castigo de pajé! Nesse caso, o curumim teria cara de índio ou matintapereira. O filho é meu, puxa ao avô, que era descascado. (MAIA, 2019, p. 105)
Expedições nas quais o Padre Silveira ficava na barraca “cuidando” à família do Caboclo Euzébio. Verificamos que o kairos, a diferença da estratégia da necessidade, está baseada no tempo mesmo e a distribuição social do trabalho.
Temos o caso da Velha Quintéria e os três primos fugidos, que já tínhamos mencionado antes. Estes três seringueiros, sendo vítimas de maus tratos e de pagamento desonesto pela pele de borracha, a Velha Quintéria os ajudava, em coisas como lavar roupa, dar comida e também nas complacências sexuais:
– Consolava três?
– Sim. É costume naquelas bandas. Certas velhas, sem marido, ganhavam a vida assim e olhe que são procuradas. Um dia para cada um. Velha demais, não gosta de nenhum e não dá em ciumada. É mesmo que um caco quebrado. Melhor que moça, rondada pela macharada. Velha Quintéria não acende mais fogo no cupim, e serve por servir, sem prestar atenção a nenhum. (MAIA, ٢٠١٩, p. ٩٤)
Como explica um dos primos, a Velha Quintéria distribuía seu tempo, um dia para cada um, e eles, também, respeitavam o tempo do outro e dela mesma. Não existe briga desse jeito, onde cada quem tem estipulado quando pode e quando não satisfazer seu desejo.
Esta estratégia que explica Foucault é a mais relacionada com sua fala do poder, já que o “status” é uma ferramenta, aqui, para alcançar o prazer, por uma parte, mas também para regula-lo: É sem dúvida um traço comum a muitas sociedades que as regras de conduta sexual variem segundo a idade, o sexo, a condição dos indivíduos, e que obrigações e interdições não sejam impostas a todos da mesma maneira (1984, p. 57). O status, que pode se entender como o poder e autoridade que um indivíduo numa sociedade, se exerce neste caso como uma estratégia de satisfazer seu prazer.
Se seguimos analisando ao Padre Silveira, ele utilizava seu status de “homem de fé” como uma forma de alcançar seu prazer: os esposos confiavam nele, e não suspeitavam que poderia acontecer alguma coisa entre ele e as esposas. A temperança no Padre Silveira, revela-se como o segredo de seus encontros:
Padre Silveira, quarentão forte, analisava a própria mioleira, – e pensava nos pecadilhos com a Zefa Mixira, que residia no outro lado da ruela, perto do tombo. Disfarçando que ia beber café, lá aparecia à hora sesta, quando o velório estava deserto, sem moradores, ou pelas caladas da noite. (MAIA, 2019, p. 59)
Que, como explica Foucault, nesta estratégia, é a regularidade entre as qualidades que a pessoa tem por conta de seu status na cidade, e comprazer-se a si mesmos. E, embora as suspeitas começaram a surgir:
—Dou mil-réis pelo pitiú assado de dona Zefa Mixira- Está cheiroso e gostoso.
—Dou cinco. É pro padre Silveira, que gosta de dormir na barraca da Zefa. Até parece um peixe-boi à noite, quando troca a batina por uma roupa escura para andar melhor.
—Vocemecê não prova que o padre dorme na barraca da Zefa. Está mentindo e vai engolir.
Padre Silveira estava lívido, ouvindo aquela ameaças, à entrada do telheiro, que, naquela hora, era salão de igreja. (MAIA, 3019, p. 62)
Foram o status de sacerdote e o status de Fábio, quem era muito querido e respeitado pelos seringueiros, aos quais lia e respondia cartas das famílias que enviavam desde Ceará, e portanto, homem ao qual admiravam, os que terminaram salvando-o da fofoca:
—Sabem que sou amigo de todos. O nosso leiloeiro não errou. O pitiú foi assado por dona Zefa e deve estar gostoso. É o último lance da festa e, dentro de minutos, iremos recomeçar as danças de despedida. Mas há um engano. O leiloeiro viu, talvez em mais de uma ocasião, um sujeito vestido de escuro enveredar para a barraca de dona Zefa. Deviam saber também que resido na casa do padre Silveira. Fácil o engano. Quem ia à barraca referida não era o nosso bom reverendo. Quem era? Dirão vocês. Natal a pergunta. Era o amigo Fábio, sem nenhum mal.
A seringueirada deu uma risada, aumentando o preço da oferta.
[...]
—Perdão, padre! Aquilo foi brincadeira de mau gosto. Logo com o padre! Não deixe de vir no ano que vem. O senhor já está acostumado com as besteiras da gente.
Padre Silveira agradecia sorrindo, abençoando mulheres e crianças. Distribuía água benta, santinhos e conselhos.
Olhou para o terreiro: admirou, com enternecimento, aquele rapaz de poucos anos, que, para salvá-lo, assumira responsabilidade de atos que não praticara. (MAIA, 2019, p. 64)
O status, em este caso, serviu para duas coisas: o padre Silveira conseguira seu prazer e também para encobri-lo e resgata-lo das consequências. Assim, as relações amorosas não podemos considera-las como desonestas ou honestas já que serão diversos fatores os que condicionarão as condutas sexuais:
Arte de usar do prazer deve também se modular em consideração àquele que a usa e segundo o seu status. O autor do Eróticos, atribuído a Demóstenes, lembra-o segundo o Banquete: qualquer espírito sensato sabe muito bem que as relações amorosas de um rapaz não são “virtuosas ou desonestas de forma absoluta”, mas que “elas diferem completamente segundo os interessados”; portanto, “não seria razoável seguir a mesma máxima em todos os casos”. (FOUCAULT, 1984, p. 56)
Por outra parte, a intemperança aparece como o abuso do poder que dá o status para alcançar seu prazer. Como exemplo disso podemos comparar os casos particulares do Padre Silveira, o Mordomo Amindo Carranza e a Jones. No romance Biografía de un Machete, obra que relata a história dos Jocotán, uma família de camponeses que, oriundos do sul de Honduras, movidos pelas guerras civis e a corrupção dos políticos, devem se mudar à costa norte, a trabalhar nas bananeiras. Neste romance temos ao Amindo Carranza, quem no seu status de mordomo da fazenda, aproveitava-se para estuprar as mulheres e; especificamente, estuprou e matou a Justina Jocotán, a mãe dos Jocotán, quem se resistiu a ser violada. Do romance Prisión Verde, que relata as dores dos campenhos no campo bananeiro e sua luta pela união política para conseguir seus direitos, podemos mencionar também o caso de Jones, um comandante das bananeiras, quem para ficar com Juana, mandou matar a seu marido:
—¿Arreglaste el asunto de Jones?
—Ser inútil. Juana no aceptar. Decir tiene marido. Mi ofrecerle buena plata. Ella terca, míster. Por eso, yo decir a míster Jones, si él querer coger Juana, primero quitar marido. Marido estorbar.
[…]
—Yo conoce un hombre que por cien dólares y un pistola, dice que quitar de en medio al Amadeo.
—¿Le conoces tú? ¿Es de confianza? Mira no nos meta en un lío.
—Ser hombrote. Le conocer yo en Costa Abajo. Se ha volado más de un docena. Trabajar limpio y largarse de aquí.
—Siendo así, entonces, háblale.
—Ya le hablé, míster. Sólo faltar la “monis”.
Foxter metió su mano en el bolsillo y sacó los cien dólares poniéndolos en la mesa, de donde los tomó el Capitán con sonrisa de bandolero. (AMAYA, 2019, p. 92)VIII
E assim, sempre no mesmo romance, podemos mencionar também ao Capitão Encarnación Benítez e o estupro de Catuca Pardo, filha de Lucio Pardo, um campenho das bananeiras que morava com sua família nos barracões das transnacionais. Concertou uma reunião com ela, já na meia-noite, em segredo, para falar sobre os planos que tinham os comandantes das bananeiras para matar a seu pai e a Marcos, seu namorado. Porém, aconteceu coisa diferente:
—¡Tendrás todo conmigo: sedas, crepes, zapatos finos, pulseras y anillos de oro, criadas; yo ganar los dólares!
—No me diga eso que me ofende. Si me estima, prométame que no hará nada contra Marcos y mi papa. Yo le agradeceré todo mi vida y, a lo mejor, en el futuro, tal vez pueda quererlo, pero, ¡por favor..!
La tierra está húmeda de las aguas sucias que allí tiran las cocineras día tras día y un hedor de lejía y lodo impregna el ambiente. La plaga señorea con su tétrico silbido sin fin.
Se sucede una lucha en silencio. Un arañazo. Un mordisco. Y un bofetón sonoro del puño masculino.
—¡Animal! ¡Bruto! ¡Te odio!
[…]
Las uñas de Catuca Pardo taladran la tierra esponjosa y remueven raíces de yerbas muertas porque las estrellas que sus ojos atisban sobre el hombro de Benítez, se ha pintado de rojo con lápices labiales de sexualidad. Cierra los ojos y oye a lo lejos una canción que, hasta ahora, nunca había escuchado en la noche.
Hay neblinas y hace frío cuando Catuca Pardo se acuesta en su catre de lona. Tiene húmedos los ojos y desgarrado el camisón. En sus uñas, tierra y sangre de gente. ¡La sangre de su virginidad perdida! Varias horas la ha retenido el seductor. (AMAYA, 2019, p. 114)IX
Se vemos no início, Encarnación Benítez fala-lhe de riquezas, de uma vida melhor a seu lado: a ilusão de um status superior. Contudo, quando Catuca Pardo negou-se aos desejos do Capitão, este decide estupra-la, exercendo o poder que lhe dava seu status de capitão.
Por uma parte temos a Catuca Pardo e Justina Jocotán, representando a pureza, o mantimento de uma promessa (Catuca estava apaixonada pelo Marcos e Justina casada com o Ezequiel Jocotán), e por outra, os poderosos, que tendo o status em seu favor, aproveitaram-no para se comprazer. Esta situação torna-se arquetípica, como diz Foucault, a representação de virtude sexual podemos encontra-lo em estas duas mulheres:
Chegará o dia em que o paradigma utilizado mais frequentemente para ilustrar a virtude sexual será o da mulher ou da jovem que se defende contra os avanços daquele que tem todo o poder sobre ela; a salvaguarda da pureza e da virgindade, a fidelidade aos compromissos e aos votos constituirão, então, a prova típica da virtude. (FOUCAULT, 1984, p. 76)
Catuca Pardo e JustinaX Jocotán ao ser confrontadas a homens poderosos, salvaguardam sua pureza, sua virgindade, no caso de Catuca Pardo, e assim, representam uma exaltação à virtude. Catuca luta para impedir o estrupo, e Justina prefere morrer que tracionar seu esposo. Mas, também, a virtude podemos encontra-la no Padre Silveira, não como o afastamento do prazer, senão pela temperança que se notou nele para satisfazer seu prazer. Isso explicaria porquê apesar de tem estado com mulheres casadas, estes encontros não terminaram em brigas como sim passou em outros casos: foi, no modo geral, um homem temperado. Foucault afirma que não é possível uma lei universal, tudo, diz ele, é um ajustamento, de circunstância, de posição pessoal (1984, p. 58). Os usos sexuais, então, tem algo de pragmatismo: estão definidos pelo contexto e os fins do actante.
Portanto, cada estratégia dos usos do prazer, são flexíveis e não-universais, que só podem ser aplicados nos contextos em que surgem estes “chrēsis aphrodision”. Não por isso, contudo, quer dizer que não existe um código moral como tal: vemos que todas as estratégias têm intemperanças e temperanças, porém, não serão fixas, mas condicionadas pelo entorno nos quais os relacionamentos humanos surgem. O próprio Padre Silveira fala:
Qual malandragem? Bebida, mulher, rixa? São até válvulas contra maiores males. Temos que escurecer a vista e esquecer certos pecados. O mesmo pecador, em outro ambiente, não os cometeria. Para que a reclusão e a abstinência? Já é uma prova de esforço terem vivido. Sem essas válvulas, praticariam maiores crimes. (MAIA, 2019, p. 54)
E nesse aspecto, o Padre Silveira manteve-se virtuoso, já que não transgrediu nenhuma estratégia, e satisfez seu prazer sem consequências que lamentar; na perspectiva de Foucault, isto é a temperança. Dentro da narrativa podemos vê-lo no sentido de que ninguém brigou com o Padre Silveira e inclusive, com a exceção de Fábio, nenhuma pessoa descobriu as aventuras do sacerdote, já que procurou se satisfazer sem excessos (estratégia da necessidade), aguardar o momento indicado (estratégia do kairós) e utilizou seu prestígio de sacerdote (estratégia do status) mantendo sua imagem.
As Bananeiras e a Borracha chegaram a Honduras e ao Amazonas brasileiro a mudar as estruturas sociais, econômicas culturais, mas também arquitetônicas, as formas de viver e as relações interpessoais. As formas de viver e as relações interpessoais são representadas na literatura, nessa perspectiva, para estuda-las, pegamos as obras de Ramón Amaya Amador e Álvaro Maia, romancistas que foram capazes de descrever, narrar e plasmar a realidade hondurenha e amazonense destas épocas.
Dentro das consequências das Bananeiras e a Borracha são os deslocamentos à costa norte de Honduras e ao Amazonas brasileiro. Estes deslocamentos reflexar-se-iam nos barracões. Os barracões, tanto nas Bananeiras quanto na Borracha, eram estes espaços más adequados onde os campenhos e os seringueiros viam-se obrigados a compartilhar. Esta sobrelotação dos barracões daria relações interpessoais diversas, incluindo dentre elas, a sexualidade. Foucault, na sua história da sexualidade apresenta-nos os usos do prazer. Assim, vemos como na obra destes dois romancistas, as estratégias do prazer são representadas das mais variadas formas; e relacionado a isso, a temperança do Padre Silveira: sim, esteve com mulheres casadas, mas respeitando as três estratégias do prazer (kairós, status e necessidade), ele satisfazia seu prazer sem desarmonizar com a povoação.
Outros casos podemos mencionar, como os primos e a Velha Quintéria, onde vemos também um respeito às estratégias do prazer, e, portanto, mantiveram uma relação harmoniosa entre eles. Nisto a teoria da sexualidade de Foucault e a obra de Amaya Amador e Álvaro Maia vêm a concordar: só aqueles que transgrediram as estratégias do prazer, ou seja, a intemperança, desarmonizavam as relações interpessoais, que terminaria num conflito entre os personagens: O Sabino seria morto pelo Lucas por seduzir à Anita (uma transgressão do kairós, ao seduzi-la frente ele), Encarnación Benítez estuprou à Catuca Pardo (uma transgressão do status, pois abusou de seu poder), Amindo Carranza estuprou a Justina Jocotán (uma transgressão do status) e morreria a mãos de Esmerildo Jocotán, o filho mais velho da Justina. Assim, os romancistas nos mostram que nas interações pessoais, as intemperanças às estratégias do prazer, resultam em desarmonias do coletivo social, e consequências negativas aos actantes.
Bibliografia
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BULMER, Víctor. La historia económica de América Latina desde la independencia. Trad. Mónica Utrilla de Neira. Cidade de México: Fondo de Cultura Económica, 2017.
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DELGADO, L. O Brasil Republicano, vol. 2: o tempo do nacional-estadismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
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FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A Vontade de Saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. Rio de Janeiro, Brasil: Edições Graal, 1988.
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MAIA, Álvaro. Defumadores e porongas. Manaus, Brasil: Edições do Governo do Estado do Amazonas, 1966.
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____________. Banco de Canoa (Cenas de rios e seringais do Amazonas, 2. Ed. Manaus, Brasil: Editora da Universidade do Amazonas, 1997.
____________. Beiradão, 3.a edição. Manaus, Brasil: Editora Valer, 2019.
Como citar este artigo
Valdez, A. A.; Umbach, R. U. K. Industrialização, intimidade e deslocações: os usos sexuais no Amazonas brasileiro e a Costa Norte hondurenha. Fragmentum, Santa Maria, p. 193-212, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219468229. Acesso em: dia mês abreviado. ano.
I Tradução nossa: “os dois éramos jovens. Ele casado e eu solteiro. Para os casados era um problema a morada, pois não havia nos barracões quartos especiais para o casal, mas para solteiros só. Morávamos em grupo. E em nosso quarto, onde nos apertávamos oito companheiros, Lucas tinha sua cama dobrável e sua mulher. Não sei o que o casal sentia nas noites, mas sei o que nós, solteiros jovens, privados durante semanas do gozo sexual —as prostitutas chegavam só uma vez ao mês, o dia do pago—, padecíamos ao escutar os rangidos da dilacerada cama dobrável de Lucas”.
II “campenho” (“campeño” no espanhol original) é o nome que os trabalhadores dos campos bananeiros receberam em Honduras. Campenho era aquele que era empregado pelas transnacionais bananeiras da costa norte de Honduras, sendo esta palavra tão específica (uma das três definições do Dicionário da Real Academia Espanhola é “pessoa que trabalha nas companhias bananeiras”, palavra é evidentemente hondurenha, já que as três definições, segundo a RAE, têm origem em Honduras) o autor preferiu utiliza-la e dar uma explicação dela, devido à importância semântica e histórica que esta palavra tem para compreender a época das bananeiras. Como as obras de Amaya Amador vão nos demostrar, ser campenho era mais que uma profissão ou um trabalho, era uma identidade, ser campenho era o que os definia. Conservar o termo ajuda-nos a entender a identidade e autorrepresentação dos trabalhadores das bananeiras: os campenhos.
III Historiadores como Agapito Robleda Castro concordam com a obra literária de Amaya Amador, muitos dirigentes campenhos foram assassinados para evitar a criação do sindicato e a procura de situações mais justas de trabalho. No seu livro “La verdad de la huelga de 1954 y de la formación del sitraterco” Robleda afirma que incluso na greve do 54, muitos dos trabalhadores foram desaparecidos.
IV Tradução nossa:
“—Tu tens teu ninho, Lucas: nosso quarto. Ou, melhor dito, tua cama dobrável. Esse é teu ninho. Pombo e pomba.
—Isso é o triste, cara, que não é nem ninho, nem somos pombas, mas temos multidões de gambás.
—Vocês não têm ovos que os gambás comam...
—Estes gambás não comem ovos, comem pombas, cara, pombas! E isso é o triste. —E com nostalgia, concluiu: —Estão me comendo minha pomba.”
V Tradução nossa: “Não havia já necessidade de ajuda: sustinham-se os intestinos com a mão esquerda e da cabeça brotava-lhes mais sangue [...] e nada mais pôde dizer, porque a morte chegou pronto para tirar-lhe a palavra.”
VI A pluralidade não apenas das origens dos trabalhadores, mas também de suas antigas profissões, culturas, e histórias individuais, junto à realidade social, arquitetônica e geográfica, fizeram de ambos casos a construção de sociedades particulares, com interações coletivas e individuais únicas.
VII Tradução nossa: “quem lucra com a venta desse ópio do trópico que é o licor? Quem cobra os impostos às prostitutas nas noites de pago, e o principal, me diz, porque têm chegado essas mulheres até a lama? A que cofres vão as tantas multas que as autoridades impõem aos campenhos quando, bêbados, dão “vivas” e “morres”?”
VIII Tradução nossa:
“—Arrumou o assunto de Jones?
—Ser inútil. Juana não aceitar. Ela dizer tem marido. Mim lhe oferecer boa grana. Ela teimosa, mister. Por isso, eu dizer a mister Jones, se ele quer transar Juana, primeiro tirar marido. Marido atrapalhar.
[...]
—Eu conhece um homem que por cem dólares e uma pistola, diz que tirar de em médio ao Amadeo.
—Tu lhe conheces? É de confiança? Olha não nos entrar num problema.
—Ser corajoso. Lhe conhecer eu em Costa Abajo. Tem matado mais de uma dúzia. Trabalhar limpo e vai embora daqui.
—Sendo assim, então, fala com ele.
—Já falei, mister. Falta a arma só.
Foxter meteu sua mão no bolso e colocou os cem dólares na mesa, de onde os pegou o Capitão com sorriso de malandro.”
IX Tradução nossa:
“—Terás tudo comigo: sedas, crepes, sapatos finos, pulseiras e anéis de ouro, empregadas; eu ganhar os dólares!
—No me diga isso que me ofende. Se você se preocupa por mim, me prometa que não fará algo contra Marcos e meu papai. Eu estarei agradecida toda minha vida e, ao melhor, no futuro, talvez eu poderia ama-lo, mas, por favor!
A terra está úmida das águas sujas que ali tiram as cozinheiras dia após dias e um fedor de água sanitária e lama impregna o ambiente. A praga comanda com seu fúnebre apito sem-fim.
Acontece uma luta em silêncio. Um aranhão. Uma mordida. E uma tapa sonora do punho masculino.
—Animal!, sua besta!, te ódio!
[...]
As unhas de Catuca Pardo brocam a terra esponjosa e removem raízes de ervas mortas porque as estelas que seus olhos vislumbram sobre o ombro de Benítez, tem se pintado de vermelho com lápis labial de sexualidade. Fecha os olhos e escuta distante uma música que, até agora, nunca havia escutado na noite.
Há neblina e faz frio quando Catuca Pardo deita em sua cama dobrável de tela. Tem úmidos os olhos e rasgada a camisola. Nas suas unhas, terra e sangue de gente. A sangue de sua virgindade perdida! Várias horas o sedutor a reteve.”
X Inclusive seu nome já nos mostra sua natureza: Justina, Justa.