Acessibilidade como dispositivo: diferença, subjetivação e inclusão na educação
Accessibility as a device: difference, subjectivation, and inclusion in education
La accesibilidad como dispositivo: diferencia, subjetivación e inclusión en la educación
Tiago Alexandre Fernandes Almeida
Escola Superior de Educação de Lisboa, Lisboa, Portugal.
CI&DEI – Politécnico de Lisboa
Recebido em 31 de agosto de 2025
Aprovado em 25 de setembro de 2025
Publicado em 19 de dezembro de 2025
RESUMO
Este ensaio investiga a noção de acessibilidade em educação inclusiva a partir de um recorte eminentemente teórico, combinando abordagens da Pedagogia Especial, do Modelo Social da Deficiência, da Psicologia e da Filosofia da Diferença. A acessibilidade é problematizada como construção histórico-discursiva, enredada em regimes de saber-poder que normatizam corpos, competências e modos de aprender e enquadram práticas institucionais, discursivas e administrativas que produzem sujeitos incluídos e excluídos. Na sequência, analisa-se o Modelo Social da Deficiência como paradigma crítico que desloca o foco do indivíduo per se para as barreiras sociais e institucionais, propondo uma releitura das subjetivações que emergem desses embates. A Filosofia da Diferença, por sua vez, é mobilizada para questionar as categorias de normalidade e uniformidade, afirmando a singularidade radical do sujeito. Propõe-se, assim, uma abordagem crítica e interdisciplinar da acessibilidade, voltada à construção de espaços educativos que reconheçam a diferença como valor e não como déficit.
Palavras-chave: Acessibilidade; Filosofia da Diferença; Dispositivo; Subjetivação; Alteridade.
ABSTRACT
This essay investigates the notion of accessibility in inclusive education from an eminently theoretical standpoint, combining approaches from Special Pedagogy, the Social Model of Disability, Psychology, and the Philosophy of Difference. Accessibility is problematized as a historical-discursive construction, entangled in regimes of knowledge and power that normalize bodies, competencies, and modes of learning, while framing institutional, discursive, and administrative practices that produce included and excluded subjects. Subsequently, the Social Model of Disability is analyzed as a critical paradigm that shifts the focus from the individual per se to social and institutional barriers, proposing a reinterpretation of the subjectivations emerging from these tensions. The Philosophy of Difference, in turn, is mobilized to question the categories of normality and uniformity, affirming the radical singularity of the subject. Thus, a critical and interdisciplinary approach to accessibility is proposed, oriented toward the construction of educational spaces that recognize difference as a value rather than as a deficit.
Keywords: Accessibility; Philosophy of Difference; Dispositif; Subjectivation; Otherness.
RESUMEN
Este ensayo investiga la noción de accesibilidad en la educación inclusiva desde un enfoque eminentemente teórico, combinando aproximaciones de la Pedagogía Especial, el Modelo Social de la Discapacidad, la Psicología y la Filosofía de la Diferencia. La accesibilidad se problematiza como una construcción histórico-discursiva, entrelazada en regímenes de saber-poder que normativizan los cuerpos, las competencias y las formas de aprender, y que enmarcan prácticas institucionales, discursivas y administrativas que producen sujetos incluidos y excluidos. A continuación, se analiza el Modelo Social de la Discapacidad como paradigma crítico que desplaza el foco del individuo per se hacia las barreras sociales e institucionales, proponiendo una relectura de las subjetivaciones que emergen de esos enfrentamientos. La Filosofía de la Diferencia, por su parte, se moviliza para cuestionar las categorías de normalidad y uniformidad, afirmando la singularidad radical del sujeto. Se propone, así, un enfoque crítico e interdisciplinar de la accesibilidad, orientado a la construcción de espacios educativos que reconozcan la diferencia como valor y no como déficit.
Palabras clave: Accesibilidad; Filosofía de la Diferencia; Dispositivo; Subjetivación; Alteridad.
Introdução
A acessibilidade, no imaginário social e, não raramente, no cerne das políticas públicas educacionais, é frequentemente reduzida a um conjunto de tecnologias assistidas, adaptações arquitetónicas e metodológicas. Rampas, elevadores, softwares de leitura de ecrã, legendas e a presença do braille são, inegavelmente, conquistas cruciais na luta por direitos das pessoas com deficiência. Contudo, uma análise que se esgota na pragmática e nos artefactos arrisca-se a perder de vista a complexidade política, social e subjetiva que o conceito encerra. A palavra "acessibilidade" tornou-se omnipresente nos discursos contemporâneos sobre educação. No campo da educação inclusiva tem ocupado, nas últimas décadas, um lugar central em debates políticos, pedagógicos e filosóficos, tornando-se uma palavra de ordem incontornável nos discursos pedagógicos, nas legislações nacionais e internacionais e nas práticas de políticas públicas voltadas à inclusão educacional. Evocada como um pilar da inclusão, um imperativo ético e uma exigência legal, a sua aplicação parece, à primeira vista, um avanço inequívoco em direção a uma sociedade mais justa e equitativa, manifesta-se como um conjunto de soluções técnicas e práticas destinadas a remover obstáculos e a garantir a participação de todas as pessoas (Beesley, 2025).
Do ponto de vista histórico, a sua emergência acompanha a consolidação do campo da Educação Especial e da Educação Inclusiva, particularmente a partir da segunda metade do século XX, quando se intensificaram movimentos sociais de pessoas com deficiência, a crítica aos modelos médico-reabilitativos e a incorporação, no plano jurídico, de normativos que garantem direitos a populações historicamente marginalizadas. A popularização da expressão “educação inclusiva” acompanha o movimento internacional a favor dos direitos humanos e da cidadania, expresso em documentos como a Declaração de Salamanca (UNESCO, 1994) e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006). Esses documentos consolidaram uma viragem paradigmática na compreensão da deficiência: de uma condição individual a ser corrigida para uma realidade social que implica barreiras físicas, culturais e institucionais (Uniyal; Rizvi, 2023).
No entanto, uma análise mais crítica revela que a acessibilidade não é um conceito neutro nem uma ferramenta apolítica. Este ensaio propõe-se a desnaturalizar a noção de acessibilidade, tratando-a não como uma solução técnica neutra, mas como um dispositivo. Inspirando-nos no pensamento de Michel Foucault, entendemos o dispositivo (do francês, dispositif) como uma rede heterogénea que entrelaça discursos, instituições, arquiteturas, leis, medidas administrativas, enunciados científicos e proposições filosóficas. Concretamente, o conceito de acessibilidade pode operar como um complexo e potente dispositivo, no sentido que Michel Foucault atribuiu ao termo (Foucault, 1994): uma rede de discursos, práticas, instituições e tecnologias que não apenas "resolve" problemas, mas que ativamente molda, governa e produz os próprios sujeitos que pretende servir.
Ao tratar o conceito deste modo, este ensaio propõe-se a um outro objetivo, desnaturalizar o conceito de acessibilidade, tratando-o não como um dado, mas como uma construção histórico-discursiva. Com isto, pretende-se investigar como este dispositivo, enredado em regimes de saber-poder, participa na normalização de corpos, competências e modos de aprender; como se materializa em arquiteturas escolares, políticas públicas e currículos; e como gera efeitos de subjetivação nos estudantes, nos professores e nas próprias instituições educativas. Analisaremos como as práticas institucionais, discursivas e administrativas que se articulam em nome da acessibilidade acabam por produzir e gerir as categorias de "incluído" e "excluído", "capaz" e "incapaz", "normal" e "anormal".
Para tal, recorre-se a uma discussão teórica interdisciplinar com o intuito de problematizar a questão em diferentes níveis de profundidade. Num primeiro momento, faremos uma breve genealogia da abordagem à diferença no contexto educativo, partindo do modelo médico-psicológico que historicamente localizou o "problema" no indivíduo. Este modelo, fundamentado numa lógica de déficit, deu origem a práticas de segregação e a uma Educação Especial corretiva, cujo objetivo era normalizar o sujeito ou, na sua impossibilidade, geri-lo em espaços separados. A crítica a esta perspetiva conduziu à emergência do paradigma da integração, que, embora trouxesse o aluno "diferente" para o espaço comum, ainda exigia que ele se adaptasse a uma estrutura educativa, muitas vezes, largamente inalterada. Na sequência, analisaremos a viragem paradigmática representada pelo Modelo Social da Deficiência (Oliver, 1990; Barnes; Mercer, 2010; Shakespeare, 2006).
Nascido no seio dos movimentos de ativistas com deficiência, este referencial foi crucial para deslocar o foco do indivíduo e da sua lesão (impairment) para as barreiras sociais e institucionais que produzem a deficiência (disability). Argumentaremos que o Modelo Social oferece um enquadramento político fundamental para repensar a acessibilidade, não como um ato de caridade ou um ajuste técnico, mas como uma questão de direitos humanos e de justiça social. É a sociedade que "deficita" os indivíduos ao não prever e acolher a diversidade humana.
Aprofundando esta crítica, introduziremos as ferramentas conceptuais de Michel Foucault (2004), nomeadamente as noções de saber-poder, governamentalidade e subjetivação. A partir daqui a acessibilidade será analisada como um dispositivo de governo que, enquanto promove a inclusão, também classifica, mede, gere e normaliza as populações. Investigaremos como os discursos de especialistas (psicólogos, pedagogos, terapeutas), as legislações inclusivas e as tecnologias assistidas participam na produção de subjetividades específicas – o "aluno com necessidades educativas especiais", o "sujeito da inclusão", “a pessoa com necessidades específicas de saúde” –, cujas identidades são forjadas na encruzilhada entre a assistência e o controlo.
Finalmente, recorreremos à Filosofia da Diferença, em particular ao pensamento de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2007), para radicalizar a crítica à normatividade intrínseca aos processos de inclusão. Se o Modelo Social critica as barreiras que impedem a participação, a Filosofia da Diferença questiona o próprio ideal de "participação" num sistema que se baseia em modelos hegemónicos de ser, pensar e aprender. Proporemos que uma abordagem verdadeiramente transformadora da acessibilidade deve ir além da remoção de barreiras para afirmar a diferença como potência criadora, como singularidade radical e reconhecendo a diferença como potência constitutiva do comum (Skliar, 2003). Trata-se de pensar a educação não como um sistema arborescente, com um tronco normal e ramos desviantes, mas como um rizoma, onde qualquer ponto pode e deve conectar-se a qualquer outro, gerando múltiplas e imprevisíveis linhas de aprendizagem e de vida.
Este percurso teórico visa, em suma, oferecer uma abordagem crítica da acessibilidade, deslocando-a do campo meramente técnico-pedagógico para o centro de um debate filosófico sobre o que significa educar, conviver e construir um comum num mundo irredutivelmente diverso. Acessibilidade, nesta perspetiva, deixa de ser sobre "ajudar" alguns para se tornar um projeto de desconstrução das normas que oprimem a todos, abrindo espaço para a invenção de outras formas de subjetivação e de ser. No fundo, procura-se discutir a acessibilidade como um princípio ético-político voltado para a construção de espaços educativos que não apenas “tolerem”, mas ativamente afirmem a singularidade radical de cada sujeito propondo uma pedagogia da diferença como caminho para a vida em comum.
Para compreender a complexidade do dispositivo de acessibilidade, é imperativo traçar uma genealogia das práticas e discursos que historicamente enquadraram a diferença no campo da educação. Antes da emergência do conceito de inclusão, o tratamento da diversidade corporal e cognitiva foi dominado por um paradigma poderoso e persistente: o modelo médico-psicológico da deficiência (Ó, 2003). Este modelo, que ganhou força a partir do século XIX com a ascensão da medicina clínica e da psicologia experimental, concebe a deficiência como uma propriedade intrínseca do indivíduo, resultante de uma falha biológica, de um déficit ou de uma patologia (Almeida, 2023).
Nesta perspetiva, o corpo e a mente "diferentes" são vistos como desvios de uma norma estatística e biológica. Como aponta Georges Canguilhem (1966) na sua obra O Normal e o Patológico, a medicina moderna constituiu-se em torno da definição do patológico como uma variação quantitativa negativa em relação a uma média fisiológica, a "norma". Ao convocar para esta discussão os contributos de Foucault (2013) na obra Vigiar e Punir sobre disciplina e poder na prisão, no hospital e no quartel verifica-se que o eixo agregador das suas análises sobre as três instituições é a produção de corpos dóceis, obedientes e úteis. A prisão através de técnicas como o confinamento e a vigilância, o hospital através de tecnologias disciplinares de controlo e normalização dos corpos doentes e o quartel através de uma disciplina rigorosa.
Ora, o que se pode verificar é que esta lógica foi transposta diretamente para o campo da educação. A instituição escolar moderna, tal como analisada por Foucault (2013) em Vigiar e Punir para a prisão, o hospital e o quartel, emergiu como um espaço disciplinar por excelência, dedicado não apenas a instruir, mas a "universalizar" corpos e mentes, a produzir sujeitos dóceis, úteis e, acima de tudo, normalizados. O "exame" escolar é uma tecnologia central neste processo, pois combina a vigilância hierárquica com a sanção normalizadora, permitindo "qualificar, classificar e punir", diferenciando os indivíduos uns dos outros e em relação a uma norma. É neste contexto que o "anormal" – aquele que resiste, que não aprende no mesmo ritmo, que apresenta um corpo ou um comportamento desviante – se torna um objeto de saber e uma preocupação de poder. A escola tornou-se um laboratório para a aplicação de um saber-poder médico-pedagógico. Instrumentos como os testes de coeficiente de inteligência (QI), desenvolvidos por Binet e Simon no início do século XX, foram rapidamente cooptados para classificar, hierarquizar e segregar crianças (Almeida, 2023). O objetivo original de Binet, que era identificar alunos que necessitavam de apoio pedagógico, foi subvertido numa ferramenta para retificar a inteligência como uma entidade fixa e mensurável, criando categorias estanques como "normal", "subnormal" e "superdotado" (Gould, 1981). A criança que não se enquadrava nos marcos de desenvolvimento esperados, que não aprendia no ritmo prescrito ou que se comportava de maneira "desviante" era diagnosticada, rotulada e, na maioria dos casos, excluída do sistema de ensino regular. Este "olhar" clínico-pedagógico, centrado no indivíduo e no seu suposto déficit, produziu categorias diagnósticas que se tornaram a base para a organização de sistemas educativos segregados. O "deficiente mental", o "surdo-mudo", o "cego", o "inválido" foram objetivados por um discurso que os definia pela sua falta, pela sua incompletude em relação a um padrão de normalidade corporal, sensorial e intelectual.
As primeiras instituições de educação especial, como assinala Foucault (2010) em "Os Anormais", funcionavam em estreita articulação com o saber médico e psiquiátrico. Eram espaços de segregação, onde o objetivo primordial não era a educação no sentido lato, mas a ortopedia do corpo e do comportamento. A pedagogia que aí se desenvolvia era eminentemente corretiva, visando aproximar o sujeito "anormal" de um padrão de normalidade definido a priori. O poder exercido nestas instituições era disciplinar, operando através de uma vigilância constante, da organização minuciosa do tempo e do espaço e de um conjunto de técnicas para "adestrar" os corpos e as mentes.
Neste paradigma, a noção de "acessibilidade" era praticamente inexistente ou, quando muito, entendida como um conjunto de técnicas terapêuticas que permitiriam ao indivíduo superar as suas próprias "limitações". O problema residia inteiramente no sujeito, no seu corpo biológico percebido como desviante. A solução, portanto, passava pela sua normalização. A arquitetura, o currículo, os métodos pedagógicos do sistema "regular" de ensino permaneciam inquestionados, pois eram o próprio bastião da norma a ser alcançada. A segregação era, assim, justificada como uma medida necessária e benevolente, um desvio estratégico para uma futura (e muitas vezes utópica) reinserção na sociedade "normal". Este modelo produziu uma subjetividade particular: a do sujeito-paciente, definido pelo seu diagnóstico, pelo seu déficit, cuja identidade se construía em torno da falta e da necessidade de intervenção externa para se tornar "completo" ou "funcional". As instituições especializadas (escolas especiais, asilos) funcionavam como laboratórios para o aperfeiçoamento destas técnicas de governo, visando a correção, a reabilitação ou, no limite, a tutela destes sujeitos considerados inaptos para a vida em sociedade (Ó, 2003).
A resposta institucional a esta "anormalidade" foi a criação da Pedagogia Especial e das escolas especiais. Estes espaços, embora muitas vezes fundados com intenções benevolentes de cuidado e proteção, operavam sob uma lógica de segregação. Funcionavam como instituições totais, onde o indivíduo era definido essencialmente pela sua deficiência. O currículo era, na sua essência, terapêutico e corretivo, focado em "reabilitar" ou "compensar" os déficits percebidos. A acessibilidade, neste contexto, era sinónimo de especialização e separação. O acesso à educação era garantido, mas num circuito paralelo que reforçava a ideia de que a diferença era um problema a ser contido e gerido à parte. Como argumenta Skliar (2003), este sistema produzia uma "pedagogia da exclusão" que, em nome do cuidado, negava o direito à convivência e à partilha de um mundo comum.
A partir de meados do século XX, com a intensificação dos debates sobre direitos civis e humanos, o modelo de segregação começou a ser questionado. Surgiu então o paradigma da integração. A premissa da integração era a de que os alunos com deficiência deveriam, sempre que possível, ser colocados em escolas regulares. Este movimento representou um avanço significativo, ao reconhecer o direito destes alunos a partilharem o mesmo espaço físico que os seus pares. No entanto, a lógica subjacente ainda estava profundamente enraizada no modelo médico (Mittler, 2000). A integração funcionava sob a condição de que o aluno "diferente" fosse capaz de se adaptar à estrutura e às exigências da escola regular (Rodrigues e Nogueira, 2011). A responsabilidade pela adaptação recaía quase inteiramente sobre o indivíduo. A escola permanecia, na sua essência, inalterada. A "acessibilidade" no modelo integracionista manifestava-se através da criação de apoios especializados, como salas de recursos, professores de apoio ou terapeutas, que trabalhavam para "preparar" o aluno para o ambiente "normal".
O sucesso da integração era medido pela capacidade do aluno de se aproximar da norma, de acompanhar o currículo padrão e de minimizar as suas diferenças. No entanto, estas medidas funcionavam como um "andaime" para que o aluno "deficiente" pudesse aceder à estrutura rígida e inalterada da escola regular. A responsabilidade pela adaptação continuava a recair sobre o indivíduo. Como aponta Skliar (2003), a integração opera sob a lógica do "nós" (a comunidade escolar normal) que generosamente aceita "o outro" (o aluno diferente), desde que este se esforce por se assemelhar a "nós". A acessibilidade, nesse contexto, era entendida como possibilidade de “ajustar” o indivíduo à norma escolar — seja por meio de classes especiais, métodos corretivos ou terapias reabilitadoras. Essa conceção alinha-se ao que Foucault (1963/2006) descreveu como biopolítica: um regime de gestão da vida que, enquanto protege e integra, classifica, hierarquiza e normatiza.
O dispositivo da integração, portanto, mantinha a dicotomia normal/anormal, apenas a realocava dentro dos muros da escola comum. Desta forma, a integração, apesar das suas boas intenções, perpetuava uma forma subtil de exclusão dentro da própria escola. O aluno integrado era frequentemente visto como um "visitante" ou um "apêndice" no sistema, cuja presença era condicionada pela sua capacidade de não perturbar a ordem estabelecida. A estrutura curricular, os métodos de avaliação, a organização do tempo e do espaço e as atitudes dos professores e dos colegas continuavam a refletir e a reforçar um ideal de aluno homogéneo (Kassar, 2011).
A diferença era tolerada, mas não verdadeiramente acolhida e valorizada como parte constitutiva da comunidade educativa. O problema, em última análise, continuava a ser localizado no aluno, que precisava de "suporte" para se ajustar a um sistema que não foi pensado para ele. A subjetividade produzida era a do "sujeito em esforço", constantemente avaliado pela sua capacidade de superar as suas limitações e de minimizar a sua diferença para se tornar o mais "normal" possível. O sucesso da integração era medido pelo grau de invisibilidade da deficiência. Esta lógica preparou o terreno para a crítica que seria formulada de maneira contundente pelo Modelo Social da Deficiência que exploraremos mais aprofundadamente na secção seguinte.
Continuando a traçar a genealogia do conceito “acessibilidade”, o discurso da inclusão, que ganha força a partir da Declaração de Salamanca em 1994, representa uma rutura epistemológica fundamental, pelo menos no plano teórico. A premissa inverte-se: não é mais o aluno que deve adaptar-se à escola, mas a escola que deve reestruturar-se para acolher e valorizar a diversidade de todos os alunos. A diferença deixa de ser vista como um problema a ser corrigido e passa a ser entendida como uma característica inerente à condição humana e uma oportunidade de enriquecimento pedagógico (Kassar, 2011; Rodrigues e Nogueira, 2011). É sob a égide da inclusão que o conceito de acessibilidade se expande exponencialmente. Passa a englobar não apenas a dimensão arquitetónica, mas também a comunicacional (Libras, Braille, comunicação alternativa), a instrumental (tecnologias assistidas), a metodológica (desenho universal para a aprendizagem) e, crucialmente, a que se relaciona com as atitudes face à diferença.
A acessibilidade torna-se um princípio orientador para a transformação de todo o sistema educativo (Sassaki, 2009). Contudo, é aqui que a análise da acessibilidade como dispositivo se torna mais premente. Apesar da mudança de paradigma discursivo, muitas práticas rotuladas como "inclusivas" continuam a operar sob uma lógica normalizadora subtil. A implementação da acessibilidade é frequentemente reduzida a um checklist de adaptações técnicas, sem que se questione a estrutura de poder que produz a própria necessidade dessas adaptações. A norma, embora não explicitamente defendida, persiste de forma implícita no currículo, nos métodos de avaliação, na organização do tempo e do espaço escolar, e nas expectativas de desempenho.
A acessibilidade, neste contexto, pode tornar-se um mecanismo paradoxal. Ao mesmo tempo que viabiliza a presença física de corpos antes excluídos, pode simultaneamente marcá-los e individualizar a diferença. Um aluno que necessita de um software específico ou de um mediador em sala de aula é, por um lado, "incluído", mas, por outro, a sua diferença é tornada visível e gerida através de um aparato técnico-pedagógico que o singulariza. Como adverte Veiga-Neto (2007), a inclusão pode funcionar como uma estratégia de governamentalidade, uma forma sofisticada de gerir populações e de conduzir as condutas dos "diferentes" para que se insiram de forma produtiva e não disruptiva na ordem social.
Com esta secção procurou-se, de forma sucinta, traçar uma genealogia da acessibilidade, evidenciando, tanto quanto possível, um deslocamento do poder: de uma exclusão explícita para uma gestão subtil da diferença no interior do próprio sistema. A crítica ao dispositivo da acessibilidade não implica negar a sua importância, mas sim estar atento a como, sob o manto de um discurso benevolente, ele pode continuar a traçar linhas, a criar hierarquias e a produzir subjetividades que, em última análise, reforçam a norma que pretendem desafiar. É para aprofundar esta crítica que nos voltaremos agora para o Modelo Social da Deficiência.
A transição da integração para a inclusão não foi apenas uma mudança terminológica; representou uma rutura epistemológica fundamental, impulsionada em grande parte pelo surgimento do Modelo Social da Deficiência. Desenvolvido a partir da década de 1970 por ativistas e académicos no Reino Unido, como Paul Hunt e, mais tarde, Mike Oliver, o Modelo Social ofereceu uma redefinição radical do que constitui a "deficiência". A sua premissa central, articulada pela Union of the Physically Impaired Against Segregation (UPIAS), estabelece uma distinção crucial entre impairment (lesão) e disability (deficiência).
Impairment refere-se à condição corporal ou funcional de um indivíduo (por exemplo, a paralisia de um membro, a ausência de visão, uma condição neurológica). É uma característica do corpo, que o modelo reconhece como uma realidade biológica. Disability, por outro lado, é o conjunto de desvantagens e restrições de atividade impostas pela sociedade, que não leva em conta a existência de pessoas com lesões e, assim, as exclui da participação na vida social (UPIAS, 1976). Nas palavras de Mike Oliver (1990), um dos seus principais teóricos, a deficiência "não é algo que as pessoas têm, mas algo que lhes é feito". É o resultado de uma organização social e ambiental baseada nas necessidades e pressupostos de um corpo-padrão, não deficiente.
Esta perspetiva desloca o "problema" da deficiência do indivíduo para a sociedade. A deficiência, portanto, deixa de ser um atributo pessoal, ontológico e estático, tornando-se uma construção social, relacional e dinâmica. Não é a incapacidade de andar que define a deficiência de um utilizador de cadeira de rodas, mas a presença de escadas sem rampas ou elevadores. Não é a incapacidade de ouvir que define a deficiência de uma pessoa surda, mas a ausência de intérpretes de língua gestual ou de legendas. A deficiência, portanto, é uma forma de opressão social, análoga ao racismo, ao sexismo ou à homofobia, perpetuada por barreiras físicas, institucionais e comunicacionais. Este deslocamento conceptual tem implicações radicais para a noção de acessibilidade. No modelo médico, a acessibilidade era uma intervenção para "consertar" ou "compensar" o indivíduo. No Modelo Social, a acessibilidade torna-se a principal ferramenta de luta política. Acessibilidade não é mais sobre adaptar a pessoa, mas sobre transformar a sociedade. É a remoção de barreiras – arquitetónicas, comunicacionais – que passa a ser o foco central. Acessibilidade deixa de ser um favor para se tornar um direito humano fundamental, a pré-condição para o exercício da cidadania.
Quando aplicado ao campo da educação, o Modelo Social desmantela a lógica tanto da segregação como da integração. Se a deficiência é produzida por barreiras sociais, então a solução não é "consertar" o aluno para que ele se adapte à escola, mas sim transformar a escola para que ela acolha toda a diversidade humana. A responsabilidade pela exclusão é transferida da criança para a instituição. Este é o cerne da filosofia da inclusão. A escola inclusiva não é aquela que "aceita" alunos com deficiência, mas aquela que se reestrutura fundamentalmente para reconhecer e valorizar a diversidade como a norma, e não como a exceção (Oliver, 1996).
Nesta nova ótica, o conceito de acessibilidade sofre uma profunda reconfiguração. Deixa de ser um conjunto de medidas compensatórias ou especializadas para se tornar um princípio universal de design e organização do ambiente educativo. A acessibilidade não é mais um "extra" a ser adicionado para alguns alunos, mas a condição prévia para que a educação possa acontecer para todos. Isto deu origem a abordagens como o Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA), que propõe a criação de currículos e ambientes de aprendizagem que sejam, desde o início, flexíveis e acessíveis a todos, oferecendo múltiplos meios de apresentação da informação, múltiplos meios de expressão do conhecimento e múltiplos meios de envolvimento (Rose; Meyer, 2002).
Outra dimensão que se torna evidente é que o Modelo Social politiza a acessibilidade. Ela deixa de ser um problema técnico a ser resolvido por arquitetos e designers e torna-se um projeto político de desmantelamento do capacitismo e uma luta pelos direitos civis. Exigir acessibilidade é exigir a remoção de barreiras que constituem uma forma de discriminação. É afirmar o direito à participação plena na vida escolar e social. Esta mudança de perspetiva tem implicações profundas na subjetivação dos estudantes. Em vez de se verem como "problemáticos" ou "deficientes", os alunos podem começar a identificar as barreiras no ambiente como a fonte das suas dificuldades. Isto fomenta uma consciência crítica e uma identidade política, transformando a experiência da deficiência, por exemplo, de uma “tragédia pessoal” numa questão de injustiça social coletiva.
No entanto, apesar da sua inegável importância política e teórica, o Modelo Social também recebeu críticas. Autores como Tom Shakespeare (2006) argumentaram que, na sua formulação mais rígida, o modelo pode acabar por negligenciar a experiência vivida e a dimensão experiencial e subjetiva da deficiência. A dor, a fadiga, a doença e as limitações corporais são aspetos reais da vida de muitas pessoas com deficiência, e ignorá-los em nome de um foco exclusivo nas barreiras sociais pode ser redutor. Além disso, a ênfase política no coletivo, por vezes, desconsiderou as singularidades das trajetórias individuais e pode não dar conta da complexidade das identidades, que são formadas na interação entre o corpo, a psique e o mundo social, e não apenas pela opressão externa. Isto é, Shakespeare (2006) aponta para o risco de o Modelo Social criar uma identidade monolítica da "pessoa com deficiência", obscurecendo as diferenças de experiência entre pessoas com diferentes tipos de impedimentos, bem como as intersecções com outras marcas de identidade, como género, raça e classe social. A experiência de uma mulher negra com deficiência visual não é a mesma de um homem branco paraplégico.
Estas críticas não invalidam a contribuição fundamental do Modelo Social, mas convidam a uma abordagem mais nuançada. Elas sugerem que, ao pensar a acessibilidade, não podemos focar-nos apenas na remoção de barreiras externas, mas temos também de considerar as complexas formas como os corpos são vividos, percebidos e subjetivados. A acessibilidade não pode ignorar a dimensão fenomenológica da existência. É neste ponto que a análise beneficia de uma complexificação teórica. O Modelo Social foi fundamental para identificar e aventar onde está o problema. De seguida, trataremos de problematizar como este problema opera, através de que mecanismos de poder e de que processos de produção de verdade e de sujeitos. É aqui que a noção de acessibilidade como dispositivo se torna particularmente esclarecedora.
O Modelo Social da Deficiência oferece uma crítica política essencial, mas para compreender a subtileza e a ambivalência dos mecanismos de inclusão, a noção de "dispositivo" (dispositif) de Michel Foucault revela-se uma ferramenta analítica de extraordinária potência. Foucault (1980) define um dispositivo como uma rede ou um emaranhado heterogéneo que engloba discursos, instituições, arranjos arquitetónicos, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos e proposições filosóficas. O dispositivo não tem uma função única e homogénea; ele é uma máquina estratégica que responde a uma urgência e que produz efeitos de poder. Mais do que uma estrutura estática, dispositivo é uma rede dinâmica, estratégica, que regula e transforma subjetividades ao longo da história.
A acessibilidade, quando analisada através desta lente, transcende a sua definição como um simples conjunto de ferramentas ou práticas. Ela emerge como um complexo dispositivo de poder que opera no coração da educação inclusiva. Este dispositivo é composto por uma miríade de elementos:
● Discursos: O discurso dos direitos humanos, o discurso terapêutico da reabilitação, o discurso pedagógico do Desenho Universal para a Aprendizagem, o discurso psicológico dos diagnósticos (como o DSM), e o discurso jurídico das legislações “inclusivas”.
● Instituições: A escola, as clínicas de terapia, as comissões de avaliação, os ministérios da educação e as associações de pais e de pessoas com deficiência.
● Práticas: A elaboração de Planos Educativos Individuais (PEI), as avaliações psicopedagógicas, as adaptações curriculares, a utilização de tecnologias assistidas e a formação de professores.
● Estruturas Físicas: Rampas, elevadores, salas de recursos, mobiliário adaptado.
Nesse sentido, podemos considerar que a função estratégica deste dispositivo é a gestão da diversidade humana no seio da população escolar. Ele opera através de uma lógica de "governamentalidade", como um poder exercido não apenas através da coerção, mas através da gestão da vida, da otimização das capacidades da população e da "condução das condutas" (Foucault, 2010). A educação inclusiva, com o seu dispositivo de acessibilidade, torna-se um dos principais locais para o exercício desta forma de poder.
A própria linguagem utilizada para falar de acessibilidade é um campo de batalha discursivo com profundos efeitos de subjetivação. Por um lado, o discurso dos direitos, impulsionado pelo Modelo Social, enquadra a acessibilidade como uma questão de cidadania e justiça. Reivindicar acessibilidade, nesta perspetiva, é um ato político de afirmação de si. O sujeito que emerge deste discurso é um sujeito de direitos, um agente político que luta contra a opressão.
Por outro lado, persiste com força, muitas vezes de forma velada, o discurso clínico-terapêutico. Este discurso fala de "necessidades", "adaptações", "intervenções" e "apoios". Embora estas palavras sejam muitas vezes necessárias do ponto de vista administrativo para garantir recursos, elas também posicionam o aluno como um "sujeito da necessidade", alguém definido pela sua falta, pelo que não pode fazer sem ajuda externa. A sua identidade escolar fica intrinsecamente ligada ao aparato de acessibilidade que o cerca. Ele é o "aluno do mediador", o "aluno que usa o computador", o "aluno da sala de recursos".
Este enquadramento discursivo tem efeitos concretos na perceção de si. Pode levar a um processo de subjetivação em que o aluno internaliza a visão de si mesmo como dependente, ou como "menos capaz". A ajuda, mesmo quando necessária e bem-vinda, pode ter o efeito paradoxal de reforçar um sentimento de inadequação. A luta pela acessibilidade torna-se, então, não apenas uma luta por recursos materiais, mas também uma luta pela narrativa, pela possibilidade de se definir para além do diagnóstico e da necessidade
O mesmo é dizer que o dispositivo de acessibilidade funciona de uma maneira paradoxal. Por um lado, ele é inegavelmente produtor de liberdade e de possibilidades. Ao remover barreiras e fornecer suportes, permite que estudantes anteriormente excluídos participem na vida escolar. Abre caminhos, cria oportunidades e materializa direitos. No entanto, por outro lado, este mesmo dispositivo exerce um poder normalizador e produz processos de subjetivação específicos. Para que um aluno tenha "acesso" aos recursos de acessibilidade, ele primeiro precisa de ser identificado, diagnosticado e categorizado. Ele deve passar por um processo de avaliação que o transforma num "caso", num objeto do saber de especialistas (psicólogos, médicos, terapeutas). O seu corpo e a sua mente são medidos, os seus desvios em relação à norma são quantificados e um rótulo diagnóstico é atribuído ("dislexia", "perturbação do espetro do autismo", "défice de atenção"). Este ato de nomeação não é neutro. Ele inscreve o aluno numa determinada categoria de ser, que carrega consigo um conjunto de expectativas, limitações e intervenções prescritas (Almeida, 2023). O aluno torna-se o "sujeito da inclusão", cuja identidade é forjada em torno da sua "necessidade especial".
Como argumenta Nikolas Rose (1999), as "tecnologias do eu" que operam no campo da psicologia e da pedagogia convidam os indivíduos a compreenderem-se a si mesmos através das categorias fornecidas pelos especialistas. O aluno aprende a narrar a sua própria história através da lente do seu diagnóstico. Ele subjetiva-se como alguém que "tem" uma dificuldade, que precisa de ajuda, cujas potencialidades e futuros são enquadrados pelo prognóstico dos peritos. Este processo, embora possa ser de empoderamento, ao dar um nome e uma explicação para as suas dificuldades, também pode ser limitador, aprisionando o sujeito numa identidade “patologizada”, ou, no melhor dos casos “não condizente com a norma”.
As práticas pedagógicas desenvolvidas sob a bandeira da inclusão também participam neste processo de subjetivação. O Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA), por exemplo, com a sua ênfase em múltiplos meios de apresentação, expressão e engajamento, representa um avanço significativo. No entanto, se aplicado de forma meramente técnica, pode tornar-se uma forma sofisticada de governamentalidade, como diria Foucault. Ao antecipar todas as possíveis "barreiras" à aprendizagem e ao oferecer um cardápio de opções pré-definidas, o DUA pode, paradoxalmente, limitar o espaço para o inesperado, para a rutura, para a criação de soluções pelo próprio aluno. Pode tornar-se uma forma de "conduzir a conduta" dos alunos de forma tão eficaz que a resistência se torna quase impossível. O aluno é "incluído" num sistema flexível e adaptável que o gere de forma individualizada, canalizando as suas energias e modos de aprender para os objetivos curriculares pré-estabelecidos.
O sujeito produzido por esta lógica é o "sujeito flexível", o "sujeito empreendedor de si mesmo", que aprende a navegar nas opções que lhe são dadas pelo sistema para maximizar o seu desempenho. É um sujeito aparentemente autónomo, mas cuja autonomia é exercida dentro de limites cuidadosamente desenhados.
Outro exemplo, o Plano Educativo Individual (PEI) é uma ferramenta central do dispositivo de acessibilidade. Ele visa personalizar a educação, mas também funciona como um contrato de gestão. Define metas, estratégias e formas de avaliação que visam governar o progresso do aluno em direção a objetivos pré-definidos, muitas vezes alinhados com a norma curricular. O PEI torna o aluno e o seu percurso "legíveis" e "conduzível" pela administração escolar. É uma tecnologia de poder que individualiza o "problema", mesmo dentro de um discurso inclusivo. A questão passa a ser: "O que podemos fazer para que este aluno, com esta condição, se ajuste ao currículo?", em vez de "Como podemos transformar o currículo e a pedagogia para que sejam fundamentalmente abertos a todos?".
Desta forma, o dispositivo de acessibilidade produz uma inclusão condicional. Inclui, mas ao mesmo tempo diferencia e governa. Cria uma hierarquia dentro da escola, entre os alunos "normais" e os alunos "com necessidades", que, apesar de estarem no mesmo espaço, ocupam lugares simbólicos distintos. A acessibilidade, quando entendida apenas como um conjunto de reparações técnicas e apoios individualizados, corre o risco de reforçar a ideia de que a diferença é um desvio que precisa de ser gerido, em vez de ser a própria matéria-prima da educação. A crítica fundamental, portanto, deve ir além da denúncia das barreiras, para questionar a própria norma que define o que é ser um "aluno" e o que constitui a "aprendizagem" (Wolbring; Nasir, 2024). Em suma, o dispositivo da acessibilidade, com as suas linguagens, tecnologias e práticas, está constantemente a produzir o "sujeito incluído". A nossa tarefa é analisar incessantemente que tipo de sujeito está a ser produzido. Estamos a criar sujeitos que se conformam a uma norma benevolente e flexível? Ou estamos a criar as condições para a emergência de sujeitos singulares, resistentes, que desafiam as normas e que, no processo, transformam a própria escola e o mundo?
É aqui que a Filosofia da Diferença oferece o passo seguinte e mais radical.
Se os contributos de Michel Foucault nos ajudam a problematizar como a acessibilidade opera enquanto dispositivo de poder-saber que governa e normaliza, a Filosofia da Diferença, particularmente nos trabalhos de Gilles Deleuze e Félix Guattari (2007), oferece-nos um caminho para pensar para além deste enquadramento. A sua filosofia não procura simplesmente incluir o "diferente" numa estrutura existente, mas oferece-se como uma ferramenta conceptual que nos ajuda a questionar as próprias estruturas de pensamento que produzem a dicotomia normal/anormal. O alvo da crítica não é apenas a exclusão, mas a própria lógica da identidade, da representação e do modelo hegemónico que a inclusão, paradoxalmente, pode acabar por servir.
Deleuze (2000) opera uma distinção fundamental entre a diferença concebida em relação a uma identidade pré-existente e a "diferença em si mesma". Tradicionalmente, pensamos a diferença de forma negativa: algo é diferente de um padrão, de uma norma. Um aluno com dislexia é visto como diferente do leitor proficiente. Uma pessoa cega é diferente da pessoa que vê. Nesta lógica, a diferença é sempre secundária, um desvio, uma falta. A inclusão, neste quadro, é o esforço para reduzir essa diferença, para aproximar o desviante do centro normativo.
Deleuze (2000), pelo contrário, propõe pensar a diferença como uma força primária, positiva e criadora. Cada ser é uma singularidade radical, uma combinação única de afetos, velocidades e potências. A diferença não é o que nos distingue uns dos outros a partir de um modelo comum, mas o que nos constitui na nossa imanência (Deleuze; Guattari, 1992). Não existem modelos ou cópias, apenas singularidades em contínua variação e devir (Deleuze; Guattari, 2007). Esta perspetiva tem implicações devastadoras para o sistema educativo. Pode, assim, considerar-se que a escola, tradicionalmente, opera com base no que Deleuze e Guattari (2007) chamam de "pensamento arborescente" ou "modelo da árvore". Este pensamento é hierárquico, binário e centralizado. Existe um tronco (o currículo padrão, o aluno-modelo), do qual saem ramos. O objetivo é que todos sigam a mesma estrutura de crescimento.
Em oposição a isto, pode considerar-se algo que aproxima de um modelo do rizoma. O rizoma seria, então, um sistema não centrado, não hierárquico, como o bolbo de uma planta ou uma rede de túneis de formigas. Num rizoma, "qualquer ponto pode ser conectado a qualquer outro ponto". Ele não tem começo nem fim, mas sempre um meio, por onde cresce e se expande. Um sistema educativo pensado como um rizoma não teria um centro normativo. Não haveria um único caminho de aprendizagem, uma única forma de inteligência ou um único modo de expressão a ser valorizado. A aprendizagem seria um processo de conexões múltiplas e imprevisíveis entre diferentes saberes, corpos e desejos.
O que seria a acessibilidade num modelo rizomático? Deixaria de ser um conjunto de adaptações para ligar um ponto "desviante" ao tronco principal. Em vez disso, a acessibilidade seria a própria condição de possibilidade do rizoma. Seria o princípio de criar o máximo de conexões possíveis. Não se trataria de "dar acesso" a um conteúdo pré-definido, mas de multiplicar as formas de entrar, sair e circular pelo conhecimento. A questão não seria: "Como podemos fazer com que o aluno surdo aceda à aula de música?", mas sim: "O que a experiência vibrátil e visual do som, própria da cultura surda, pode ensinar a todos sobre o que é a música? Como podemos criar uma experiência musical que seja simultaneamente sonora, tátil e visual?".
Nesta perspetiva, a diferença deixa de ser um "problema" a ser gerido e torna-se um motor de criação e de aprendizagem para toda a comunidade. A singularidade de cada aluno, com as suas formas únicas de perceber, pensar e sentir o mundo, é vista como um recurso que enriquece e complexifica o campo do conhecimento. A pedagogia seria um ato de "cartografia" (Almeida; Costa, 2021) e não de "decalque" (Deleuze; Guattari, 2007). Em vez de tentar que todos os alunos sigam o mesmo mapa (decalque), o professor atuaria como um cartógrafo, ajudando a traçar os mapas singulares de aprendizagem de cada um e a encontrar pontos de conexão entre eles.
Esta abordagem exige uma desconstrução radical das práticas escolares. A avaliação estandardizada, que mede todos pela mesma régua, perde o sentido. O currículo fixo e sequencial dá lugar a projetos abertos e interdisciplinares. A organização do tempo e do espaço torna-se flexível para acomodar diferentes ritmos e necessidades. A própria relação de poder entre professor e aluno é questionada, abrindo espaço para uma produção conjunta de conhecimento (Almeida; Ó, 2020).
Adotar esta perspetiva é mover-se para além do discurso dos direitos e da justiça social do Modelo Social, em direção a uma ética da afirmação da vida. Trata-se de reconhecer que o objetivo da educação não é produzir sujeitos competentes e adaptados a um sistema social pré-existente, mas sim criar as condições para que cada singularidade possa expandir a sua potência de agir e de criar mundos. A acessibilidade, neste sentido último, é a arte de criar espaços educativos onde múltiplas formas de vida possam florescer, não apesar das suas diferenças, mas por causa delas. É um convite à invenção de uma escola que não se limite a incluir todos, mas que se deixe transformar radicalmente pela presença de cada um.
Este ensaio percorreu um caminho teórico com o objetivo de desnaturalizar e politizar o conceito de acessibilidade na educação. Partimos da constatação de que, sob a sua aparência de neutralidade técnica e bondade moral, a acessibilidade opera como um complexo dispositivo de saber-poder que participa ativamente na produção e governo dos sujeitos no espaço escolar.
A genealogia da abordagem à diferença revelou como passámos de um modelo médico-psicológico, que patologizava o indivíduo e promovia a segregação, para um modelo de integração, que exigia a adaptação do sujeito a uma norma escolar inalterada. A viragem paradigmática oferecida pelo Modelo Social da Deficiência foi crucial, ao deslocar o foco das lesões individuais para as barreiras sociais que produzem a deficiência como uma forma de opressão. Esta perspetiva reconfigurou a acessibilidade como uma questão de direitos humanos e de desmantelamento de estruturas excludentes, fundamentando a filosofia da inclusão.
No entanto, a análise da acessibilidade como dispositivo permitiu-nos ver a sua ambivalência enquanto dispositivo de inclusão. Problematizou como, enquanto abre possibilidades, a acessibilidade moderna também funciona através de mecanismos de governamentalidade que classificam, diagnosticam e normalizam os indivíduos. Ao transformar a diferença numa categoria administrativa ("necessidades educativas especiais", ou “necessidades específicas de saúde”), o dispositivo de acessibilidade participa na produção de subjetividades geridas, cujas identidades são moldadas na intersecção entre o cuidado e o controlo. A inclusão, neste quadro, corre sempre o risco de se tornar uma forma sofisticada de normalização.
Foi a incursão no trabalho de Deleuze e Guattari (2007) que nos permitiu vislumbrar uma possível alternativa para habitar este paradoxo. Ao proporem a substituição do pensamento arborescente e normativo por um modelo rizomático, eles convidam-nos a pensar a educação para além da lógica da identidade e da representação. Nesta ótica, o objetivo não é mais incluir a diferença num todo homogéneo, mas afirmar a diferença como potência criadora, como singularidade irredutível. A acessibilidade deixa de ser um conjunto de remendos ou adaptações para se tornar o próprio princípio ético-político de criação de um espaço educativo como um campo de conexões múltiplas e abertas.
O que emerge deste percurso é a necessidade de uma práxis da acessibilidade, uma prática informada por uma reflexão teórica constante. Esta práxis implica:
● Uma vigilância epistemológica constante: Questionar incessantemente as categorias, os diagnósticos e os discursos que utilizamos, estando cientes dos seus efeitos de poder. Questionar constantemente: "A quem serve esta norma? Que formas de vida e de saber estão a ser privilegiadas e quais estão a ser marginalizadas?".
● Uma ênfase na cocriação: Desenvolver soluções de acessibilidade em diálogo permanente com os seus utilizadores, valorizando o conhecimento que emerge da experiência vivida. Ir além dos princípios do Desenho Universal para a Aprendizagem, que ainda podem pressupor um designer central, para práticas de cocriação dos espaços e dos currículos com os próprios estudantes. A experiência e o saber daqueles que vivem a exclusão na pele são recursos epistemológicos indispensáveis.
● Valorizar a multiplicidade e uma pedagogia do problema e da experimentação: Desconstruir a hierarquia de saberes e competências na escola. Acolher e incentivar múltiplas formas de expressão, comunicação e produção de conhecimento, para além da escrita e da oralidade hegemónicas. Criar ambientes de aprendizagem que não visem apenas dar acesso ao currículo prescrito, mas que incentivem a formulação de novos problemas e a invenção de novas formas de conhecer e de se expressar.
● Uma ética da relação e da singularidade: Entender que a acessibilidade não se esgota em soluções materiais ou tecnológicas. Ela é, fundamentalmente, uma questão relacional. Reside na qualidade da escuta, na abertura ao inesperado e na disposição para ser afetado e transformado pelo outro. Celebrar a diferença não como uma adenda multicultural a um núcleo hegemónico, mas como a condição fundamental de um espaço educativo verdadeiramente democrático e vivo.
Em última análise, uma abordagem crítica e interdisciplinar da acessibilidade impele-nos a ir além da pergunta "Como podemos tornar a escola acessível a todos?". A pergunta fundamental, mais difícil e mais potente, torna-se: "Que escola precisamos de criar para que a acessibilidade, como a concebemos hoje, já não seja necessária?". A utopia não é uma escola com rampas perfeitas para todos, mas uma escola onde os corpos, em toda a sua diversidade de movimentos, perceções e linguagens, possam compor um mundo comum sem que a ideia de "norma" precise sequer de ser enunciada. A acessibilidade, então, deixaria de ser um dispositivo de gestão da diferença para se tornar o que sempre deveria ter sido: uma prática concreta da liberdade. Repensar a acessibilidade como um dispositivo que afirma a diferença é um convite a repensar a própria finalidade da educação. Talvez o seu objetivo não seja preparar para um futuro previsível ou para um mercado de trabalho específico (Almeida, 2018), mas sim cultivar um presente rico em diversidade e em experimentação. Talvez a escola ideal não seja aquela que elimina todos os problemas, mas aquela que acolhe a diferença não como um déficit a ser superado, mas como a condição mesma da aprendizagem, do pensamento e da criação de um mundo comum mais justo, mais complexo e mais vivo.
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