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Universidade Federal de Santa Maria
Exten. Rur., Santa Maria, v. 32, e70449, 2025
DOI: 10.5902/2318179670449
ISSN 2318-1796
Submissão: 23/05/2022 • Aprovação: 14/04/2025 • Publicação: 25/06/2025
3 PLANTA MEDICINAL, POLÍTICA PÚBLICA E MERCADOS
4 ESTRUTURA E LÓGICA DA PPPMFCE
5 DIVERSIDADE E SOLIDARIEDADE NAS FARMÁCIAS VIVAS
Saúde e trabalho no meio rural
Farmácia viva sócio(bio)diversa e solidária
Solidary and socio(bio)diverse living pharmacy
Guillermo Gamarra-RojasI
Joel Henrique
CardosoII
Leonardo Lopes
Rufino III
I Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, CE,
Brasil
II
Embrapa Agroindústria Tropical
, Fortaleza, CE, Brasil
III
Escola Estadual de Educação Profissional Clemente Olintho Tavora Arruda , Fortaleza, CE,
Brasil
RESUMO
Objetivou-se examinar as relações das Farmácias Vivas (FV) de Fortaleza com a Economia Solidária (ES). A investigação parte do contexto geral (da planta medicinal à Política Pública de Plantas Medicinais e Fitoterápicos - PPMFCE) para o particular (FV), em que os conceitos e categorias de estudo emergem dessa aproximação sucessiva, tendo como critérios de análise as abordagens pedagógicas da PPMFCE e os atributos da ES. A trajetória da planta medicinal à PPMFCE sugere o reconhecimento das plantas medicinais e seus agentes sociais na atenção básica em saúde, em especial dos menos favorecidos e, simultaneamente, uma adesão à lógica capitalista demandada por empresas de fármacos e agrícolas. A Política incorporando uma abertura a um diálogo entre visões econômicas divergentes. O modo como essa interfase se expressa depreende-se de sua estrutura operativa e organizacional, a qual aponta a especialização produtiva, a difusão de tecnologia e a cadeia de produção como enfoques pedagógicos, os quais favorecem o desenvolvimento econômico pela troca capitalista. Simultaneamente, o estado utiliza mecanismos de fomento às FVs e de redistribuição do fitoterápico pelo Sistema Único de Saúde (SUS) que, combinados com as inovações das FVs, oportunizam relações de solidariedade. Tais inovações implicam na retroalimentação de conhecimentos e modos de vida históricos e se expressam numa visão ampliada de FV, onde a diversidade biológica e de produtos, de objetivos e de função social estão no cerne de suas práticas
Palavras-chave: Diversidade socioambiental, Economia solidária, Planta medicinal
ABSTRACT
Keywords: Socio-environmental diversity; Solidarity economy; Medicinal plant
A múltipla crise ambiental, econômica, política e sanitária, exacerbada pela pandemia do coronavírus (COVID-19), causada pelo vírus SARS-CoV-2 no ocaso da segunda dezena do século XXI, tem requerido da sociedade esforços múltiplos para salvar vidas em risco, seja pelo adoecimento, pela pobreza ou pelo negacionismo. O Estado, a despeito da dinâmica privatizadora vigente, é chamado a socorrer as vítimas da pandemia com serviços públicos de saúde e a apoiar a base produtiva e financeira de grandes, médios e pequenos empreendedores. Em tempos de crise a sociedade é chamada a agir em solidariedade e ressurgem temas como o estado de bem-estar e a possiblidade de uma outra economia.
Um caso de política social é o da Farmácia Viva (FV) do Ceará que, inicialmente concebida como projeto de pesquisa e extensão universitária, originou uma política pública direcionada aos setores menos favorecidos da sociedade. O horto da Farmácia Viva da Universidade Federal do Ceará (UFC), assim como de outras farmácias vivas de Fortaleza, tem atraído docentes e discentes para realizar ações de extensão e tem propiciado a realização de pesquisas na graduação e pós-graduação.
Vivências e estudos nas FVs de Fortaleza realizados por Rufino (2015), Barros, Gamarra-Rojas e Sousa (2017) e Rufino et al. (2018) sugerem que as mesmas são um tipo de agricultura urbana imersa em ambientes institucionais com objetivos diversos. Nesses espaços sujeitos urbano-rurais, organizados em forma de associação comunitária, Organizações Não Governamentais (ONG’s), escolas públicas, universidades e grupos de mulheres tem promovido inovações, adaptando as prescrições organizacionais e os roteiros técnicos da Política Pública de Plantas Medicinais e Fitoterápicos do Ceará (PPPMFCE) aos seus interesses e capacidades. Para Rufino et al. (2018), a dinâmica social e produtiva nas FVs apresenta-se ancorada em ação coletiva e solidariedade e toma forma material e simbólica em sistemas integrados de produção, transformação, consumo e dádiva.
Essa temática motivou o presente artigo tomando por pressuposto que as FVs de Fortaleza desenvolvem atitudes solidárias, tanto internamente à organização, quanto externamente, estabelecendo laços de solidariedade com a sociedade do entorno. Consequentemente, o objetivo do texto foi examinar as relações das FVs de Fortaleza com os princípios e atributos da economia solidária.
A pesquisa de caráter qualitativo e exploratório foi realizada em 2021. A mesma utiliza elementos da pesquisa documental e bibliográfica, combinados com dados e informação publicada como referência empírica. Foi empregada uma estratégia de investigação que parte do contexto geral (evolução da planta medicinal à Política de Plantas Medicinais e Fitoterápicos - PPPMFCE) para o particular (FV de Fortaleza), em que os conceitos e categorias de análise empregados emergem dessa aproximação sucessiva ao objeto de estudo, obedecendo ao seguinte itinerário: delimitação teórica do objeto de estudo e identificação de princípios e atributos da Economia Solidária (ES) na literatura; descrição da trajetória da planta medicinal à PPPMFCE, explorando as suas relações com os mercados; exame da estrutura da PPPMFCE, tornando explícitas as suas opções pedagógicas; análise das relações das FVs de Fortaleza com a ES, tomando como referência empírica as vivências e os estudos de Rufino (2015), Barros, Gamarra-Rojas e Sousa (2017) e Rufino et al. (2018) e como critérios de análise as abordagens pedagógicas da PPPMFCE e os atributos da ES, identificados no decorrer do estudo.
A Economia Solidária (ES) ressurge como resgate da luta dos trabalhadores contra a exploração do trabalho e como alternativa ao modo capitalista de organizar as relações sociais dos humanos entre si e destes com a natureza (FBES, 2005). O debate adquire relevância com as crises da economia liberal, o aumento dos indicadores de pobreza e de uma suposta incapacidade do estado em gerar políticas públicas direcionadas para geração de empregos (Krieger; Johnson, 2006). Assim, sob diversas designações - economia solidária, economia de proximidade, etc. - têm emergido práticas econômicas e sociais que propiciam a sobrevivência e a melhora da qualidade de vida das pessoas (FBES, 2005). Para Singer (2002), trata-se de experiências coletivas de trabalho, produção, comercialização e crédito organizadas segundo princípios solidários sob a forma de cooperativas e associações de produtores, bancos comunitários e diversas organizações populares urbanas e rurais. Segundo esse autor, a ES foi concebida para ser uma alternativa superior ao modo de produção capitalista, não em termos econômicos estritos, mas por proporcionar uma vida melhor às pessoas que a adotam.
Em sua Carta de Princípios de 2003, o Fórum Brasileiro de Economia Solidária identificou princípios que regem as diversas experiências surgidas no Brasil (FBES, 2005): a valorização social do trabalho; a satisfação das necessidades de todos como eixo da criatividade tecnológica e da atividade econômica; o reconhecimento do lugar fundamental da mulher; uma relação de intercâmbio respeitoso com a natureza; os valores da cooperação e da solidariedade; a justa distribuição dos resultados; o compromisso e a busca pelo bem-estar dos trabalhadores e consumidores (Singer, 2002). Segundo Sabourin (2014), a viabilidade econômica depende do sistema no qual se considera a atividade econômica de um empreendimento solidário: o da concorrência do mercado de troca capitalista, o da proteção do mercado institucional produzido pela redistribuição pública ou o âmbito do compartilhamento de recursos e fatores de produção, regido pelos princípios de ajuda mútua e reciprocidade na produção.
Então, a economia solidaria enfrenta as contradições inerentes à diferença entre o desenvolvimento econômico baseado na troca e aquele fundado na reciprocidade econômica (Sabourin, 2014). Assim, Singer (2002) sugere que a ES terá de alcançar níveis de eficiência na produção e distribuição de mercadorias comparáveis aos da economia capitalista, mediante o apoio de serviços financeiros e científico-tecnológicos solidários.
A ênfase nos serviços é relevante pois amplia o campo da ES, incluindo as políticas públicas, as quais tem suas raízes nos movimentos populares do século XIX - relacionados aos conflitos surgidos entre capital e trabalho nas primeiras revoluções industriais (Höfling, 2001; Fleury; Ouverney, 2008) – e constituiriam um dispositivo de mudança, orientada para o bem-estar, com distribuição da renda e equidade social (Silva, 2008a). Tal perspectiva dialoga com os pressupostos da ES (Singer, 2002), no sentido de um estado ativo na produção e redistribuição da riqueza.
Na perspectiva da sociologia do desenvolvimento, segundo Long (2007), os atores sociais não atuam isoladamente para alcançar seus objetivos, mas em articulação com outros órgãos, estabelecendo redes de atores sociais. Implica que os empreendimentos de ES têm que olhar tanto para o seu interior, fortalecendo a sua coesão interna, quanto para o contexto, buscando coesão com outros empreendimentos solidários (Oliveira, 2006).
Oliveira (2006) pesquisou empreendimentos solidários do Ceará partindo de uma idealidade da ES, cujos valores e princípios sugerem um movimento em direção a transformações sociais amplas. O olhar é dinâmico, dirige-se a uma ‘transição’ na ES como processo de mudança e ruptura. Para analisar o processo de transição, o autor elencou atributos pertinentes a essa ‘idealidade estabelecida por negação’ da forma capitalista da economia: Autogestão, onde o controle é exercido pelos associados, com autonomia em relação a agentes externos; Democracia direta, que compreende a livre escolha, renovação e alternância dos dirigentes; Participação efetiva nas instâncias de consulta e decisão; Ações de cunho educativo, voltadas para a formação política, aquisição de competências para a autogestão solidária e de capacitação técnica e artística; Cooperação solidária, que corresponde a práticas produtivas precedidas da articulação entre concepção e planejamento, combinadas a relações de gratuidade e de aprendizado mútuo. Aqui se materializaria a desconstrução da divisão e da alienação do trabalho e; Distribuição igualitária, da produção e da renda gerada.
No âmbito da agricultura familiar, Sabourin (2014) e Sabourin et al. (2014) têm estudado as dinâmicas desta com a sociedade civil, em interação com políticas públicas. Consideram que a noção de ES traz consigo uma possibilidade de interface entre o sistema de troca mercantil e práticas de reciprocidade e que, no caso da sociedade rural brasileira, a teoria da reciprocidade tem contribuído para interpretar as dinâmicas da agricultura familiar em termos de “sistemas mistos” para qualificar situações e estruturas que associam práticas mercantis e de reciprocidade. A coexistência, pode ocorrer de maneira paralela e separada; pode dar lugar a tensões por conta do antagonismo entre os dois sistemas econômicos; pode ser de forma complementar, quando existe uma interface de sistema que permite articular as práticas de reciprocidade com as de troca, sem que uma destrua a outra. Assim, sugere que a abordagem dos sistemas mistos pode contribuir nas políticas públicas, fundamentada no reconhecimento dos dispositivos coletivos que cuidam da produção ou do manejo de bens comuns ou públicos (Sabourin, 2014). Para esse autor não existiriam mais sociedades de economia de reciprocidade pura e defende a tese que os valores de amizade, responsabilidade e confiança não são dados, e sim que são valores éticos construídos socialmente pelas relações de reciprocidade simétrica.
3 PLANTA MEDICINAL, POLÍTICA PÚBLICA E MERCADOS
O uso de plantas com fins medicinais é uma prática antiga que contribui para a sociabilidade e qualidade de vida das sociedades humanas. As práticas de cura tradicionais - geralmente realizadas por entidades que se ocupam da saúde de povos tradicionais - vêm associadas a rituais religiosos que garantiram a preservação e disseminação desse conhecimento entre a população brasileira (Rufino, 2015). O próprio desenvolvimento da ciência farmacêutica brasileira se deu a partir das trocas culturais entre os povos originários, africanos e europeus (Abreu, 2006). Esse conhecimento que serviu como meio de tratamento no período colonial, atendendo todas as classes sociais, passou a partir do século XVIII a ser criticado com a chegada de médicos no país (Silva, 2008b), resultando em distanciamento entre a ciência da cura e os rituais religiosos.
Paralelamente, a indústria de fármacos incorpora substâncias ativas de plantas medicinais como protótipos para o desenvolvimento de fármacos, como fonte de matérias-primas farmacêuticas para obtenção de adjuvantes e elaboração de medicamentos fitoterápicos (Jannuzzi; Vasconcellos; Souza, 2008). Esta requer e utiliza protocolos técnico-científicos que incluem a identificação da espécie botânica e do princípio ativo e testes padronizados de eficiência. Tais elementos fazem parte de um modelo de negócios mais abrangente que engloba uma cadeia agrícola estruturada, o preparo de insumos atendendo práticas de farmacotecnia, o controle da qualidade do processo, técnicas de gestão empresarial e incorporação da ‘cultura’ da inovação (Zuanazzi; Mayorga, 2010). A indústria requer volumes extensos, constantes e crescentes de material vegetal, sendo que diversos insumos farmacêuticos utilizados por indústrias brasileiras são obtidos principalmente por extrativismo e, não raro, tendo origem em material importado (Zuanazzi; Mayorga, 2010).
Com dados da Organização Mundial da Saúde, Zuanazzi e Mayorga (2010) ilustram a magnitude desse negócio, como segue: dos 252 fármacos essenciais para a saúde humana, 11% são exclusivamente de origem vegetal; no mercado mundial de medicamentos, estimado em cerca de 300 bilhões de dólares, aproximadamente 40% destes é oriundo direta ou indiretamente de fontes naturais, sendo 75% de origem vegetal e 25% de origem animal e de microrganismos.
Por sua vez, o mercado nacional de fitoterápicos era composto por 119 empresas com registro de seus produtos junto à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), sendo encontradas informações de movimentação de cerca de 1,8 milhão de reais ao ano (Zuanazzi; Mayorga, 2010). Estudo comparativo, realizado por Hasenclever et al. (2017) entre 2009 e 2015, mostrou que o mercado de fitoterápicos no Brasil tende a ser cada vez mais concentrado em um menor número de empresas, por aquisição das menores pelas de maior capital. No período analisado por esses autores, 16 empresas que operam no território brasileiro - em sua maioria estrangeiras - adquiriram 25 industrias nacionais e o número de registros na ANVISA reduziu-se em dois terços do que era. A maioria dessas empresas não é verticalizada, aposta na segmentação do mercado e o destino quase exclusivo da produção industrial de fitoterápicos tem sido o mercado privado nacional.
Na indústria farmacêutica o conhecimento é privado ou privatizado e protegido pela propriedade intelectual ou instituição da patente do princípio ativo e da fórmula do medicamento (Jannuzzi; Vasconcellos; Souza, 2008; Hasenclever et al., 2017). Esta questão ‘da propriedade legal’ e suas consequências, está além do escopo deste trabalho, no entanto, cabe examinar as relações com os conhecimentos tradicional e popular.
Neste sentido, Rufino (2015) destaca a participação do Brasil no Protocolo de Nagoya em 2010, cuja principal motivação foi a reiterada prática da Biopirataria, consubstanciada na exploração predatória, imprópria ou clandestina da diversidade biológica e dos conhecimentos das comunidades tradicionais e dos povos originários dos territórios ricos em Biodiversidade como os países ‘em desenvolvimento’. Essa situação extrema, cuja abrangência e conexões socioeconômicas e políticas só podem ser estimadas, dado o sigilo das transações, chama a atenção para o risco de intensificação de tais processos de apropriação predatória em função da crescente desregulamentação e precarização de mecanismos de controle e informação do estado e da sociedade, tais como os relativos às questões indigenistas, florestais e sanitárias brasileiras, desvendadas com a crise multisetorial provocada pela COVID-19 nos últimos dois anos. Denota, em sua raiz, uma apologia à ‘competição’, no sentido de Singer (2002), como oposta à ‘solidariedade’ (Oliveira, 2006), aprofundando assimetrias de poder.
Atualmente, plantas com propriedades terapêuticas estão presentes em ecossistemas naturais, são cultivadas em espaços rurais e urbanos e são estudadas por universidades, pesquisadores ‘autônomos’ e empresas de fármacos. No âmbito acadêmico da Região Nordeste, nos anos 80 do século passado, destacaram-se os professores Francisco José de Abreu Matos, farmacologista, e Afrânio Fernandes, botânico, os quais identificaram e catalogaram centenas de espécies de plantas nativas e introduzidas de uso medicinal pela população local. Em torno de trinta dessas espécies passaram a compor o elenco de plantas do Programa Farmácias Vivas, vinculado à UFC (Rufino, 2015). Nesse contexto considera-se Farmácia Viva um horto ou horta que cultiva plantas medicinais, podendo realizar posterior preparo de medicamentos (Rufino et al., 2018).
Para Bandeira (2009), o professor Matos “buscava nas plantas consagradas pela cultura popular o remédio, no plano da atenção básica, que pudesse tratar um vasto elenco de doenças que acomete a população brasileira”. Essa concepção, que valoriza o conhecimento popular e agrega valor científico, com orientações de uso e indicação terapêuticas, expressa uma preocupação do estado, aqui representado pela Universidade, com a qualidade de vida da população, em geral, e dos menos favorecidos, em particular (Rufino et al., 2018).
Tal perspectiva ‘social’ está presente na Política Pública em Plantas Medicinais e Medicamentos Fitoterápicos do Ceará (PPPMFCE), Lei Nº 12.951, de 07 de outubro de 1999, regulamentada por meio do decreto nº 30.016 de 30 de dezembro de 2009, que dispõe sobre a política de implantação da fitoterapia em saúde pública no estado (Ceará, 2010), as FVs compondo as práticas integrativas complementares no Sistema Único de Saúde (SUS). Também permeia a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos (PNPMF), instituída pelo Governo Federal por meio do Decreto Presidencial 5.813 de 22/6/2006, a qual prevê o acesso da população aos medicamentos, ampliando as opções terapêuticas e melhoria da atenção à saúde dos usuários do SUS (Portaria nº 971 do Ministério da Saúde, de 03/5/2006), a inclusão social e regional, o desenvolvimento industrial e tecnológico, a promoção da segurança alimentar e nutricional, além do uso sustentável da biodiversidade brasileira e da valorização do conhecimento tradicional associado das comunidades tradicionais e indígenas. São também objeto dessa Política o fortalecimento da agricultura familiar e o crescimento de emprego e renda, como redutores das desigualdades regionais (Zuanazzi; Mayorga, 2010).
Ainda, Zuanazzi e Mayorga (2010) argumentam que, mesmo reconhecendo-se a importância do uso tradicional e a busca de sustentabilidade no novo cenário da ES, não é apenas viável, mas necessário, identificar oportunidades de agregação de valor através da organização e desenvolvimento de cadeias produtivas orientadas para o mercado. Assim, a dinâmica e a evolução dos sistemas de saúde entrelaçam duas racionalidades, uma interna e outra externa ao sistema (Bruning; Mosegui; Vianna, 2012). A primeira, definida pela existência de um padrão de acumulação de capital, a partir de duas lógicas distintas – uma pública e outra privada. A segunda, compreendendo o conjunto de demandas sobre o sistema de saúde que influenciam o modus operandi do sistema, de seus agentes e as contradições resultantes.
4 ESTRUTURA E LÓGICA DA PPPMFCE
O estado do Ceará, com o decreto Nº 30.016, de 30 de dezembro de 2009, estabeleceu as instâncias ou secretarias responsáveis pelo estímulo à PPPMFCE (Rufino et al., 2018). Subsequentemente (Ceará, 2010), foi estabelecida uma tipologia para a implementação das FVs (Quadro 1).
No Decreto nº 30.016, acima referido, verifica-se a articulação de diferentes atores sociais e suas funções, vinculadas aos tipos de FVs (Quadro 1): à academia cabe produzir o conhecimento e a informação, relativos ao material de propagação vegetal de identidade botânica reconhecida, a comprovação das propriedades medicinais e as tecnologias e protocolos de transformação em fitoterápico; os agentes de Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) ficam responsáveis pela organização de grupos de interesse e pela difusão do conhecimento/informação acadêmicos e de técnicas agronômicas de cultivo por meio de capacitação e acompanhamento; às FVs, cabe a produção da planta medicinal, a transformação em produto manipulado e/ou fitoterápico e a comercialização; ao SUS, a aquisição e a redistribuição do fitoterápico (Rufino et al., 2018).
Quadro 1 – Tipologia das Farmácias Vivas (FV) do Ceará.
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Tipo |
Descrição |
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FV-I |
Nesta é desenvolvido o cultivo de plantas medicinais, a partir de hortas em unidades de FVs comunitárias e/ou unidades do SUS, tornando acessível à população assistida a planta medicinal in natura e a orientação sobre a correta preparação e uso dos remédios caseiros.
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FV-II |
Nesta é realizada a produção e dispensação de plantas medicinais secas. Para tanto, deve possuir uma adequada estrutura de processamento da matéria prima, para tornar acessível à população a planta medicinal seca. Pode ainda desenvolver as atividades previstas no tipo I.
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FV-III |
Esta se destina à preparação de fitoterápicos padronizados, preparados em áreas específicas para as operações farmacêuticas, de acordo com as Boas Práticas de Preparação de Fitoterápicos (BPPF), visando ao provimento das unidades do SUS. Pode realizar as atividades previstas nos tipos I e II. |
Fonte: Adaptado de Ceará (2010)
Essa estrutura operativa e organizacional sugere os seguintes enfoques pedagógicos associados aos processos de atendimento e/ou transformação social esperados das FVs: a especialização produtiva; a difusão de tecnologia e; a cadeia de produção, os quais são examinados a continuação.
O conceito de cadeia produtiva foi desenvolvido no âmbito agropecuário e florestal, partindo da premissa de que a produção de bens pode ser representada como um sistema - denominado agronegócio - onde os atores sociais estão interconectados por fluxos de materiais, de capital e de informação, objetivando suprir o mercado consumidor (Castro; Lima; Cristo, 2002; Pizzolatti, 2004). No Brasil, diversos setores adotaram a análise de cadeias produtivas nos anos 90 do século passado, juntamente com o planejamento estratégico, tendo como pressupostos teóricos, a segmentação do mercado, de tecnologias e de consumo, e a prospecção de demandas (Simioni et al., 2007).
O enfoque de cadeia produtiva transparece nos argumentos de Zuanazzi e Mayorga (2010) em relação ao modo como os projetos [políticas do estado] deveriam ser estruturados para que as plantas medicinais contribuam ao crescimento econômico: atendendo às demandas da atividade agrícola, no monitoramento da qualidade da matéria-prima ofertada, bem como na criação de novas oportunidades para o agronegócio; desenvolvendo produtos inovadores, eficazes e seguros para os consumidores, buscando sua efetiva inserção no mercado, em consonância com as prioridades nacionais em saúde; apoiando a indústria e os órgãos reguladores na diminuição de desvios de qualidade, na qualificação técnica e no próprio fortalecimento do setor e, participando da formação de recursos humanos em diferentes níveis de qualificação enquanto estratégia de médio e longo prazo.
A especialização produtiva constitui um dos pilares do agronegócio, sendo simultaneamente causa e consequência, onde os produtores agropecuários estão dedicados ao cultivo de uma espécie vegetal ou criação de um rebanho comercial (cash crop), influenciados pela dinâmica dos commodities nas bolsas de valores. Enfim, é a visão de negócio que norteia essa disciplina (Pizzolatti, 2004). Contudo, Mascarenhas, apud (Sabourin, 2014), aponta possíveis consequências da especialização produtiva na agricultura: a lógica por produto induzindo à monocultura, à especialização e, portanto, à dependência, contrariamente à diversificação da produção.
Já a difusão de tecnologia está relacionada às políticas de modernização em geral e do campo em particular, iniciadas nos anos 40-50 do século XX. As teorias e estratégias de desenvolvimento econômico e extensão rural vigentes e institucionalizadas à época nos países do hemisfério Norte, orientaram a configuração dos serviços de extensão rural na América Latina, buscando ‘modernizar’ o campesinato, incorporando-o ao mercado (Schultz, 1965) e consolidar a revolução verde entre os agricultores na região (Sánchez de Puerta, 2004; Hernández, 2019). O Brasil institucionalizou o modelo de difusão de inovações norte-americano nos serviços da Assistência Técnica e Extensão Rural (ATER) e na pesquisa agropecuária, onde, grosso modo, o conhecimento flui de um agente emissor (universidades e centros de pesquisa) para um agente intermediário (agentes de ATER), até o receptor (agricultor).
Tal modelo de produção e difusão de conhecimento tem sido criticado por privilegiar a visão da Revolução Verde, a qual enfatiza a ‘inovação tecnológica’ como mecanismo de excelência para o crescimento econômico e porque a pretensa superioridade do conhecimento científico sobre o conhecimento local tem excluído os camponeses e povos tradicionais, resultando em baixo nível de controle social e frágil desempenho das políticas públicas (Gamarra-Rojas, 2019).
Como resposta ou ato de resistência, faz algumas décadas que camponeses, movimentos sociais, ONGs, educadores e pesquisadores vêm procurando a reestruturação dos grupos excluídos da modernização agrícola, buscando conciliar objetivos socioculturais, econômicos e ambientais com uma opção pedagógica centrada em participação, autonomia e articulação política (Norgaard; Sikor, 2002; Hernández, 2019). A diversidade de práticas e experiências levou a configurar diferentes formas de ATER (Beduschi, 2007) e, no Brasil, conduziu à construção da ‘nova’ Política Nacional de Assistência Técnica e Extensão Rural – PNATER (BRASIL, 2004), a qual se baseia nos paradigmas agroecológico, dialógico e sistêmico. Estudo sobre a ATER, realizado junto aos agentes do desenvolvimento rural no Semiárido cearense (Pinheiro et al., 2023), revelou que as metodologias participativas e os enfoques multidisciplinar e sistémico estão bastante difundidos entre as ONGs, mas que nas instituições públicas de ensino, pesquisa, extensão e fomento ainda predomina a difusão de tecnologias. Assim, os processos de transição agroecológica para uma agricultura e sistemas agroalimentares [e de saúde] sustentáveis continuam a requerer o apoio de uma Extensão Rural Agroecológica, que supere o modelo difusionista clássico do extensionismo rural e no qual o extensionista além do seu papel como técnico deve atuar como um facilitador ou mediador (Caporal, 2020).
5 DIVERSIDADE E SOLIDARIEDADE NAS FARMÁCIAS VIVAS
Os estudos de Rufino (2015), Barros, Gamarra-Rojas e Sousa (2017) e Rufino et al. (2018) incluíram seis FVs de Fortaleza, quais sejam (Quadro 2): Centro de Atenção Psicossocial, Escola Profissionalizante Marvin, Fundo de Apoio Comunitário, Movimento Mulheres da Itaoca, ONG Quatro Varas e Universidade de Fortaleza.
Quadro 2 – Caraterização das Farmácias Vivas (FV) de Fortaleza estudadas
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Tipo |
FV |
Contexto |
Objetivos |
Papel dos Sujeitos |
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I |
Centro de Atenção Psicossocial - CAPS |
Bairro carente; Organização de apoio comunitário. |
Diretos: produção e consumo de plantas medicinais complementar ao serviço médico-terapêutico. Indiretos: espaço de convivência e conscientização sobre propriedades terapêuticas. |
Produção realizada por enfermeiro, agente social e paciente; Orientação de uso por profissional de saúde; Gestão por enfermeiro. |
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II |
Escola Profissionalizante Marvin |
Professores interessados em ensino aprendizagem social e produtiva. |
Diretos: produção e consumo de plantas medicinais por acadêmicos; distribuição gratuita a familiares e visitantes. Indiretos: espaço de convivência e visitação; aprendizagem social e produtiva de estudantes. |
UFC ou Nufito na capacitação; Produção por professores e estudantes; Processamento e gestão por professor. |
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Fundo de Apoio Comunitário - FAC |
Bairro carente e sujeito à poluição; Organização social de educação infantil e pesquisa. |
Diretos: produção e consumo de plantas medicinais e produtos manipulados; distribuição gratuita a público externo. Indiretos: visitação, oficinas e esclarecimento à população; aprendizagem social e produtiva de estudantes. |
UFC ou Nufito na capacitação; Produção por voluntário; Elaboração de produtos manipulados e gestão por professor. |
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Movimento Mulheres da Itaoca |
Bairro carente; Organização de apoio comunitário; Grupo de interesse. |
Diretos: produção e consumo de plantas medicinais, hortaliças, frutas e produtos manipulados; ocupação e renda; comercialização a baixo custo. Indiretos: espaço de lazer/visitação e esclarecimento à população; aprendizagem social e produtiva de estudantes; Interação institucional. |
UFC ou Nufito na capacitação; Produção e elaboração de produtos manipulados por grupo de interesse; Gestão por liderança comunitária; Voluntariado de estudantes na produção |
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III |
Quatro Varas |
Bairro carente; Problemas psicossociais; Projeto de direitos humanos. |
Diretos: produção e autoconsumo de plantas medicinais por sujeitos da Terapia Comunitária Integrativa (TCI); atenção à demanda de fitoterápicos do SUS; distribuição de produtos a visitantes e participantes de oficinas. Indiretos: espaço de convivência e visitação de público externo; aprendizagem social. |
UFC ou Nufito na capacitação; Produção por jardineiro; Elaboração do fitoterápico por farmacêutica; Prescrição por profissionais de saúde; Gestão por administrador. |
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Universidade de Fortaleza - UNIFOR |
Curso de Farmácia; ONG de saúde e proteção social. |
Diretos: atenção à demanda de fitoterápicos do SUS; ensino, pesquisa e extensão. Indiretos: oficinas e esclarecimento à população; interação institucional. |
UFC ou Nufito na capacitação; Produção por agrônomo; Processamento por técnico agrícola; Elaboração e prescrição do fitoterápico por profissionais de saúde; Gestão por farmacêutica. |
Essas FVs - classificadas nos tipos I, II e III, segundo a tipologia da PPPMFCE (Quadro 1) - estão localizadas em áreas de pobreza e marginalidade social e têm como protagonistas grupos de interesse e organizações de apoio social e de educação. São consequentes com os objetivos da PPPMFCE no sentido de cultivarem plantas medicinas, sendo que algumas cultivam ornamentais, hortaliças e frutíferas, oscilando em torno de trinta espécies no Horto do Movimento Mulheres da Itaoca (Barros; Gamarra-Rojas; Sousa, 2017). Dedicam-se à produção, autoconsumo e distribuição gratuita de plantas medicinais. Algumas comercializam produtos manipulados e mudas diversas a baixo custo, como as Mulheres da Itaoca, gerando rendas monetárias quase ‘simbólicas’ (Barros; Gamarra-Rojas; Sousa, 2017) e duas delas atendiam à demanda de fitoterápicos do SUS (Rufino et al., 2018), contrastando com a condição apresentada pelas empresas privadas de fitoterápicos no Brasil, onde nenhuma destas declarou ser fornecedora do SUS e sim do mercado privado (Hasenclever et al., 2017). As FVs da Escola Marvin, do FAC e da UNIFOR também partilham a missão institucional do ensino-aprendizagem (Quadro 2).
A especialização produtiva aparentemente tem relação com a qualidade da produção via ‘certificação’ botânica do material de propagação proporcionado pela UFC e pelo Núcleo de Fitoterápicos (NUFITO) da Coordenadoria de Assistência Farmacêutica da Secretaria da Saúde do Ceará (Quadro 2). Contudo, a fidelidade botânico-genética depende de fatores internos e de contexto e as FVs sofrem oscilações e até descontinuidade de suas atividades com as mudanças administrativas periódicas de Governo que se refletem nos investimentos públicos em salários, equipamentos e custeio, e provocam motivação ou, ao contrário, desmotivação. Assim, além da ‘certificação’, é o desenvolvimento de competências em cursos e capacitações que tem favorecido a qualidade e fidelidade genética nas FVs (Rufino, 2015; Barros; Gamarra-Rojas; Sousa, 2017).
A respeito dos produtos para atender aos propósitos da PPPMFCE, é preciso distinguir: a planta medicinal in natura, o produto manipulado - que inclui xarope e sabonetes - e o fitoterápico (Barros; Gamarra-Rojas; Sousa, 2017). O vegetal in natura é tanto produto final, quanto matéria prima, da qual são derivados o produto manipulado e o fitoterápico. Das três modalidades, é o fitoterápico que permite ‘fechar’ a cadeia de produção/redistribuição (Quadro 1). Consequentemente, a PPPMFCE tem investido em mecanismos de controle qualitativo, como o manual de Boas Práticas de Preparação de Fitoterápicos. Já os volumes produzidos, bem como a destinação dos produtos in natura, sejam frescos ou secos, e dos produtos manipulados, estão sob controle das FVs (Barros; Gamarra-Rojas; Sousa, 2017; Rufino et al., 2018).
A rica agrobiodiversidade presente nas FVs - entendida como “a parcela explorada da biodiversidade, representada por um conjunto de ecossistemas e organismos que possuem fortes relações com o ser humano, e que podem ser domesticados, semi-domesticados, cultivados ou manejados pelo homem” (Stella; Kageyama; Nodari, 2006) - relativiza a noção de especialização produtiva restrita à espécie ou variedade, acima descrita como cash crop. Por tanto, nesta análise utiliza-se a noção de diversidade ampla, procurando esclarecer as relações entre produção, função social e objetivos dos sujeitos. Nesta perspectiva, a função social nas FVs inclui, além da saúde, relacionada às plantas medicinais, a alimentação e a nutrição, vinculadas à produção e consumo de frutas e hortaliças; a estética e o lazer, com o cultivo de plantas ornamentais e a configuração de jardins nos hortos (Quadro 2). Acrescente-se que a elevada agrobiodiversidade, quando associada a uma nutrição vegetal adequada com composto orgânico produzido localmente (Barros; Gamarra-Rojas; Sousa, 2017), conduz a um aumento da homeostase do agroecossistema, tornando as FVs menos suscetíveis ao surgimento de insetos e microrganismos fitófagos e mais resistentes aos seus efeitos, dispensando o uso de agrotóxicos. Essas características levaram Barros, Gamarra-Rojas e Sousa (2017) e Rufino et al. (2018) a considerá-las ‘agriculturas urbanas de baixo uso de insumos externos’, com elevada autonomia produtiva, um dos atributos que caracterizam a ES. Revelam também outros princípios da ES (FBES, 2005), ao proporcionar ambientes de trabalho e produtos sadios, ativos estes valorizados pelos sujeitos e público das FVs.
Os propósitos também foram ampliados (Quadro 2), por exemplo: o objetivo didático-pedagógico vai além da educação formal proporcionada pela Escola Marvin, a FAC e a UNIFOR e transparece como educação não formal, com oficinas e orientações destinadas à comunidade local; nas Quatro Varas, o atendimento psicológico e a reinserção social de pacientes com problemas psicossociais, está associado ao uso de plantas medicinais in natura em práticas de relaxamento e ao trato com a terra no cultivo de plantas nos hortos para a ‘reconexão com a natureza’ (Rufino, 2015; Rufino et al., 2018).
Na busca de compreensão dos processos de difusão de conhecimentos e tecnologias no contexto das FVs é oportuno distinguir ao menos duas dimensões: a das ciências farmacêuticas e a da educação não formal. A ampla disseminação de conhecimentos sobre plantas medicinais, produtos manipulados e fitoterápicos sugere o reconhecimento por parte dos sujeitos das FVs e seu público ao papel da ciência farmacêutica na validação das propriedades terapêuticas das plantas medicinais já consagradas no conhecimento tradicional/popular, bem como à capacitação recebida em processos de elaboração de produtos manipulados e fitoterápicos, realizadas pela UFC e Nufito (Quadro 2). Na educação não formal, como no esclarecimento da população local sobre o papel das plantas medicinais na saúde, o caráter solidário transparece nos contatos diretos entre os interessados ao propiciar momentos de bem-estar, de lazer, de conhecimento e principalmente o sentimento de sentir-se útil ao outro (Rufino, 2015; Barros; Gamarra-Rojas; Sousa, 2017).
Verifica-se que nas FVs as inovações organizativas e produtivas não surgem num vazio cultural e implica no reconhecimento e retroalimentação de conhecimentos e modos de vida historicamente construídos. Processo semelhante foi constatado com a difusão da Mandalla – uma forma de agricultura orgânica circular – na agricultura familiar do Ceará, onde a adoção e adaptação dessa inovação são atribuídas ao fortalecimento das próprias estratégias camponesas (Lima; Gamarra-Rojas, 2017). Assim, o desenvolvimento de confiança mutua na aquisição de competências e capacitação técnica em atividades produtivas constitui um requisito pedagógico central à ES e faz parte das ‘ações educativas’ da ES (Oliveira, 2006).
As FVs incorporam praticamente todos os ‘elos’ de cadeia produtiva, realizando o cultivo, transformação, autoconsumo, distribuição, comercialização, com duas delas proporcionando o fitoterápico para o SUS (Quadro 2). Para Rufino et al. (2018) existe uma cultura de autonomia e esses autores sugeriram à PPPMFCE dar maior atenção à produção e transformação de forma integrada.
Assim, a divisão social do trabalho no interior das FVs é parcial: o agrônomo e o técnico não estão presentes na maioria das FVs, sendo que professores, comunitários e pacientes clínicos, exercem o papel de produtores, técnicos de transformação e beneficiários simultaneamente. Já no processamento e transformação, o concurso dos sujeitos prescritos na PPPMFCE é maior: a UNIFOR e a Quatro Varas contam com farmacêutico e técnico em manipulação e a dispensação é realizada por profissionais de saúde (Rufino et al., 2018). O quadro esboçado sugere que poucas FVs conseguem - ou estão dispostas a - acompanhar a especialização por competências e a segmentação do processo de produção, transformação, distribuição e consumo da PPPMFCE e denota elevado grau de corresponsabilidade e coesão interna.
As FVs se nutrem também do trabalho voluntário, como aquele realizado pelo Grupo Agroecológico da UFC (GAUFC), para quem as FVs constituem um espaço de prática e aprendizagem social (Barros; Gamarra-Rojas; Sousa, 2017). Essa dinâmica do trabalho, que combina confiança e reciprocidade com relações de gratuidade e de aprendizado mútuo, representa uma forma de ‘cooperação solidária’ (Oliveira, 2006).
Ao analisar a trajetória da planta medicinal à política (PPPMFCE e PNPMF) verificou-se o reconhecimento público dos conhecimentos tradicionais em plantas medicinais e da ciência farmacêutica e dos seus agentes sociais - históricos e contemporâneos - na atenção básica em saúde, em especial dos menos favorecidos e, simultaneamente, uma adesão à lógica de mercado capitalista demandada por empresas de fármacos e do setor agrícola.
O modo como a interfase entre visões econômicas divergentes se expressa na PPPMFCE pôde ser depreendido de sua estrutura operativa e organizacional, a qual aponta o concurso da especialização produtiva, da difusão de tecnologia e da cadeia de produção como enfoques pedagógicos. Tais abordagens proporcionam oportunidades ao desenvolvimento econômico pela via da troca capitalista. Ao mesmo tempo, o estado utiliza mecanismos de fomento, financiando pesquisa básica e aplicada, salários e equipamentos nas FVs, e de redistribuição do fitoterápico pelo SUS, que oportunizam o desenvolvimento de relações de solidariedade.
Tomando a FV como unidade básica de estudo, percebeu-se que a especialização produtiva, como conceito associado ao agronegócio, não se aplica completamente à mesma. Assim, a noção de diversidade ampla ou diversidade socioambiental, utilizada neste estudo, oposta à especialização focada no produto, pode incidir positivamente na PPPMFCE ao dar sentido cultural e reconhecimento às práticas e inovações que os sujeitos das FVs vêm promovendo ‘na gestão de bens comuns e públicos’.
Em termos de cadeia produtiva, verificou-se que tanto a divisão setorial por competências entre FVs, quanto a divisão do trabalho no interior das FVs de Fortaleza, são dependentes de fatores diversos, variáveis no tempo, as quais vão além das prescrições da PPPMFCE e, por tanto, precisam ser melhor compreendidas, em particular as relações entre FVs e destas com outros empreendimentos solidários.
Quanto aos processos de difusão de conhecimentos e tecnologias, foi visto que nas FVs as inovações não surgem num vazio cultural e implicam no reconhecimento e retroalimentação de conhecimentos social e historicamente construídos. Esta constatação é relevante para a extensão lato sensu ao demonstrar a importância do diálogo de conhecimentos entre os diferentes atores do desenvolvimento, como princípio de caráter solidário presente na PNATER.
Ainda, considerando que as abordagens pedagógicas da política estadual, em princípio, favorecem o desenvolvimento econômico pela via da troca capitalista, o estudo sugere que para se obter um quadro mais completo das forças que operam nesse setor da saúde pública haveria a necessidade de se buscar compreender melhor como a indústria privada de plantas medicinais e de fitoterápicos se organiza e opera em Fortaleza, quais suas relações com o estado e/ou governos, com o agronegócio e sua interfase com o sistema de reciprocidade.
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Contribuição de autoria
1 – Guillermo Gamarra-Rojas
Doutor em Biodiversidade pela Universidade Federal Rural de Pernambuco
https://orcid.org/0000-0001-6348-4370 • ggamarra@terra.com.br
Contribuição: Concepção, planejamento e redação do artigo.
2 – Joel Henrique Cardoso
Doutor em Agroecologia, Sociologia e Desenvolvimento Rural pela Universidade de Córdoba, Espanha
https://orcid.org/0000-0002-1038-260X • joel.cardoso@embrapa.br
Contribuição: Revisão intelectual da primeira versão e redação do artigo.
3 – Leonardo Lopes Rufino
Mestre em Economia Rural pela Universidade Federal do Ceará
https://orcid.org/0000-0003-2448-0355 • leonardorufino@yahoo.com.br
Contribuição: Escrita – Curadoria da informação e redação do artigo.
Como citar este artigo
Gamarra-Rojas, G.; Cardoso, J. H.; Rufino, L. L. Farmácia viva sócio(bio)diversa e solidária. Extensão Rural, Santa Maria, v. 32, p. 01-27. 2025. DOI 10.5902/2318179670449. Disponível em: https://doi.org/10.5902/2318179670449. Acesso em: dia mês abreviado. ano.