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Universidade Federal de Santa Maria

Exten. Rur., Santa Maria, v. 31, e85706, 2024

DOI: 10.5902/2318179685706

ISSN 2318-1796

Submissão: 14/11/2023 Aprovação: 04/07/2024 Publicação: 02/09/2024

1 INTRODUÇÃO.. 3

2 NOÇÕES DE POBREZA PELA VOZ DE MULHERES NEGRAS ASSENTADAS: MEMÓRIA E COTIDIANO DE LUTAS COMUNITÁRIAS POR TERRA E REFORMA AGRÁRIA.. 6

3 perspectivas contra-hegemônicas: raça, pobreza e desenvolvimento.. 17

4 terra, liberdade e vida digna: teorias de mulheres negras assentadas. 23

5 considerações finais. 28

Referências. 30

 

Sociologia e Antropologia Rural

A gente não tinha capital, mas de verdade a gente era rico: pobrezas e vidas dignas narradas por mulheres negras assentadas no sul do Brasil

We didn’t have capital, but we were really rich: poverty and dignified lives narrated by black women settled in southern Brazil

Dayana Cristina Mezzonato MachadoIÍcone

Descrição gerada automaticamente

Pâmela Marconatto MarquesIIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural, Porto Alegre, RS, Brasil

RESUMO

Este ensaio problematiza a temática da pobreza experimentando levar a sério as vozes de mulheres negras assentadas, reconhecendo-as como teorias locais. O desafio foi o de juntar pistas sobre os modos como as noções de pobreza eclodem no cotidiano de mulheres que vivem em territórios associados a uma pobreza invariavelmente decodificada como destituição. Por meio de entrevistas em profundidade, sete mulheres que vivenciam a experiência da luta pela terra junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) no assentamento Filhos de Sepé, no sul do Brasil, narram suas noções de pobreza, miséria, riqueza e vida digna. Revisitando suas memórias, as mulheres tramam teorias ancoradas em lutas cotidianas que ressoam uma ética comunitária de sustentação da vida que se deseja. Conectadas com a terra e ao bom gosto de viver, suas reflexões indicam a importância de um investimento epistêmico sobre os conceitos de pobrezas e misérias, bem como suas abissais diferenças.

Palavras-chave: Assentamentos; Desenvolvimento; Mulheres negras; Pobreza; Teorias locais

ABSTRACT

This essay problematizes the issue of poverty, trying to take the voices of settled black women seriously and recognizing them as local theories. The challenge was to gather clues about the ways in which notions of poverty erupt in the daily lives of women who live in territories associated with poverty that are invariably decoded as destitution. Through in-depth interviews, seven women who experienced the struggle for land with the Landless Rural Workers Movement (MST) in the Filhos de Sepé settlement in southern Brazil narrated their notions of poverty, misery, wealth, and life worthiness. Revisiting their memories, the women weave theories anchored in everyday struggles that resonate with a community ethic of sustaining the desired life. Connected with the land and the good taste of living, his reflections indicate the importance of an epistemic investment in the concepts of poverty and misery, as well as their abyssal differences.

Keywords: Black women; Development; Local theories; Poverty; Settlements

1 INTRODUÇÃO

Neste ensaio, experimentamos o diálogo respeitoso com teorias produzidas por mulheres negras em contextos de lutas sociais, problematizando uma temática bastante estudada: a pobreza. O interesse pelo estudo da pobreza se deu aos autores com a constatação de que na literatura de área, nos textos institucionais e marcos legislativos que circulam tanto na área de desenvolvimento rural, os “pobres” são insistentemente definidos por aquilo que supostamente lhes falta. A experiência viva de ambos com territórios decodificados apenas por sua pobreza impunha, na contramão disso, uma atitude de suspeição diante dessa assunção homogeneizadora e arbitrária. Vidas simples e pessoas comuns evidenciavam modos diversificados e complexos de estar no mundo, que colocava sob suspeita a aparente homogeneidade daquela pobreza “todo-carência” dos textos institucionais com os quais tivéramos contato.

As narrativas das mulheres apresentadas aqui compõem parte da pesquisa de campo do curso de doutorado do primeiro autor, com orientação do segundo e foi realizada no Assentamento Filhos de Sepé, em Viamão, Sul do Brasil; uma área de reforma agrária conquistada por meio da luta junto ao Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST). O assentamento Filhos de Sepé nasceu em 1998 a partir da junção de famílias que, no início da década de 1990, formaram os acampamentos Palmeirão e Santo Antônio, localizados na região noroeste do Rio Grande do Sul. Endividadas e expulsas pela monocultura da soja naquela região, famílias sem-terra ou com pouca terra uniram-se à luta pela reforma agrária (Machado, 2015).

A opção por fazer a pesquisa caminhando junto com mulheres vem de uma relação íntima do primeiro autor com as famílias e os territórios da reforma agrária, iniciada em 2003 quando participou do Estágio Interdisciplinar de Vivência (EIV) convivendo durante quinze dias com a família de dona Silica e seu Dico no assentamento Resistência, município de Sete Lagoas, em Minas Gerais. Desde então, passou acompanhar os processos de luta e organização do MST atuando na extensão rural em assentamentos de reforma agrária, inicialmente em Minas Gerais e mais tarde no Rio Grande do Sul, onde trabalhou no programa de Assessoria Técnica, Ambiental e Social (ATES). Nessa trajetória foi-se percebendo que tanto na vida cotidiana, como nas mobilizações, nos cursos e nos encontros, as mulheres estavam nas esferas de cuidado daquilo que garantia as condições essenciais para a continuidade da vida. O cuidado com as crianças, a alimentação - do plantio ao preparo –, a saúde, o embelezamento dos espaços, a educação. Desse modo, a pesquisa com mulheres relaciona-se com a opção por ouvir estórias que pudessem vir destes corpos-lugares: de cuidados com a manutenção da vida.

A pesquisa de caráter exploratório usou a metodologia estórias de vida, quando foram realizadas entrevistas em profundidade com sete mulheres: Maria, Teresa, Teca, Lúcia, Heloísa, Lurdes e Nilsa. A indicação das mulheres que participaram da pesquisa foi feita pela coordenadora do assentamento, Lurdes. Por escolha das interlocutoras seus nomes originais foram mantidos. Além das entrevistas, que foram gravadas e transcritas, utilizou-se a metodologia da observação participante, quando houve o registro em diário de campo das observações e participações em reuniões e eventos diversos com a comunidade durante os meses de setembro de 2021 a março de 2023.

As narrativas das mulheres negras assentadas apresentadas aqui emergem de corpos-lugares singulares e específicos, que não tem a pretensão de serem universais. Nesse caso, o uso da expressão “corpo-território” está inspirada na proposta de pensamento epistêmico das mulheres indígenas feministas comunitárias e territoriais[1]. Para Cabnal (2010), pensadora maya-xinka, o feminismo comunitário vai sendo tecido desde o território histórico enquanto mulher indígena, desde seu corpo e de sua relação com a terra. É importante destacar que a proposta epistêmica dos feminismos comunitários e territoriais não se trata de uma vertente local e subalternizada de um feminismo que se entende universal em seus esquemas interpretativos e nas suas propostas de emancipação. Trata-se de um sistema de pensamento comunitário forjado a partir de lutas protagonizadas por mulheres indígenas de abya yala e de suas comunidades, formadas por sofisticadas redes de relações humanas e não humanas, desde o chão de seus territórios.

Do ponto de vista metodológico, a proposta de evidenciar narrativas de mulheres negras assentadas tem inspiração nas provocações do pensamento crítico pós-colonial de Spivak (2010) em seu ensaio “Pode o subalterno falar?” e nos textos contra coloniais sobre a sofisticação do pensamento das pessoas comuns, de Anjos (2019, 2006). Consideramos que contar estórias é um recurso de acesso a memória que, segundo Martins (2024), em seu livro “Performances do tempo espiralar”, as culturas que não tiveram direito à história oficial, o conhecimento se transmite e produz pela oralidade e outras performances do corpo. Desse modo, este ensaio aposta na potência existente nos encontros entre as diferenças (Glissant, 2021), em que foi feito o exercício de evidenciar teorias locais, buscando colocá-las em diálogo com narrativas dominantes da pobreza. Vale dizer que foram caminhos tortuosos, que implicaram em muitos deslocamentos exigindo movimento e vida para os pesquisadores.

Além dessa introdução e das considerações finais, o texto está dividido em três partes, na primeira, por meio da memória das mulheres negras assentadas e fragmentos do diário de campo, buscamos apresentar como o tema da pobreza eclode na voz das mulheres. Suas estórias mostram detalhes cotidianos daquelas que vivenciaram em seus corpos as violentas tentativas de deslegitimação das lutas comunitárias por terra e reforma agrária, apresentando a compreensão da noção dominante de pobreza, construída de fora, associada a violência, miséria, infelicidade e a corpos pretos. Na segunda seção, a partir das questões levantadas pelas mulheres, problematizamos a noção dominante da pobreza dialogando com teorias da crítica decolonial e contra-colonial. Na terceira seção, experimentamos dialogar com teorias produzidas nas lutas e nas lidas pelas mulheres, apresentando conceitos e noções de pobreza e miséria, bem como riqueza e vida digna.

2 NOÇÕES DE POBREZA PELA VOZ DE MULHERES NEGRAS ASSENTADAS: MEMÓRIA E COTIDIANO DE LUTAS COMUNITÁRIAS POR TERRA E REFORMA AGRÁRIA

Cada uma das mulheres foi convidada a contar suas estórias de vida, a partir do desejo e da necessidade de comunicação que cada uma sentisse, de modo bem livre. A opção por fazer a abordagem dessa maneira ampla teve por intuito observar se a temática da pobreza aparecia desde suas memórias. De certo modo, era um jeito de perceber se fazia sentido para elas falar de pobreza, e se sim, em que termos. Caso o tema não aparecesse de modo espontâneo, a abordagem direta sobre o tema seria feita, no entanto, em todas as entrevistas a temática apareceu. O texto fará uso da primeira pessoa sempre que se referir às experiências de campo conduzidas pela primeira autora.

Como dito na apresentação deste ensaio, o acesso à memória como conhecimento faz referência às possibilidades de produção e inscrição do saber para além da escrita. Martins (2024) afirma que enquanto a cultura ocidental privilegiou os livros, os museus, as partituras e os escritos como plataformas privilegiadas para o resguardo da memória, em culturas africanas e indígenas a memória se apresenta por meio de práticas performáticas, dentre elas, a oralidade.

As culturas africanas transladadas para as Américas encontravam na oralidade seu modo privilegiado, ainda que não exclusivo, de produção de conhecimento. Assim como para os povos das florestas, a produção, inscrição e disseminação do conhecimento se davam primordialmente, pelas performances corporais, por meio de ritos, cantos, danças, cerimônias sinestésicas e cinéticas. Por meio delas, uma pletora de conhecimentos se retransmitia através do corpo em movimento e por sua vocalidade, desde comportamentos mais simples, expressões práticas e hábitos do cotidiano até as mais sofisticadas técnicas, formas, processos cognitivos, pensares mais abstratos e sofisticados, entre eles a cosmopercepção ou filosofia (Martins, 2024, p.36).

Desse modo, a metodologia “estória de vida”, escolhida como possibilidade de acesso a memória, ancorada na noção trazida por Martins (2024), apresenta-se como instrumento de acesso também às teorias das mulheres assentadas. Apresentamos a seguir diálogos entre trechos do diário de campo.

Agendei a entrevista com Maria por whatsapp. No dia marcado choveu bastante, mas quando cheguei a sua casa, a chuva havia parado. Os cachorros me receberam e, do galinheiro, Maria me avistou, disse para eu ir chegando enquanto caminhava até a varanda onde nos cumprimentamos. “Vamos entrar porque aqui fora está frio”. Deixei meu calçado na porta e ela gentilmente me emprestou um chinelo. Perguntou se precisaria de mesa para escrever, respondi que não era necessária, então ela me indicou para sentar em um dos sofás que fica na sala, em um ambiente amplo e bem iluminado, onde também havia uma mesa grande, estava separada da cozinha por uma bancada. Um cachorrinho que ora vinha até mim e ora até Maria, acompanhavam nossa conversa. Disse-me que com a pandemia as coisas não estavam fáceis, suas vendas tinham caído muito, pois já não havia mais feiras. Maria faz pães e outros panificados para vender em feiras e “de porta em porta”, também comercializa hortaliças e plantas medicinais. Perguntou em que poderia me ajudar. Senti necessidade de retomar a apresentação do objetivo da pesquisa e então, expliquei que me interessava proporcionar alguma possibilidade para que a “voz” das mulheres do assentamento pudesse ocupar espaço na universidade. Busquei explicar que “voz”, nesse caso, era entendida enquanto os pensamentos e as compreensões de mundo. Com concentração e aparente curiosidade seus olhos me olhavam atentamente, o que sustentava o cuidado com o andamento da pesquisa: Estaria sendo clara na minha explicação, fazia sentido pra ela? Tentando suportar as dúvidas, convidei-a para contar sua estória de vida, indicando que ficasse bem à vontade para destacar o que quisesse, e que eventualmente eu faria algumas perguntas. Perguntei se poderia gravar, ela me disse que sim. Começou contanto que ela e seu esposo Carlos[2] moravam em Passo Fundo quando um irmão do Carlos os convidou para irem para o acampamento, no ano de 1996.

Mas aí a gente tinha o Eduardo bem problemático de saúde. Ele tinha rinite alérgica e um monte de complicação, ficava tão sufocado que não conseguia nem respirar, daí tinha que sair correndo com ele pro pronto socorro. Daí pensamos, pensamos, porque a gente sabia como era, pra entrar e sair do acampamento era uma dificuldade, né? Mas a vontade era imensa. O que que vamos fazer? Conversamos, conversamos, conversamos e eu disse: Tu vai, tu vai e eu fico com as crianças. Eu fiquei com os três pequenos. Eu fiquei.

Quando Maria reafirmou que ficou, ela fez uma pausa e instalou-se uma atmosfera de emoções, que senti como uma espécie de orgulho de si mesma – por ter conseguido – misturado às memórias das possíveis dores e dificuldades que esse ato de ficar e cuidar dos filhos implicou. Maria morava em Passo Fundo, havia se mudado para a cidade depois que sua família perdeu a pequena quantidade de terra, endividados pelo plantio da soja.

Eu tive muito problema com o Eduardo, ele chorava, chorava, chorava, fazia ‘N’ barbaridades na creche. Teve uma época que eu entrava no ônibus e estava tudo bem, quando chegava perto da creche ele começava ter ânsia de vômito, ele vomitava mesmo. Aí um dia a psicóloga me chamou. “A gente tá preocupada. Tem alguma coisa acontecendo com o Eduardo. O que que é?” Ai eu contei pra ela. Fiquei com vergonha, mas contei toda a história do acampamento, como é que era. Elas me disseram: “Bah, mas o pai dele tem que vir ver ele mais seguido, o Eduardo tá sentindo falta”. Eu disse, não tem como, não pode sair do acampamento.

Entendi as razões da dificuldade em sair do acampamento na entrevista com Teca. Ela me disse que, no final dos anos 80 e início dos 90, era extremamente perigoso se algum Sem Terra sozinho fosse identificado na rua, havia muita perseguição naquela época; algumas pessoas já tinham sido presas e torturadas, além disso, colocava-se toda a luta do acampamento em risco. Ao mesmo tempo, em algumas situações não se podia sair porque a polícia não permitia. Teresa, mãe de Teca, me contou que a polícia cercou seu acampamento, proibindo qualquer tipo de contato externo.

O INCRA levou nosso acampamento para uma área em Bagé, disse que era para nos ensinar a trabalhar. Levou e nos cercou. Tudo em volta era polícia. Ficamos isolados e cercados, eles não nos deixavam sair. Nós tivemos uma epidemia de sarampo. Imagina duas mil famílias, quantas crianças não eram?! Praticamente cada fim de semana nos perdíamos uma criança. Porque lá não tinha divisão, os filhos eram de todos, não tinha esse negócio de esse é meu, esse é seu! Eram nossas crianças, nossos jovens. Até que um dia, me lembro como se fosse hoje, nós perdemos a finadinha Fabiana. Então nós mulheres dissemos: Não! Deu! Chega! Eles vão ter que nos deixar passar! Agora ou é vida ou é morte! Com ela nos braços, nós fomos lá enfrentar o batalhão de brigadianos! (Os grifos são formas de tentar representar a ênfase da fala de Teresa).

Lurdes lembra que no dia da ocupação todas as pessoas foram presas, inclusive as mulheres. Heloisa, comadre de Lurdes, estava com o seu filho de apenas três meses e teve que ir com ele para a delegacia. “Todas nossas coisas foram retidas. Não deixaram nós levar nada”. Naquela noite Denilson ficou sem as fraldas e sem o leite. “Lembro até hoje o choro dele.”

As estórias das mulheres me ajudavam a perceber os sentimentos envolvidos na decisão de ir e permanecer no acampamento lutar pela terra, assim como os sentimentos de quem fica. Os cuidados aos quais as mulheres dedicam-se ecoavam perguntas como: porque, afinal, pessoas simples e organizadas pelo objetivo comum de ter um pedaço de terra estavam sendo brutalmente cercadas? Por que seus direitos de ir e vir estavam sendo violados e seus modos de cultivarem a terra estavam sendo impugnados, a ponto de o INCRA afirmar ser necessário ensinar-lhes a plantar?

Maria lembra bem da dor que sentiu quando uma pessoa da sua família disse que queria mesmo era que jogassem uma bomba em cima do acampamento e acabassem com tudo. Ela conta que a maioria dos seus familiares tinha preconceito.

Os meus familiares demoraram muito pra vir me visitar. Eles viam assim como verdadeiro pavor a gente vir pra um assentamento. Eles demoraram tempos, muito tempo pra vir me visitar. E aí o dia em que vieram, uma sobrinha minha teve coragem de dizer, me olhou assim e disse: – “Bah   tia, te juro que eu nunca pensei que era assim”. – E como que tu pensou que era? – “Ah, eu pensei que eu ia chegar aqui e eu ia encontrar um barraquinho em cima do outro, aquilo que a gente vê lá nas vilas de Passo Fundo, todo mundo numa pobreza, numa tristeza, a gente nem queria vim”. – Tá, mas eu sempre falei pra vocês que não é assim... Mas a imprensa diz que é assim, né? Que é miséria, que é pobreza, que é uma vagabundagem.

A observação de Maria sobre a imprensa demarcava uma contundente diferença entre a sua experiência vivida e o imaginário que o discurso dominante construía.  Seguindo as pistas de Maria pesquisei sobre o que a grande mídia divulgava sobre a luta dos trabalhadores sem terra no período em que estavam acampados. Em 15 de agosto de 1990, a revista Veja publicou uma edição cuja capa dizia “Violência. A escalada de selvageria assusta o país”. Acompanhando os dizeres, uma imagem na qual se veem, em meio à fumaça das bombas policiais, dois homens simples, não brancos, cada um com uma foice na mão, diante de vários policiais fortemente armados e protegidos por escudos. Na edição de 16 de abril de 1997, período em que Teresa e Teca já eram assentadas e o companheiro de Maria estava acampado, a mesma revista publicou uma matéria intitulada “A marcha dos radicais – quem são e o que querem os sem-terra”. No texto, a seguinte apresentação:

Representantes de um Brasil Arcaico, descalços, dentes ruins, bicho-de-pé e pouco estudo, os sem-terra invadem propriedades, desrespeitam a lei e enfrentam a polícia. Já morreram e mataram nesses conflitos. Parecem um pouco os fanáticos do beato Antônio Conselheiro (Passos, 2014).

Assim como na edição de 1990, a revista insiste na vinculação dos Sem Terra com a violência e a selvageria, associando-os ao mesmo tempo à noção degradante de pobreza. Ao considerar arcaicas essas existências, a narrativa dominante vai construindo a ideia de que alguns modos de viver não são legítimos, no limite, deveriam desaparecer. Ao mesmo tempo, apresentar a pobreza com detalhes tão vis parece, por si só, suficiente para interditar a razão das reivindicações do grupo, sua “civilidade” estaria comprometida.

Heloísa contou que no município em que ela nasceu e se criou, Cachoeira do Sul, não se tinha muitas notícias sobre as lutas pela terra e as atividades do Movimento Sem Terra.

Cachoeira não deixava entrar esse tipo de notícia. Eu não me lembro de nenhuma situação de eu ter visto alguma coisa de sem terra em Cachoeira. Na época, o Nilson – meu companheiro – morava em Porto Alegre e eu, em Cachoeira, então a gente se via no final de semana. Quando eu passava em Arroio dos Ratos, ali tinha um acampamento, eu chamava de vagabundo. Que são as ideias que as pessoas põem e a gente corre atrás. Eu vinha sexta de noite e voltava domingo de tarde, nesse final de semana a gaita estava batendo, gaita e violão. Aí tu fazias o cálculo que aquilo era só festa a semana inteira. Podia ser só um cara brincando, mas já passava que era todo mundo numa festa só. Como a gente muda quando começa entender o processo lá dentro mesmo, né?

Compreendi que Heloísa me apresentava sua visão inicial dos Sem Terra, denominados “vagabundos”, para explicar que assim como ela, que hoje é assentada, muitas pessoas também eram influenciadas pelas ideias que as pessoas colocam. Essas “ideias” não toleram gente simples, lutando e vivendo em barracas improvisadas na beira da estrada, fazendo festa e divertindo-se. Assim como Maria também explicou que havia uma construção pela mídia que associava Sem Terras e assentamentos com vagabundagem e infelicidade, Heloísa, por meio do seu exemplo, evidenciava que o comportamento dos Sem Terra era moralmente desclassificado, julgados desordeiros e indignos por quem vê de fora, no entanto, “a gente muda quando começa a entender o processo lá dentro mesmo”.

No dia 08 de maio de 2004, ano em que Heloísa e Nilson foram para o acampamento, o jornal Folha de São Paulo publicou, na coluna Opinião, texto de Graziano, no qual argumentava que a reforma agrária no Brasil não tinha mais sentido, já que o rural – para ele representado univocamente pelo agronegócio – modernizou-se e insistir na reforma agrária, para ele, era um entrave ao desenvolvimento.

Gente boa, miserável, mistura-se aos oportunistas e malandros para ganhar um lote nos assentamentos. Iludidos com promessas de futuro fácil, massas são manipuladas e treinadas para invadir fazendas e erguer lonas pretas. A classe média se apieda, enquanto a burguesia, assustada com a marginalidade, apoia veladamente: faça o favor de seguir para bem longe daqui! Assim, a favela mudou de lugar - dos barracos na periferia para os acampamentos rurais. Imaginar que um pobre alienado, sem aptidão nem cultura adequada, possa se tornar um agricultor de sucesso no mundo da tecnologia e dos mercados competitivos significa raciocinar com o absurdo (Graziano, 2004, P.2).

Para ele, os “pobres” em luta pela terra estariam entre “gente boa e miseráveis” e “malandros e marginais”. A associação de assentamentos com favelas se enquadra numa narrativa que, pela mera comparação, visa deslegitimar as pessoas e suas reivindicações. Como conta Souza (2018) no livro “Cria da favela”, pelo discurso hegemônico a favela é construída como o lugar socialmente das carências e do excesso de violências. Assim como a favela e os favelados, a luta pela terra, os assentamentos e os assentados vão sendo sistematicamente construídos como corpos e territórios de uma pobreza degradante: miserável e perigosa.

Na entrevista com Nilsa perguntei como havia sido o início dela no assentamento. Contou-me que tinha chegado em 2009, quando se casou com Elói, que já era assentado. Ela disse:

Só estando junto que a gente conhece e sabe como é que funciona. Porque tem muita gente que nem tem ideia de como é. Tem muita gente que acha que é uma vida diferente do outro povo que tá na roça. Eu tive questões assim até de uma médica. Conversando na consulta, ela me perguntou, mas você mora aonde? Ai eu disse, eu moro no assentamento em Águas Claras[3]. Aí ela: – “Assentamento, o que que é? Vocês moram em barraca? Vocês moram em barraca preta?”. Ela me olhava assustada. Eu disse: – Não, nós não moramos mais em barraca de lona preta. Quem mora em barraca de lona preta são os que estão acampados. Eu expliquei que eram aqueles que estão em luta para conseguir um pedacinho de terra e os assentados são aqueles que já conseguiram o seu terreno e já estão com sua casa que com muita luta, muita dificuldade, muita garra eles conseguiram conquistar a terra e hoje, aonde eu estou morando, é uma casa de material. Ela disse: – “Ah é? Eu pensava tudo ao contrário, eu achava que vocês eram como uns favelados.” Bem assim ela me disse. E outras pessoas também questionam, e aí o que que eu digo quando eles perguntam se é uma vida muito difícil, se é uma vida pobre demais, eu digo: Vocês têm que ir lá conhecer!

Vemos que os imaginários hegemônicos sobre as favelas e os acampamentos, em tese lugares de pobreza, são abstratamente construídos como precários. A estória de Nilsa reforça a questão trazida por Maria, em que novamente aparece nesse imaginário a noção de assentamento como lugar “pobre demais”.

A noção de pobreza vista e elaborada de fora – vil, precária, violenta, associada a corpos pretos – vai sendo apresentada pelas mulheres negras assentadas como uma temática recorrente em suas vidas e que exige delas elaborações cotidianas de contra-narrativas para dar conta de suportar a relação com o Outro. Como é o caso de Nilsa, que descobriu no convite para virem aqui conhecer o assentamento, e um pouco da sua vida, a possibilidade da fabulação de outros mundos, a construção de novas lentes, apostando na potência criadora do encontro. As mulheres negras assentadas reconhecem essa pobreza vista de fora, pois sendo personagens dessa história – contata por terceiros – elas habilmente identificam as violências que promovem os apagamentos dos seus mundos. Por outro lado, as elaborações sobre pobreza por elas que vivem nos territórios ganham sentidos bem distintos. Outras reflexões eclodem para dar conta de pensar as diversidades nos acampamentos e nos assentamentos.

Heloísa conta:

Logo que cheguei no acampamento comecei a ver muita gente que bebia, que tinha problema disso e daquilo. Aí eu dizia: “Como que essas pessoas vão ficar aqui e ganhar terra?” Com o tempo fui vendo que uma coisa não tem nada a ver, as pessoas são, tem os seus problemas de vida, tem as suas angustias e as pessoas vão vivendo, vão resolvendo os seus problemas. Não precisamos de alguém pra dizer o que pode ou não pode. São pessoas, são trabalhadores, lutando pelo seu ganha pão, do seu jeito.

Em contextos muito específicos as mulheres se autodenominam pobres, evidenciando as fronteiras que tais definições demarcam. Heloísa afirma que

às vezes as pessoas são pobres, mas acham que não são porque tem uma carroça a mais, porque tem um fogão diferente da outra. “Ah, então eu sou mais do que a outra!”. Mas não são. Tudo é trabalhadora, tudo é pobre. Mas a mídia e as ideias colocam que as pessoas são diferentes umas das outras por aquela bugiganga que uma tem diferente da outra.

Durante a reunião de preparação para festa de aniversário do assentamento, em uma conversa informal entre as mulheres, Maria também fez o uso da palavra “pobre” enquanto autodefinição. Ela contou que logo após as eleições, no dia 01 de novembro, quando estavam tendo bloqueios da rodovia RS 040, em Águas Claras, organizados pelos apoiadores de Bolsonaro que, em atos antidemocráticos, contestavam o resultado das eleições e tentavam intimidar a população. Era noite, próximo às 23 horas, Maria voltava de carona do curso de Educação de Jovens e Adultos (EJA), quando ficou presa num desses bloqueios. Ela viu um grupo de homens cercando o carro logo a sua frente. O carro foi parado e ela percebeu movimentos estranhos. Foi então que ela reconheceu que se tratava de uma conhecida, uma mulher jovem, em um carro simples que tinha o adesivo do Lula. As palavras que ela conseguiu ouvir eram carregadas de violência sexual. Disse que quando estava prestes a descer, pois segundo ela “não iria suportar ver que fizessem mal a outra mulher”, mesmo que sua vida corresse risco, viu que outro homem – provavelmente conhecido da mulher – chegou e dispersou o grupo, liberando o carro. Maria contou esse breve relato muito angustiada, chorando disse que ela temia pelo que tais pessoas seriam capazes de fazer. Disse algo como “porque a gente sabe o que pode acontecer para nós, que somos pobres”. Ela falava de ódio aos pobres, uma aversão de pessoas ricas às pessoas pobres, cujos efeitos eram conhecidos por ela, e por aquelas que a ouviam.

A autodefinição de Maria como pobre demarca a diferença política, econômica e ideológica de outra classe que, como apresentado por ela, seria a classe dos “não-pobres”, historicamente privilegiados, e que odeiam os “pobres”. As estórias das repressões sofridas nos acampamentos, nas marchas e nas mobilizações que dona Teresa rememora, elucidam esses sentimentos. Elas sabiam que o aparato estatal e midiático era muito eficiente na defesa dos “não-pobres”. E ainda que naquela ocasião dos bloqueios pós-eleições fossem os “não-pobres” que estavam “fazendo baderna”, a angústia de Maria evidenciava que o aparato estatal continuaria defendendo a classe que sempre defendeu.

Nesse sentido, é possível afirmar que a palavra pobreza adquire vários sentidos para as mulheres dessa pesquisa. Quando nomeada por alguém que não vive em corpos-territórios decodificados como pobre, ela se apresenta como sinônimo de miséria, muitas vezes associada à violência e vagabundagem.

Entre as mulheres assentadas, a pobreza evocada no cotidiano muitas vezes é proferida a partir da relação política que diferenciam “pobres” de “privilegiados”. Elementos de exploração e privilégios próprios da organização capitalista são utilizados para demarcar diferenças jamais vistas como naturais e tampouco meritocráticas. Desse modo, a autoidentificação como pobre aparece em contextos quando se busca diferenciar da opulência do acúmulo de bens materiais, ou seja, daqueles que sempre tiveram privilégios e poder, sejam eles econômicos, sociais, políticos e raciais. Nesse caso, afirmar-se pobre é motivo de orgulho, pois ainda que historicamente exploradas e oprimidas, sempre batalharam e se mantém de cabeça erguida, altivas ao seu modo de existir.

A narrativa dominante da pobreza vai sendo desnudada pelas mulheres negras, que compreendem bem as insistentes tentativas de associá-las à tristeza, miséria, vagabundagem. Levar a sério os pensamentos das mulheres sobre os efeitos desse imaginário dominante na deslegitimação das suas vidas e lutas passa pela constatação da incontornável diferença entre os modos como suas vidas, seus corpos e seus territórios são lidos por lentes outsider, e os modos como elas as concebem. Deslocando a noção dominante de pobreza, as mulheres vão apresentando fissuras nesse conceito, fendas pelas quais vazam noções outras. Na próxima seção aprofundaremos sobre as perspectivas que, ao problematizarem a noção dominante de pobreza, apresentam novas possibilidades de leitura sobre a temática.

3 perspectivas contra-hegemônicas: raça, pobreza e desenvolvimento

Ao final da entrevista com Lúcia, ela disse que “lembra como se fosse hoje” da primeira vez que ouviu falar sobre a luta dos Sem Terra. Ela tinha aproximadamente 12 anos, e estava na escola, quando a professora conversou com os alunos sobre o que tinha acontecido na Fazenda Annoni[4], primeira grande ocupação de terra pelo MST. Era o ano de 1985, Lúcia morava em Três Passos, município relativamente perto de Sarandi, onde houve a ocupação. Ao final da explicação da professora um dos alunos disse: “Tudo schwarz né professora?” Lúcia explicou que o menino, filho de familiares com descendência alemã, tinha dito “Tudo preto, né professora?”. Ela, que se lê como mulher negra, lembra dessa estória como se fosse hoje e escolheu trazê-la para nossa conversa, marcando a relevância dessa discussão para ela. Seu testemunho ressoou como um alerta sobre a importância de, enquanto pesquisadores levarmos a sério suas palavras. Como lembra Spivak (2010) ao final do seu ensaio “Pode o Sulbalterno falar?”: “A mulher intelectual como uma intelectual tem uma tarefa circunscrita que ela não deve rejeitar com um floreio” (Spivak, 2010:126). Nesse sentido, entendemos que Lúcia convoca a pensar as relações entre pobreza e raça, chamando atenção que aquilo que supostamente se apresenta como violação e problema está, invariavelmente, associado a corpos negros.

Desde o início do século XX, a questão racial se fazia presente nas elaborações sobre a “nação brasileira”, como vemos na literatura e nos clássicos contos de Monteiro Lobato.

Chegam silenciosamente, ele e a ‘sarcopta’ fêmea, esta com um filhote no útero, outro ao peito, outro de sete anos à ourela da saia. Este funesto parasita da terra é o CABOCLO, espécie de homem baldio, seminômade, inadaptável à civilização, mas que vive à beira dela na penumbra das zonas fronteiriças. À medida que o progresso vem chegando com a via férrea, o italiano, o arado, a valorização da propriedade, vai ele refugindo em silencio, com o seu cachorro, o seu pilão, a pica-pau e o isqueiro. (Lobato, 2014, p. 165)[5]. (Grifo nosso).

Na literatura de Lobato do início do século XX, a discussão racial aparece nitidamente como diferença que marca o início da ideia de modernização do rural brasileiro. No texto “Sob o olhar do outro: o experimento do racismo científico nas missões brasileiras de instruir e sanear populações pesqueiras” a socióloga Cyrino (2020) discute e aprofunda essa questão a partir do racismo científico no Brasil, também no início do século XX. Por meio de um minucioso estudo, ela analisa os projetos de eugenia discutidos na época. Como é o caso do médico Renato Kehl que defendia “a existência de um tipo superior humano, que precisava ser preservado, e de um tipo inferior, impermeável à civilização. Previa assim, a eliminação gradativa do “elemento degenerativo humano”, e a redução paulatina do que concebia como a segunda e terceira espécies”. Segunda ela “O eugenismo era a aplicação social dessa ciência, através de práticas de higiene, moral, educação, legislação. Promovendo políticas que pudessem respaldar uma ação eugênica no país” (Cyrino, 2020, p. 22).

Buscando elucidar como se deu a construção da pobreza como “problema nacional” no Brasil, Sprandel (2004), afirma que até 1950 a pobreza aparece nas análises principalmente para adjetivar aqueles que eram considerados os “verdadeiros problemas”: ora como resultado da mestiçagem, ora da escravidão. Segundo ela, os moradores do interior do Brasil eram analisados a partir de sua apatia, sua tristeza e suas doenças; enquanto as análises sobre a “classe baixa” das cidades, apesar de fazerem referência à pobreza, centrava-se na sua potencial periculosidade.

Ao mesmo tempo em que se preparava para sanear as grandes cidades e o sertão, a medicina do final do século XIX permanecia fortemente arraigada nas teorias racistas. Tendo vencido as epidemias, tratava-se agora de “curar” a raça. Ou seja, a raça como fator explicativo da pobreza permanecia forte, notadamente no sentido de desviar a atenção das hierarquias econômicas e sociais (Sprandel, 2006, p.85).

Por meio de uma arqueologia dos pensamentos hegemônicos que buscaram interpretar o Brasil, a autora mostra que até a II guerra era a raça que explicava a razão da pobreza, sendo aquela considerada a questão que colocava em xeque a possibilidade de sermos, ou não, uma nação. Será, portanto, somente a partir de 1950 que a pobreza emerge enquanto “problema” central nas interpretações hegemônicas sobre o Brasil, acompanhando uma tendência no discurso mundial construído a partir do binômio pobreza e desenvolvimento. O conceito de pobreza, construído como dominante e que forçosamente unificou e homogeneizou a diversidade de grupos excluídos da “civilização”, dissimulou o racismo científico. Nesse sentido, a memória de Lucia lembra que refletir sobre pobreza e luta pela terra demanda o exercício de pensarmos também as questões de raça.

O pensador iraniano Rahnema (2001) vai dizer que a noção naturalizada e homogeneizada que temos hoje da pobreza é parte de um discurso moderno que nasce no pós II guerra associado à ideia da falta de desenvolvimento. No livro “The Development Dictionary: A Guide to Knowledge as Power”, o autor afirma que a “pobreza global” é uma construção moderna, criada e padronizada por indicadores exclusivamente econômicos, como é o caso da “linha da pobreza” e da lista dos países mais pobres do mundo, produzida periodicamente pela Agência das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Um dos principais atores na criação e reprodução desse repertório – feito de certa gramática e de métricas específicas – tem sido o Banco Mundial, que em um dos seus primeiros relatórios, considerou pobre e subdesenvolvido aqueles países com uma dada renda média per capta, aferida sempre em comparação aos países “desenvolvidos”, e atribuindo aos últimos, em especial aos Estados Unidos, a prerrogativa de ajudarem os países pobres a elevarem seus padrões de vida:

Pela primeira vez na história, nações e países inteiros passaram a ser considerados (e se considerarem) pobres, sob o argumento de que sua renda total é insignificante em comparação com aqueles que hoje dominam a economia mundial. Consequentemente, a renda nacional foi introduzida como uma nova medida global para expressar os vários estágios do desenvolvimento econômico, proposto como a resposta final à pobreza. (Rahnema, 2010, p.178).

Quando o discurso da falta de desenvolvimento como a causa da pobreza é acionado e sustentado pelas nações do norte global, se expande para todas as nações lidas como “subdesenvolvidas” do globo. Parte da contribuição dessa proposta é recordar que a maioria dessas nações eram recém-saídas de processos revolucionários anticolonialistas, situadas, sobretudo, no continente africano e sul-asiático e que, ao ingressarem nos órgãos internacionais recém-criados, o farão sob a condição de problema a ser resolvido pelo empenho do Norte Global (Escobar, 1995). No cenário do pós-guerra, organismos internacionais recém-criados, como o já citado Banco Mundial (BM) e a Organização das Nações Unidas (ONU) declararam “guerra à pobreza” em países onde supostamente o desenvolvimento ainda não havia chegado, e onde supostamente reinava o obscurantismo, a tradição, a selvageria, o atraso e a carência.

Nessa mesma direção aponta o sociólogo venezuelano, Lander (2005), ao afirmar que a pobreza na Ásia, África e América Latina foi “descoberta” no período do pós II guerra a partir de uma definição estritamente econômica e quantitativa. De modo arbitrário, em 1948 o Banco Mundial definiu como pobres aqueles países cujos ingressos anuais eram inferiores a US$100 per capta. Foi assim que dois terços da humanidade acabaram transformados em pobres, e consequentemente carentes de intervenção. A solução para tamanho problema era o desenvolvimento, que nasceu a partir da criação de anormalidades (os “pobres”, os “desnutridos”, os “analfabetos”, as “mulheres gravidas”, os “sem terra”), as quais deveriam ser reformadas (Lander, 2005).

A partir de então, países e indivíduos decodificados como pobres passaram a ser objetos de conhecimento e de administração, escrutinados em nome dessa “guerra”. A pobreza tornou-se a temática central para muitos estudos acadêmicos, agências internacionais e órgãos governamentais, imbuídos das benevolentes tarefas de explicar suas causas, bem como estratégias para se combatê-la (Escobar, 2007). 

O geógrafo haitiano Anglade (1983) também teceu duras críticas a essa noção universalizada da pobreza, ele afirma:

Soube-se descrevê-la sem compreendê-la, lamentá-la sem respeitá-la, e sobretudo, soube-se amalgamá-la à miséria para desativar a alternativa de que está plena, quando se tinha simplesmente de questioná-la sobre os modos e vias de des-envolver [no sentido de desencobrir] os oprimidos para uma democratização que não tarde e nem falhe. (Anglade, 1983, p.04).

Anglade afirma que diversos e criativos mundos de existência foram reduzidos ao conceito de pobreza, confundindo-o com o conceito de miséria. Nessa direção Majid Rahnema afirma que reduzir a pobreza ao somatório de “faltas” é um erro que tem impedido a realização de um debate sério sobre a temática. 

“O que hoje é chamado de pobreza é um conceito socialmente fabricado que tende a despojar o povo, colocado sob um conceito arbitrariamente definido “linha de pobreza”, de desenvolver suas próprias riquezas, as riquezas que lhes permitiram durante toda a sua história não cair na indigência.” (Rahnema, 2001, p.3).

As graves consequências dessa rápida vinculação entre pobreza e miséria foram o envilecimento[6], a condenação e, no limite, a destruição de modos de existir, cosmovisões e tecnologias eminentemente locais. Anglade propõe a reabilitação epistemológica da pobreza, que, fora do paradigma da opulência e do acúmulo – em que a pobreza estaria atada à folclorização e à miséria – pode ser acionada como portadora de alternativas potentes:

É esse o paradigma de que partimos, a ruptura com o miserabilismo e a folclorização como abordagens da pobreza para endossar firmemente o esforço de habilitar esse objeto de estudo da dignidade epistemológica ainda restrita às grandes questões dos grandes dessa terra. Se a miséria persiste e ainda se cola a nós, é que não escolhemos partir da pobreza, mas de métodos de trabalho e de modos de pensar que partem da opulência. (Anglade, 1983; p.05)

A proposta de reabilitar, o que poderíamos chamar de “a outra face da pobreza”, como sugere Anglade, passa por compreender que existe conhecimento, estratégia e capacidade de criação nessa pobreza. Nas entrevistas com as mulheres, as potencialidades e as complexidades de seus mundos de vidas vão sendo apresentados como vidas dignas, como veremos na seção seguinte.

4 terra, liberdade e vida digna: teorias de mulheres negras assentadas

Nilsa afirma que passou a infância em Jabuticaba, uma comunidade no interior de Tenente Portela.

Lá, todo mundo vivia daquilo da roça, meu pai sempre plantou arroz, soja, trigo e milho. E daí tinha o aipim, feijão, a terrinha que tinha era 12 hectares, ele tinha fruta, tinha a plantação, o leitinho, a vaca, o porco, galinha. De tudo nós tínhamos. Então... assim...a gente nunca passou fome, necessidade não. Era arroz, feijão, mandioca, batata e era isso no cotidiano, se vivia bem, todo mundo saudável, gordinho e se sentia necessidade, algum outro vizinho ajudava, a gente ia trocar de trabalho, fazia muito mutirão de um ajudar o outro. E quando alguém tava doente era fácil das vizinhanças irem lá ajudar. Claro, depois que o pai fez empréstimo por conta da soja, na época que tinha seca, eu lembro que ali foi difícil. Foi aí que veio a sugestão de ir trabalhar em Sapiranga, na cidade calçadista.

Na continuidade de sua estória, Nilsa disse que hoje, no assentamento, continua tendo de tudo. Sua reafirmação em dizer que continua tendo de tudo me levou à pergunta sobre o porquê “tem de tudo”, ao que, após uma pausa, disse:

Eu digo de tudo, mas, por exemplo, matamos um porco, eu disse, já não quero mais porco. Mas hoje já compramos um. [Risadas]. Por que tem que ter. Um pouco é por costume também. Parece que falta alguma coisa. Por exemplo, galinha, se tu não tem galinha parece que falta alguma coisa, pode viver sem também, né? Tu vai comprar o ovo, vai comprar uma galinha no mercado. Mas a satisfação de tu ir lá, de tratar dos bichinhos, de tu correr atrás de um, e pega aqui e pega lá, é muito bom. A gente se desestressa também, né? A gente procura ter de tudo pra isso: Um pouco é hábito, um pouco é o bom gosto, poder de ver os bichinhos aí, né?

A reflexão de Nilsa aproxima-se daquilo que o beninense Albert Tèvoèdjré, em seu livro “Pobreza, a riqueza das nações”, afirmou: “pobreza não é nem miséria, nem indigência. É a vida cotidiana conquistada com o trabalho”. Perguntei a Nilsa se para ela existe diferença entre pobreza de miséria. Ela me disse: “Tem. Porque o pobre ele é pobre, mas ele pode viver do pouco e a miséria é aquele que não tem nada. Uma mulher esses dias passou na feira e disse “eu não tenho nem um centavo pra eu comprar o gás, se eu ganhar arroz eu não tenho como cozinhar”. Isso é miséria”.

O testemunho de Nilsa ajuda a entender a diferença e a importância em desamalgamar pobreza da miséria, movimento epistêmico que alguns pensadores do sul[7] já chamavam atenção em suas obras. Ela fala do seu modo de viver com vacas, galinhas, porcos integrando uma prática que se dissocia do utilitário e se aproxima do cuidado e do “bom gosto”, que percebe e que nutre vida boa nessa relação. Ao produzirem o que desejam em abundância, sem atribuição utilitarista dos seus alimentos, as mulheres evidenciam, que a subsistência humana pode se dar com fartura, com desejo e com prazer. A bonança, a fartura de ter de tudo em tempos de monocultura. Mostram isso ao produzirem seu próprio alimento, em abundancia e qualidade (elas afirmam que os alimentos sem veneno, que vem da semente crioula é um alimento de qualidade e que proporciona saúde, não é “bobajada”, referindo-se aos alimentos produzidos com veneno e que passam pelos processos da indústria de ultraprocessados), ao mesmo tempo em que comer aparece como atividade de grande importância, seja para os momentos comunitários das festas e cerimônias, seja nas reuniões ou no dia-dia.

Esse modo de viver conectado com a terra também foi apresentado por Maria:

Nós éramos pobres, aqueles tempos de ditadura eram muito difíceis. A gente só não passou fome porque a gente tinha terra. Terra não é só terra, terra é algo muito, muito além. Porque a gente vivia assim: o meu pai saía pra trabalhar antes de eu acordar, e às vezes ele voltava tão tarde – conforme o lugar que ele ia trabalhar de peão – que eu já tinha dormido. O meu pai e os meus irmãos faziam todo o serviço pesado de arar, deixar prontinho. E aí quem fazia o resto era minha mãe com as minhas irmãs. Ela sempre tinha horta cheia de comida, de verduras, a gente sempre tinha frutas, porque plantavam, né? Então essa coisa é interessante a gente refletir, de como as pessoas não dão o devido valor pra terra. Mas terra, você está livre né? Eu acho que terra é sinônimo de liberdade. Porque você não tem que se submeter a tudo, porque você tem o essencial. A gente não tinha dinheiro, a gente não tinha capital, mas de verdade a gente era rico. Como hoje a gente é. As pessoas dizem, “Ah! São pobres! São num sei o que, são sem terra’. Mas gente, a gente tem tudo!

Maria convida a refletir junto com ela sobre a relação entre terra e liberdade, demarcando a importância da terra na sua vida – no seu modo de vida – e no modo de vida daqueles que ela considera “os seus”; de certo modo ela convoca a refletir sobre o que implica escolher viver com liberdade. A provocação de Maria ganhou profundidade quando perguntei o que seria uma vida digna pra ela.

Eu vou ser bem sincera pra ti, eu não preciso de muita coisa a mais. De verdade. Eu acho que um pouquinho a mais em termos financeiros pra gente não passar por certos apertos. De resto, eu acho que a minha vida tá muito boa, eu não posso reclamar. Talvez muitas pessoas digam “Ah! a Maria precisa ter...” Porque as pessoas têm tanta ganância, né? A gente vê, a pessoa quer ter mais, mais, mais, mais, mais, sempre mais, nem que se mate e fique exaurido! Hoje, tu ter uma casa pra morar, ter comida e comida boa, não é bobajada que comem por aí. Tu ter uma casa boa, não é de luxo, mas é boa, me abriga da chuva, do sol, não entra frio; ter alimentos, tu ter saúde, tu ter liberdade de organizar no seu trabalho. A gente trabalha bastante, sim, mas não tem alguém ali te mandando... Viver assim, eu deito e durmo. Hoje eu comentava com o Eduardo, eu não durmo, eu apago. [Risadas]. Eu apago! Gente, isso é muito! Pra que a gente vai querer tanto mais? O ser humano não precisa dessa loucura. Eu acho que eu tenho uma vida bem digna, sinceramente.

Sua reflexão mostra que viver com liberdade é complexo, requer luta cotidiana. A liberdade está vinculada com a terra e o desejo de pertencer ao mundo, que numa luta cotidiana, vai sendo constantemente atualizada. Entendi que para manter acesa a chama dessa vida digna, Maria se nutre na sua relação viva e presente com a terra, numa conexão em que se sente pertencimento pelo mundo: “terra é muito mais que terra, porque terra você tá livre”. Lembrei-me de uma estória contada por Hooks (2021) sobre seu passado durante a infância no Kentucky, ao lado do seu avô Jerry.

Apesar do sofrimento por viver sob as leis da segregação, sujeito aos cruéis caprichos de um regime patriarcal supremacista branco, ele encontrou uma cultura de pertencimento no mundo natural, sempre contando com a terra. Foi essa cultura de pertencimento que ele compartilhou comigo, sua primeira neta, que o seguia enquanto ele jogava sementes na terra, enquanto colhia os frutos do seu trabalho. (Hooks, 2022, p.268).

Em seu livro “Pertencimento: uma cultura do lugar”, Hooks (2021) afirma que evocar suas memórias de criança no Kentucky tornou-se um ritual capaz de trazer a consciência do poder do pertencimento. Para Hooks, a memória é experienciada como um recurso que carrega a possibilidade de encontrar o seu lar. Ao acionarem pertencimento ao mundo e a sensação de lar, as memórias parecem contribuir para dar sentido às lutas das mulheres, revelando teorias sobre modos dignos e desejantes de estar aqui e agora. No ensaio, “Brasil: uma nação contra suas minorias” José Carlos Gomes dos Anjos analisa as condições minoritárias da existência a partir das perspectivas de religiões de matriz africana, o antropólogo vai dizer que “sob os ritmos dos tambores, a perfeição se instala antes do progresso como outro modo de eclodir do tempo que não o dos relógios da ascensão social sob a teleologia da felicidade ilimitada ao sol do consumo meritocrático” (Anjos, 2019, p. 513. grifo nosso). Parece-me que essa reflexão cabe também aqui. A relação de Maria com a terra afirma-se como essa força-potência que se “instala antes do progresso”.

Os modos de estar no mundo apresentados pelas mulheres dessa pesquisa aproximam-se do termo árabe-persa faqr o qana’at, que foi resgatado pelo pensador iraniano Rahnema (2008) e que significa literalmente “satisfeito na pobreza e na moderação”, podendo ser considerado um modo de viver e de ser. Em seu ensaio “La Potencia de los pobres”, Rahnema (2008) diz que faqr o qana’at está vinculado a tradições que remetem a arte de viver do homem comum, que o autor associa à potência daqueles que estão criando modos de escapar das ameaças sempre latentes da miséria. Maria parece sugerir uma concepção de vida digna que é simples, mas suficiente, que nada tem de impotente e débil, que é inclusive desejada. Identifica que alguns padrões estabelecidos como “normais” não servem para ela, como a vida apressada e o tempo insuficiente de quem busca ter “sempre mais, mais, mais até ficar exaurido”. Sua liberdade não está dada como um a priori, escolher não seguir o padrão normativo do desenvolvimento demanda uma luta constante, em que há conquistas, mas também dores e dificuldades.

Essa constante luta por viver ao seu modo, defendendo seu “corpo-território”, que encontra eco na perspectiva do feminismo comunitário, tem como horizonte de realização uma vida integralmente boa para as mulheres, uma vida sem danos em seus corpos e em seus territórios, em convívio suficientemente harmônico com os homens, os demais vivos e os não vivos que também o integram (Cabnal, 2010). As mulheres reivindicam serem compreendidas como sujeitas de mudança política em chave comunitária, muitas vezes desprezando os espaços de chefia ou de privilégios. A luta vincula-se, assim, com a criação, recuperação e defesa de espaços em dignidade para a existência, inclusive quando esse espaço é o próprio corpo.

5 considerações finais

Em seu livro-ensaio “Notas sobre a fome”, Silvestre[8] (2019) diz que na batalha pela vida se produz junto um tipo de saber aprimorado em escapar das mortes que cotidianamente sopram nas vidas dos pobres. Sua elaboração relaciona o desejo de viver, que está na força dispendida em meio aos tantos escombros da “sociedade capitalista acachapante”, ao desejo pela vida de todos os seres conectados com o mundo, incluindo os não-humanos. Em aliança com Silvestre (2019), Martins (2024) e as mulheres que participaram dessa pesquisa, consideramos que a experiência vivida e transmitida pela oralidade é conhecimento reflexivo, que elabora teorias. Desse modo, esse ensaio é também uma provocação quanto ao modo acadêmico de sistematizar e construir conhecimentos, que têm sistematicamente ignorado, capturado e, no limite, aniquilado epistemologias populares. No caso dos estudos rurais, a possibilidade de aprendermos com os conhecimentos das pessoas comuns, equivocadamente associadas à pobreza degradante, passa por considerar que seus modos de existência e suas experiências de lutas por vida digna têm aportes importantes para as reflexões sobre o desenvolvimento rural. E, no caso da pobreza enquanto objeto de estudo, sugerem a importância de um investimento epistêmico sobre os diferentes conceitos de pobrezas e misérias, bem como suas abissais diferenças.

As elaborações sobre pobreza, resultados das experiências dos corpos de mulheres negras assentadas, expressam-se como conceito polissêmico. Pobreza pode ser enunciada como demarcação do lugar político, que distingue a diferença entre os ricos, lidos como privilegiados. A autoidentificação como pobre tem sentido específico, assumindo tal conotação somente quando autoproclamado ou afirmado entre os seus. Pobreza pode ainda ser compreendida como simplicidade e abundância – em oposição a opulência. De tal modo, afirmar-se pobre pode assumir sentido positivo, pois se diferencia daquilo que é visto como danoso e perigoso, como por exemplo, a vida apressada e o tempo insuficiente de quem busca ter sempre mais, como sugere Maria. No entanto, pronunciada por aqueles que analisam de fora do “corpo-território”, a palavra ganha outro significado, em geral, está associada a miséria, infelicidade e atraso, noções dominantes nos estudos acadêmicos.

As mulheres assentadas que participaram dessa pesquisa, que cotidianamente lutam para continuar existindo como desejam, sugerem uma concepção de vida digna que é simples e suficientemente boa, que nada tem de impotente ou degradante. Apresentam-nos seu modo específico de estar no mundo no qual a luta é um motor que as coloca em movimento constante pela vida, em que a esperança, a conexão e o pertencimento com a terra e o gosto por viver bem se mostram vivos, aqui e agora. O bom gosto de viver fala de uma ética territorial, comunitária, em que humanos se percebem acompanhados de muitos vivos, capazes de construir, com estes e incontáveis outros, vínculos generosos, permeados por cuidado, reconhecimento e delicadeza, frente à grosseria, a destituição e brutalidade, do modo moderno-colonial de habitar a terra.

Pensar e sustentar as tensões desde esse limite, onde a vida digna – que se tem e da qual se sente pertencente – é almejada e enunciada antes do “desenvolvimento-progresso”, talvez seja um bom exercício para pensarmos criativamente, com as mulheres negras e seus territórios, desafios dos estudos sobre desenvolvimento rural e a possibilidade desses modos de existir aportarem conhecimentos que contribuam com políticas públicas.

Referências

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Contribuições de autoria

1 – Dayana Cristina Mezzonato Machado

Pós-doutoranda e professora convidada da Faculdade de Economia e Relações Internacionais, Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural – UFRGS. Doutora em Desenvolvimento Rural,

https://orcid.org/0000-0002-7212-0525 • E-mail: dayanacmma@gmail.com

Contribuição: Primeira autora, elaboração do problema de pesquisa, pesquisa de campo, escrita e análise dos dados.

2 – Pâmela Marconatto Marques

Professora Permanente do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Rural da UFRGS. Doutora em Sociologia pela UFRGS. Reconhecida pelo Território Kilombola Morada da Paz como Dãléh "aquela que usa as palavras para reivindicar justiça; aquela que reivindica a vida, o amor e a dignidade". 

https://orcid.org/0000-0003-0630-9546 • E-mail: pmarconatto@gmail.com

Contribuição: Segunda autora, orientação e análise dos dados.

Como citar este artigo

MACHADO, D. C. M.; MARQUES, P. M. A gente não tinha capital, mas de verdade a gente era rico: pobrezas e vidas dignas narradas por mulheres negras assentadas no sul do Brasil. Extensão Rural, Santa Maria, v. 31, e85706, 2024. DOI 10.5902/2318179685706. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2318179685706. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] O feminismo comunitário territorial é uma proposta epistêmica insurgente, legado de mulheres indígenas de abya yala, sobretudo da sanadora ancestral maya-xinca Lorena Cabnal, que também tem uma formação em psicologia e da intelectual militante boliviana Julieta Paredes. Para esse ensaio foram consultados os seguintes documentos: “Acercamiento a la construcción del pensamiento epistémico de las mujeres indígenas feministas comunitarias de Abya Yala”, na publicação “Feminismos diversos: el feminismo comunitário” (Cabnal, 2010). A fala de Lorena Cabnal à Red de Sanadoras Ancestrales del Feminismo Comunitario Territorial feita em 2019, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=4frGU4qOnpU. O texto “Hilando Fino desde el Feminismo Comunitario”, de Julieta Paredes (Paredes, 2010). A entrevista “Feminismo comunitário” feita a Adriana Gusman e Julieta Paredes no canal OMAN ILEL, disponível em https://www.youtube.com/watch?v=C6l2BnFCsyk.

[2] A pedido de Maria e buscando preservar as pessoas que não participara, da entrevista os nomes dos familiares são fictícios.

[3] Águas Claras é um bairro do município de Viamão onde fica localizado o assentamento Filhos de Sepé.

[4] A ocupação da Fazenda Annoni, localizada no município de Sarandi, foi a primeira ação do Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST), com forte apoio da Igreja, por meio das comunidades eclesiais de base, um acampamento massivo, no qual mais de sete mil pessoas participaram dessa luta.

[5] O conto “A velha praga”, publicado pela primeira vez em 1914, faz parte de uma coletânea de textos do autor, periodicamente publicados no jornal o Estado de São Paulo.

[6] Termo utilizado pelo sociólogo haitiano Jean Casimir (1980), em seu clássico “culturas oprimidas”, o qual destaca a matriz racial de poder que vai marcando o lugar de corpos não brancos nesse panorama mundial marcado pela persistência da colonialidade, onde ser subdesenvolvido é como ser um indígena latino-americano ou um negro africano. Verbalizar isso nos ajuda a entender o processo que Casimir chama de envilecimento, a que teriam sido submetidas as práticas e saberes com que essas populações criaram possibilidades de manter a vida e o laço social, e denunciadas como arcaísmo, ignorância, obstáculo ao desenvolvimento, mal que deve ser extirpado. Envilecer a pobreza: partir do pressuposto de que toda a pobreza é igual e decretá-la sempre vil é um modo de colonizar a vida pelo discurso. De impedir que a pobreza seja vista em sua heterogeneidade e mais, que uma certa pobreza deixe de ser apontada e estigmatizada como problema social (Marques, Machado, 2021, p.13).

[7] A referência ao Sul está ligada às Epistemologias do Sul, como afirma Maria Paula Meneses, para tratar de teorias e epistemologias elaboradas e vivenciadas em espaços decodificados como periféricos. “Epistemologias do Sul”, Revista Crítica de Ciências Sociais, 2008. Disponível em http://journals.openedition.org/rccs/689, acessado em 26 de abril de 2023.

[8] A autora, que foi moradora da favela de Paraisópolis e ativista do movimento de luta por moradia, afirma que as vidas nas periferias têm a potência das ervas daninhas, que insistem em viver apesar de todas as formas de violência, de fome e de exploração. O livro, que ganhou indicação ao prêmio Jabuti 2020, é uma auto-ficção na qual Helena descreve momentos da sua infância na periferia.