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Universidade Federal de Santa Maria

Exten. Rur., Santa Maria, v. 31, e73458, 2024

DOI: 10.5902/2318179673458

ISSN 2318-1796

Submissão: 09/12/2022 Aprovação: 24/05/2024 Publicação: 15/07/2024

1 INTRODUÇÃO.. 3

2 A ENERGIA EÓLICA NO BRASIL. 8

3 METODOLOGIA.. 12

4 ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE A REGIÃO DOS CAMPOS NEUTRAIS. 13

5 RESULTADOS E DISCUSSÕES. 16

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS. 27

AGRADECIMENTOS. 28

REFERÊNCIAS. 28

 

Meio Ambiente e Sustentabilidade

A atuação do Estado quando da implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais no extremo sul do Brasil[1]

The State's performance when implementing the Campos Neutral Wind Complex in the exterior south of Brazil

Letícia Bauer NinoIÍcone

Descrição gerada automaticamente

IUniversidade Federal de Pelotas, Pelotas, RS, Brasil

RESUMO

Desde o ingresso nos primeiros anos do século 21 vem se consolidando uma transição para uma economia de baixo carbono, baseada no uso de fontes renováveis de energia, destacando-se, no extremo sul do Brasil, o cenário da implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais. O presente artigo tem por objetivo analisar como se deu a atuação do Estado, através dos seus agentes, quando da implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais. Uma análise dessa atuação desvendou que apesar de o Estado ter dado incentivos aos proprietários para a realização dos contratos com as empresas e ter tido uma participação importante durante a implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais, isso não foi suficiente para gerar mudanças efetivas por parte dos administrados no que tange às questões socioambientais.

Palavras-chave: Atuação; Estado; Desenvolvimento Sustentável; Energia eólica

ABSTRACT

Since entering the first years of the 21st century, a transition to a low-carbon economy has been consolidating, based on the use of renewable energy sources, highlighting, in the extreme south of Brazil, the scenario of the implementation of the Campos Neutrais Wind Complex. This article aims to analyze how the State acted, through its agents, when the Campos Neutrais Wind Complex was implemented. An analysis of this performance revealed that although the State, in addition to having given incentives to the owners to carry out contracts with the companies and having had an important participation during the implementation of the Campos Neutrais Wind Complex, this was not enough to generate effective changes by part of those managed with regard to socio-environmental issues.

Keywords: Performance; State; Sustainable development; Wind energy

1 INTRODUÇÃO

Durante séculos e séculos a vida humana fez uso de fontes energéticas baseadas na apropriação direta de fontes naturais (lenha, esterco, etc.). O advento da Revolução Industrial, com a utilização predominante do carvão e, posteriormente, do petróleo, mudou a civilização dos últimos três séculos, que passou a funcionar e se desenvolver à base de combustíveis fósseis (Méndez Muñiz; Rodríguez, 2012).

O gasto crescente de energia é uma das bases que sempre sustentou o padrão de vida das sociedades. À medida que a população cresceu, a quantidade de energia necessária para manter níveis de consumo e bem-estar também tendeu a aumentar. Entrementes, o mesmo não vem ocorrendo com os recursos naturais não renováveis, cuja propensão é o esgotamento. O crescente aumento dos problemas de caráter ambiental, como o aquecimento global e o efeito estufa, têm impulsionado, nas últimas décadas, a procura por um novo padrão de uso dos recursos produtivos, agora embasado nas teses que preconizam o desenvolvimento[2] sustentável.

A elevação das emissões de carbono na atmosfera vem gerando danos continuados ao meio ambiente, fazendo com que a expansão do consumo de combustíveis fósseis entrasse cada vez mais em choque com a realidade.

As crises do petróleo na década de 1970[3] fizeram com que a humanidade repensasse acerca da utilização de combustíveis fósseis e recursos naturais não renováveis, iniciando, assim, a transição para um modelo energético de baixo carbono calcado em fontes renováveis[4] de energia (Fadigas, 2011; Pinto, 2013). As elevadas taxas de urbanização e desenvolvimento econômico deixam patente a importância das questões que afetam a produção e o uso de energia. O Brasil apresenta grande potencial no que se refere às fontes renováveis de energia[5], como a solar, a eólica, de biomassa, dentre outras (Fadigas, 2011).

Esses e outros estudos mostram que a transição para um modelo energético de baixo carbono, baseado no uso de fontes renováveis de energia, torna-se cada vez mais necessária, sob pena de o Brasil enfrentar-se aos efeitos de novos apagões ou mesmo de ver-se relegado a uma condição de subalternidade no cenário político internacional e distante da órbita das inovações. A crise socioambiental, na qual nos encontramos, faz com que a questão energética tenha uma grande influência nas discussões sobre a mudança das práticas tradicionais que vêm orientando o desenvolvimento humano.

Em comparação com outras fontes de energia, como, por exemplo, a nuclear, para Reis, Fadigas e Carvalho (2012), os impactos ambientais provocados por fontes alternativas são bem menores se comparados com outras matrizes energéticas, o que faz com que a transição para aquelas seja considerada uma forma sustentável de produção de energia, principalmente quando se tem em mente o planejamento do desenvolvimento de uma região.

Segundo Pereira (2012), no Brasil existem diversos benefícios na produção de eletricidade tomando como base a força dos ventos, como, por exemplo, a possibilidade de diversificação da matriz energética dos países e a melhor utilização dos recursos locais. Evidencia-se os benefícios da utilização do vento para a geração de energia elétrica em função de sua sazonalidade ser inversa à do regime hídrico. Isso significa que, na nossa matriz energética, a preponderância atual da fonte hídrica[6] (devido à existência de grandes reservatórios de água) e a complementação advinda do aproveitamento do vento asseguram a possibilidade de salvaguardar o caráter limpo e renovável da produção de energia. Ademais, salienta o autor, outra importante vantagem tem sido a atração de um novo setor industrial, o que, evidentemente, impulsiona a indústria de componentes elétricos, gerando oportunidades de emprego tanto nos locais como fora das sedes onde estão sendo instalados os parques eólicos.

A multiplicação de projetos envolvendo a geração de energia nos espaços rurais pode  representar uma ruptura importante, a partir do fato de que a questão ambiental e o discurso da sustentabilidade[7] passam a ser vistos como uma janela de oportunidades extremamente ampla capaz de estimular, também, um maior nível de protagonismo das atividades não-agrícolas, bem como a atribuição de novos papéis a serem assumidos pela propriedade rural, acarretando, consequentemente, uma série de mudanças que vai muito além da esfera econômica e energética.

Políticas públicas de incentivo podem fazer com que essas fontes venham a contribuir de forma mais satisfatória para diversificar e ampliar a matriz energética nacional, aproximando-nos dos princípios que norteiam a ideia de desenvolvimento sustentável. De acordo com Tavolaro (1999, p. 218), “o Estado deve permanecer sendo um elemento central para que seja possível a institucionalização das questões ambientais e para que formulação, implementação e gerenciamento de políticas de sustentabilidade ocorram com sucesso”. As demandas sociais que emergem em decorrência da crise ambiental e da disseminação de situações de incerteza, exigem do aparato político-administrativo intervenções que deveriam torná-lo ainda mais presente na vida pública.

Alguns trabalhos analisaram como se dá a atuação do Estado no desenvolvimento sustentável sob o ponto de vista das políticas públicas (Peguim, 2020; Ribeiro, Ferreira, 2011).

O presente artigo tem por objetivo analisar como se deu a atuação do Estado, através dos seus agentes, quando da implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais. Nesse sentido, é preciso questionar como se deu a participação do Estado na implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais? É preciso indagar, também, se houve incentivo por parte do Estado aos proprietários das áreas para que os contratos com as empresas se realizassem?

Essa abordagem adquire relevância na medida em que, diferentemente da tendência que tem o particular de procurar apenas os seus objetivos econômicos e comerciais, focando suas produções basicamente no seu lucro e na geração de riquezas para si e sua família, a atuação do Estado nesses empreendimentos busca sempre o interesse público e coletivo, mesmo que envolva a atividade de empresas estatais e privadas, que também visam seus lucros, mas que não tem como objetivo finalístico da sua participação nas obras o mesmo olhar do Estado como um todo, que apenas as utiliza como participantes de suas finalidades públicas.

Este artigo se encontra dividido em seis seções. A primeira delas realiza uma exposição sobre a temática elegida, bem como do problema de pesquisa e dos objetivos que nortearam a mesma. Após os itens introdutórios do trabalho, na segunda seção é apresentada uma abordagem sobre a evolução da energia eólica no Brasil e alguns aspectos sobre a implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais.  A terceira parte versou sobre a metodologia utilizada na pesquisa. A quarta seção trata de alguns aspectos sobre a Região dos Campos Neutrais.  A quinta seção buscou desvelar e debater o universo empírico onde foi realizada a pesquisa. Após a realização de questionários com atores que foram identificados como centrais pela sua vinculação com o problema de pesquisa, foram criadas duas categorias de análise que trouxeram à tona as percepções dos atores envolvidos com a temática em questão. A sexta e última seção retoma os objetivos da pesquisa, apresenta algumas conclusões e as considerações finais desse trabalho.

2 A ENERGIA EÓLICA NO BRASIL

No Brasil, no decorrer do período que formaram as décadas iniciais deste século, já se vem identificando um acréscimo significativo na relevância que vem sendo atribuída às fontes renováveis, especialmente da energia eólica. O marco de referência que materializou a ação do Estado enquanto política pública foi a criação do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (PROINFA), no ano de 2002. Fato que fez com que o Brasil promovesse grandes empreendimentos do gênero, engendrando uma série de mudanças para além da esfera energética e estritamente econômica.

O PROINFA foi instituído pela Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002 (Brasil, 2002), e tinha como objetivo aumentar a participação da energia elétrica produzida por empreendimentos de produtores independentes autônomos, seja de energia eólica, pequenas centrais hidrelétricas e biomassa. Além disso, fixava metas para a participação dessas fontes no sistema elétrico interligado nacional. Conforme estabelecido na lei, o PROINFA foi dividido em duas partes: PROINFA 1, cujo objetivo era a implantação de 3.300 MW (megawatts) de capacidade em instalações de produção, previsto para operar até 2006, dividido igualmente entre energia eólica, biomassa e pequenas centrais hidrelétricas (PCHs) – esse prazo foi estendido para 2008 e, posteriormente, para 2010, através da Lei 11.943/2009); O PROINFA 2[8] previa que, após atingidos os 3.300 MW de capacidade fixados na primeira etapa, o desenvolvimento do programa ocorreria de modo que a participação dessas três fontes alcançasse 10% do consumo de eletricidade no Brasil por 20 anos.

Após o estímulo inicial dado pelo PROINFA 1, ampliou-se sensivelmente a importância das energias renováveis, sobretudo da energia eólica. No contexto das 26 unidades federativas brasileiras, o Rio Grande do Sul, estado mais meridional do país, situa-se no terceiro posto em termos da capacidade instalada de seus parques eólicos. Dentre esses parques, o mais importante é o Complexo Eólico dos Campos Neutrais, localizado no extremo sul gaúcho, na imensa fronteira que o Brasil divide com a República Oriental do Uruguai. Trata-se, ainda, do maior parque eólico da América Latina, com uma capacidade de geração de energia equivalente a 583 MW.

É preciso mencionar que a instalação do referido complexo, diferentemente do Complexo Eólico de Osório[9], localizado no litoral norte do estado do Rio Grande do Sul, não ocorreu durante o PROINFA, mas já no novo modelo[10], onde se passou a adquirir a energia em leilões competitivos.

A Lei n°10.848/2004 (Brasil, 2004a) e o Decreto n° 5.163/2004 (Brasil, 2004b) reformularam o setor elétrico e estabeleceram novas diretrizes para a comercialização e a outorga de concessões e autorizações. Conforme Pereira (2012, p. 132):

Ficou decidido que, na expansão do parque gerador e dos sistemas de transmissão associados, agentes privados e públicos de distribuição deveriam estabelecer os quantitativos de energia elétrica a serem contratados em pool, por meio de leilões. Assim, o sistema de contratação de novos empreendimentos de energia elétrica passou a ser realizado por meio de leilões de energia – leilões reversos - em que os vencedores são os que oferecem a energia elétrica a menor preço.

Outro ponto referencial no desenvolvimento eólico brasileiro foi em 2009, quando executou-se o Segundo Leilão de Energia Reserva (LER) e o primeiro leilão de comercialização de energia voltado exclusivamente para a fonte eólica.

Os parques que compõem o Complexo Eólico Campos Neutrais foram viabilizados por meio de dois leilões de venda de energia. O primeiro deles foi o Leilão ANEEL 02/2011 (A3), onde foi comercializada a energia dos parques eólicos Geribatu e Chuí. Já o segundo foi o Leilão ANEEL 09/2013 (A3), onde foi comercializada a energia do parque eólico Hermenegildo e da usina eólica Chuí IX, uma ampliação do parque eólico Chuí.

Na sequência foram analisados alguns aspectos sobre a implantação do Complexo Eólico.

2.1 A implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais

Campos Neutrais é um projeto[11] que levou dez anos, desde as primeiras medições de vento nas propriedades rurais, até alcançar a capacidade plena instalada atualmente[12], o que ocorreu em meados do ano de 2016.  Localiza-se no extremo sul do estado do Rio Grande do Sul, nos municípios de Santa Vitória do Palmar[13] e Chuí[14],  e abrange os Parques de Geribatu, Chuí e Hermenegildo. O Parque Eólico Chuí, com 144 MW de potência, conta com 72 aerogeradores e é capaz de atender 800 mil habitantes. O Parque Eólico Hermenegildo tem capacidade para atender 1 milhão de habitantes, possui 101 aerogeradores e gera 181 MW de potência. E o Parque Eólico Geribatu conta com 129 aerogeradores, tem capacidade para gerar 258 MW de potência e atende mais de 1,5 milhão de habitantes. Os três parques juntos somam 583 MW[15] de capacidade instalada, suficiente para atender ao consumo de 3,3 milhões de habitantes. O Complexo Eólico Campos Neutrais recebeu investimentos de aproximadamente R$ 3,5 bilhões[16].

As áreas atingidas pela instalação do Complexo não precisaram ser adquiridas e nem desapropriadas[17]. Foram feitos contratos de arrendamento[18] divididos em duas etapas: uma, durante a fase da construção, onde os proprietários receberam um arrendamento equivalente a uma safra de arroz, como forma de compensação por perda da produtividade agropastoril; e outra, na operação do parque, onde os pagamentos passaram  a ser realizados através do rateio de uma parcela equivalente a 1,8% do faturamento da venda de energia gerada pelo parque, a qual é proporcional à área arrendada de cada propriedade e não ao número de aerogeradores instalados. Dessa forma, foi estabelecido um condomínio onde todas as propriedades que participaram desde o início do projeto, quando foram feitas as primeiras medições dos ventos, foram contempladas, houvesse aerogeradores instalados em suas áreas rurais ou não.

Em continuidade, descreve-se, resumidamente, os procedimentos metodológicos que nortearam a presente pesquisa.

3 METODOLOGIA

Como explicitado anteriormente, o objetivo central deste artigo é analisar como se deu a atuação do Estado (através dos seus agentes) quando da implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais. A área de estudo correspondeu à região onde foi implantado o Complexo Eólico Campos Neutrais, localizado no extremo sul do Estado do Rio Grande do Sul.

Assim, desenvolveu-se uma pesquisa qualitativa, na qual foram realizadas 07 entrevistas semiestruturadas com atores sociais intervenientes nos processos ligados à geração de energia eólica, tais como: técnicos, representantes de órgãos de governo, de órgãos de fiscalização ambiental, dentre outros. As conversas com os entrevistados tiveram autorização para serem gravadas e duraram entre 18 e 40 minutos.

Para analisar como se deu a atuação do Estado (através de seus agentes) no processo de implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais e de forma a cumprir o objetivo dessa pesquisa, foram analisados trechos de entrevistas que foram realizadas com prefeitos, ex-prefeitos e funcionários de secretarias. Para tanto, foram criadas as seguintes categorias de análise: participação na implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais e incentivo aos proprietários das áreas para que os contratos com as empresas se realizassem. Atribuiu-se o código “E” para identificar os agentes entrevistados, preservando, portanto, a confidencialidade das informações e depoimentos oferecidos durante as etapas do trabalho de campo. O Quadro 1 mostra os agentes do Estado que foram entrevistados:

Quadro 1 – Agentes do estado que foram entrevistados

E

Entidade/Órgão

Cargo Ocupado

E1

Prefeitura de Santa Vitória do Palmar -Gestão 2017/2020

Vice-Prefeito

E2

Prefeitura do Chuí- Gestão 2017/2020

Prefeito

E3

Prefeitura de Santa Vitória do Palmar -Gestão 2013/2016

Prefeito

E4

Prefeitura do Chuí- Gestão 2013/2016

Prefeito

E5

Secretaria da Agricultura de Santa Vitória do Palmar

Secretário

E6

Secretaria da Agricultura do Chuí

Secretário

E7

Fepam

Agrônomo

Fonte: Elaborado pela autora a partir de entrevistas realizadas de fevereiro de 2017 a outubro de 2018

4 ASPECTOS HISTÓRICOS SOBRE A REGIÃO DOS CAMPOS NEUTRAIS

Em meados de 2006, sem grande antecipação ou prévia preparação das consciências do povo da região fronteiriça dos antigos “Campos Neutrais” sul-americanos, zona de fortes e arraigadas tradições e costumes campesinos, ainda não tinham sido atingidos pelas novas tecnologias e outras modernidades dos grandes centros urbanos.

Os habitantes dos bucólicos e pequenos municípios de Santa Vitória do Palmar e Chuí, com forte predominância rurícola, foram sacudidos pelas notícias da possibilidade de instalação, dentro de grande parte de suas propriedades, de um grande empreendimento de geração de energia elétrica baseado em um aspecto da natureza bem característico daquelas coordenadas que, até então, era conhecido pela constância e intensidade, servindo mais para agravar os efeitos do frio no inverno daquelas plagas sobre o gado e os tropeiros – o vento.

Desde os tempos das complexas definições das linhas que acabariam por dar fim às disputas territoriais entre Espanha e Portugal sobre a área quando da assinatura do Tratado de Tordesilhas no ano de 1494, o desenvolvimento dos processos produtivos e de sobrevivência dos povos por lá fixados foi se identificando com as próprias formações climáticas e geológicas do lugar. Sua economia seguiu as vocações naturais das origens das populações, com forte influência das práticas de seus antecedentes, relativamente avessa a tudo o que viesse de fora e tivesse impacto sobre a forte tradição e simplicidade de suas relações sociais, de comércio e subsistência. Os perfis da produção, dos negócios e de consumo se refletiram nos “habitus” da gente, que sempre mantivera uma intimidade, quase cumplicidade com a terra, o padrão de local de fertilidade e cobertura vegetal do solo e o comportamento previsível e confiável do clima, que estimulou a criação extensiva do gado e a produção agrícola predominante do arroz irrigado nas chamadas terras baixas ou várzeas, bem adaptada àquelas condições.

Ao pesquisar, sem maior profundidade, as projeções desse quadro, logo ficam evidentes as conformações nítidas de comunidades conservadoras e pouco receptivas com relação à assimilação de propostas que significassem qualquer alternativa ao modo de vida em que se acomodaram por várias gerações, resistente a um projeto que viesse lhes impor modificações na maneira como conduziam e exploravam suas propriedades, já que, até então, o que delas retiravam para viver lhes era suficiente para atender a sobrevivência e a dignidade. As cidades de porte médio mais próximas, Pelotas e Rio Grande, estavam a mais de 200 Km; a capital do Estado, Porto Alegre, a cerca de 500 Km. Somente uma rodovia, uma grande reta espremida entre duas lagoas e o mar – uma longa e fustigada faixa deserta, sem qualquer porto, cortando uma área de banhados – ligava essas comunidades ao resto de um imenso país, ao qual parecia que ainda não pertencia, sujeitos que estavam às influências históricas e culturais da vizinha República Oriental do Uruguai. Dali, era mais fácil viajar à capital uruguaia Montevidéu do que a capital do próprio estado do Rio Grande do Sul.

Em decorrência dessas condições, as sedes desses municípios espelhavam a vida rural. Zonas urbanas de poucas vias, a maior parte não pavimentada, com trânsito na sua maioria de veículos mistos de utilização cidade/campo, gente que, ainda não faz muito, amarravam seus cavalos e carroças na frente dos poucos bancos, repartições públicas, escassas lojas, farmácias e pequenos mercados.

Pode-se facilmente deduzir que, assim como a renda da população, toda ela vinculada à atividade rural secular, também as arrecadações públicas municipais não fossem muito altas, não tendo os gestores públicos, assim como os contribuintes, maiores ambições quanto à possibilidade de novas rendas diversas das já conhecidas. Seria razoável esperar que alguma novidade tivesse a capacidade de promover substancial transformação daquele pedaço quase esquecido do mapa, rompendo as barreiras da quase estagnação econômica e da desesperança quanto ao acesso às benesses desenvolvimentistas diariamente estampadas na televisão – aliás, modernismo a que tinham acesso com alguma precariedade?

A nova realidade chegou rápida e a célere finalização das obras de implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais na zona rural dos municípios de Santa Vitória do Palmar e Chuí revelou o indiscutível efeito de não apenas impactar as rendas dos proprietários rurais e as receitas dos municípios envolvidos. Ainda, teve a responsabilidade de implantar, também, nas comunidades que receberam o empreendimento, um renovador sentimento de inclusão a um projeto maior de desenvolvimento nacional estratégico, de iniciativa e forte estímulo do Estado, que proporcionou não apenas o incremento das rendas e da atividade econômica. Mais do que isso, veio causar, uma forte impressão nas consciências daquela população fronteiriça de que era chegada a hora, para eles também, do encontro inevitável com as novas tecnologias desenvolvidas ante a crise ambiental, tema que, até então, parecia distante e não lhes afetava diretamente.

Indaga-se se um projeto dessa magnitude, visando como objetivo uma mudança ampla nas matrizes energéticas de um país do tamanho do Brasil e ancorada em pesados investimentos de empresas estatais do setor (a Eletrobrás e sua subsidiária Eletrosul), teria o poder de despertar nas comunidades envolvidas, ou até em toda a população do país, uma nova mentalidade quanto aos perigos das mudanças climáticas e, portanto, à urgência dos governos na promoção e ações efetivas de câmbio em direção de fontes de energia mais “limpas”, menos poluentes do que as de origem fóssil.

5 RESULTADOS E DISCUSSÕES

A primeira categoria de análise revelou como se deu a participação do Estado na implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais.

5.2 Participação na implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais

A instalação do Complexo Eólico foi, assim, um empreendimento em grande escala e sem precedentes na região em questão, refletindo-se diretamente nos meandros políticos e burocráticos das economias e administrações de cada um dos municípios envolvidos, não só no período de instalação, mas até os dias atuais. Como consequência, ocorreu uma verdadeira revolução de costumes, determinando a configuração de novos habitos, em função de um processo de gradual transformação nas mentalidades daquelas pequenas populações quanto aos verdadeiros significados dos conceitos de ambientalismo, preservação e sustentabilidade. Tanto nas suas áreas rurais, sedes físicas e operacionais dos empreendimentos, quanto na própria dinâmica dos ambientes urbanos, pode-se ressaltar, como exemplo do impacto transformativo causado, a miscigenação social abrupta, derivada da repentina inclusão naquelas comunidades de um considerável número de trabalhadores provenientes dos mais diversos lugares do Brasil, atraídos pelas oportunidades de trabalho geradas pela instalação dos novos polos energéticos.

A análise de conteúdo das entrevistas mostrou que antes de plena adesão dos produtores ao Complexo Eólico Campos Neutrais havia muita incerteza e desconfiança dos atores sociais e instituições locais (sindicatos, associações etc.) envolvidos. No nosso entendimento, o Estado deveria ter tido uma participação efetiva nesse processo, não só na formulação e implementação de políticas que dizem respeito à energia eólica, mas também como agente que deve estar presente na vida dos cidadãos e que seja capaz de promover mudanças nas atitudes e comportamentos das pessoas no que tange às questões socioambientais. Essa categoria de análise procura identificar, através da visão de entrevistados, a participação dos agentes do Estado na implantação do Complexo, no sentido de que se entende que a importância dessa participação não se extinguiu no projeto estratégico.

Quando questionados sobre a participação das prefeituras na implantação e, atualmente, no pleno funcionamento do Complexo Eólico Campos Neutrais, alguns entrevistados evidenciaram uma presença significativa dos órgãos públicos na fase do processo de licenciamento ambiental do projeto e, ainda, para a adequação das empresas às normas legais municipais para a sua instalação e operação:

A prefeitura participou, em um primeiro momento, da articulação política, a prefeitura participou de audiências no Ministério de Minas e Energia, audiência com deputados, o deputado Henrique Fontana foi uma das pessoas que lutou muito, não é, junto com a Eletrosul, a gente teve uma relação muito forte com a Eletrosul e também junto com os empreendedores para adequar algumas questões da legislação ambiental, para viabilizar os empreendimentos. (E-3).

[...] na verdade a prefeitura, como foi no governo passado, teve que fazer as liberações ambientais, não para a instalação em si do parque, mas sim as autorizações para as empresas se implantarem aqui, para fazerem os depósitos de brita, de areia, de rachão, de materiais que são poluentes, não é, então, essa parte foi a prefeitura que fez e não teve problema nenhum [pausa]. Atualmente a prefeitura não tem participação nenhuma, ela só recebe os lucros dos parques não é, que é o retorno do ICMS, que agora começou a receber. (E-2).

A gente prestou todo o apoio quando a Eletrosul veio, as reuniões, quando veio se instalar, o município, na nossa gestão, porque justo veio na nossa gestão, a gente prestou todo o apoio necessário aos projetos, a liberação, ajudando aqui na parte das autorizações que o município deveria dar, a gente tinha uma equipe, o engenheiro que hoje é o Marco Antônio, hoje atual prefeito, é um engenheiro concursado do município, é o único engenheiro que tem, eu passava para ele, não tenho formação, passava para as pessoas técnicas para que não desse erros [pausa], porque deu alguns problemas e graças a Deus, por eu estar bastante bem assessorado, eu não me enrolei, mas não com a Eletrosul, com as empresas que construíram a obra. (E-4).

Embora o conteúdo das entrevistas feitas com alguns agentes do Estado tenha demonstrado que as prefeituras tiveram forte atuação no sentido de viabilizar o empreendimento, principalmente no que diz respeito às licenças ambientais, o depoimento do entrevistado a seguir aponta em um sentido contrário. Além de criticar a atuação da prefeitura, deixa patente que a participação do poder executivo deveria ter sido maior:

Olha, a participação no projeto de implantação e construção do projeto Campos Neutrais, na época nós não éramos governo, o que a gente sabe é de fontes externas e de conhecimento público, mas a prefeitura praticamente não teve grandes participações, porque o vento, a qualidade do vento é que foram medidas por empresas particulares que depois montaram projetos e acabaram entrando nos leilões, aonde depois se veio a construir o parque. Na história de estudo e implantação, muito pouco teve a participação do município, eu até acho que o município deveria ter participado mais, ter gestionado mais junto às empresas que vieram para cá para fazer mais a questão social, a questão de mudança de valores, e a prefeitura foi muito relapsa, os gestores da época, era uma crítica que eu já fazia quando era vereador [pausa], foi uma gestão relapsa, não teve esta participação e não teve esta preocupação. (E-1).

Esse depoimento, porém, revela uma crítica de um gestor que não estava no governo quando da implantação do Complexo Eólico. Segundo se pode inferir de sua percepção, deveria ter ocorrido uma interlocução mais eficiente do Estado com as empresas do setor privado participantes do projeto, de forma que se estimulassem mudanças nos valores éticos das pessoas, que realmente internalizassem a importância do uso das energias renováveis, em uma escala que ultrapassasse as meras questões locais. Revela, também, uma falha na intervenção do Estado no que diz respeito à sustentabilidade social[19].

O depoimento seguinte alerta para uma possível dificuldade daquelas comunidades na compreensão da importância social e cultural do parque eólico, além da econômica de forma que todas as dimensões da sustentabilidade sejam abrangidas. Apesar da articulação e boa relação dos gestores municipais com as empresas empreendedoras do projeto, constata-se, claramente, pelo menos nas fases iniciais da implantação, a resistência natural da população à inovação e a tudo aquilo que significasse intervenção nos seus modelos tradicionais de comportamento econômico e cultural, na sua relação com a terra e o meio ambiente.  Evidenciou-se o flagrante desinteresse em participar e aprender com esse processo, o que revela o quanto ainda há por ser feito, a partir do efetivo funcionamento das usinas eólicas, para que se implante também na cultura popular os verdadeiros objetivos, presentes e futuros, da substituição dos padrões antigos de geração de energia. Incumbência pedagógica a ser desempenhada no decorrer do tempo de operação do complexo, sem dúvida, pelos diversos níveis dos órgãos de Estado, através de suas representações locais, não com exclusividade, mas, também, com o envolvimento das organizações privadas:

Então, coisas importantes não é. Acho que o parque teve sua importância para o município, até cultural, não é. Eles davam aulas para a população [pausa], não ia muita gente [risos], porque isso aí é cultura, é um fato cultural, porque a gente anunciava, inclusive na prefeitura se postava: olha, vai ter uma reunião para a população, se anunciava na rádio, para tratar de vários assuntos, claro, tudo eólica não é, mas de pessoas formadas, coisas que encontraram, coisas antigas, coisas que vêm [pausa], não ninguém ia, ninguém ia. Ia da Prefeitura, é claro, a Prefeitura tem que ir, mas [pausa] a população participou pouco. A comunidade do Chuí participou pouco [pausa] e de Santa Vitória também (E-6).

Por fim, temos a percepção de um agente de uma importante Fundação de fiscalização do cumprimento das normas ambientais do Estado do Rio Grande do Sul, que entende que apesar de a entidade ter exercido, por dever legal, sua efetiva função nesse processo, a atuação do órgão apresentou pequenas falhas formais e metodológicas excessivas que, se antecipadas e mais objetivadas, teriam permitido que fossem atingidas suas finalidades de licenciamento rápido do projeto com menor volume burocrático e antecipação de seu cronograma. A simplificação, a objetividade e a celeridade das ações legais dos órgãos de defesa ambiental serão fundamentais para que todas as partes envolvidas nos futuros processos de substituição de fontes energéticas, tanto as empresas quanto as comunidades, compreendam mais facilmente as políticas de preservação e sustentabilidade[20] e, consequentemente, as estratégias públicas a serem aplicadas, sem prejuízo, no entanto, do rigor das normas e controle sobre eventuais tentativas de flexibilização impostas pelos interesses financeiros e políticos:

Então assim óh, sim, a Fepam participou desde o início [...]. Então, o planejamento do setor energético para nós foi meio quadrado assim [pausa], não que tenha prejudicado eu acho que as análises técnicas, mas [pausa] processualmente é um saco. Um volume bárbaro de papel e coisa assim, que não se usaria. Poderia ter sido feito, por exemplo, um grande EIA/RIMA para toda aquela área ali e pronto. Acho que seria mais [pausa]... Foi feito um Relatório Ambiental Simplificado. Vou te dizer, entre uma coisa e outra, não é... Fizemos tudo detalhado, não é sem dúvida, mas com metodologia diferente, mas o RAS [Relatório Ambiental Simplificado] ele acaba andando muito na linha do EIA/RIMA então [pausa], identificação de impactos negativos e positivos [...]. Olha, eu te diria que talvez a principal dificuldade para o licenciamento, na minha visão, é que a gente não se adiantou e a nossa, uma das nossas obrigações, é a gente trabalhar com planejamento e [pausa] se a gente tivesse se adiantado no planejamento a gente tinha feito um grande zoneamento, não eólico, mas um zoneamento ambiental [...]. O início desse processo, dentro da Fepam, ele [pausa] foi meio relaxado. (E-7).

Esse testemunho revela uma crítica do entrevistado à possibilidade de ter havido insuficiente planejamento das medidas de adequação ambiental do projeto, tanto por parte das empresas quanto da própria Fepam. Sugere que o processo de licenciamento ambiental deveria não somente preceder e condicionar o início das obras à clara pré-identificação de eventuais impactos ambientais negativos, como, também, ser instrumento capaz de servir, com antecipação, de oportunidade para o Estado interferir com maior abrangência na sua missão de proteção ambiental, pela realização de completo zoneamento de toda a área impactada. Apesar de ter uma capacidade de geração diária de 583 MW, a implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais se deu sem a exigência de estudo de impacto ambiental (EIA/RIMA), que normalmente é exigido para empreendimentos de médio e grande porte. O Complexo foi subdividido em dezenas de unidades menores, oportunizando que para o licenciamento de cada parte do empreendimento fosse exigido apenas o relatório ambiental simplificado (RAS). Além de ter sido um processo extremamente lento e burocrático, a não exigência de EIA/RIMA na implantação do maior Complexo Eólico da América Latina teria sofrido de imprecisões, devidas, principalmente, à provável urgência do seu licenciamento e premência, portanto, de que fosse flexibilizada a aplicação das normas atinentes ao licenciamento ambiental.

Em continuação, verifica-se, no depoimento, o diagnóstico de que, mesmo num empreendimento desse vulto, os gestores públicos locais nem sempre tiveram seus olhos voltados para a possibilidade de que a obra representasse um modelo de realização de políticas públicas de interesse geral no terreno da preservação e sustentabilidade ambientais. Mesmo em épocas de ameaça de séria crise climática global, fica patente, na visão do entrevistado, a predominância do interesse dos governantes nos potenciais de arrecadação financeira que o novo polo energético trará para suas comunidades, fato revelador de que a presença do Estado em obra de tão grande envergadura ainda não consegue unir os interesses ambientais com os econômicos de forma a equilibrá-los convenientemente e fazer com que um não se sobreponha ao outro, mas que, ao contrário, avancem harmonicamente:

Então, indo mais profundo na resposta, eu te diria que as pessoas não entenderam [pausa] o processo. Para elas, pensando no bem delas, sem pensar nos bichinhos, num mundo que deve ser melhor papapa [pausa], também não entenderam o andamento do processo. E a gente é muito alijado do processo, eu entendo assim. [...] Bom, voltando ao início: toda a política pública poderia ter tido melhores impactos [pausa], ainda bem que não teve grandes impactos negativos, diferente da silvicultura, mas positivos [pausa], perdemos vários, deixamos de ganhar, deixamos de ganhar. (E-7).

É preciso considerar nesses testemunhos, a concepção de que não houve, na implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais, uma efetiva preocupação de todos os envolvidos, principalmente dos governantes, com a questão ambiental e com os benefícios que advém da geração e utilização de uma energia cuja fonte é totalmente renovável, com benefícios ambientais que se projetam para muito além das comunidades envolvidas. Apesar de o Estado ter tido uma importante participação, desde o início da instalação do Complexo, em alguns aspectos, sua atuação poderia ter sido melhor no sentido de provocar mudanças nas percepções e atitudes dos cidadãos e de seus representantes no que diz respeito à preservação do meio ambiente e às soluções, visando sustentabilidade dos empreendimentos públicos. A atuação do Estado no âmbito da realização de suas maiores obras de geração de energias renováveis é via fundamental e própria para construção de uma nova consciência da importância das questões ambientais. Dessa forma, contribuirá para a formação e consolidação, nas populações atingidas, de novos conjuntos de valores e códigos de conduta solidamente embasados na necessidade de que se atenda com antecedência a defesa dos biossistemas naturais.

A seguir, a segunda categoria de análise desvendou se houve incentivo por parte do Estado, aos proprietários das áreas, para que os contratos com as empresas se realizassem.

5.2 Incentivo aos proprietários das áreas para que os contratos com as empresas se realizassem

Essa categoria de análise reflete se houve incentivo do Estado aos proprietários das áreas para que os contratos com as empresas se realizassem.

Na fase exploratória da investigação, escutamos testemunhos de proprietários  que mostravam que, em se tratando de adesão voluntária, houve casos de famílias cujos membros foram divididos entre aqueles que assinaram contratos e aqueles que não o fizeram por medo de perder a autonomia no controle de seus domínios, isto é, o medo do novo gerou muita incerteza e desconfiança dos atores sociais e instituições locais envolvidos.

Quando questionamos se houve incentivo por parte do Estado aos proprietários das áreas para que os contratos com as empresas se realizassem, os agentes do Estado que foram entrevistados demonstraram que sim, houve incentivo à realização dos contratos:

De forma indireta, ou seja, nós entendíamos que o projeto era um projeto importante para o município, um projeto que traria uma nova onda de desenvolvimento positiva, sustentável, com agregação de renda para o município e também para os produtores rurais[...] Então nós construímos essa relação muito positiva com a Eletrosul e com essa, vamos dizer assim, com essa convicção, nós fizemos reuniões, participamos de reuniões com produtores para colocar a proposta, para colocar a prefeitura como um aliado, como um parceiro do processo, até para que o pessoal se estimulasse mais para entrar no processo. (E-3).

Na realidade, os secretários, de um modo geral, participaram das reuniões todas e sempre foram incentivadores [pausa], porque já que a gente não tem industrialização, não é, e temos essa grande produção de arroz que praticamente sai in natura do município, e a soja da mesma forma, nós, a gente, incentiva todo tipo de trabalho ou produção que venha criar emprego e fazer recolher imposto, mas com essa nossa tese de tentar ver se se instala ao menos uma indústria em Santa Vitória, o município na década de sessenta, em sessenta e sete, ele inaugurou a BR, aí o pessoal dizia que a dificuldade era de acesso para não investir em Santa Vitória [pausa], aí, nós tivemos a BR 471. (E-5).

Percebe-se, nesses testemunhos, a importante atuação dos agentes do Estado no sentido de estimular os proprietários para que realizassem os contratos com as empresas. Os gestores tiveram consciência de que a instalação do Complexo traria dividendos não só para os proprietários que arrendaram suas áreas, mas também para os municípios envolvidos.

Em sentido contrário, o trecho a seguir demonstra que a prefeitura deveria ter tido uma participação maior nesse processo de forma a contribuir para a redução das diferenças sociais:

[...] na minha opinião deveria ter participado mais e quando eu digo que o município também deveria ter buscado a questão social, aí foge um pouco do que tu me perguntou, seria na questão de qualificar as pessoas daqui, o máximo possível, para inserir elas dentro do processo de construção, porque veio muita mão de obra de fora e daqui muito pouca mão de obra foi qualificada e foi aproveitada. Então, a prefeitura, a participação dela nesse processo, eu entendo que ela ficou muito à margem e é um processo que realmente não tem muito como a prefeitura, como o município [pausa] gestionar, pode até ser um mediador, mas não tem muita participação direta, a não ser que tenha que fazer alguma adaptação na legislação municipal, algo que seja alterado na questão da lei, teve alguns pontos na lei que foram alterados na lei do ITBI, em algumas leis assim, mas é muito [pausa] pequena a participação. (E-1).

Esse testemunho diverge um pouco dos demais pelo fato de o nosso entrevistado não ter sido membro da administração quando da implantação do Complexo Eólico, que finalizou no ano de 2016. Entretanto, o depoimento a seguir, também de um membro da administração que não estava atuando quando da implantação do Complexo Eólico, evidencia que o Estado teve e ainda deverá ter na implantação de futuros parques:

De futuros parques acredito que sim, não é, por que o quê que acontece? Esse estudo para a implantação desses parques [pausa] ele não é de ontem, não é, eles é de anos atrás, não é, foram colocadas torres aqui para a medição dos ventos, na verdade, foi  uma pressão, o que se pôde fazer, é muito pequeno, a gente não pode nem [pausa]  dizer que por pressão política, nós não temos essa força, mas seria uma pressão mais social, não é, por quê? Para aumentar o retorno do ICMS que é o caso [...] (E-2).

As percepções da grande maioria dos entrevistados revelam que a atuação do Estado nesse processo ocorreu sempre com o intuito de aumentar a arrecadação. Não se vislumbra uma atuação dos governos para que todas as dimensões do desenvolvimento sustentável sejam abarcadas por esse tipo de empreendimento, bem como no sentido de contribuir para que ocorram mudanças e que as pessoas possam compreender que é preciso diminuir os impactos sobre os recursos naturais, utilizando, nesse caso, um recurso que é renovável. Revelam, também, que os municípios não estavam e não foram preparados para receber um empreendimento de tal porte, pois sequer tinham mão de obra qualificada para trabalhar na construção do Complexo.

6 CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente artigo teve por objetivo analisar como se deu a atuação do Estado, através dos seus agentes, quando da implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais. Ao realizar este estudo, concluímos que a chegada de turbinas eólicas significou uma mudança sem antecedentes na história desses lugares. A economia regional se viu beneficiada com o ingresso de recursos, bem como através da construção de infraestruturas importantes, sobretudo de estradas e acessos às propriedades, além da segurança patrimonial, diante da vigilância das áreas por parte das empresas que passam a operar na região.

A solidificação da ação do Estado, enquanto política pública relacionada às energias alternativas, ocorreu através da criação do Programa de Incentivo às Fontes Alternativas de Energia Elétrica (PROINFA), que originou grandes empreendimentos do gênero, como é o caso do Complexo Eólico Campos Neutrais, engendrando uma série de mudanças para além da esfera energética e estritamente econômica.

O Estado, além de dar incentivos aos proprietários para a realização dos contratos com as empresas, teve uma participação importante durante a implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais, mas que não foi suficiente a ponto de acarretar mudanças efetivas por parte dos governados.

A atuação estatal nunca será suficiente se não houver a efetiva participação da sociedade civil. A governança deveria ter sido mais efetiva, isto é, compreendendo a ação conjunta de Estado e sociedade civil, na busca de soluções e resultados para problemas comuns.

A questão ambiental evoluiu de problemas predominantemente nacionais para preocupações com o alcance regional e global dos problemas ambientais e os seus responsáveis. Apesar de o Complexo Eólico Campos Neutrais ser uma alternativa local, entendemos que a sua implementação tem reflexos em problemas que são globais. A transição para um modelo energético de baixo carbono ou até zero carbono, além de contribuir para o desenvolvimento regional sustentável, poderá converter-se firmemente como uma das maneiras de enfrentar o problema do aquecimento global.

Agradecimentos

Agradecemos à CAPES pela concessão de uma bolsa de doutorado sanduíche à autora, realizada em 2017 no Instituto de Estudos Sociais Avançados, vinculado ao Conselho Superior de Investigação Científica de Espanha (IESA-CSIC).

REFERÊNCIAS

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Contribuições de autoria

1 – Letícia Bauer Nino

Advogada, Mestre em Ciências Sociais, Doutora em Agronomia, Licenciada em Educação Profissional e Tecnológica - Habilitação em Direito.

https://orcid.org/0000-0003-1939-7178 • leticiabnino@hotmail.com

Contribuição: Escrita – Primeira redação

Como citar este artigo

NINO, L. B. A Atuação do Estado quando da implementação do Complexo Eólico Campos Neutrais no extremo sul do Brasil. Extensão Rural, Santa Maria, v. 31, e73458, p. 01-25, 2024. DOI 10.5902/2318179673458. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2318179673458. Acesso em: dia mês abreviado. ano.



[1] Este artigo tem como base a tese de Doutorado defendida pela autora em agosto de 2019, perante o Programa de Pós-Graduação em Sistemas de Produção Agrícola Familiar da Universidade Federal de Pelotas, sob a orientação do Professor Doutor Flávio Sacco dos Anjos e coorientação do professor Eduardo Moyano Estrada.

[2] Ignacy Sachs, no prefácio feito à já referida obra de José Eli da Veiga (2010), sabiamente nos diz que o desenvolvimento não se confunde com o crescimento econômico, pois este constitui a sua condição necessária, mas nunca suficiente. Sendo assim, argumenta que a sustentabilidade humana no tempo dependerá da capacidade de submeter-se aos ditames da sensatez ecológica, aliada a um bom uso na natureza. Eis aqui o fundamento do desenvolvimento sustentável. Entretanto, salienta que o adjetivo sustentável deveria ser desdobrado em socialmente includente, ambientalmente sustentável e economicamente sustentado no tempo.

[3] A crise do petróleo teve início na década de 70 quando se descobriu que esse recurso natural é uma fonte esgotável. Isso elevou o preço do produto, cujo preço do barril, em pouco mais de sete anos, praticamente triplicou. Além das crises do petróleo da década de setenta, outros acontecimentos abriram o leque de interesse sociológico pelos problemas ambientais quando passaram a incluir temas relacionados com a escassez de recursos e uso de energia.

[4] A necessidade de utilização de recursos naturais renováveis se consagrou a partir da obra Os Limites do Crescimento (Meadows et al., 1973), onde se associa a contaminação e a escassez de recursos naturais ao principal problema da humanidade, fazendo-se necessária a busca por alternativas ao atual modelo baseado na produção e consumo desenfreados.

[5] Consoante a autora, as exceções são a energia geotérmica (cuja capacidade de produção de energia não é significativa) e a energia hidráulica (que já é bem explorada).

[6] Sobre a questão das hidrelétricas brasileiras, cabe advertir que o entusiasmo que havia nas décadas precedentes vem sendo crescentemente esvaziado por conta dos recorrentes ciclos de estiagem, que além de impactarem diretamente no abastecimento hídrico, ameaçam o adequado suprimento de energia. Outro aspecto relevante é que as hidrelétricas refletem a opção por um modelo caro, diante do custo de construção e dos grandes impactos socioambientais, além de ser fonte de corrupção na relação contraída entre o Estado e as grandes empreiteiras do setor da construção civil.

[7] Segundo Sachs (2002), além de o desenvolvimento sustentável ser multidimensional, ele tem um duplo imperativo ético de solidariedade sincrônica com a geração atual e de solidariedade diacrônica com as gerações futuras. Inicialmente foram definidas cinco dimensões da sustentabilidade pelo autor que mais tarde ampliou para oito. São elas: social, ambiental, ecológica, territorial, econômica, cultural, política nacional e política internacional.

[8] É preciso mencionar que em 2004 foi introduzido no Brasil um novo modelo do setor energético, congelando a segunda fase do PROINFA definitivamente.

[9] O Complexo Eólico de Osório foi o primeiro projeto gaúcho de energia eólica selecionado no Programa de Incentivo às Fontes Alternativas (PROINFA), o primeiro no Brasil a receber financiamento do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES).

[10] De acordo com Pereira (2012), a transição para o novo modelo iniciou em 2004. Nesse período, o Brasil ficou sem um programa de governo, com metas e preços atrativos, bem como uma regulação que considerasse os aspectos específicos da tecnologia. Essa situação perdurou até 2009, quando ocorreu um leilão específico para a energia eólica.

[11] O projeto do Complexo Eólico Campos Neutrais não segue os moldes de alguns projetos realizados, por exemplo, na região Nordeste do Brasil. Ele precisou ser adaptado às particularidades da região Sul do Brasil.

[12] É importante mencionar que o Complexo Eólico Campos Neutrais entrou em operação apenas com uma unidade em funcionamento (o Parque Geribatu), com capacidade de geração de 258 MW. Os Parques Chuí e Hermenegildo, com capacidade de geração, respectivamente, de 144 MW e 181 MW, foram implementados posteriormente.

[13] Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Santa Vitória do Palmar, em 2022, contava com uma população de 30.983 habitantes. A população estimada em 2018 é de 29.877 habitantes. Região de pecuária por ocasião de sua fundação, a cidade dos antigos palmares viu a decadência dessa atividade no correr do século XX. E, apesar da criação de gado bovino e ovino ainda ser de grande importância, abriu-se espaço para o crescimento da produção do arroz.

[14] Conforme o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o município do Chuí, em 2022, contava com uma população de 6262 habitantes, com população estimada em 6.635 habitantes em 2018. Pela situação de fronteira, sempre esteve ligado ao Uruguai. A atividade principal de seu povo é o comércio, sendo, por isso, contemplados com a emancipação municipal em 1995.

[15] Segundo Cardoso e Collischonn (2016), apesar de ter uma capacidade de geração diária de 583 MW, a implantação do Complexo Eólico Campos Neutrais se deu sem a exigência de estudo de impacto ambiental (EIA/RIMA), que normalmente é exigido para empreendimentos de médio e grande porte. O Complexo foi subdividido em dezenas de unidades menores oportunizando que, para licenciamento de cada parte do empreendimento, fosse exigido apenas relatório ambiental simplificado (RAS). O atendimento a um bem maior que é a proteção do sistema climático global flexibilizou a legislação para empreendimentos lidados ao MDL.

[16] Em 30 julho de 2020, o controle da Eletrobras sobre o Complexo Eólico Campos Neutrais foi vendido por cerca de R$ 500 milhões para a empresa mineira Omega. Isso representa um grande prejuízo ao patrimônio público, uma vez que esse valor representa 17% do total investido pelo poder público no empreendimento, o que superou a casa de R$ 3,1 bilhões.

[17] Via de regra, os empreendedores dos parques eólicos não adquirem as propriedades rurais onde irão ser instalados os aerogeradores. É contratado apenas o direito de uso do imóvel através de institutos existentes no Direito Civil Brasileiro, como o Contrato de Direito de Superfície ou a Locação. O contrato de locação, na modalidade de Arrendamento de Imóvel Rural, é o que vem sendo mais utilizado, tendo em vista a alta incidência de imposto sobre o Direito de Superfície.

[18] Os Contratos de Arrendamento foram feitos pelo prazo de vinte anos, prorrogáveis por mais vinte anos.

[19] De acordo com Segundo Sachs (2002), a dimensão social da sustentabilidade está diretamente relacionada à valorização da redução das diferenças sociais e do desenvolvimento em sua multidimensionalidade, objetivando construir uma civilização com maior equidade na distribuição de renda e de bens, de modo a reduzir o abismo entre os padrões de vida dos ricos e dos pobres.

[20]Entrementes, isto não é suficiente. Faz-se necessária também a participação popular, das representações sociais, de forma que os processos de educação ambiental sejam enfatizados, desde o planejamento desses empreendimentos.