Universidade Federal de Santa Maria
Econ. e Desenv., Santa Maria, v. 35, e83314, 202x
DOI: 10.5902/1414650983814
ISSN 2595-833X
Submissão: 19/05/2023 • Aprovação: 09/11/2023 • Publicação: 28/02/2024
2. CONTEXTO DE ENFRAQUECIMENTO DO MERCADO DE TRABALHO EM CONTEXTO DE FINANCEIRIZAÇÃO (1970/80)
3. O MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO E O EMPREENDEDORISMO NO PERÍODO 2015 A 2021
4 QUADRO METODOLÓGICO DA ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA (ADC)
5 ADC APLICADA AO DISCURSO DO EMPREENDEDORISMO
Artigos
O discurso do Empreendedorismo sob a perspectiva da Análise do Discurso Crítica
The discourse of Entrepreneurship from the perspective of Critical Discourse Analys
IUniversidade Federal de Alfenas, Alfenas, MG, Brasil
RESUMO
O objetivo deste artigo é discutir a disseminação do discurso sobre o “empreendedorismo” no contexto das relações de trabalho contemporâneas no Brasil, a qual vem sendo feita de forma acrítica e sem questionamentos, associando o tema ao desenvolvimento econômico e ao sucesso pessoal. Para isso, utilizou-se da Análise do Discurso Crítica, de Fairclough e Wodak, assim como análise de microdados trimestrais da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE) do mercado de trabalho brasileiro para o período de 2015 a 2021. Os resultados indicam que os processos de desindustrialização e financeirização da economia levaram a uma precarização do trabalho, fazendo com que o discurso do empreendedorismo emergisse no bojo das reformas neoliberais das últimas décadas, em particular a reforma trabalhista de 2017.
Palavras-chave: Discurso do empreendedorismo; Análise do Discurso Crítica; Precarização do trabalho
ABSTRACT
The purpose of this paper is to discuss the dissemination of the discourse on “entrepreneurship” in the context of contemporary labor relations in Brazil, which has been done in an uncritical and unquestioning way, associating the theme with economic development and personal success. For this, we used Critical Discourse Analysis, by Fairclough and Wodak, as well as analysis of quarterly microdata from the Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE) of the Brazilian labor market for the period 2015 to 2021. The results indicate that the process of deindustrialization and financialization of the economy led to a precariousness of work, causing the entrepreneurship discourse to emerge in the midst of the neoliberal reforms of the last decades, in particular the labor reform of 2017.
Keywords: Discourse of entrepreneurship; Critical discourse analysis; Precariousness of work
Desde o final dos anos 1970, vivenciamos um processo de grandes transformações na economia global, que vem atingindo o mundo laboral de forma direta, resultado, de um lado, de acirramento da concorrência internacional e do processo de desindustrialização – em particular das economias do Ocidente, inclusive das principais nações latino-americanas de industrialização tardia – e, de outro, do enfraquecimento da legislação trabalhista construída nas décadas anteriores. O resultado tem sido a ampliação da taxa de desemprego, em particular dos postos assalariados formais, e uma maior dependência de ocupações trabalhistas por conta própria de natureza informal e precária.
Em meio a esse processo, a demanda por um novo perfil de trabalhador e o discurso capitalista deram origem à propagação do espírito empreendedor. Assim, na nova ética empresarial do trabalho, constrói-se a imagem do empreendedor como o herói provedor de desenvolvimento, o que delega a este sujeito um poder autônomo e a responsabilidade de assumir individualmente a percepção de novos negócios (Oliveira; Mota; Aquino, 2016).
O presente artigo tem como objetivo entender como o discurso do empreendedor se fortalece em um contexto de precarização do mercado de trabalho brasileiro. Sendo assim o texto estuda o caráter precário das ocupações empreendedoras no país, no período entre o quarto trimestre de 2015 e o quarto trimestre de 2021, analisando como o quadro de recessão (2015-2016) e baixo crescimento econômico, a Reforma Trabalhista de 2017 – abarcando as leis 13.429 e 13.467 – e a pandemia do coronavírus (em especial, no biênio 2020-2021) contribuíram para ampliação desse processo, paralelamente ao fortalecimento de um discurso que elenca a perspectiva empreendedora como o caminho para quem busca desenvolvimento e sucesso profissional.
Para entender este processo de construção da imagem dos sujeitos empreendedores e suas relações com a sociedade, utiliza-se da Análise do Discurso Crítica (ADC), de natureza inter e transdisciplinar. Com base na vertente teórico-metodológica da ADC, que aborda o estudo das linguagens nas sociedades contemporâneas, temos que a ADC provê base científica para questionamentos críticos da vida social em termos políticos e morais. Além do uso da ADC, o presente trabalho conta com análise descritiva de dados da PNAD Contínua Trimestral (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), do IBGE, a fim de contextualizar os dados recentes do mercado de trabalho brasileiro.
O artigo está dividido em cinco seções, além desta introdução. A seguinte seção apresenta uma breve contextualização sobre o processo de financeirização e desindustrialização da economia, compondo um quadro de relativo baixo crescimento econômico e demanda reduzida por trabalho formal. A terceira seção aborda o mercado de trabalho brasileiro, apontando a trajetória de queda do emprego assalariado formal, o que fortaleceu o discurso pró-empreendedorismo como alternativa de sucesso pessoal. A quarta seção trata a metodologia da ADC, a quinta foca na aplicação da análise do discurso empreendedor, com base ADC e, por fim, ao final do trabalho, os principais pontos do tema serão debatidos nas considerações finais.
2. CONTEXTO DE ENFRAQUECIMENTO DO MERCADO DE TRABALHO EM CONTEXTO DE FINANCEIRIZAÇÃO (1970/80)
O processo de financeirização tem associação direta com a queda do sistema Bretton Woods (1944-1971), seguido por ações de desregulamentação financeira, privatização de empresas e liberalização de mercados, praticada pelas principais economias ocidentais entre as décadas de 1970 e 1990, acompanhado por políticas de desmonte do das instituições do Estado de Bem-Estar Social (Plihon, 1996). Esse quadro também foi marcado pelo processo de desindustrialização dessas economias, setor que foi paulatinamente sendo direcionado para os países do Oriente, com destaque para o Leste Asiático. Conforme Gonçalves e Coimbra: “De uma sociedade assente principalmente no sector primário e secundário, assiste-se à terciarização da economia ocidental, numa sociedade do conhecimento e da informação ao serviço da inovação” (Gonçalves; Coimbra, 2007, p.404).
No Ocidente e na América Latina, o esvaziamento do setor industrial gerou um contexto econômico novo, pautado na diminuição da classe operária tradicional. Em contrapartida, verificou-se também o florescimento sem precedentes do setor de serviços assente em contratos de trabalho relativamente instáveis e precários. Conforme explica Beck: “De uma sociedade marcadamente salarial, sinônimo de integração social e cidadania, passamos a uma sociedade de ‘risco’, alicerçada na imprevisibilidade, na flexibilidade, na globalização, na precariedade e no desemprego estrutural.” (Beck, 1999 p.123).
Attílio (2018) aborda que, em meio à queda da lucratividade do setor industrial, os agentes passaram a se voltar para a esfera financeira. O processo de acumulação financeira foi impulsionado por políticas de abertura dos mercados, como a liberalização e desregulamentação financeira. O Estado de Bem-Estar Social foi desarranjado pelo novo direcionamento de política econômica, que passou a enfatizar o individualismo, a propriedade privada e o cumprimento dos contratos, na ascensão do neoliberalismo (Harvey, 2005). Deslocou-se o processo de acumulação de capital do setor produtivo para o setor financeiro, engendrando o processo de financeirização (Epstein, 2001).
Uma importante mudança foi a maior influência exercida pelo mercado financeiro sobre as políticas nacionais dos Estados. Caso os governos não correspondam às expectativas do setor financeiro, o país pode sofrer abruptas saídas de capitais, com consequentes impactos negativos sobre o câmbio e a liquidez doméstica, especialmente para as economias em desenvolvimento, como foi o caso da crise asiática de 1997, segundo Krugman (2009). Por consequência, o Estado perdeu autonomia no gerenciamento da economia doméstica; houve, a partir disso, uma dissociação entre os interesses da população e do mercado financeiro.
Na vida cotidiana, a financeirização influenciou nas finanças das famílias, com o desmantelamento das instituições que compunham o Estado de Bem-Estar Social, gerando assim recuo na prestação de serviços sociais básicos, como a previdência, habitação, saúde e a educação – cujo caso brasileiro foi exposto por Lavinas e Gentil (2018). De acordo com Harvey (2005), essa tendência não se limitou apenas às áreas sociais: o consumo das famílias também foi financeirizado.
Assim, o cotidiano dos trabalhadores se financeirizou através dos empréstimos e/ou da posse de ativos financeiros, como, por exemplo, fundos de pensão, seguros e aplicações em ativos financeiros, como forma de manutenção de riqueza familiar. Desta forma as instituições financeiras passaram a buscar novas formas de aumentar a rentabilidade, se enveredando pela totalidade da vida social, na geração de produtos e serviços voltados para as famílias de diversas classes de renda. Nesse contexto, é perceptível que o crescimento do consumo das famílias se descolou da evolução da renda corrente (basicamente salários), e se tornou cada vez mais dependente da valorização de seu patrimônio em ativos financeiros, assim como do endividamento, fatores que se tornaram cruciais para a perspectiva de crescimento econômico (Coutinho; Belluzzo, 1996; Matos, 2016).
A seção se encerra, descrevendo um quadro macroeconômico relativamente mais instável – em contraste com o período anterior –, o que vai se refletir sobre a dinâmica dos mercados de trabalho doméstico, tanto no que se refere a perda de dinamismo de geração de postos de trabalho formais estáveis – principalmente o emprego assalariado formal, ancorado pela legislação trabalhista – assim como a própria renda do trabalho, o que vem alimentando o caldo dos discursos pró-empreendedorismo brasileiro, a ser tratado nas próximas seções.
3. O MERCADO DE TRABALHO BRASILEIRO E O EMPREENDEDORISMO NO PERÍODO 2015 A 2021
Encerrada a contextualização da crise estrutural do mercado de trabalho, o artigo passa a focar no cenário conjuntural brasileiro mais recente. Assim, após um período de expansão da economia no período 2010-2014, o Brasil enfrentou, por razões de ordem econômica, mas também política, um revés considerável a partir de 2015, marcado por um desempenho negativo do PIB que durou por 10 trimestres consecutivos, entre 2015.1 até 2017.2, conforme aponta a Figura 1 - . Em seguida, embora em ritmo lento, a recuperação da economia perdurou até o primeiro trimestre de 2020, quando o país passou a enfrentar efeitos graves da crise internacional da pandemia Covid-19, sofrendo com novo período de recessão por mais quatro trimestres, voltando a se recuperar nos três últimos trimestres de 2021.
Figura 1 - Evolução trimestral da taxa e crescimento do PIB brasileiro a preços de mercado entre 2011 e 2021 (%)
Fonte: Elaboração própria a partir dos dados do IBGE
Convém relembrar a situação econômica que se viveu no país no período anterior, até 2014, era relativamente mais favorável – parte desse período está também ilustrado na Figura 1. Filgueiras (2019) aponta que, em razão das políticas econômicas adotadas – e também da dinâmica da economia mundial favorável às exportações do país –, no período entre 2003 e 2014, os postos de trabalho formal aumentaram em cerca de 21 milhões. Durante esse período houve um incremento da ocupação, da formalização, a redução da desocupação, tendo no período observado a menor taxa de desocupação na série histórica, além de crescimento dos ganhos salariais, dada a política de valorização real do salário-mínimo adotadas, especialmente a partir de 2007 (Oreiro; Paula, 2021).
Nos anos 2012 e 2013, porém, iniciou-se uma forte desaceleração do ritmo de crescimento do PIB real, que até então apresentava taxas de crescimento positivas, mas é no início do segundo trimestre de 2014 que começa a mais profunda e duradoura queda do nível da atividade econômica, desde o término da Segunda Guerra Mundial (Oreiro; Paula, 2021). Nos anos subsequentes 2015 e 2016 o ritmo de queda do nível de atividade aprofundou-se, gerando uma grande contração do PIB e dos níveis de emprego.
A reforma trabalhista de 2017 – denominação usada no texto para fazer referência não apenas à lei 13.467, mas também à lei de terceirização, 13.429, ambas aprovadas no parlamento brasileiro ao longo do supracitado ano - foi em grande parte formulada pelos corpos técnicos de diferentes entidades patronais e instituições financeiras. A justificativa foi de que a reforma contribuiria para reduzir a “excessiva” rigidez do mercado de trabalho nacional, aumentando a flexibilidade e produtividade das empresas, reduzindo os custos laborais, e assim contribuindo para o crescimento do emprego e, por conseguinte, para a reversão do quadro de degradação do mercado de trabalho brasileiro que era observado nos anos anteriores (Teixeira et al, 2017; Manzano; Caldeira, 2018).
De acordo com Manzano e Krein (2020), a onda de reformas laborais que se verificou no mundo desde a crise financeira internacional de 2008 disseminou em escala global mudanças nos padrões de regulação do trabalho e de proteção social. No caso brasileiro, segundo tais autores, as forças políticas e econômicas que defenderam e conseguiram aprovar a reforma trabalhista em 2017 apoiavam-se estritamente em argumentos econômicos de natureza liberal, amparada em ganhos de mercado obtidas com flexibilização das leis trabalhistas. Ainda nos primeiros momentos de perda de dinamismo da economia brasileira, nos anos precedentes, os defensores da reforma denunciavam a obsolescência do marco legal trabalhista, tendo a CLT (Consolidação das Leis do Trabalho) como um dos fatores determinantes da atrofia produtiva que se desenvolvia. Nesse âmbito, a aprovação da reforma em 2017 operou a flexibilização de contratos de trabalho formalizados, em um movimento que incitou trabalhadores (antes CLT) para a abertura de conta Pessoa Jurídica (conhecido como “pejotização”) – em alguns casos, como Micro-Empreendedor Individual (MEI) –, de modo que a prestação dos mesmos serviços (ao mesmo empregador) passou a equivaler a menores direitos trabalhistas (Lima-Souza; Mota-Santos; Carvalho Neto, 2021).
Contudo, em caminho oposto ao dos argumentos favoráveis à reforma trabalhista, o balanço de sua implementação indicou uma economia estagnada. Para Manzano e Krein (2020), o que se constatou, três anos após a implementação, foram investimentos não concretizados, taxas elevadas de desemprego e informalidade[1] em alta. Evidências, portanto, apontam que a flexibilização da legislação do trabalho não foi capaz de contornar a falta de dinamismo econômico, bem como acentuou ainda mais as disparidades no mercado de trabalho.
Para melhor ilustrar este cenário, foi elaborado (Figura 2) um gráfico com dados da PNAD Contínua Trimestral, do IBGE para o período entre 2015.4 e 2021.4. O IBGE agrupa a inserção das pessoas ocupadas em 12 posições: empregado setor privado com carteira, empregado no setor privado sem carteira, trabalho doméstico com e sem carteira; empregado no setor público com e sem carteira; militar e funcionário público estatutário; empregador com ou sem CNPJ; trabalho por conta própria com ou sem CNPJ e trabalhador familiar auxiliar. Em particular, as posições com ou sem CNPJ (para empregadores e trabalho por conta própria) só passaram a ser identificadas pela PNAD a partir de 2015.4, o que justificou a escolha do início do período analisado. Grosso modo, a análise aqui apresentada concentra-se na comparação entre trajetórias de ocupações de maior qualidade e estabilidade (empregado do setor privado com carteira; empregado no setor público com e sem carteira); e das práticas de natureza empreendedora (trabalho por conta própria e; empregadores), cuja falta CNPJ é indicativo de precariedade. Vale lembrar que os assalariados que atuam com carteira assinada estão protegidos pela legislação trabalhista vigente para que os contratos sejam justos em termos, remuneração e condições de trabalho, e também para que o tempo não ultrapasse determinados limites de horas trabalhadas, que visam justamente a preservação da saúde física e mental dos trabalhadores. A carteira de trabalho permite que os trabalhadores tenham direitos como: férias remuneradas, 13º salário, direitos concedidos pela CLT. O trabalhador com registro em carteira conta com proteção social, como seguro-desemprego, auxílio-doença, salário-família, salário-maternidade e aposentadoria. Em contrapartida, os assalariados que são contratados sem vínculo empregatício não realizam o recolhimento do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) e do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), e também não estão protegidos pelas previsões existentes em norma coletiva.
O emprego público é exercido por um servidor estatutário, que é disciplinado por um estatuto próprio, e a forma de ingresso no serviço público se dá com a aprovação em concurso público ou processo seletivo para cargos temporários. O regime de contratação de um funcionário público pode ocorrer de duas formas: o ocupante de cargo público efetivo é subordinado ao seu respectivo estatuto e tem estabilidade, regime do Estado; ou o ocupante de emprego público é regulado pela conhecida CLT, e não possui garantia de estabilidade. O trabalhador conta própria (autônomo), foco deste trabalho, é aquele que exerce sua atividade profissional sem vínculo empregatício, por conta própria e com assunção de seus próprios riscos. A prestação de serviços pode se dar não só de forma eventual, mas também habitual. O trabalhador autônomo pode apresentar CNPJ, importante para o profissional emitir nota fiscal pelo serviço prestado a uma empresa, o que, em tese, sinaliza um posto de qualidade superior, relativamente aos sem CNPJ. Trabalhador conta própria sem CNPJ, em contrapartida, está associado a práticas precárias ou ilegais.
Outra categoria importante do presente artigo é o empregador com ou sem CNPJ, que se refere àqueles que contratam trabalhadores aos seus serviços de forma remunerada, e tendo em contrapartida deste a prestação de trabalho. O empregador pode ser pessoa física ou pessoa jurídica. Os empregadores com CNPJ apresentam um número designado pela Receita Federal na abertura da empresa para identificar o negócio nos mais diversos tipos de atividades, como a emissão de notas fiscais ou o pagamento dos impostos, representando, portanto, o empreendedorismo em uma melhor qualidade. Empregadores sem CNPJ, em contrapartida, tendem a ser relacionados a micro e pequenos empreendimentos familiares informais e pouco dinâmicos.
Por fim, o empregado doméstico é aquele que presta serviços de forma contínua, subordinada, onerosa e pessoal e de finalidade não lucrativa à pessoa ou à família, no âmbito residencial destas, esse tipo de profissional pode apresentar carteira assinada ou não. Quando esse serviço é prestado três vezes na semana ou mais, o mesmo deve ter a carteira assinada, já que atende a todos os critérios exigidos por lei.
Conforme a Figura 2, que ilustra as trajetórias das 12 categorias no período analisado, a partir do quarto trimestre de 2015 é possível notar um período de avanço da precarização do mercado de trabalho. É em meados de 2016 que os efeitos da crise de desaceleração da economia brasileira, iniciada no segundo semestre de 2014 (ver Figura 1), mas aprofundada em 2015, se tornam mais visíveis no mercado de trabalho. Explicitando os dados, em 2015.4, as taxas de trabalho do setor privado com carteira assinada foram de 39,4%, finalizando o ano de 2016 com 38,6%, uma queda de aproximadamente 2%. Em grande medida, a contraposição dessa queda foi o aumento do emprego assalariado sem carteira, que passou de 11,1% para 11,8% - a categoria por conta própria sem CNPJ manteve-se praticamente estável em 19,6% durante o período.
Figura–2 Distribuição de pessoas ocupadas por categorias no período 2015-4 a 2021.4 segundo dados da PNAD (%
Fonte: Elaboração própria a partir dos microdados da PNAD Contínua Trimestral (IBGE) e do Stata 12
É nesse cenário de recessão econômica e degradação do trabalho que o argumento da reforma trabalhista ganha força. Como já mencionado, a reforma vem na esteira de um fenômeno mundial, no qual o capital financeiro passa a assumir uma agenda de retroação de sistemas protetivos do trabalho com vistas a retomar de forma plena o controle sobre o trabalho, seguindo os caminhos da ordem mundial implantada, que adotava a bandeira da flexibilização de contratos de trabalho, da desregulamentação laboral e da responsabilização individual pelo desemprego, como abordado na seção anterior (Teixeira, et al, 2017; Lúcio, 2018; Lima-Souza; Mota-Santos; Carvalho Neto, 2021).
Os dados sobre a composição da população ocupada mostram que o período que sucedeu a reforma trabalhista, especialmente 2018 e 2019 – período que precedeu a pandemia e a consequente crise econômica e sanitária –, foram marcados por uma queda na participação do emprego no setor privado com carteira, que em 2017.4 foi de 37,1% para 36,6% em 2018.4, valor próximo ao registrado em 2019.4. Em contrapartida, se observa um aumento de participação de empregados sem carteira do setor privado, que passa de 12,3% no último trimestre de 2017 para 12,6% em 2018.4, atingindo 12,8% em 2019.4. A taxa de empregador com CNPJ sofreu uma elevação, de 3,5%, em 2015.4, para 3,8% em 2019.4. Empregador sem CNPJ, por sua vez, passou de 0,7% para 0,8% no mesmo período.
O volume de trabalhadores por conta própria sem CNPJ sofreu um ligeiro aumento após reforma trabalhista, saindo de 20,0% em 2017.4 para 20,2% no último trimestre de 2018, número que se repetiu também em 2019.4. Manzano e Krein (2020) acentuam que a reforma trabalhista de 2017, que tinha como um dos seus objetivos legalizar práticas irregulares, não alterou essas formas de contratação, que seguiram impermeáveis a esses processos de mudanças, o que foi possível observar nos anos de 2018 e 2019. De fato, os dados mostram que no caso dos conta própria com CNPJ, os números passaram de 4,8% para 5,3% entre 2017.4 e 2019.4, mas se mantiveram em um patamar limitado. Como sabido, a pandemia internacional de Covid-19 afetou fortemente o mundo já no primeiro trimestre de 2020. Além das consequências para os sistemas de saúde, da alteração quanto à circulação de pessoas nos âmbitos local, nacional e internacional, a pandemia provocou mudanças na dinâmica econômica e transformações substantivas no mundo do trabalho. É claro deduzir que a crise e a deterioração do mercado de trabalho brasileiro antecedem a pandemia da Covid-19, mas se aprofundam exponencialmente. Teixeira e Borsari (2020) destacam que em 2020 houve um movimento de desaceleração da economia mundial em curso, entretanto, essa desaceleração já estava prevista pelo Banco Central, ainda que em menor escala.
A crise sanitária potencializou a fragilidade do mercado de trabalho que vinha em processo de deterioração desde 2016. Esta atingiu de forma contundente e de diversas maneiras a classe trabalhadora, os níveis gerais de emprego reduziram com as medidas de distanciamento; diversos comércios fecharam, fábricas pararam de produzir e muitos passaram a trabalhar de casa com impacto severo sobre o mercado de trabalho, especialmente em 2020 (Teixeira; Borsari, 2020).
Sobre os números, o biênio 2020-2021 foi marcado, não só pela redução das taxas de trabalhadores do setor privado com carteira assinada, que foram de 36,6% nem 2019.4 para 36,2% em 2020.4, e 36,0% em 2021.4, mas sua característica principal foi o aumento dos trabalhadores por conta própria, com ou sem CNPJ, que elevou, respectivamente, de 5,3% para 6,7%, e de 20,2% para 20,4%, no intervalo 2019.4-2021.4. Outra trajetória de alta, que já vinha sendo verificada desde 2015.4 foi a elevação dos assalariados sem careira, que aumentaram de 12,8% para 13,0% entre 2019.4 e 2021.4.
A síntese dessa trajetória de desestruturação do mercado de trabalho está presente na Figura 3, que reúne o percentual do mercado de trabalho nas seguintes categorias: i) empregado do setor privado com carteira de trabalho assinada; ii) conta própria com CNPJ e; iii) conta própria sem CNPJ.
Como é possível visualizar, há uma clara tendência de queda do assalariamento com carteira ao longo do período avaliado, apontando para maior instabilidade e precariedade do trabalho. Essa perda foi compensada, em parte, pelo aumento do trabalho por conta própria sem CNPJ, e também pelo trabalho por conta própria com CNPJ – este último, afinal, impulsionado pela Reforma de 2017 –, que permaneceu relativamente mais estável ao longo do período pré-pandemia, apresentando ligeira alta em 2020 e 2021.
Figura 3–Evolução temporal das categorias assalariados do setor privado com carteira assinada e trabalho por conta própria (com e sem CNPJ) no período de 2015.4 a 2021.4 (%)
Fonte: Elaboração própria com microdados da PNAD Contínua Trimestral /IBGE
3.1 O fortalecimento do discurso contemporâneo do empreendedorismo em um quadro marcado por instabilidade laboral
A partir dos indicadores apontados até aqui, é possível concluir que a precarização do trabalho assumiu grande importância, articulando-se e acentuando-se com a pandemia, em todas as suas dimensões. Contudo, a economia informal, segundo Araújo e Brandão (2021), é muitas vezes apresentada como uma esfera do trabalho moderno – para o qual a legislação trabalhista deve ser adaptada para reconhecê-la como formal –, visto que parte dos trabalhadores não conseguem se inserir no mercado de trabalho formal, e logo esta se torna uma solução para o desemprego contemporâneo. O discurso de autonomia agregada a essa prática aparece para acobertar sua funcionalidade para o sistema, tendo em vista que para o capital as formas de trabalho cada vez menos estáveis são extremamente úteis para a sua reprodução:
Dessa forma, a informalidade se apresenta muito mais como um empreendimento de pequenas ou microempresas do que trabalho, o que rende maiores lucros para o capital ao economizar gastos com a legalização da força de trabalho. Esse novo caráter da informalidade, produto da flexibilização do trabalho, se traduz como uma relação de igualdade na sociedade, como parte de relações comerciais normais pertencentes ao mundo do trabalho que obscurece as relações de exploração. (Araújo; Brandão, 2021 p. 104)
De acordo com Almeida (2018), o enfraquecimento do mercado de trabalho com base no assalariamento formal gera uma situação de desprendimento coletivo, que representa, para estes trabalhadores, o fim de um modelo laboral estável para o qual foram socializados, o que cria tensões entre as suas práticas habituais e as novas práticas a que precisam de se adaptar, com maior ou menor sucesso. A superação desta situação envolve a procura ou criação de novos referenciais e a reestruturação dos seus campos sociais (Almeida, 2018).
Conforme dito na seção 2, a desconstrução do Estado de Bem-Estar Social e o novo direcionamento de política econômica passou a enfatizar o individualismo. Além disso, segundo Kovács (2005), a sociedade passou de um trabalho com um caráter formal e institucionalizado (protegido por legislação própria), para um tipo de trabalho relativamente instável, desinstitucionalizado e informalizado, que foi acompanhado pela crescente desresponsabilização do Estado na regulação do trabalho e das empresas, que passaram a transferir os custos da crise dos ciclos económicos para os trabalhadores.
É nesse contexto de desinstitucionalização e informalização do trabalho que o argumento de exaltação do empreendedor ganha força e destaque. O empreendedorismo apresenta-se como a saída para a crise do emprego, uma saída que ressalta a lógica neoliberal enraizada na origem do problema, como destaca Campos (2016). Com um forte discurso pautado na liberdade e autonomia individual, a narrativa do ‘empreendedorismo’[2] tem, por isso, um efeito político cada vez mais evidente: fazer com que cada um se sinta único responsável por sua situação:
Desembaraçados do contrato de trabalho, instilados de «espírito empreendedor» e munidos de conselhos para melhorar a nossa «empregabilidade», não é afinal um mundo de produtores autónomos o que temos pela frente, mas uma selva de exploração, de desigualdade e de desproteção social. Uma selva na qual o discurso do empreendedorismo se constitui como uma nova forma de dominação, tanto mais eficaz quanto mais incorporada na subjetividade e quanto mais capaz de nos fazer interiorizar a culpa pela nossa própria desgraça (Campos, 2016, p. 10).
O espírito do capitalismo gera um repertório de explicações da realidade que toma a figura do executivo capitalista como matriz de conduta a ser disseminada pela sociedade inteira, baseada no investimento constante e exclusivo da vontade na produção da riqueza abstrata, segundo Costa, Barros e Martins (2012).
Tal matriz prolonga e intensifica a obrigação do homem moderno de dedicar sua vida ao ganho, reduzindo os atributos dos indivíduos à dimensão do interesse e incorporando a lógica do capital como fundamento existencial mais importante” (Santos, 2007, p.34). Dentro desse pensamento, para que uma sociedade fundamentada em um mercado livre seja capaz de produzir mais riqueza, torna-se necessário a existência de indivíduos capazes de criar e aproveitar oportunidades, melhorar processos e inventar negócios. Nesse pensamento, segundo Costa, Barros e Martins (2012), quase todos os indivíduos podem ser empreendedores: o fundador de uma organização, o gerente, o líder inovador de uma organização, ou qualquer pessoa que tome[3] iniciativa estratégica dentro de uma organização.
A partir dessa ótica, para que uma sociedade possa potenciar todos os supostos benefícios provenientes de um mercado livre capitalista, necessita do espírito empreendedor, gerador de inovação e de riquezas. Nesse sentido, nos dias de hoje a busca incessante do ganho é mais do que uma obrigação, e o indivíduo passa a ser qualificado como o sujeito econômico capitalista por excelência (Lemos, 2005).
Inseridos nessa lógica, os empreendedores são concebidos como indivíduos que impulsionam a máquina capitalista, ao prover novos bens de consumo, além de métodos inovadores de produção e transporte, com a clara função social de identificar oportunidades e convertê-las em valores econômicos. Logo, o empreendedorismo apresenta-se como fundamental para o desenvolvimento econômico, potenciando lucros por intermédio de uma “visão” ou um “espírito” muitas vezes mais pessoal do que coletivo. Leite e Melo (2008, p. 36) destacam que as atuais ferramentas organizacionais substituem os esquemas coletivos de segurança financeira, de saúde e profissionais percebidos como ‘antigos’ e o que passa a contar é o desempenho “(d)o indivíduo – suas realizações, seu capital social bem ampliado, pronto para ser usado profissionalmente, tanto no próprio trabalho, quanto para arrumar outros”.
Nesse contexto existe a crença de que os empreendedores estão gradativamente eliminando barreiras comerciais e culturais, encurtando distâncias, globalizando e renovando os conceitos econômicos, criando novas relações de trabalho e novos empregos, quebrando paradigmas e gerando riqueza para a sociedade (Costa; Barros; Martins, 2012).
A constatação crescente relaciona-se com o modo como a narrativa do empreendedorismo se dissemina por quase todos os domínios da vida social, dos discursos sobre o emprego às condicionalidades impostas nas políticas sociais, aos currículos das escolas até às conversas do cotidiano. Segundo Campos (2016), o empreendedorismo é a palavra da moda e está em todo o lado. Seja nas políticas públicas nacionais, de forma obstinada no discurso dos governantes (e aspirantes aos postos de governo), na boca de dirigentes de organizações e projetos sociais, em iniciativas de associações de estudantes, nas mídias, o empreendedorismo se faz fortemente presente. Podemos destacar também a expansão nos últimos anos de uma “indústria do empreendedorismo”, que trouxe consigo uma nova figura: aquilo a que Campos (2016) chama os “empreendedores de palco” – os vendedores de palestras, amparados em um discurso emocional, em estilo de autoajuda, de valorização do empreendedorismo.
O empreendedorismo, portanto, apresenta-se como a saída para a crise contemporânea do emprego. Campos (2010) já apontava que o cidadão contemporâneo enfrenta a precarização do trabalho, a falta de postos de trabalho qualificados, redução dos salários e dos seus direitos trabalhistas. Sendo assim, empreender passa a ser reconhecido como uma saída, o que muitas vezes gera a sensação de uma falsa autonomia, visto que o trabalho é executado sob um rigor por resultados, marcado pelo desassalariamento, incorporação de todo o risco da atividade e pela precariedade, no qual o tempo de trabalho investido continua sendo determinante.
A respeito da informalidade, Tavares (2002) considera a mesma como parte do processo produtivo capitalista ou como decorrência de processos recentes de terceirização. Para a autora, os mecanismos de flexibilização proporcionam ao capital transformações nas relações formais em informais, o que ocasiona a deslocalização do trabalho. A deslocalização, para a autora, se trata da independência que gera no trabalhador a ilusão de autonomia por não estar dentro de uma empresa, submetido a uma vigilância direta do empregador.
A deslocalização, na realidade, trata-se de uma falsa autonomia, na medida que o trabalho é executado sob um rigor por resultados, marcado pelo desassalariamento e pela precariedade, em que o tempo de trabalho socialmente necessário continua sendo determinante. “Sendo assim, o objetivo do capital é que o trabalhador produza mais-valia, ou seja, que sua produção contenha o máximo de trabalho não-pago.” (Tavares, 2002 p.12)
É no contexto da precarização do trabalho que os argumentos ligados ao empreendedorismo ganham força. A reprodução de determinados discursos sob a lógica de mercado acaba por naturalizar fenômenos históricos, tais como “o jeito de ser empreendedor”. A atividade empreendedora, segundo Oliveira, Mota e Aquino (2016), na maior parte das vezes é a promessa de desenvolvimento, sucesso e melhoria da qualidade de vida, mas ao mesmo tempo reforça a fragilização dos vínculos constituídos na sociedade salarial, gerando, com isso, um fortalecimento do processo de precarização laboral.
Oliveira, Mota e Aquino (2016) afirmam que algumas modalidades de empreendedorismo, na realidade, configuram-se em novas formas de precarização do trabalho e na atualização de antigas formas de exploração emergentes no contexto ampliado da globalização, se trata de uma fuga do modelo opressor em busca de autonomia, e acaba sendo reprodutora de novas e antigas modalidades de precarização do trabalho:
Nesse sentido, se por um lado, temos o discurso do capital do “faça seu próprio negócio”, ou “seja, seu próprio patrão”, haveria, por outro lado, uma fuga da consequente exclusão do mercado de trabalho e uma imersão nos processos de trabalho precarizado, não vinculados apenas às organizações empresariais, mas gerados pelo próprio indivíduo, que deve assumir seus bônus e ônus. (Oliveira; Mota; Aquino, 2016 p. 224)
Os processos de precarização podem se disseminar tanto nos casos de empreendedorismo por necessidade como por oportunidade. Em alguns casos os sujeitos que empreendem, principalmente por necessidade, podem acabar inclusos dentro de um mesmo processo de degradação do trabalho. Isso porque eles se enquadram em um cenário de trabalho sem garantias e direitos estabelecidos, de acordo com Oliveira, Mota e Aquino (2016):
Neste contexto, o ingresso no setor informal e a atividade empreendedora, sem excluir a vinculação de ambos, surgem como alternativas possíveis, mas não únicas, ao concorrido e reduzido mercado de trabalho formal. Não nos faltam biografias de empreendedores de sucesso para inspiração, entretanto, nos são raras as informações das realidades diversas e precarizadas que o trabalhador encontra tomando esse caminho e seguindo um discurso pautado no individualismo e na competição, subordinando o conhecimento “crítico” ao ethos empresarial.” Quando se privilegia o discurso do êxito em detrimento ao de fracasso, nitidamente busca-se a reverberação ideológica de uma forma única de viabilizá-lo. (Oliveira; Mota; Aquino, 2016 p. 225)
O modelo do sujeito de ideias brilhantes, apaixonado pelo desafio da competitividade e pelo desejo de vencer, competente, dotado de visão estratégica, trabalhador incansável, proativo que vislumbra o futuro e alavanca a economia, está atrelado à ideia de precarização laboral. De acordo com Oliveira, Mota e Aquino (2016), a noção do empreendedorismo, que surge de fato da necessidade de produção de emprego e renda, acaba tendo como função a criação de subsídios para a construção do ambiente cultural e ideológico, apropriado a uma nova Era do Capital, adaptando-se à manutenção de situações precárias e informais de trabalho.
4 QUADRO METODOLÓGICO DA ANÁLISE DO DISCURSO CRÍTICA (ADC)
Como afirmado anteriormente, o presente trabalho se inscreve no campo da Análise de Discurso Crítica (ADC), cuja proposta é um estudo sobre o uso linguístico em um contexto de práticas sociais (Fairclough, 2001, p.11).
A ADC é relativamente nova, e teve seus primeiros avanços em 1960, quando a perspectiva estruturalista da linguagem, que tratava a língua como um conjunto de elementos inter-relacionados e coesos que funcionam a partir de regras, passou a ser questionada pelos estudiosos. Porém, somente na década de 1990, a ADC foi se consolidar, com trabalhos desenvolvidos por linguistas como Norman Fairclough, Ruth Wodak, Teun van Dijk e outros (Guimarães, 2012).
A ADC explora um campo inter e transdisciplinar, ou seja, a linguagem não se limita ao seu conteúdo disciplinar, mas dialoga com todos os campos do saber. “Oferecer à ciência social um olhar sobre o papel da linguagem e, simultaneamente, contribuir para a análise linguística com um parâmetro da análise social.” (Batista Jr; Sato; Melo, 2018, p. 13).
A ADC tem o objetivo de “[...]investigar a linguagem em uso, situando-a em um contexto específico, bem como os resultados dessas ações e dos discursos que sustentam e moldam as práticas.” (Batista Jr; Sato; Melo, 2018, p. 8).
O que orienta a ADC é a ideia de que a linguagem é constituída por práticas sociais, que revelam a manutenção das relações de abuso de poder, além disso a ADC estuda a importância da linguagem como agente de manutenção e mudança das relações sociais de poder e de que maneira é possível elevar a consciência de que a linguagem contribui para a dominação de um indivíduo sobre o outro, o que permite uma futura emancipação dessa relação (Santos, 2021).
A ADC busca superar os limites da linguística estrutural, propondo o estudo da linguagem e articulação em três níveis: linguístico, discursivo e ideológico cultural. Fairclough (2001) direcionou seus estudos às dimensões discursivas da mudança social, propondo a Teoria Social do Discurso, na qual apresentou uma concepção de linguagem e um quadro analítico construídos a partir do conceito de prática social.
Essa concepção da língua tem como ponto de partida que a linguagem não se trata apenas de uma forma de representação do mundo, mas também de ação sobre o mundo e sobre o outro. Dentro de sua proposta teórica, o autor acredita que o discurso pode ser visto em três dimensões: prática linguística, prática discursiva e prática social. O termo “discurso”, segundo Fairclough, deve ser entendido, como:
O uso da linguagem como forma de prática social e não como atividade puramente individual ou reflexo de variáveis situacionais. Isso tem várias implicações. Primeiro, implica ser o discurso um modo de ação, uma forma em que as pessoas podem agir sobre o mundo e especialmente sobre os outros, como também um modo de representação. (Fairclough, 2001, p.90)
Para Fairclough (2001), a prática discursiva é o uso da linguagem envolvida nos processos de produção, distribuição e consumo dos textos, que tem relação com ambientes políticos, econômicos e institucionais. As práticas discursivas oscilam entre os diferentes tipos de discurso e de acordo com os fatores sociais circundados, sendo mediadora entre os textos e as práticas sociais.
Uma terceira dimensão entende o discurso como prática social, ou seja, os aspectos ideológicos e hegemônicos na instância discursiva analisada. Fairclough (2001) coloca o conceito de discurso ao qual se relacionam “ideologia” e “poder”, localizando o discurso numa perspectiva de poder como “hegemonia” e de evolução das relações de poder como luta hegemônica. As orientações da prática social são observadas já que podem ter orientações e motivações econômicas, políticas, ideológicas e culturais, procurando investigar como os textos se inserem em focos de lutas hegemônicas, colaborando na articulação, desarticulação e rearticulação de ideologias.
O método tridimensional de análise de discurso realiza uma interpretação das relações entre os processos sociais e os processos discursivos. As três dimensões de análise do discurso têm a finalidade teórica voltada para o lado social da linguagem, com todas as implicações políticas que podem fazer da língua uma arma ideológica. Foucault (1980) aborda como o poder é organizado como uma rede, na qual os sujeitos são “alvos que consentem” e podem ser ao mesmo tempo, “elementos de sua articulação”.
O filósofo Foucault busca maneiras de explicitar essas manifestações de poder, e coloca que estas aparecem nas escolas, prisões e hospitais. Além disso, ele considera que o poder não é apenas uma estratégia dependente, pois “[...] não há relação de poder sem resistência.” (Foucault, 1980, p. 142).
Wodak (2001) aborda em seus trabalhos que a dimensão crítica relaciona a ADC com uma preocupação com o exercício de poder nas relações sociais, o que inclui as relações de raça, etnia, gênero e classe social. Hoje a ADC se refere a abordagem da linguística adotada pelos especialistas que tomam o texto como unidade básica do discurso e da comunicação e que se preocupam com a análise das relações de luta e conflito social.
Para Fairclough (2001, p. 94), o conceito de discurso deve ser discutido em sua relação com a ideologia e “em uma concepção de poder como hegemonia e em uma concepção da evolução das relações de poder como luta hegemônica.” O linguista entende que as ideologias são construções da realidade, constituídas de formas e sentidos das práticas discursivas que contribuem para “[...] produção, a reprodução ou a transformação das relações de dominação” (Fairclough, 2001, p. 93).
Fairclough (2001) afirma ainda que a ideologia trabalha a linguagem em variados níveis e de várias maneiras, não havendo nenhuma que parece totalmente satisfatória, mas aquelas que se adequam melhor às situações. “A "ideologia'' está localizada tanto nas estruturas (isto é, ordens de discurso) que constituem o resultado de eventos passados como nas condições, para os eventos atuais e nos próprios eventos quando reproduzem e transformam as estruturas condicionadoras.” (Fairclough, 2001, p. 119).
Thompson (1984) coloca que determinados usos da linguagem e de outras “formas simbólicas” são ideológicas. Logo servem em situações específicas para estabelecer ou manter as relações de poder. As ideologias, quando introduzidas nas práticas discursivas, se tornam extremamente eficazes, quando são naturalizadas e atingem a condição de “senso comum”.
Quando relacionamos as relações de poder e ideologia com as práticas discursivas, a hegemonia se torna peça-chave nessa relação. Segundo Fairclough (2001, p. 122):
Hegemonia é a liderança tanto quanto dominação nos domínios econômico, político, cultural e ideológico de uma sociedade. Hegemonia é o poder sobre a sociedade como um todo de uma das classes economicamente definidas como fundamentais em aliança com outras forças sociais, mas nunca atingido senão parcial e temporariamente, como um equilíbrio instável. (Fairclough, 2001)
Fairclough (2001) esclarece em seus textos que o conceito de hegemonia permite analisar a prática social, a qual pertence o discurso em termos de relação de poder, ou seja, como essas relações se reproduzem.
As práticas discursivas são utilizadas como objeto de transformação do poder e das ideologias hegemônicas, estabelecendo uma liderança. A tentativa de instituir uma hegemonia de poder aparece muito em discursos políticos, onde a “rearticulação discursiva materializa um projeto hegemônico para a constituição de uma nova base e agenda política, que é uma faceta do projeto político mais amplo de reestruturação da hegemonia do bloco.” (Fairclough, 2001, p. 124).
Blommaert e Bulcaen (2000) entendem que a relação entre igualdade e poder é nitidamente objeto de análise da ADC. A narrativa da história de um grupo reproduz traços de relações passadas entre hegemonismo político, ideológico, cognitivo e econômico. Assim a variedade linguística está ligada às hierarquias de poder, e a identidade de grupos dominantes “[...] este trabalho enquadra a história da linguagem na sociedade em termos materiais e a tendência de misturar observações políticas e sociais em grande escala com análises detalhadas de práticas linguísticas-comunicativas.” (Blommaert; Bulcaen, 2000, p. 458).
Quando abordamos a dimensão da prática linguística, entende-se que o discurso é abordado enquanto texto, visto que há um linguagem característica e organização de instâncias concretas do discurso, escolhas e padrões no vocabulário, gramática e coesão, e esta coesão realiza a ligação entre as frases, através de mecanismos de referência, palavras de mesmo campo semântico e conjunções. A estrutura textual refere-se às propriedades organizacionais do texto, às maneiras e à ordem em que elementos são combinados, como aborda Fairclough (2021).
Figura 4 – Concepção tridimensional do discurso em Faircloough
Fonte: Fairclough (2001)
Fairclough (2001) acredita que o discurso é simultaneamente um texto linguístico, oral ou escrito, uma prática discursiva, ou seja, produção e interpretação de texto e uma prática sociocultural. Assim, a Figura 4 traz um esboço de uma estrutura tridimensional para conceber e analisar o discurso.
5 ADC APLICADA ao discurso do empreendedorismo
Como dito anteriormente, serão feitas análises de ADC, buscando entender como o argumento de valorização do empreendedorismo individual contribui para a criação da imagem do ser empreendedor como um "herói" que impulsiona o capitalismo, promovendo inovações na produção e criação de novos bens de consumo e serviços, sendo este uma figura fundamental para o desenvolvimento econômico, como coloca Leite e Melo (2008).
As mudanças no funcionamento da sociedade disciplinar vivida entre os séculos XVII e XIX a uma sociedade de controle que se estabelece em XX, segundo Foucault (1984), marca a ruptura de uma sociedade da disciplina, cravada em regras, horários, espaços para uma realidade mais flexível, inovadora, móvel, tudo que o capitalismo contemporâneo necessita para seu funcionamento mais dinâmico.
Ao estudar o funcionamento do poder nas sociedades modernas, Foucault afirma que procedimentos disciplinares já existiam há muito tempo nos conventos, no exército e nas oficinas. “Mas as disciplinas se tornaram no decorrer do século XVII e XVIII formas gerais de dominação” (Foucault, 1984, p. 108). Para o autor elas seriam uma sofisticação da tecnologia conventual monástica que, apesar de implicar a obediência a um superior, tinha como objetivo principal o aumento do autodomínio, esse tipo de sociedade foi nomeada sociedade disciplinar.
A passagem das sociedades disciplinares, analisadas por Foucault (1984), para as ditas sociedades de controle, iniciou-se nos anos 1970. O próprio Foucault já visualizava a crise dos dispositivos disciplinares na sua tarefa de manter o poder nos países industrializados e percebia a abertura das forças sociais à composição de outros meios de gerenciamento do poder.
Em uma conferência em 1978, Foucault argumentou: “Nesses últimos anos, a sociedade mudou e os indivíduos também; eles são cada vez mais diversos, diferentes e independentes. Há cada vez mais categorias de pessoas que não estão submetidas à disciplina, de tal forma que somos obrigados a pensar o desenvolvimento de uma sociedade sem disciplina.” Teríamos, portanto, uma sociedade cujo controle desenvolve estratégias cada vez menos visíveis e materiais e cada vez mais sutis e imateriais, sociedades essas nomeadas por Foucault como sociedades de controle:
Hoje, o controle é menos severo e mais refinado, sem ser, contudo, menos aterrorizador. Durante todo o percurso de nossa vida, todos nós somos capturados em diversos sistemas autoritários; logo no início na escola, depois em nosso trabalho e até em nosso lazer. (Foucault, 1984, p. 115)
Nas análises sobre a sociedade disciplinar, Foucault (1984) tornava clara a dupla articulação que se tecia entre as exigências de um modo de produção capitalista do tipo industrial em desenvolvimento e as novas formas de apropriação corporais e incorporais necessárias para compor essa ordem econômica e social. A chamada sociedade de controle é um passo à frente da sociedade disciplinar. Não que esta tenha deixado de existir, mas foi expandida para o campo social de produção.
Segundo Foucault (1984), a obediência, quando falamos de uma sociedade de controle, é interiorizada. A obediência dos indivíduos é exercida fundamentalmente por três meios globais absolutos: o medo, o julgamento e a destruição. Logo, com o colapso das antigas instituições imperialistas, os dispositivos disciplinares tornaram-se menos limitados. As instituições sociais modernas produzem indivíduos sociais muito mais móveis e flexíveis que antes. Essa transição para a sociedade de controle envolve uma subjetividade que não está fixada na individualidade. O indivíduo não pertence a nenhuma identidade e pertence a todas. Mesmo fora do seu local de trabalho, continua a ser intensamente governado pela lógica disciplinar.
Os teóricos do século XX, segundo Foucault (1984), propunham que os sujeitos até então sem serventia se tornassem úteis para o desenvolvimento econômico e social. Logo a possibilidade de disciplinar todos os indivíduos torna-se estratégia para governá-las, a ideia é “ter domínio sobre o corpo do outro não simplesmente para que façam o se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina” (Foucault, 1984, p.127).
Para Foucault (1984) é dessa ideia que vem o conceito de corpos dóceis, modeláveis e moldáveis, não uma prática que se dá pela força ou submissão violentar dos sujeitos, mas uma situação na qual os próprios indivíduos voluntariamente engajam-se e acreditam que é necessário ter disciplina.
É com esse novo conceito de trabalhador criado pelos teóricos e difundido pelo mercado de trabalho, onde o indivíduo está propenso a correr riscos, tem sede de realização e está constantemente motivado a atingir objetivos, que o conceito de empreendedorismo ganha força e destaque no mercado de trabalho e na vida cotidiana. Assim, como coloca Foucault (1984), o indivíduo de forma autônoma busca despender energia, desenvolvendo atividades desafiantes, perfil esse que, segundo a literatura e os meios de comunicação, o empreendedor apresenta e deve apresentar a fim de inovar e crescer no negócio.
Do ponto de vista epistemológico, a realidade socialmente construída pode ser estudada por meio dos eventos concretos com a finalidade de compreender as práticas sociais que levam a eles, de acordo com Fernandes (2019). Desta forma, as pesquisas realizadas sobre o empreendedor não podem ser consideradas isentas, visto que o pesquisador está imerso na realidade que busca entender.
Segundo van Dijk (2001), a pesquisa crítica permite focar em problemas sociais e questões políticas, entendendo seus contextos, o que permite uma visão multidisciplinar, que irá explicar estruturas, em vez de apenas descrevê-las e, mais especificamente, permitindo entender como o discurso se relaciona com o poder na sociedade.
As formações discursivas são entendidas em uma dada formação ideológica, como o que pode e o que deve ser dito em determinado tempo e espaço (Fairclough, 2001). Essas regiões do que é dizível ou não refletem diferenças ideológicas, isto é, as posições dos sujeitos em lugares sociais representados e desigualmente acessíveis. Examinar as intertextualidades constituídas ou interdiscursividade entre as formações discursivas acerca do empreendedor e do empreendedorismo permite reconhecer as intertextualidades e identificar práticas discursivas que, inseridas em práticas sociais, possibilitaram explicitar as ordens de discursos.
As formações discursivas inserem-se em um contexto que valoriza um tipo específico de empreendedor, empresário ou empregado, que converte seus objetivos individuais e sociais em estratégias organizacionais, levando as demandas das empresas a ditar as prioridades, os valores e princípios que regem as relações de trabalho. Nesse sentido, a primeira convergência identificada nos discursos acerca do empreendedor e do empreendedorismo aparece nos objetos discursivos “geração e expansão dos negócios”, “empreendedor-empresário”.
Tais discursos compreendem o empreendedorismo como um fenômeno de massa em que todos podem, por meio deste, realizar-se pessoal e profissionalmente. Todos podem ser empreendedores, bastando para que isso ocorra duas condições: assumir o indivíduo como alguém autônomo e que possui as características consideradas “adequadas”; e existir um contexto socioeconômico inerentemente de livre mercado. Isso contribui para que o indivíduo seja empreendedor em tempo integral, o que deve ser uma atitude assumida por todos por promover o crescimento e o desenvolvimento socioeconômico dos países.
A descrição e caracterização do indivíduo empreendedor foi trabalhada por inúmeros autores da administração pública, nota-se que são diversos os traços que caracterizam o empreendedor. Gürol e Atsan (2006) descrevem o empreendedor como indivíduo propenso ao risco, autoconfiante, tolerante às ambiguidades, que busca inovar, tem necessidade de realização e é motivado para atingir o objetivo a que se propõe.
Segundo Pontes (2010) essa necessidade de realização induz o indivíduo a despender energia, desenvolvendo atividades desafiantes, em busca do que acredita, sendo que a alta necessidade de realização é mais fortemente encontrada nos empreendedores. Assim, a alta necessidade de realização, o controle do locus interno e a propensão para correr risco, seriam diferenças relevantes de personalidades dos empreendedores de sucesso, em relação aos não empreendedores.
Diante das adversidades encontradas pelos microempresários para abertura de novos negócios – como falta de crédito bancário, falta de capital de giro, carga tributária elevada, recessão econômica do país, entre outras – o que Pontes (2010) coloca é que aqueles que buscam superar essas dificuldades demonstram ter coragem, e essa característica confere-lhes, segundo a literatura, o título de herói.
De acordo com Pontes (2010) os heróis são vistos como os líderes primais, aqueles que fundam a organização, ou seus primeiros presidentes, reconhecidos pela força de liderança, pelos seus grandes feitos e seu carisma. Para alguém se transformar em um herói é preciso pelo menos possuir uma saga e realizar uma série de feitos que ultrapassam o usual e se diferencie dos demais, quer seja pela capacidade de vencer obstáculos, quer por ser um grande estrategista, ou competência em estabelecer e atingir metas audaciosas. O herói é sempre um exemplo a ser seguido.
Na visão dos economistas e formuladores de política, o empreendedor é responsável pela criação de renda e estimula o crescimento econômico. Já os comportamentalistas atribuem-lhe incontáveis características positivas, porém, como coloca Pontes (2010), grande parte dos empreendedores são os micro e pequenos empresários, que enfrentam enormes dificuldades no dia-a-dia para desenvolver um negócio, sendo que grande parte desses surgem da necessidade de produção de emprego e renda, como citado anteriormente.
Desse modo, os sujeitos que empreendem, principalmente por necessidade, estão inclusos em um processo de degradação do trabalho, visto que estes se enquadram em um cenário de trabalho sem garantias e direitos estabelecidos. Neste contexto, Oliveira, Mota e Aquino (2016) destacam que o ingresso no setor informal e a atividade empreendedora aparece como alternativa ao mercado de trabalho formal.
Oliveira, Mota e Aquino (2016) discutem que o discurso do empreendedor de sucesso é diariamente divulgado em palestras, biografias, livros, vídeos e cursos disponíveis em grandes livrarias e principalmente na internet. Contudo são raras as informações que trazem as realidades diversas e precarizadas que os trabalhadores encaram quando enfrentam o caminho de empreender.
Conforme exposto, o fenômeno do empreendedor ganha destaque como discurso, em um contexto de precarização do mercado de trabalho, na qual os indivíduos enfrentam um mercado de trabalho competitivo e com escassez de oportunidades, sendo, muitas vezes, o ingresso na atividade individual, informal e empreendedora a única saída de muitos.
Podemos dizer que o processo de financeirização - assim como as políticas de liberalização comercial e financeira verificado a partir das décadas de 1970 e 80 - modificou e modifica o dia a dia dos indivíduos, provocando grandes perdas na geração de postos de trabalho formais assalariadas.
No caso específico do mercado de trabalho brasileiro, após o movimento conjuntural de recuperação dos postos formais, ocorrido no período 2005-2013, verificou-se, a partir do final de 2014, que a informalidade voltou a aumentar intensivamente, especialmente no biênio 2015-16, que foi marcado por forte recessão econômica, mas também com destaque para 2017, ano de aprovação de uma ampla reforma trabalhista no Congresso – por meio das leis 13.429/2017 e 13.467/2017 –, que visava justamente legalizar práticas irregulares. Apesar do discurso, evidências apontam que a reforma trabalhista pouco afetou as contratações irregulares, que seguiram impermeáveis a esses processos de mudanças, o que refletiu nos índices de trabalhadores sem carteira assinada, por conta própria (com destaque para os sem CNPJ, que representam um patamar mais significativo) de 2018 e 2019. Em 2020 e 2021, com a crise sanitária e econômica gerada pelo coronavírus, a situação da informalidade e da precarização do trabalho cresceram de maneira exponencial. Ao realizar as Análises do Discurso Crítica (ADC) – de forma a entender como o argumento criado sobre o empreendedor individual, que o compara a um herói, responsável por promover inovações e assim expandir o capitalismo –, foi possível concluir que essa visão trabalhada pelos textos de administração e empreendedores de sucesso não traz as diversas realidades enfrentadas por esse tipo de trabalhador, a condição precarizada em que muitos atuam.
De forma geral, o discurso empreendedor, que prega que o agente que empreende é responsável por impulsionar os avanços do capitalismo, casa perfeitamente com a mudança no funcionamento das sociedades, que deixam de lado a disciplina pautada por regras e se transformam em realidade inovadora, flexível e móvel, como coloca Foucault. Essa nova realidade encaixa perfeitamente com as necessidades do capitalismo contemporâneo, na qual os próprios indivíduos voluntariamente engajam-se e acreditam que é necessário ter disciplina, situação essa que camufla a realidade de uma sociedade que sofre com a precarização do trabalho e o aumento do trabalho informal, onde o indivíduo não tem direitos e benfeitorias garantidas, e é “obrigado” a empreender para sobreviver.
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Contribuição de autoria
1 – Fernando Batista Pereira
Doutor em Economia pela UFSM e Professor do curso de Ciências Econômicas da Universidade Federal de Alfenas
https://orcid.org/0000-0002-5726-829X • fernando.pereira@unifal-mg.edu.br
Contribuição: Conceituação, metodologia, software, validação, curadoria de dados, análise formal, investigação, recursos, e escrita-primeira redação.
2 – Carolina Vaz Santos
Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Alfenas
https://orcid.org/0009-0009-6661-1190 • carolina.santos@sou.unifal-mg.edu.br
Contribuição: Escrita-primeira redação, escrita-revisão e edição, visualização de dados, supervisão, administração do projeto e obtenção do financiamento.
Como citar este artigo
[1] O conceito de informalidade se refere aqui a práticas laborais desamparada pela legislação trabalhista (Abílio, 2021)
[2] Importante salientar a diferença do que se constitui o ‘empreendedorismo’ segundo a literatura econômica, especialmente de inspiração schumpeteriana, que associa o ato de empreender a práticas inovadoras e ousadas – portanto, arriscadas – de ruptura ao padrão produtivo, em busca de apropriação de ganhos extraordinários para o próprio empreendimento. Para Abílio (2019), contudo, o termo empreendedorismo passou a ser usado também para descrever trabalhadores que, embora subordinados, passaram a assumir condições de risco da própria atividade (“autogerenciamento subordinado”), que não está associada a inovação, mas a práticas precárias (instáveis, intermitentes, de baixa remuneração e sem direitos ou benefícios trabalhistas). Neste artigo, a narrativa/discurso do empreendedorismo aponta para essa segunda abordagem.
[3] É comum no meio corporativo o uso do termo “colaborador” que substitui o termo “empregado”, ou “funcionário”, transmitindo a impressão de que há um relacionamento próximo entre as partes, de confiança, eliminado a estrutura hierárquica existente dentro do ambiente de trabalho. O uso do termo “colaborador”, criando uma falsa sensação de simetria, visa elevar a moral dos indivíduos e também fica de acordo com os parâmetros estabelecidos pelo mercado.