Universidade Federal de Santa Maria

Fragmentum, Santa Maria, v. 59, p. 117-129, 2022

DOI: 105902/2179219467921

e-ISSN 2179-2194

Submissão: 01/10/2021 • Aceito: 29/08/2022

1. A descrição de um conceito

2. Entre o cordial e o pusilânime

Confissões de um homem de bem: a radiografia de um modelo

Confessions of a good man: the radiography of a model

Marcelo PeloggioI

I Universidade Federal do Ceará, UFC, Fortaleza, CE, Brasil

Resumo

O texto aborda, a partir de uma visão histórica e literária, a figura do chamado “homem médio brasileiro”, procurando mostrar que as concepções de mundo do mesmo não se restringem a uma classe altamente despolitizada, mas, antes, desdobram-se em algo moralista, pernóstico e violento.

Palavras-chave: homem de bem; visão histórico-literária; moralismo.

Abstract

The text addresses, from a historical and literary view, the figure of the so-called “Brazilian average man”, trying to show that his world conceptions are not restricted to a highly depoliticized class, but rather unfold into something moralistic, pernicious and violent.

Keywords: good man; historical and literary view; moralism.

1. A descrição de um conceito

Eu, um homem de respeito, respeitoso e respeitado.

Odorico Paraguaçu, O bem-amado, cap. IV

A delimitação conceitual da expressão “homem de bem” é o principal obstáculo a uma possível radiografia crítica do que hoje denominamos, por suas características intrínsecas, “tipo social”. Que proposições haveria para a melhor descrição desse tipo? Ou antes, o que define mais precisamente a figura de um “homem de bem”?

Não nos valemos aqui do pronome quem, já que não partimos de uma pessoa em particular ou de uma soma delas e, de resto, de uma classificação baseada em um empirismo empobrecedor. Poderíamos mesmo ceder a essa tentação: na fila dos bancos, no comércio, nas repartições, enfim, no âmbito da vida de relação alguém exclama: “Sou um cidadão de bem! Pago meus impostos em dia!”.

Tal radiografia parecer ser, de fato, em um primeiro momento, algo que, neste ensaio, podemos muito facilmente sondar e exibir, dada a particularidade social do tipo considerado. Assim, ao “homem de bem”, é costume associar, grosso modo, um sem-número de palavras e ideias a partir de descrições exteriores. Em geral, o homem de bem primaria, antes do mais, por seu reacionarismo, direitismo e catolicismo; sua visão de mundo seria incrivelmente curta ou irreflexiva, operando sempre mecanicamente, o que faria dele, por extensão, uma criatura imbecilizada ou, em outros termos, profundamente rude. Por outro lado, ligar-se-ia tanto à figura do servidor público de carreira quanto à do profissional liberal (na ativa, mas, sobretudo, aposentados), que teriam por característica comum a despolitização em elevadíssimo grau – o que parece se justificar por conta de seus bonés, bermudas, camisetas alusivas à nossa seleção de futebol, tênis de solado grosso e deselegante.

Ora, considerado a partir dessas exterioridades – indumentária, modus vivendi, mundividência – não haveria a razão e o porquê para se tentar a radiografia de um suposto modelo. Daí a necessidade de se enfatizar que o chamado “homem de bem” está presente, outrossim – e não são poucos (todavia, como desdobramento ou deformidade do seu ethos) –, nos setores empobrecidos e mesmo nas classes cultas da sociedade brasileira. Ele é, então, mais do que um fato social concreto mediano; com efeito, parece ter se tornado uma mística coletiva.

A que se destina, então, um “homem de bem”? Decerto, a indagação precisa ser refeita. Não “a que se destina”, uma vez que as exterioridades mencionadas colocam-nos diante de dada concepção política que as forças progressistas já formularam e então reproduzem. Pelo contrário: não “a que se destina”, todavia, os fatores histórico-sociais que o viabilizaram, determinando-lhe o curso ulteriormente.

Uma possibilidade de análise se abre ante o modo pelo qual é encarado, de forma genérica, o dito “homem de bem”. Contrário, por exemplo, à imigração e a favor do uso da truculência para coibir e desbaratar o ativismo social, somando-se a isso a aversão à política e a ojeriza nutrida contra a população de desvalidos, o “homem de bem” seria, apesar de tudo, um cristão, se não fervoroso, algo determinado.

Esse constitui, pode-se dizer, o seu retrato exterior, mas insuficiente para defini-lo, de antemão e de modo aproximado, no que ele seria de fato e, tal como é, produto de uma contradição profunda e indissolúvel. É, então, sob esse último aspecto que nos devemos deter, refutando a observação superficial ou a consideração meramente empírica de um fenômeno que nada vale por si, mas pelo tipo de conceituação que é capaz de suscitar.

Referir-se à sua formação, ou antes, a seu desenvolvimento histórico-social, requer o auxílio de alguns fatos que tiveram vez e lugar, em diferentes momentos, na vida socioeconômica e política do país. Em meio a eles, talvez possamos dar destaque a certo dado que descreva, em parte e com alguma precisão, a natureza mesma do “homem de bem”, isto é, sua historicidade. Falamos mais precisamente da admiração deste por um Estado que lhe vira as costas permanentemente e que atua, quase sempre, como o seu mais terrível algoz. Porque, muito antes das elites, que garantem a manutenção do status quo, tendo como peça eficiente para tal fim os aparelhos de repressão do Estado (polícia e forças armadas), erige-se, via “homem de bem”, a atmosfera necessária para que a “ordem” seja mantida: por exemplo, uma “Marcha da Família com Deus pela Liberdade” designa a expressão máxima de uma expressão mínima, ou seja, esta última dizendo respeito a cada um dos “homens de bem”, os quais, ainda que não costumem sair às ruas para protestar, endossam os regimes de força nos diversos setores e camadas da sociedade.

Como tal regime de força é endossado, então, pelo “homem de bem”? Ao contrário do que se costuma imaginar, a nota dominante nesse tipo – ou o ethos que melhor o define – não é exatamente a agressividade, o uso da força bruta (ainda que este esteja presente sob a forma de desdobramento de um moralismo feroz), mas, em geral, a do ser cordato, não excetuando aí, claro, a apatia e a pusilanimidade como seus traços característicos. O que talvez explique o fato de, em anos de chumbo, a omissão de muitos brasileiros, cientes do que então se perpetrava, ter se dado tanto por medo (ou porque compactuavam em silêncio com o regime ditatorial) quanto mais propriamente pelo estilo de vida que ambicionavam conquistar, o que, em rigor, naturalizava tudo, do carnaval ao futebol. O desejo de ascensão social fez com que se encarasse a ditadura de índole civil-militar como algo distante, e mesmo inofensivo, tamanha a despolitização e a desfaçatez. Assim, muitos dos que viveram a época elogiam hoje o governo militarista devido, sobretudo, ao sentimento de “segurança” e “ordem”. A sentença associada ao período – “Se não se metesse com coisa errada, vivia-se bem” –, já é o suficiente para o esboço da primeira linha radiográfica de um modelo.

E “coisa errada” não significa, apenas, estar em desconformidade com a lei, como quem atua criminosamente, mas, acima de tudo, a possibilidade de se fazer a contestação do regime. “Homens de bem”, via de regra, como perpetuadores do status quo, preocupam-se com a manutenção do próprio bem-estar, quando não a possibilidade de ascenderem socialmente, ainda que, de modo raro – sinal de deformidade do seu ethos –, por meio ilícito; portanto, costumam ser indiferentes à sorte dos desvalidos com os quais se defrontam diariamente, seja no trabalho, seja no lazer. E pouco importa a situação social do país, desde que a sua, assolada por medidas econômicas superficiais e eleitoreiras, mantenha-se no mesmo nível de mediocridade (econômica, social e cultural) a que fora acostumado. Tomemos como exemplo as figuras, para lá de simplórias, que estampavam em broches e camisetas, nas cores verde e amarela, em meados dos anos 80, os seguintes dizeres – nos broches: “Eu sou fiscal do Sarney”; nas camisetas, simplesmente: “Fiscal do Sarney”. De fato,

foi o tempo dos “fiscais do Sarney”, [e] de lidar com o congelamento de preços que desembocaria, já nos estertores do plano malsucedido, no quadro das gôndolas vazias dos supermercados, da sonegação de produtos, do câmbio negro e até da “caça” aos bois nos pastos para que a carne voltasse (PIZZO, 2007, p. 14).

O “homem de bem”, é bem verdade, faz até críticas ao governo, mas seu papel é, por definição, o de um colaborador, se não entusiasmado, de algum modo comprometido; e, em uma circularidade mais reacionária do que conservadora, que aqui chamamos de narcísico-masoquista, o reelege sucessivas vezes na forma de grupos políticos distintos, mas complementares: em substituição ao governo desastroso de José Sarney, toma, então, lugar a aventura neoliberal, não menos desastrosa, de Fernando Collor de Melo e, alguns anos depois, continuada e aprofundada sob a direção de Fernando Henrique Cardoso.

O ponto alto da ambição de que falávamos há pouco, em se tratando de um “homem de bem” – cordato e pusilânime –, está em fazer dele um político, apesar do moralismo que o norteia, sobretudo quando o assunto é de cunho pecuniário. Eis um dos primeiros desdobramentos, com sinais claros de deformidade no ethos, do que até aqui se considerou ser, concretamente falando, um homem que se julga exemplar no cumprimento do dever. O melhor exemplo dessa realidade hipotética tornada fato (ainda que seja este um produto da ficção) é a figura de Odorico Paraguaçu, protagonista da telenovela intitulada O bem-amado (1973), de Dias Gomes. Com efeito, o jogo de palavras operado no título parece fornecer, para o caso, a extensão exata da significação do termo bem. Por um lado, “bem” designa qualquer objeto de que somos proprietários e que, por um motivo qualquer, estimamos, consideramos, amamos; por outro, alguém pode se julgar amado ou estimado de todos, dada a intransigência moralista de que nos ocuparemos depois.

Odorico Paraguaçu já não é a representação propriamente dita de um “homem de bem”, e sim a do seu ethos, digamos, corrompido, desnaturado, trazendo junto a si, no entanto, certas caraterísticas daquele, como o moralismo e a religiosidade (neste caso, o de Odorico, o candomblé e o catolicismo).

É preciso saber que outras formas de desdobramento, quer dizer, que deformidades podem advir daí e serem efetuadas na índole mesma do “homem de bem”, a ponto de arrancá-lo de uma esfera inteiramente pacata para lançá-lo no domínio da objetividade nua e crua. Diz Odorico ao amante da filha: “Eu sou um homem de bem. Nunca matei ninguém. Emboramente a maledicência diga o contrário. Mas se você fez algum mal a ela, nós vamos ajustar conta. Nem que seja no inferno” (O BEM-AMADO, 1973, II, 3:36 a 3:51). Já não é, pois, a fala da poltronaria, e, sim, da intrepidez.

Assim, no lugar de tomar as ruas ou, ainda pelo voto, reformar drasticamente o sistema governamental, o “homem de bem” mantém o que está à volta como está, quer pela própria urna, quer à frente do governo, mas para tão somente enlameá-lo (a deformidade aí é, pode-se dizer, completa).

Portanto, incapaz de promover qualquer tipo de alteração significativa no seu modus vivendi, de que parece se orgulhar, o faz, no entanto, quando seu raio de ação suplanta o círculo familiar medíocre e atinge, para o prejuízo da maioria, a res publica. Não se trata mais de um “homem de bem”, mas de um homem de bens.

Resume-se a isso a passagem do ideal lírico de uma vida tipicamente burguesa (irreflexiva, apolitizada, mas plácida, dos que desfrutam de razoável comodidade por obra e graça de um moralismo sociorreligioso) à epicidade (os graus de desdobramento ou deformidade do ser cordato e pusilânime que o “homem de bem” tão bem constitui e representa, isto é, defensor intransigente da família e dos valores da cristandade mas, em ação, um notório frequentador de prostíbulos, refém ou operador de jogatinas, integrante de esquadrões da morte, e assim por diante).

A mística em torno do “homem de bem” como que desfocou e deslocou a imagem deste. Daí que não deve ser tomado, em um primeiro momento, por aquilo que seria o seu desdobramento ou deformidade, nutrindo-se do senso de violência e da intolerância para agir – mormente à luz de um moralismo cuja origem pode-se identificar, por certo, na figura do próprio “homem de bem”.

As humilhações, linchamentos e assassinatos a que se veem sujeitos os indigentes (o caso do adolescente negro acorrentado a um poste), os trabalhadores (o caso Amarildo), os indígenas (o caso Galdino), as mulheres (o caso Fabiane Maria de Jesus) e os LGBT (os casos Dandara e Érica); essas arbitrariedades, enfim, não guardam uma relação direta ou imediata com o chamado “homem de bem”. Cordato e pusilânime, não traz esse nas mãos, a princípio, como muitos acreditam, a marca dos que acorrentam, fuzilam, incendeiam ou espancam.

Assim, apático às reformas de um governo que o prejudica diretamente, se em face de qualquer perturbação ou alteração no status quo, mínima que seja, o “homem de bem” transforma-se: à semelhança de um dínamo, faz emanar, via moralismo, todo gênero de ódio e preconceito, levantando uma atmosfera assaz propícia a medidas repressoras, secundadas, não raro, por uma violência sem freios.

Efeito de seu desdobramento ou deformidade, as forças coercitivas têm operado de tal modo que mais parecem fortalecer e evidenciar, dia após dia, o estigma moralista. Os agentes deste ou sua extensão empedernida, a saber: a polícia, as forças armadas, os meios jurídico e político, as organizações religiosas intransigentes e os denominados “justiceiros” (da elite à periferia); sua força irradiadora ou dínamo: a classe média, sobretudo.

Orgulhoso dos bens materiais amealhados honestamente e, portanto, do relativo conforto de que pode desfrutar, o “homem de bem” mais se assemelha à figura de um narciso autoiludido: com efeito, o espelho d’água não reflete exatamente o que seu rosto exibe; é o baldo de beleza que distingue em si e tão somente em si essa qualidade da qual ele e os seus iguais (que ele acredita superar) são desprovidos. O que muito nos faz lembrar o pastor amante de Marília de Dirceu: o pegureiro, então, elenca com vaidade orgulhosa uma série de vantagens que o distingue dos demais:

Eu, Marília, não sou algum vaqueiro,

Que viva de guardar alheio gado,

De tosco trato, d’ expressões grosseiro,

Dos frios gelos e dos sóis queimado.

Tenho próprio casal e nele assisto;

Dá-me vinho, legume, fruta, azeite;

Das brancas ovelhinhas tiro o leite,

E mais as finas lãs, de que me visto.

[...]

Eu vi o meu semblante numa fonte,

Dos anos inda não está cortado:

Os pastores, que habitam este monte,

Respeitam o poder do meu cajado.

Com tal destreza toco a sanfoninha,

Que inveja até me tem o próprio Alceste:

Ao som dela concerto a voz celeste;

Nem canto letra que não seja minha

(GONZAGA, 1997, I, grifo nosso).

Saindo do plano da mitologia e da psicologia e referindo-se mais propriamente ao domínio da vida social, podemos dizer que o “homem narcísico de bem” se localiza no quadro amplo da classe média, em que se acredita culto, superior, senhor de inúmeros haveres e até, por incrível que pareça, politizado – em verdade, um entendido de tudo. Seu senso de “refinamento” desemboca em atitudes extravagantes, ou melhor, no mais profundo mau gosto. Assim, já se relatou, que, para uma comemoração de aniversário, e isso em um apartamento de tamanho médio, certo casal de anfitriões contratou o serviço de um único garçom para atender ao grupo de familiares e amigos, que não ultrapassava oito pessoas.

2. Entre o cordial e o pusilânime

Bate na cara e espanca até matar.

Grito de guerra da polícia militar do Paraná

Em que medida e de que modo pode-se considerar o “homem de bem” uma expressão tímida, mas ao mesmo tempo dinamizadora de nossa cordialidade?

Há aqui, antes, um movimento propriamente de concentração do que de expansão de emoções, sentimentos e ideias. Nesse último caso, convertendo os princípios e regras da intimidade do lar em norma como que obrigatória de conduta para a convivência social. Tal fato pode ser conhecido pelo costume de muitos brasileiros em deixar aberta a porta de suas residências, em ocasiões não apenas festivas, ampliando-se, em tese, a “possibilidade de convívio mais familiar” (HOLANDA, 2012, p. 54), sendo este imposto “por uma ética de fundo emotivo” (HOLANDA, 2012, p. 55).

Daí não ser o “homem de bem”, de forma alguma, uma espécie de reverberação, uma consequência natural e lógica do chamado “homem cordial” – o conceito histórico-sociológico, formulado por Sérgio Buarque de Holanda, e definidor, em boa parte, do tono da brasilidade mesma.

Decerto, há antes, pois, duas situações diametralmente opostas. Digamos que o segundo modelo (o da cordialidade) como que se vê voltado para fora, lançando-se à conquista afetiva e pessoal do exterior, da coletividade. No “homem cordial”, diz Sérgio Buarque, “a vida em sociedade é, de certo modo, uma verdadeira libertação do pavor que ele sente em viver consigo mesmo, em apoiar-se sobre si próprio em todas as circunstâncias da existência [...] é antes um viver nos outros” (HOLANDA, 2012, p. 53).

Já o primeiro (o da pusilanimidade) aponta para um sujeito altamente cioso de sua posição social, ainda que insignificante, assumindo uma postura de quem, ao contrário, volta-se para dentro: a família, a religião, o círculo estrito de amigos, definido, geralmente, por interesse financeiro e profissional, em uma palavra, a promoção da visão particularista a fim de manter a estrutura social, a ordem, em sua real integridade, o que significa dizer perfeitamente hirta, estática.

Poder-se-ia dizer a partir daí, mas com inegável equívoco, que o homem médio brasileiro nada mais é que a refutação incisiva do “homem cordial”, uma vez que a concepção privada da ordenação pública seria, em rigor, aberta neste e fechada naquele. Pelo contrário: pois, sendo assim, há antes um senso de continuidade do que propriamente de cisão entre a pusilanimidade de uns e a cordialidade de outros. O “homem de bem” sugere, hoje, a compressão moralista de um ser brejeiro, mas também truculento, em vias de expansão.

Por isso a definição clássica de Antonil para o tipo no qual se enxerga, de ordinário, a raiz ou o substrato tanto do “homem cordial” quanto do “homem de bem”, a saber: “o ser senhor de engenho”, que é, diz Antonil, “título a que muitos aspiram, porque traz consigo o ser servido, obedecido e respeitado” (ANTONIL, 1982, p. 75, grifos nossos).

No decorrer de nossa história, os princípios da “fé”, da “honra” e do “interesse”, irradiados pelo jaez escravista e exclusivista da antiga família patriarcal rural, e fixados nos primeiros tempos da colonização, dariam vez e lugar à mentalidade geral dos colonizadores. Esta como que definiu, a pouco e pouco, do campo para a cidade, a nossa formação civilizacional, com claros prejuízos à vida social, política e administrativa, tamanha a violação dos preceitos objetivos e impessoais do Estado burocrático, efetivada por interesses particularistas, ou como enfatiza Sérgio Buarque de Holanda: via cordialidade, “o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social” (HOLANDA, 2012, p. 53). O que pode ser resumido, à perfeição, nessas linhas de Gregório de Matos:

Quem cá se quer meter a ser sisudo
Nunca lhe falta um Gil que o persiga
E é mais aperreado que um cornudo.

Furte, coma [e] beba e tenha amiga,

Porque o nome d’El Rei dá para tudo
A todos que El Rei trazem na barriga

(MATOS, 2013, p. 83).

Levando-se a um efeito concreto, isto é, social e historicamente considerado, vale a pergunta: o que significa, pois, trazer “o rei na barriga”, senão reconhecer, de um lado, o jeito falastrão e exibicionista do “homem cordial” e, do outro, o orgulho de classe, algo baboso e que melhor se ajusta ao “homem de bem”? De qualquer forma, quer na esfera doméstica, quer no âmbito da praça, a noção coletivista e impessoal – ou o indivíduo livre dos vícios e mimos oriundos do círculo familiar – vê-se então esmagada pelo particularismo brasileiro. Afinal, em “nome d’El Rei”, ou antes, em nome da autoridade de muitos, tudo passa a ser possível: furtar, comer, beber e ter amiga; ou, se pusilânimes, assegurar, via moralismo (para “quem cá se quer meter a ser sisudo”), a manutenção mesma do quadro social.

Ora, o “homem de bem” não é fenômeno de agora e nem se acha vinculado, única e exclusivamente, ao setor médio urbano – isso no que concerne, claro, ao seu modo de ser sob o seguinte aspecto: sua deferência irrefletida e intransigente pelo Estado, pela família e pela religião.

A irreflexão é central aqui: sua visão de mundo incrivelmente curta deriva de uma rigidez moralista algo estranha à indisciplina espiritual do brasileiro, anotada então por Sérgio Buarque de Holanda, já que haveria, entre nós, “uma religiosidade de superfície, menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira espiritualidade” (HOLANDA, 2012, p. 57).

Nos setores empobrecidos, a rigidez moral parece ser fortalecida pelo raciocínio de que ser honesto (ser “trabalhador”) e armado de fé faz de alguém, em verdade, uma “pessoa de bem”. Na classe média, por sua vez, valores como a honestidade e a fé diluem-se na maior de todas as virtudes, qual seja: estar ligado a um grupo social com ampla possibilidade de progredir financeiramente. Tanto lá como aqui, o moralismo é vigoroso e atua como peça eficiente: no primeiro caso, para afastar o trabalhador daquilo que o macularia, isto é, levar uma vida desregrada, anticristã, dada à vagabundagem (por isso a forte oposição àqueles que participam de piquetes e outros gêneros de manifestação grevista); no segundo, para aproximar seus integrantes dos círculos de que pretendem fazer parte (daí as expressões “rapaz de família”, “moça de família”, “preparada para o lar”, “jovem promissor” etc.), mas para impedir, também, o avanço social dos mais pobres – um sinal claro de que o status quo deve ser preservado e estar livre de perturbação.

O certo é que esses modelos não têm por base real a eticidade propriamente dita (rechaçada, com vigor, no campo aberto da cordialidade), e, sim, uma obediência cega, mecânica, a um moralismo robusto, em sua ascese e estoicismo, e como que fechado em si mesmo. Tamanho autocontrole se verifica, por exemplo, em uma cena de Vidas secas, de Graciliano Ramos. Fabiano, ao ter o “soldado amarelo” sob o gume de sua faca, em meio à vastidão desolada da caatinga, e, assim, perto de dar fim a quem o oprimiu,

vacilou e coçou a testa. Havia muitos bichinhos assim ruins, havia um horror de bichinhos assim fracos e ruins.

Afastou-se, inquieto. Vendo-o acanalhado e ordeiro, o soldado ganhou coragem, avançou, pisou firme, perguntou o caminho. E Fabiano tirou o chapéu de couro.

Governo é governo.

Tirou o chapéu de couro, curvou-se e ensinou o caminho ao soldado amarelo (RAMOS, 1982, p. 107, grifos nossos).

Austeridade essa que pode ser constatada, sobretudo em meio à classe média urbana, em grupos distintos e francamente opostos no que toca a suas crenças, ideias, emoções, valores e projetos, como é o caso dos jovens pertencentes ao movimento cristão “Eu Escolhi Esperar”, os quais não abrem mão da castidade senão após o laço de núpcias; no outro extremo, há os que se submetem a um “controle disciplinar sem par na história, com o objetivo de conquistarem a aceitabilidade, a admiração e o respeito” (SABINO, 2002, p. 150), incluindo-se aí o prazer sexual. Nesse caso, desenvolvem aquilo que Cesar Sabino nomeou “hedonismo racionalista” (SABINO, 2002, p. 150), ou antes, as diversas etapas e restrições a que os fisiculturistas se sujeitam, com franco ascetismo, para a conquista da forma corporal desejada e, com isso, ampliar as vivências socioafetivas.

Em linhas gerais, pode-se dizer que o chamado “homem de bem” não conhece – porque as refuta com veemência – as expressões e formas da eticidade: o que realmente lhe importa é a preservação do caráter restritivo e opressor de sua visão de mundo. Dessa maneira, qualquer possibilidade de diálogo com o outro, com a diferença, com as manifestações plurais da eticidade, é elidida por completo à sombra de um moralismo avassalador.

A eticidade requer, implica diálogo; voltado exclusivamente para dentro – a família, a religião, o círculo de amizades –, o “homem de bem” põe termo, de modo antecipado, às vias de comunicação com outras formas de saber e modus vivendi.

Por não conhecer a eticidade, mas apenas o moralismo, dele não se espera outra coisa senão uma concepção mecânica, empiricizante e, por conseguinte, empobrecedora do todo complexo e contraditório que constitui, pois, a vida de relação. Daí que em seu lirismo, confessando aí a aspiração por uma “boa sociedade”, os meios de aferição desta serão o “certo” e o “errado”, o “abençoado” e o “ímpio”, “do lar” e “da vida”, e assim por diante.

Uma característica fundamental, no sentido de tentar uma definição sócio-histórica desse modelo, isto é, em sua concretude mesma, é o fato do “homem de bem” estar certo sempre; ninguém que seja impoluto e honesto, temente a Deus, cônscio de seus deveres e obrigações, cumpridor da lei, em dia com os impostos, ninguém com tais qualidades e atributos jamais, sob forma alguma, estará em erro. Esse traço definidor é algo próprio de setores de nossa sociedade que, no seu processo de formação, oscilariam muito, frequentemente entre um estado de semi-indigência (o trabalhador humilde) e a possibilidade quase remota de ascensão social (o orgulho classista dos chamados “emergentes”). Orgulho esse que, no Quincas Borba, de Machado de Assis, objetiva-se no gesto calculado de Sofia, pouco antes de deixar a casa de Rubião, a quem seduziu e depenou em consórcio com o marido, Palha:

Sofia, antes de pôr o pé na rua, olhou para um e outro lado, espreitando se vinha alguém; felizmente, a rua estava deserta. Ao ver-se livre da pocilga, Sofia readquiriu o uso das boas palavras, a arte maviosa e delicada de captar os outros, e enfiou amorosamente o braço no de dona Fernanda (ASSIS, 2008, p. 318).

Estarás certo sempre é o imperativo que se, por um lado, condiciona a maneira de ser do “homem de bem”, por outro, inviabiliza a possibilidade de diálogo com as expressões e formas da eticidade (índios, negros, LGBT, feminismo, trabalhadores rurais, os sem-teto etc.). De tal sorte que, no espaço amplo de nossa cordialidade, voltada essa inteiramente para fora, a visão lírica desdobra-se em uma objetividade cáustica cujo traço constituinte passa a ser, entre outros, a violência.

O maniqueísmo, algo simplório de nossa classe média, irrompe da sua condição de grupo cordato e pusilânime, mas convertido este, nos dias de hoje, em força moralista virulenta (verdadeiro dínamo), a ganhar então as ruas. A agressividade implicada aí explica no “homem de bem”, em boa medida, a deformidade do seu ethos. Eis, então, o lado sombrio de nossa cordialidade, sobretudo, quando se julga deveras contrariada. E não há aqui (no ser cordial) ou ali (no ser cordato) nada de bom, pois não há bem algum para se aferir em ambos.

Referências

ANTONIL, André João. Cultura e opulência no Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia, 1982. 

ASSIS, Machado de. Quincas Borba. São Paulo: Globo, 2008.

GONZAGA, Tomás Antônio. Marília de Dirceu. In: BARBOSA, Frederico (org.). Clássicos da poesia brasileira. São Paulo: O Globo/Klick Editora, 1997.

HOLANDA, Sérgio Buarque de. O homem cordial. São Paulo: Penguin Classics/Cia. das Letras, 2012.

MATOS, Gregório de. Poemas. 2ª ed. São Paulo: Martin Claret, 2013.

O BEM-AMADO, 25/01/1973, cap. 2. Direção: Régis Cardoso. Produção: Daniel Filho. Telenovela, 36:25. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=hd5Kk5AxlBk&t=9s. Acesso em: novembro de 2017.

PIZZO, Esníder et al. Idec. Vinte anos construindo a cidadania. São Paulo: Gráfica Ferrari, 2007.

RAMOS, Graciliano. Vidas secas. 48ª ed. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 1982.

SABINO, Cesar. Anabolizantes: drogas de Apolo. In: GOLDENBERG, Mirian (org.). Nu e vestido. Dez antropólogos revelam a cultura do corpo carioca. Rio de Janeiro e São Paulo: Record, 2002, p. 139-188.

Como citar este artigo

PELOGGIO, M. Confissões de um homem de bem: a radiografia de um modelo. Fragmentum, Santa Maria, p. 117-129, 2022. Disponível em: 10.5902/2179219467921. Acesso em: dia mês abreviado. ano.