Trabalho pedagógico surdo: responsabilidades didático-pedagógicas na escolarização de estudantes surdas(os) na escola regular
Deaf pedagogic work: didactic-pedagogic responsibilities in the schooling of deaf students in mainstream school
Trabajo pedagógico sordo: responsabilidades didáctico-pedagógicas en la escolarización de estudiantes sordos en la escuela regular
Universidade Federal do Paraná, Curitiba – PR, Brasil.
Recebido em 08 de maio de 2025
Aprovado em 14 de julho de 2025
Publicado em 21 de julho de 2025
RESUMO
Resultado de uma pesquisa de tese de doutorado em Educação, o recorte apresentado neste artigo problematiza as responsabilidades pedagógicas de educadoras surdas e ouvintes na escolarização de estudantes surdas(os) em escolas regulares de João Pessoa – PB. A pesquisa qualitativa ancorou-se no escopo teórico dos Estudos Surdos em articulação com o campo dos Estudos Culturais da Educação e foi desenvolvida com profissionais surdas e ouvintes. Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, utilizando um roteiro com perguntas abertas que focavam questões relacionadas ao trabalho pedagógico surdo na escola regular. As análises das entrevistas apontaram que as educadoras surdas assumiam as responsabilidades didático-pedagógicas na escolarização de estudantes surdas(os) em sala de aula, mesmo sendo estas oficialmente prerrogativas das professoras ouvintes regentes. Essas funções, portanto, eram delegadas às educadoras surdas pela ausência de ferramentas pedagógicas, didáticas, linguísticas e culturais para trabalhar com as(os) estudantes surdas(os), desnudando a fragilidade curricular da escola para lidar com as diferenças.
Palavras-chave: Educação dos surdos; Inclusão Educacional; Responsabilidade do Professor.
ABSTRACT
As a result of a doctoral thesis research in Education, the excerpt presented in this article problematizes the pedagogical responsibilities of deaf and hearing female educators in the schooling of deaf students in regular schools in João Pessoa – PB. The qualitative research was anchored in the theoretical scope of Deaf Studies in articulation with the field of Cultural Studies in Education and was developed with deaf and hearing female professionals. Data were collected through semi-structured interviews, using a script with open questions that focused on issues related to deaf pedagogical work in regular schools. The analyzes of the interviews showed that the deaf female educators assumed didactic-pedagogical responsibilities in the schooling of deaf students in the classroom, even though these are officially prerogatives of the regent hearing female teachers. These functions, therefore, were delegated to the deaf female educators due to the lack of pedagogical, didactic, linguistic and cultural tools to work with deaf students, revealing the school’s curricular weakness in dealing with the differences.
Keywords: Education of the deaf; Educational Inclusion; Teacher’s Responsibility.
RESUMEN
Resultado de una investigación de tesis doctoral en Educación, el extracto presentado en este artículo problematiza las responsabilidades pedagógicas de las educadoras sordas y oyentes en la escolarización de estudiantes sordas(os) en escuelas regulares de João Pessoa - PB. La investigación cualitativa se basó en el alcance teórico de los Estudios Sordos en conjunto con el campo de los Estudios Culturales en Educación y se desarrolló con profesionales sordas y oyentes. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas semiestructuradas, utilizando un guión con preguntas abiertas que se centraron en cuestiones relacionadas con el trabajo pedagógico sordo en las escuelas regulares. Los análisis de las entrevistas señalaron que las educadoras sordas asumieron las responsabilidades didáctico-pedagógicas en la escolarización de las(os) estudiantes sordas(os) en el aula, a pesar de que estas son oficialmente prerrogativas de las maestras oyentes titulares. Estas funciones, por lo tanto, fueron delegadas a educadoras sordas debido a la ausencia de herramientas pedagógicas, didácticas, lingüísticas y culturales para trabajar con estudiantes sordas(os), dejando al descubierto la fragilidad curricular de la escuela para hacer frente a las diferencias.
Palabras
clave: Educación de los sordos;
Inclusión Educativa; Responsabilidad del maestro.
Introdução
Qualquer forma de trabalho pedagógico não é construída em um processo simples e “romântico”. Pelo contrário, é conflituoso, complexo e está alicerçado no âmbito da cultura, uma vez que, apesar de as(os)[1] profissionais da educação, especialmente as(os) professoras(es), serem consideradas(os) protagonistas na construção do currículo e das práticas pedagógicas, esse lugar é dividido com os sujeitos para quem o fazem, isto é, suas(seus) alunas(os), que dialogam com elas(es) de diferentes formas.
Desse modo, além das funções técnicas que executam, lidam diretamente com as diferentes culturas de suas(seus) alunas(os), participando de um movimento cultural que ultrapassa a letra fria das leis e das políticas educacionais, participando de um movimento muito mais de relações humanas do que de ordem burocrática. Freire (2014), ao refletir sobre os saberes necessários à prática docente, traz a seguinte afirmação: “como prática estritamente humana jamais pude entender a educação como uma experiência fria, sem alma, em que os sofrimentos e as emoções, os desejos, os sonhos devessem ser reprimidos por uma espécie de ditadura racionalista” (Freire, 2014, p. 142). Nessa direção, como esses sujeitos imprescindíveis para a escolarização das(os) alunas(os) surdas(os) têm lidado com as diferenças culturais na escola? São reprodutores de uma lógica homogeneizadora, de uma ditadura racionalista (Freire, 2014) ou são construtores de uma cultura em que as diferenças são respeitadas e valorizadas?
Silva (2011), porém, alerta para a reflexão sobre o risco de se cair no essencialismo das diferenças: as diferenças são tomadas como fixas, definitivas, restando, portanto, somente respeitá-las. As diferenças, segundo o que o autor explica, são produzidas e reproduzidas constantemente, por meio de relações de poder. Isso implica dizer que, mais do que toleradas ou respeitadas, as diferenças devem ser problematizadas permanentemente, caso contrário, atitudes de tolerância continuarão a mascarar as relações de poder, sustentando livremente os processos excludentes.
Diversos estudos apontam para a ideia de que professoras(es) ouvintes encontram dificuldades em trabalhar com a diferença surda na escola. O fazer pedagógico com essa diferença tem sido um dos maiores imbróglios dos últimos anos nas escolas, sendo que deixá-la à margem dos processos educacionais tem sido uma das ações implementadas pela escola, contrariando a perspectiva da pedagogia da diferença.
Skliar (2013) afirma que, ao fracasso educacional das pessoas surdas, têm sido atribuídas 3 (três) justificativas: a primeira diz respeito às próprias pessoas surdas, ou seja, pelo fato de serem surdas e possuírem uma patologia (surdez). A segunda se refere à culpabilização das(os) professoras(es) ouvintes. E a terceira, às limitações dos métodos de ensino, o que reivindicaria, portanto, torná-los ainda mais rigorosos e impiedosos com as pessoas surdas. Todavia, argumenta o autor que essas três justificativas mascaram a denúncia do fracasso da instituição escolar, das políticas de educação e do Estado, pois esse fracasso é advindo das representações ouvintistas[2] em torno das pessoas surdas, de seus direitos linguísticos e de cidadania.
É preciso ressaltar, aliás, que a construção de uma pedagogia da diferença vale para todas as pessoas, sendo o corpo docente um agente de desestabilização de velhas concepções que desconsideram as diferenças na escola. Por isso, não obstante não ser a responsabilidade do que vem ocorrendo na educação das pessoas surdas única e exclusivamente das(os) professoras(es), não podemos isentá-las(os) totalmente nesse processo. Conforme o que Candau (2014) considera, professoras(es) são agentes socioculturais para o diálogo intercultural, a valorização das diferenças, o combate ao preconceito e à discriminação, especialmente por meio da mobilização de suas(seus) educandas(os). No entanto, como fazer isso quando as(os) professoras(es) não falam a mesma língua dos sujeitos que educam? Como construir um currículo para a diferença surda sem ter os mínimos conhecimentos sobre a cultura surda?
Tardif (2002) afirma que “a aquisição da sensibilidade relativa às diferenças entre os alunos constitui uma das principais características do trabalho docente”. Esse seria um dos aspectos que deveria constituir os saberes necessários para a prática docente na educação de pessoas surdas, visto que o conhecimento e aprofundamento nas culturas surdas se dão a partir do conjunto de saberes que as(os) professoras(es) vão adquirindo ao longo de seu contínuo processo formativo.
Nesse sentido, o trabalho pedagógico a ser desenvolvido com estudantes surdas(os) configura-se como um conjunto de saberes curriculares e experienciais, nos quais a diferença surda é contemplada de forma aprofundada por professoras(es). Por isso, considerar a diferença surda na escola, na perspectiva da pedagogia da diferença, com vistas à inclusão, é observar que as pessoas surdas possuem uma forma diferente de aprender, e que isso necessita de processos educacionais que sejam coerentes com ela, a partir de conhecimentos e saberes próprios, que a formação docente não tem oferecido às(aos) professoras(es).
Segundo o que Reis (2006, p. 40) apresenta, a pedagogia que os(as) surdos(as) querem é uma pedagogia adequada a elas, por meio da implantação de uma “pedagogia da diferença que influa na identidade, cultura, alteridade, língua de sinais e diferença aos alunos surdos para se identificar [...] o seu jeito de ensinar”. Para tanto, a pedagogia surda requer incluir, necessariamente, as(os) professoras(es) surdas(os), sendo “o caminho de, por meio de uma língua ‘mais viva do que nunca’, desenvolver conhecimentos acadêmicos simultâneos à produção de cultura da comunidade surda” (Romário, 2018, p. 103).
Assim como a pedagogia surda, o trabalho pedagógico surdo (Silva, 2020) deve ser compreendido como uma produção surda que envolve não só o trabalho docente, mas também outras atividades profissionais de surdas(os) no âmbito da educação, na qual a sua visão de mundo desconstrua as velhas concepções, construa diferentes discursos pedagógicos com base na cultura surda; desenvolva práticas educacionais condizentes com a experiência visual, com a língua de sinais, com as identidades surdas e com os outros artefatos culturais surdos, devendo ser pilar do processo didático-pedagógico.
Em João Pessoa-PB, educadoras surdas foram incorporadas ao quadro de profissionais das escolas regulares, o que despertou nossa curiosidade investigativa, a fim de saber: como tem sido incorporado o trabalho pedagógico surdo na escola regular? Qual o real papel das educadoras surdas em um modelo escolar no qual oficialmente são as ouvintes encarregadas de ensinar as pessoas surdas? Há relação entre as fragilidades que a escola regular apresenta e o trabalho pedagógico surdo? Diante de uma educação que se declara inclusiva, teria a escola incorporado o trabalho pedagógico surdo como um mecanismo de valorização da diferença surda ou de compensação às suas fragilidades linguísticas e pedagógicas?
Neste artigo, resultado de uma tese de doutorado em Educação, buscamos, portanto, problematizar como o trabalho pedagógico surdo tem sido incorporado na escola regular.
Caminhos teórico-metodológicos
Este estudo[3] foi desenvolvido em escolas públicas municipais de João Pessoa-PB, as quais possuíam profissionais surdas(os) que atuavam no Atendimento Educacional Especializado (AEE) e/ou na sala de aula regular. Neste recorte da tese, porém, são apresentados os dados narrativos de 3 (três) educadoras surdas que atuavam como “intérpretes”[4] em salas de aula regular e de 4 (quatro) professoras ouvintes titulares que atuavam com elas quando da coleta de dados, cujos nomes fictícios (por uma questão de preservação de identidades) e nível de formação se encontram descritos a seguir. Ressalta-se que partimos da premissa de que todas as profissionais na escola, surdas ou ouvintes, atuam como educadoras. No entanto, referimo-nos especialmente às pessoas surdas dessa forma, respeitando a falta de consenso entre elas sobre seus papéis: algumas se identificavam como professoras, outras como instrutoras ou intérpretes, como relatado no escopo da tese.
· Educadora Sabrina: surda, graduada em Licenciatura em Letras-Libras, especialista em Língua Brasileira de Sinais (Libras), possuía 2 (dois) anos de profissão e atuava na escola pesquisada havia 2 (dois) anos por contrato temporário;
· Educadora Sofia: surda, graduanda em Licenciatura em Letras-Libras, possuía 1 (um) ano de profissão e atuava pelo mesmo período na escola pesquisada por contrato temporário;
· Educadora Silvana: surda, graduada em Licenciatura em Letras-Libras, especialista em Libras, possuía 26 (vinte e seis) anos de profissão e atuava na escola pesquisada havia 9 (nove) meses por contrato temporário;
· Prof.ª Paola: ouvinte, graduada em Pedagogia e especialista em Psicopedagogia, possuía 3 (três) anos de profissão e atuava na escola pesquisada havia 2 (dois) anos por contrato temporário;
· Prof.ª Priscila: ouvinte, graduada em Pedagogia e especialista em Psicopedagogia, possuía 11 (onze) anos de profissão e atuava na escola pesquisada havia 8 (oito) anos por concurso público efetivo;
· Prof.ª Paulínia: ouvinte, com formação em Ensino Médio com habilitação em Magistério, graduada em Recursos Humanos e graduanda em Pedagogia, possuía 19 (dezenove) anos de profissão e atuava na escola pesquisada havia 2 (dois) anos por concurso público efetivo;
· Prof.ª Pâmela: ouvinte, graduada em Pedagogia e em Serviço Social, especialista em Educação Infantil e Séries Iniciais e mestra em Linguística, possuía 10 (dez) anos de profissão e atuava na escola pesquisada havia 3 (três) anos por concurso público efetivo.
Os dados foram coletados por meio de entrevistas semiestruturadas, utilizando um roteiro com perguntas abertas que focavam questões relacionadas ao trabalho pedagógico surdo na escola regular. As entrevistas foram realizadas, individualmente, com as educadoras surdas em Libras e com as ouvintes em Língua Portuguesa. Consideramos a entrevista uma importante técnica por ser uma arena de significados (Silveira, 2007).
Após a coleta, foram realizadas a ordenação e classificação dos dados. A análise foi norteada pela pesquisa qualitativa (Denzin; Lincoln, 2006), articulando os dados empíricos com os referenciais teóricos dos Estudos Surdos em interface com os Estudos Culturais da Educação. As etapas só foram realizadas após os trâmites serem aprovados por um Comitê de Ética em Pesquisa.
A opção teórica pelos Estudos Surdos se deu pela base epistemológica em que eles se inspiram, a dos Estudos Culturais. Os Estudos Culturais são um campo tipicamente interpretativo, avaliativo e de perspectiva crítica, focalizando as questões culturais e argumentando que todas as práticas humanas precisam ser investigadas em relação a outras, considerando as estruturas histórico-sociais e discursivas (Nelson; Treichler; Grossberg, 2013), portanto, uma potente ferramenta teórica para problematização das formas de incorporação do trabalho pedagógico surdo na escola regular.
De acordo com Costa (2005), no que tange à Educação, os Estudos Culturais possibilitam ampliar a noção de educação, de pedagogia e de sujeitos envolvidos nos processos educacionais, buscando compreendê-los a partir dos discursos proferidos e das relações de poder existentes. Eles ressignificam, assim, o campo pedagógico a partir de categorias, como cultura, identidade, diferença e alteridade. Por isso, eles podem ser considerados um campo propício às problematizações sobre a escola regular para as pessoas surdas, constituídas pelo discurso e pela prática, como têm mostrado algumas pesquisas brasileiras (Wortmann; Costa; Silveira, 2015). Com essa inspiração teórico-epistemológica nos Estudos Culturais da Educação, é possível um profícuo diálogo com os Estudos Surdos.
De acordo com Skliar (2013, p. 5), os Estudos Surdos podem ser descritos como um “programa de pesquisa em educação, pelo qual as identidades, as línguas, os projetos educacionais, a história, a arte, as comunidades e as culturas são compreendidos a partir da diferença, a partir do seu reconhecimento político”. Eles podem ser compreendidos como um território investigativo em educação que problematiza questões que historicamente não eram interpeladas, sobretudo no que concerne às representações dominantes, hegemônicas, homogêneas e ouvintistas sobre as pessoas surdas, abandonando, assim como fazem os Estudos Culturais, as metanarrativas modernas, tais como as que consideram a surdez uma deficiência, passando a ser interpretada como uma diferença cultural e política (Skliar, 2013).
Responsabilidades didático-pedagógicas em sala de aula
À luz dos Estudos Culturais da Educação e dos Estudos Surdos, consideramos que um sistema escolar que implemente processos inclusivos, nos quais a diferença surda é considerada, a língua de sinais não é apenas tolerada, mas aceita, respeitada e valorizada (Skliar, 2013). A nosso ver, ela tem sido tolerada não porque educadoras(es) ouvintes em geral não a dominam, mas porque as responsabilidades didático-pedagógicas têm sido terceirizadas, sob a justificativa da ausência de formação, especialmente em língua de sinais.
Em contrapartida, uma das narrativas da Professora (Prof.ª) Pâmela revela que, apesar do recorrente discurso de falta de formação, muito comum para justificar o fracasso educacional das pessoas surdas (Skliar, 2013), o interesse pela língua do Outro surdo também nem sempre é presente, o que dificulta a construção de uma educação mais inclusiva para as pessoas surdas:
Eu não tenho curso de Libras, assim, eu acho que vai muito do interesse, não é uma área que... Que tem área que causa aquela motivação para você, para se aprofundar. No meu caso, eu não tenho muita motivação para aprender Libras, então eu sinto mais dificuldade para isso, procuro ler, procuro saber o que posso fazer de diferenciado por ele, mas é difícil (Prof.ª Pâmela - ouvinte).
A fala dessa professora ouvinte ilustra que a língua de sinais, embora já se apresentasse como uma demanda em sala de aula, não ocupava um lugar no centro de interesse de alguns profissionais que estão em atividade. Isso fica evidente quando a professora afirma que não possuía interesse em aprender a língua e que, quando foi cobrada pela mãe de uma criança surda, mostrou que seu papel naquele espaço era ensinar português, não Libras.
O desinteresse docente, no entanto, mostra a face excludente da realidade da escola regular, em relação à presença das pessoas surdas. Segundo o que Dorziat, Araújo e Soares (2017, p. 44) revelam, “o desconhecimento de Libras como fator fundamental para o desenvolvimento dos surdos é o primeiro sinal de que a escola não tem desenvolvido trabalho de qualificação dos professores, com foco nas diferenças”. Seja por qual for o motivo (desinteresse, falta de tempo, ausência de políticas de formação docente e continuada etc.), a educação das pessoas surdas, por meio da língua de sinais, tem ficado muito mais a cargo das(os) intérpretes de Libras. A escola regular, dessa forma, pode estar subalternizando a educação das pessoas surdas por meio de uma língua e um currículo voltados para um tipo de ouvinte, afinal, também não estão voltados para todas(os) as(os) ouvintes.
Para pessoas surdas adultas em universidades, por exemplo, o uso de intérpretes de Libras é mais adequado, pois elas já dominam a língua e acompanham os conteúdos curriculares de forma mais equânime com ouvintes. Já as crianças surdas, que muitas vezes chegam à escola sem uma base linguística consolidada, precisam primeiro de uma educação bilíngue, idealmente com educadores(as) surdos(as), como defende Romário (2018), para adquirir sua primeira língua, dando base para a aprendizagem da segunda com condição de aprenderem os conhecimentos escolares. Nesse contexto, o papel do(a) intérprete como mediador(a) da comunicação é questionável. Para Quadros (2004, p. 62):
Nos níveis mais iniciais, o intérprete estará diante de crianças. Há uma série de implicações geradas a partir disso. Crianças têm dificuldades em compreender a função do intérprete puramente como uma pessoa mediadora da relação entre o professor e o aluno. A criança surda tende a estabelecer o vínculo com quem lhe dirige o olhar. No caso, o intérprete é aquele que estabelece essa relação. Além disso, o intérprete deve ter afinidade para trabalhar com crianças.
Isso expõe também o fato de que a escola regular parece ainda não ter compreendido o que é a língua de sinais, isto é, língua carregada de sentidos e significados, pela qual as pessoas surdas não só a produzem, mas também aprendem por meio dela. A ausência de discussões desse tipo tem corroborado a inserção da língua de sinais no currículo como um mero recurso pedagógico (Dorziat, 2009). Práticas pedagógicas implementadas dessa forma evidenciam a falta de cuidado com as diferenças surdas no currículo, com efeitos nocivos para a escolarização das pessoas surdas. A esse respeito, Dorziat (2009, p. 56) alerta quanto à seguinte realidade:
As iniciativas que tornam a LS [Língua de Sinais] recurso pedagógico, assim como muitas outras no âmbito educacional, que destacam o discurso do respeito às diferenças com a abertura das escolas para receberem os excluídos são simplificadoras e superficiais, são construídas sobre realidade que não oferece condições de atendimento às necessidades educativas, nem daqueles que já frequentam as escolas.
Nessa perspectiva, ainda que possam estar mais abertas à língua de sinais, tais práticas se baseiam no discurso da diversidade, “essencializando” o grupo de pessoas surdas e separando momentos específicos para contemplar suas demandas. Elas não consideram que essas pessoas e sua língua fazem parte do processo curricular e que, por isso, precisam ser levadas em consideração. Se o currículo não incorpora as diferenças, entre elas a diferença surda, em toda a sua singularidade cultural, ele mantém práticas excludentes e concepções hegemônicas. Diante dessa situação, foi importante saber de que forma as(os) profissionais que atuavam na educação das pessoas surdas assumiam suas responsabilidades, levando em consideração fatores, como a formação em língua de sinais. Estaria a escola incorporado o trabalho pedagógico surdo como um mecanismo de valorização da diferença surda ou de compensação às suas fragilidades linguísticas e pedagógicas?
A seguir, trazemos algumas narrativas de profissionais (surdas e ouvintes) que trabalhavam na mesma sala de aula e que discorreram sobre suas responsabilidades.
A minha responsabilidade é desenvolver um aluno surdo, eu não quero que ele fique diminuído, eu quero desenvolver mais para ele aprender melhor. No caso, a minha aluna, ela não conseguia aprender. Aí fui ajudando e desenvolvendo e aí ela foi desenvolvendo, aprendendo melhor com as imagens, aí as palavras ela foi conseguindo entender. No caso, como eu antes falei, no “BO, o que é B, O, L, A”? Aí ela conseguiu entender o que é isso aqui, bola e aí ela começou a desenvolver. Acho bom desenvolver (Educadora Sofia - surda).
O meu papel é tentar ensinar a ela alguma coisa. Acho que meu papel com [nome da aluna surda] foi fazê-la querer ficar na escola, no princípio, ela relutou bastante e não queria ficar, hoje [nome da aluna surda] vem pra escola com prazer, ela gosta, ela participa, faz as atividades. O meu papel como professora é educá-la, ensiná-la. Tenho, eu acho que eu tenho [abdicado de suas responsabilidades didático-pedagógicas, deixando-as a cargo da educadora surda]. Eu estou com dificuldade agora na questão da leitura, porque estou começando ensinar a juntar famílias, aí como é que eu vou fazer isso com ela? Como é que [nome da aluna surda] vai fazer as primeiras palavras? Aí até Sofia: “não, ela não vai falar a palavra, ela vai falar as letras e depois vai identificar por imagem”, aí essa parte, realmente, eu estou um pouco perdida porque eu não sei como fazer com ela. Mas aí Sofia vai dar um suporte nessa questão, a questão de leitura né, que ela precisa aprender a ler, eu estava perguntando: as crianças juntam sílabas e como é o processo de uma criança surda? Ela junta as sílabas? Não, ela vai saber as letras. Sofia é meu braço direito nessa parte aí, que fica diretamente com ela porque eu tenho 20 alunos, passando atividade, Sofia tá lá do lado dela, explicando e dando todo o apoio pra [nome da aluna surda] (Prof.ª Priscila - ouvinte).
É possível perceber que a Prof.ª Priscila sentia certa angústia em ter que assumir a responsabilidade de educar uma aluna surda. Parece que esse sentimento se dava, especialmente, pela ausência de conhecimentos pedagógicos no que diz respeito ao processo educacional de uma criança surda. Por que a professora se sentia perdida em educar a criança surda? Seria pela falta de conhecimentos relacionados às pessoas surdas e sua educação?
Estudos têm demonstrado o desconhecimento da escola em relação às pessoas surdas e sua escolarização, como apontado por Lacerda (2006, p. 175), ao afirmar que os “depoimentos relevam ainda que tanto a escola quanto os professores conhecem muito pouco sobre a surdez e suas peculiaridades, não compreendendo adequadamente o aluno surdo, sua realidade e suas dificuldades de linguagem etc.”.
Talvez seja o sentimento de que a diferença causa estranhamento e reações de distanciamento que expliquem o discurso da Prof.ª Priscila. Ela naturaliza o fato de ter 20 (vinte) estudantes ouvintes e conseguir trabalhar com elas(es), ou seja, a quantidade não representava dificuldade, porque era possível padronizar e homogeneizar as práticas, seguindo um parâmetro de normalidade. Não havia questionamento sobre o trabalho com ouvintes, porque o conceito de normalidade era tão natural que a impedia de enxergar as diferenças existentes nesse padrão. Como o exercício de uma prática pedagógica que inclua as diferenças no seu trabalho inexistia, a(s) diferença(s) marcada(s) se tornava(m) um problema. Por isso, também, a aluna surda representava um peso maior para ela. É possível inferir, com isso, que não era apenas o desconhecimento da diferença linguística e dos procedimentos didático-pedagógicos que limitavam a inclusão dessas crianças, mas também o conceito subjacente às práticas pedagógicas já existentes na escola.
Em um contexto inclusivo, não obstante a escola ser um espaço de contestações, significações e permeado por relações de poder, que são ressignificadas a cada nova relação social, a valorização das diferenças de todos os sujeitos torna a perspectiva pedagógica um pouco mais inclusiva, pois pode representar o começo do encontro que agrega os sujeitos, evitando uma prática totalmente separatista como regra.
Assim como Klein e Lunardi (2006), entendemos que cultura surda e ouvinte não devem ser vistas como opostas, mas é essencial que as práticas pedagógicas considerem as singularidades surdas, especialmente na alfabetização. A professora ouvinte questionou como ensinar uma língua que não era a da criança surda, evidenciando as diferenças nos processos de alfabetização. Isso reforça a necessidade de repensar a formação docente, que ainda se baseia em estratégias padronizadas, excluindo estudantes com formas distintas de aprender, como no caso analisado, que exigiu apoio de outras(os) profissionais.
Segundo o que a Prof.ª Priscila relata, Sofia era o seu “braço direito”, reconhecendo ficar perdida no processo de alfabetização da criança surda, recorrendo diretamente ao trabalho da profissional surda. Sofia, apesar de que ainda estava passando por um processo de formação docente, como graduanda em Licenciatura em Letras-Libras, parecia conhecer melhor como era a alfabetização de uma criança surda. Logicamente, o fato de ser surda dava-lhe essa percepção melhor, porém, em comparação com a colega ouvinte, esta deveria ter melhores ferramentas pedagógicas, visto que já era formada em Pedagogia. Priscila indicou, e Sofia ratificou, que a metodologia da educadora surda se baseava na experiência visual da criança surda, distanciando-se do método puramente fônico, que, para as crianças surdas, historicamente tem sido frustrante, especialmente quando a língua de sinais não está minimamente associada. Além desse aspecto, vale destacar as narrativas em torno das responsabilidades que ambas as profissionais assumiram possuir. Apesar de que, oficialmente, a responsabilidade de ensinar, educar e avaliar fosse da Prof.ª Priscila, e assim ela expôs, parece que essas tarefas ficavam muito mais sob a responsabilidade de Sofia.
Quando Sofia discorreu sobre sua responsabilidade, afirmando que esta deveria ser a de “desenvolver um aluno surdo”, e quando acentuou, por meio de pronome possessivo, que a sua aluna foi desenvolvendo-se, aprendendo, com sua ajuda, ela enfatizava a sua importância naquele processo pedagógico. Priscila, por sua vez, ao dizer que Sofia ficava diretamente com a aluna surda, explicando e dando todo apoio à criança, porque ela possuía 20 (vinte) alunas(os), como se a menina fosse alguém à parte, ratificava que Sofia é quem estava assumindo a responsabilidade de “desenvolver” a aluna. Sobre essa questão, Freire (2014, p. 90) apresenta a seguinte afirmação:
A segurança com que a autoridade docente se move implica uma outra, a que se funda na sua competência profissional. Nenhuma autoridade se exerce ausente desta competência. O professor que não leva a sério sua formação, que não estude, que não se esforce para estar à altura de sua tarefa não tem força moral para coordenar as atividades de sua classe. [...]. O que quero dizer é que a incompetência profissional desqualifica a autoridade do professor.
Se nos basearmos estritamente nessa citação de Freire, a competência pedagógica da professora, na situação exposta, pode ser colocada em dúvida. No entanto, é preciso realizarmos uma análise mais ampla sobre essa questão, entendendo que há uma gama de elementos que compõem esse complexo cenário educacional. Os processos educacionais, na maioria das vezes, são vistos como de responsabilidade principal das(os) professoras(es). A qualidade da educação quase sempre é atribuída ao corpo docente. Souza e Góes (2016) afirmam que as(os) professoras(es) se frustram, se preocupam, se acomodam ou resistem de diversas maneiras. Os meios de comunicação, segundo o que as referidas autoras informam, são bem atentos em relação ao corpo docente, alternando suas análises basicamente em 2 (dois) ângulos: ora apontando seus baixos salários e a escassez de recursos materiais para o trabalho na escola, ora destacando o seu despreparo e a sua incompetência, sem realizar uma análise que estabeleça uma relação entre eles e os condicionantes mais e menos fortes da realidade educacional (Souza; Góes, 2016).
Nessa perspectiva, é preciso compreender que os problemas que envolvem a educação são condicionados por elementos econômicos, sociais, culturais e políticos em uma estrutura na qual “[...] o professor é o produto, ele mesmo, de um ritual de escolarização sem qualidade” (Souza; Góes, 2016, p. 167). As(Os) professoras(es) são uma “peça (importante) da engrenagem” do sistema educacional que conduz os processos educacionais, mas não é a única. Assim, análises que tomam apenas o corpo docente como responsável pelos problemas educacionais, acabam “isentando de responsabilidade o sistema, e colaborando para sua perpetuação” (Souza; Góes, 2016, p. 167).
Os problemas que envolvem a educação de pessoas surdas são reflexos dessa complexidade que constitui a educação como um todo. A formação docente é apenas um desses problemas, que se soma a investimentos insuficientes na educação, a uma política educacional que não assume como pilar uma política de alteridade, a práticas escolares que tomam as diferenças apenas como um tema, a um currículo engessado de vertente homogeneizadora, a relações de poder que constituem todas as relações sociais etc. Contudo, não podemos deixar de considerar que, apesar de as(os) professoras(es) serem uma “peça da engrenagem” do sistema educacional, suas práticas culturais representam, de diversas formas, a partir de diferentes concepções pedagógicas, o conjunto dos elementos que constitui o sistema educacional, pois são elas(es) quem estão se relacionando diretamente com as(os) alunas(os), por conseguinte, com as diferenças.
Embora não seja a única responsável, a formação é um quesito fundamental para a promoção da inclusão. Por isso, por mais que os problemas não se restrinjam ao trabalho docente, as(os) professoras(es) precisam assumir uma postura de responsabilidade na escolarização dos sujeitos surdos, seja em termos formativos, seja na prática pedagógica. Nos relatos a seguir, vê-se como as profissionais – surda e ouvinte – têm visto as suas responsabilidades com as crianças surdas:
Minha responsabilidade é com o surdo, estar com o surdo ensinando Libras. Já a da professora, ela manda, é de mandar em todos, surdos, ouvintes, a responsabilidade é dela. A minha o foco é só Libras com o surdo, ajudar com o surdo, só. Porque ela explica, está lá oralizando, escreve os temas, está lá explicando, é diferente. Quando tem a prova ela me manda e eu organizo para que eu possa ajudar o aluno surdo, então eu organizo em Libras (Educadora Silvana - surda).
Vou te dizer que ela faz tudo [Silvana], porque para [nome do aluno surdo], ela é uma professora. Eu dou a atividade, ela passa tudo para ele na língua que ele tem que aprender porque eu não tenho o preparo ainda para isso, eu estou estudando. Então, ela vai lá, senta, fala para ele o que ele tem que fazer, em Libras, e ele já entende quando ela fala, aí que papel ela está exercendo? É o de professora (Prof.ª Paulínia - ouvinte).
A narrativa da educadora surda Silvana mostra que o seu foco pedagógico era a criança surda, ensinando Libras. Quando a criança passava por avaliações, o seu trabalho era o de adaptá-las à Libras. Embora seja possível perceber que o processo inicial de planejamento fosse da professora ouvinte, era Silvana quem dava sequência a ele, de acordo com a diferença linguístico-cultural da criança surda. Mesmo quando Silvana dizia que a professora ouvinte desempenhava um papel fundamental no processo de ensino, esse papel parecia estar voltado quase que unicamente para as crianças ouvintes, ficando sob sua responsabilidade os processos de ensino da criança surda.
Parece que a inserção dessas profissionais tinha por objetivo suprir as necessidades da escola regular, em termos práticos, mas, ao mesmo tempo, não dava a elas autonomia plena para planejar suas aulas e ensinar os conteúdos necessários em termos de língua de sinais ou outros. Em alguns momentos, porém, parece que isso acabava por ocorrer, por iniciativa delas(es) mesmas(os), mas os conteúdos escolhidos pelas professoras ouvintes também não eram dispensados. Afinal, o que as educadoras surdas deveriam ensinar? Nesse contexto, a educadora surda parecia desenvolver um trabalho de professora auxiliar.
A situação em análise evidencia que o trabalho pedagógico desenvolvido pela educadora surda era quase que de responsabilidade plena, em diferentes frentes pedagógicas, no que concerne à educação das crianças surdas, no entanto, sob a vigilância das professoras ouvintes. A narrativa da professora ouvinte, Paulínia, atesta isso de forma contundente, esclarecendo as responsabilidades assumidas por cada uma em sala de aula.
Pelas narrativas, é possível perceber também que o trabalho pedagógico implementado pela educadora surda compreendia um ensino voltado para as diferenças da criança surda. A língua de sinais era o seu principal foco. O ensino de língua de sinais para a criança surda apresentava ganhos inquestionáveis. Ao manter educadoras ouvintes como responsáveis pela escolarização das crianças surdas, mesmo sabendo que de fato quem desenvolvia o trabalho pedagógico com as crianças surdas eram as educadoras surdas, não era uma forma de a escola regular manter as velhas concepções da política inclusiva? Não era uma maneira de mascarar a potencialidade da língua de sinais e da referência cultural surda? Isso tudo para não reconhecer as fragilidades apresentadas pela escola? São perguntas que dão pistas para a compreensão do que vinha ocorrendo naquele contexto. Buscamos aprofundar a discussão sobre as responsabilidades nos processos educacionais:
Sim [estava se desresponsabilizando pela educação da criança surda]! Por questão de sanidade mental (risos). Não é uma boa justificativa, mas é isso. Eu agi meio assim, que eu lavei minhas mãos porque eu falei com a responsável da educação especial, ela disse: “não se preocupe, porque isso não é responsabilidade sua, ele vai ficar na sala, mas é pra ser alfabetizado em Libras”. [...] Tem as xerox, Sabrina só tem a xerox pra trabalhar com ele e eu não vou endoidar, não, não vou me estressar, não, aí eu realmente me omiti. É que também não tem muito o que fazer porque é, assim, uma situação dialética, porque é se omitir porque não estou fazendo além, mas, por outro lado, também não é se omitir porque eu não tenho as ferramentas necessárias. É como se quisessem que eu consertasse essa lâmpada com nada, olha a altura dessa lâmpada. [...] ela participa do meu [trabalho], ajudando, mas eu não participo muito no dela orientando, então, eu posso dizer que ela me ajuda muito mais do que eu a ajudo” (Prof.ª Paola - ouvinte).
Não, ela nunca chega perto de mim, nunca me dá nada, eu quem chego perto e pergunto a ela o que eu dou para ele, o que vai passar para ele e ela não passa nada. Ela não tem estratégia, ela não procura no Google, ela não vai pesquisar. Eu acredito que ela tem preguiça, não faz nada, até coisas simples. Eu digo a ela: “é simples, usa uma estratégia que dê para atingir ele”, mas difícil, ela não quer. Aí eu sozinha, pego atividades em relação a Libras [...] (Educadora Sabrina - surda).
As narrativas das profissionais são mais um exemplo flagrante dos processos educacionais que vinham ocorrendo nas escolas da cidade de João Pessoa. Um dos aspectos a serem destacados é o fato de a Prof.ª Paola afirmar que a pessoa responsável pela educação especial no sistema educacional municipal a desresponsabilizou da educação da criança surda, tendo em vista que ela iria ser alfabetizada em Libras pela educadora surda. A profissional, assim, parecia compreender a importância de a criança, que não dominava a língua de sinais, ter a aquisição da linguagem para que pudesse a posteriori se desenvolver em outros conteúdos escolares. Entretanto, novamente questionamos: se ela estava inserida em uma turma na qual os conteúdos para ouvintes são diferentes, a escola estaria promovendo de fato um processo inclusivo?
Essas atitudes do sistema escolar pessoense parecem ser em resposta a um reconhecimento de que as ações pedagógicas ditas inclusivas com crianças surdas, nas quais predominam os sujeitos ouvintes, não têm funcionado. Sendo assim, o referido sistema cria estratégias, por meio das educadoras surdas, para compensá-las, mas ao mesmo tempo o faz sem abalar a sua estrutura, sem problematizar a política inclusiva, os discursos que constituem a escola e as práticas implementadas. Dorziat (2009, p. 64) afirma que “embora essas escolas tratem sobre temas como igualdade e solidariedade, continuam [...] sua trajetória de apagamento das diferenças, por meio de formas subliminares de invisibilidade do outro nos currículos escolares”.
Chama atenção o papel da professora ouvinte quando a escola se propõe a ensinar apenas Libras como primeira língua (L1) à criança surda. Segundo Paola, apesar de incluídas em turmas regulares, as crianças surdas estavam sob responsabilidade quase exclusiva das educadoras surdas, tanto no cuidado como no ensino. Diante das dificuldades, Paola admitiu ter se omitido por não ter formação pedagógica, linguística e cultural adequada. Sua fala revela que a responsabilidade pela educação da criança surda foi indevidamente centralizada na educadora surda, expondo a fragilidade da inclusão e a omissão docente como reflexo da falta de preparo das escolas para atender essas crianças de forma integral. Ao reconhecer sua omissão, ela evidenciava a consciência de que a educação da criança surda exige mais do que o ensino de Libras e não pode recair unicamente sobre a educadora surda. Tal omissão escancara a complexidade da escolarização de crianças surdas em contextos regulares, onde barreiras linguístico-culturais afastam docentes de suas responsabilidades, transferindo-as a outros profissionais da escola.
A analogia da lâmpada que Paola fez demonstra que esse processo educacional com a criança surda, para ela, representava algo muito difícil, quase inalcançável, longe de suas condições pedagógicas. Apesar de todas essas questões, qual o compromisso político-pedagógico que as professoras têm assumido com a educação que engloba todas as pessoas? A desresponsabilização tem sido a opção das(os) professoras(es) para com as crianças surdas? Diria Freire (2014, p. 94) que “[...] não é possível exercer a atividade do magistério como se nada ocorresse conosco. Como impossível seria sairmos na chuva expostos totalmente a ela, sem defesas, e não nos molhar”. O fato de Paola eximir-se do processo escolar de sua aluna mostra que a educação das crianças surdas parece que tem sido um problema. Antes, ainda que não assumidamente, o papel docente, muitas vezes, era delegado às intérpretes ouvintes de Libras. Porém, com essa nova configuração dos papéis nas escolas regulares de João Pessoa, essa função passou a ser delegada às educadoras surdas.
A narrativa da educadora surda, Sabrina, confirma o que a própria Prof.ª Paola já reconhecia: o trabalho pedagógico com a criança surda recaía inteiramente sobre ela. Sabrina expressava insatisfação com essa situação e cobrava uma postura mais ativa da professora ouvinte, pois sabia que, oficialmente, a responsabilidade pedagógica não era sua. Na análise dos papéis na sala de aula regular, percebe-se que, no plano formal, a educadora surda era tratada como apêndice da atuação da professora ouvinte. No entanto, na prática, seu trabalho se tornava central, assumindo a condução dos processos educacionais da criança surda, enquanto o papel da professora ouvinte se tornava secundário. Quando a Prof.ª Paola afirma que havia “lavado suas mãos”, ela confirma a denúncia de Sabrina sobre a solidão de seu trabalho.
É possível inferir que a configuração do trabalho pedagógico na escola regular, nos moldes em que se desenhava, acabava por gerar certa comodidade em algumas professoras ouvintes, porque, embora elas justificassem suas ações pela falta de formação, por ausência de suporte, entre outras justificativas, parece que não havia uma busca para compreender as diferenças surdas. O caminho mais cômodo era o de trabalhar de forma homogênea com as crianças ouvintes e deixar as crianças surdas sob a responsabilidade das educadoras surdas, como pode ser percebido nas narrativas a seguir:
[...] para o surdo é diferente, porque já é o meu trabalho, é uma responsabilidade minha ajudar ele. É só uma aluna surda. [...] Não, ela ensina, mas ela ensina para todos, tem os alunos ouvintes e uma aluna surda. Quando eu estou junto lá, ela vai explicando, e tudo que ela explica, eu vou ensinando. Vou ensinando porque a aluna precisa aprender. Se só ela ensinar, ela não vai entender. Tudo que ela explicar, eu vou ensinando, se o tema não combinar, ela sempre fala, a professora, faz outra atividade adaptada para ela, aí você ensina (Educadora Sofia - surda).
Nesse caso, eu estou transferindo [a responsabilidade de ensinar] realmente, porque eu não sei. Como é que eu vou ensinar isto, se eu não sei? Então quem vai me dar esse apoio é ela, porque eu realmente não sei, eu perguntei a ela, a gente sempre sentou pra conversar sobre isso porque eu [...] “meu Deus, como é que ela vai fazer?” Porque quando tá nas letrinhas, tudo bem, então, ela identifica as letras do alfabeto por sinais, agora na junção pra ler, aí realmente eu não sei (Prof.ª Priscila - ouvinte).
A narrativa de Sofia demonstra que, em sua visão, a sua responsabilidade estava bem definida. Ela assumia a responsabilidade de ensinar a criança surda. Ela também deixou claro que, a partir das explicações da professora ouvinte, ia ensinando a criança surda; até mesmo a professora sugeria que ela adaptasse de outra forma as atividades quando o tema era diferente do que ela estava ensinando para a turma. O trabalho pedagógico se tornava dicotômico, ou seja, teoricamente as responsabilidades pedagógicas eram da profissional ouvinte e, na prática, tais responsabilidades recaíam sobre a educadora surda. A professora ouvinte talvez representasse muito mais o papel de uma supervisora pedagógica do que o de professora. No entanto, por desconhecimento, segundo o que ela mesma chegou a revelar, nem supervisionar conseguia.
Priscila, apesar de dizer que Sofia era um apoio para ela, assumiu que estava “transferindo realmente”, porque não sabia ensinar a criança surda. O processo de alfabetização da criança surda, por exemplo, para ela, era um desafio. Embora a criança o fizesse por meio da educadora surda, utilizando Libras, a professora não tinha a menor ideia de como fazer com que a criança avançasse. Parece que o fato de a criança estar iniciando a sua alfabetização em língua portuguesa por meio da língua de sinais tornava-se ainda mais complexo para a professora ouvinte, fazendo com que ela se afastasse do processo, deixando-o de fato para a profissional surda.
A situação exposta ilustra os processos escolares que envolvem as crianças surdas nas escolas regulares, transparecendo que muito pouco se avançou no que diz respeito a incluir a diferença surda. Diferentemente do que muitas pessoas acreditam, a inclusão de pessoas surdas não envolve apenas a formação em língua de sinais, embora ela seja critério fundamental.
Considerações finais
É perceptível que havia certa angústia nas educadoras ouvintes em ter que assumir a responsabilidade de educar estudantes surdas(os). Isso parecia ocorrer, sobretudo, por não terem conhecimento no que diz respeito ao processo educacional desses sujeitos, principalmente em termos linguísticos. Aliás, era nítido também que a responsabilidade didático-pedagógica ficava praticamente toda para as educadoras surdas.
Ao assumirem essa responsabilidade, é possível perceber que o trabalho das educadoras surdas em sala de aula estava sendo mais bem direcionado para uma pedagogia que considera a diferença surda, certamente porque elas conhecem o universo cultural surdo, tendo em vista que é o seu próprio universo. Com isso, também, as responsabilidades delegadas oficialmente às educadoras ouvintes regentes em sala de aula regular acabaram sendo transferidas para elas. No entanto, se olharmos somente pelo ângulo oficial, o papel das educadoras surdas torna-se, nessa situação, uma espécie de apêndice ao trabalho das educadoras ouvintes, porque, embora elas fossem quem de fato estava ensinando as crianças surdas, eram as ouvintes que respondiam legal e oficialmente pela sua educação formal. Isto é, além de tudo, o trabalho pedagógico surdo era invisibilizado.
Consideramos que a escola regular encontrou no trabalho pedagógico surdo uma possibilidade de suprir as fragilidades que apresenta e que as práticas dentro das escolas regulares demonstram, aos próprios sujeitos que fazem a escola, que a inclusão das pessoas surdas nesse modelo escolar não tem funcionado.
As narrativas apontam para a ideia de que havia uma fragilidade importante, que, a nosso ver, levava à busca pelo trabalho pedagógico surdo: a ausência de um currículo previsto para as(os) alunas(os) surdas(os). A estrutura da escola parte do pressuposto de que há um tipo de aluna(o) ideal, que deveria corresponder a bases culturais hegemônicas. Portanto, é preciso, no mínimo, que a escola regular repense suas práticas e o trabalho pedagógico que vem desenvolvendo.
O reconhecimento da singularidade das experiências surdas exige mais do que ajustes pontuais: demanda uma reconfiguração profunda da escola, suas práticas, seu currículo e da política educacional para pessoas surdas que ela implementa. Nesse horizonte, o trabalho pedagógico surdo, em uma escola condizente com a diferença surda, não deve ser compensatório, mas um caminho legítimo e necessário para a construção de uma escola equânime, plural e, sobretudo, humana.
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[1] A variação de gênero adotada no texto expressa uma escolha político-linguística alinhada à inclusão e à visibilidade das identidades de gênero na perspectiva dos Estudos Culturais.
[2] Ouvintismo significa as representações de ouvintes, que tentam forçar as pessoas surdas a se olharem e narrarem a si mesmas como deficientes, anormais, não ouvintes, reafirmando práticas terapêuticas, clínicas e reabilitadoras (Skliar, 2013).
[3] A pesquisa de tese de doutorado foi desenvolvida com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES) - Código de Financiamento 001.
[4] A problematização em torno dessa atribuição pode ser conferida no escopo da tese completa.