Apresentação:
contextos de transversalidade da educação especial no Ensino Superior com foco na inclusão escolar
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil
haascla@gmail.com
Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil
edpantaleao@hotmail.com
Com a intensificação mundial dos movimentos sociais das pessoas com deficiência e o fortalecimento do campo dos estudos sociais da deficiência, tal experiência humana deixa de ser vista no âmbito do privado e passa a ser pauta das políticas públicas (Oliver, 2009; Diniz, 2007).
Deste modo, a historicidade em que a Educação Especial no Ensino Superior vem se constituindo nos últimos 20 anos é fruto de um processo mais longo desencadeado em âmbito mundial que culminou em reformas de políticas públicas direcionadas para os diferentes níveis, etapas e modalidades da educação. Nesse período histórico, diversos países, inclusive o Brasil, firmaram acordos internacionais que motivaram reformas educacionais provocando alteração em suas legislações e políticas públicas. Os Estados Partes assumiram a responsabilidade de assegurar às pessoas com deficiência o acesso aos processos de escolarização na Educação Básica com a projeção para o Ensino Superior.
No caso brasileiro, considerando a transição do século 20 para o século 21 e a implementação de um conjunto de diretrizes políticas e iniciativas governamentais em prol da inclusão escolar, observamos uma significativa expansão de matrículas do público-alvo da educação especial na educação básica, no âmbito do ensino comum. Por sua vez, esses estudantes têm ocupado os distintos espaços educacionais que lhe são de direito e têm chegado ao ensino superior.
Conforme Censo Escolar do Ensino Superior - Ano 2022 - são 79.262 alunos matriculados nos cursos de graduação no país e que declararam algum tipo de deficiência. Considerando que a edição 2022 do Censo Superior alcançou o marco de 9.443.597 matrículas de graduação, as matrículas declaradas dos estudantes com deficiência representam 0,83%. Ao analisarmos tais indicadores de modo longitudinal, observamos que em 2003 eram apenas 5078 pessoas com deficiência matriculadas na universidade, portanto, em uma média de 20 anos, as matrículas se ampliaram em mais de 13 vezes (INEP, 2024).
Com relação às tipologias de deficiências, o Censo do Ensino Superior - Ano 2022 - confirma que “Os três tipos de declaração mais mencionadas (e que juntas respondem por mais de 70,0% do conjunto) são deficiência física (34,8%), baixa visão (26,1%) e deficiência auditiva (10,3%)”. (INEP, 2024, p. 29). Os indicadores do Censo Escolar do mesmo ano também revelam que a maior parte dos estudantes com deficiência que ingressaram na universidade não acessaram a política de reserva de vagas. Em 2022, ingressaram 2.329 estudantes com deficiência mediante programa de ações afirmativas, o que equivale a 1,1% do total de matrículas por reserva de vagas (INEP, 2024).
Portanto, ainda que em proporções pequenas, o acesso de acadêmicos público-alvo da educação especial no Ensino Superior, presentifica na universidade a perspectiva da educação inclusiva como “um movimento e um paradigma” (Baptista, 2002), à medida que confronta a lógica capacitista e meritocrática na produção do conhecimento científico, presente em grande medida no âmbito universitário, impulsionando a proposição de novas ações capazes de romper com falidos critérios de classificação que prevaleceram durante décadas.
Com o acesso desse grupo de estudantes nas Instituições de Ensino Superior (IES), emerge a necessidade de se construir processos políticos institucionais que garantam a permanência desse público na trajetória universitária mediante uma ética de acessibilidade. Isso significa que mesmo com a ausência ou a inexpressiva presença do/a acadêmico/a com deficiência no ambiente universitário devemos pressupor sua presença, operando, no caso do contexto brasileiro, na eliminação de “barreiras" de toda ordem, a luz do dispositivo legal do “desenho universal” (Brasil, 2009; Brasil, 2015). Esse é um novo desafio que as instituições de ensino superior têm enfrentado no fluxo histórico das políticas públicas desse início do século XXI.
Assim, neste Dossiê intitulado “Contextos de transversalidade da Educação Especial no Ensino Superior com foco na inclusão escolar”, abordamos as políticas de educação especial nos distintos contextos como trajetórias, reconhecendo que o percurso de democratização do acesso da escola comum à universidade envolve muitos desafios éticos, epistemológicos, políticos e pedagógicos, com vistas a assegurar investimentos: na formação acadêmica de pessoas que, historicamente, estiveram à margem das políticas públicas; na universidade como espaço de formação plural; e na educação inclusiva como justiça social.
Nessa perspectiva, assentamos os debates firmados neste dossiê em torno dos seguintes eixos prioritários de análise, os quais tratamos como emergentes para politizar a deficiência na universidade:
· Atendimento Educacional Especializado no Ensino Superior e o papel dos Núcleos de Acessibilidade;
· Ações indissociáveis de ensino, pesquisa e extensão com foco nas práticas pedagógicas inclusivas para a promoção da acessibilidade curricular no ensino superior;
· Trajetórias de estudantes público-alvo da educação especial no ensino superior: acesso e permanência;
· Processos de patologização e medicalização da educação no contexto universitário;
· Formação docente em nível superior para atuação e transformação das escolas em contextos inclusivos.
Trata-se de um desafio de grande envergadura que supõe a constituição de espaços que incentivem o debate sobre a pesquisa e a produção do conhecimento, em particular, na área da educação especial. Nesse sentido, reunimos interlocutores, nacionais e internacionais, vinculados a instituições universitárias nas cinco regiões brasileiras; na América Latina (Chile, México, Colômbia); nos continentes africano (Moçambique) e europeu (Inglaterra), que nutrem as possibilidades de reflexões e debates aqui apresentados.
Assim, iniciamos o dossiê com reflexões que nos auxiliam a compreender as possibilidades e desafios do Atendimento Educacional Especializado no Ensino Superior e sua articulação aos Núcleos de Acessibilidade, por intermédio do texto das autoras Clarissa Haas e Gilvane Belem Correia. As estudiosas aprofundam esse debate mapeando, a partir de estudo exploratório, bibliográfico e documental, as configurações do Atendimento Educacional Especializado nas cinco regiões do país, destacando as “micropolíticas” que insurgem nos contextos investigados, analisando o perfil dos profissionais de referência e as ações institucionais desenvolvidas.
Na esteira da defesa por políticas de permanência, participação e aprendizagem dos estudantes com deficiência na universidade, o segundo e o terceiro texto do Dossiê nos fornecem subsídios para problematizar a prática pedagógica articulada à “acessibilidade curricular como diretriz da ação pedagógica” (Haas, 2021) em contextos universitários nacional e internacional.
Em estudo que trata do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA) como uma potencial ferramenta para reconhecer a diversidade nos itinerários formativos e para eliminar as barreiras associadas ao currículo, as autoras Jacqueline Lidiane de Souza Prais, Samantha Ferreira da Costa Moreira e o autor Eladio Sebastián-Heredero desenvolvem estudo comparado envolvendo contextos universitários das regiões norte e centro-oeste do país em que se debruçam na análise de abordagens educacionais utilizadas no Ensino Superior, sob a ótica do Desenho Universal para a Aprendizagem (DUA).
As pesquisadoras Georgina García Escala e Arlett Krause Arriagada investigam a inclusão de pessoas com deficiência no ensino universitário do Chile, discutindo as estratégias e os apoios pedagógicos propostos em três universidades públicas chilenas para eliminar as barreiras ao currículo acadêmico e ampliar a participação deste grupo de estudantes.
Na sequência, os quatro próximos textos apresentados no dossiê têm como fio condutor as trajetórias de estudantes e docentes público-alvo da educação especial no ensino superior.
A pesquisa de Rosiane Oliveira de Amorim e Neiza de Lourdes Frederico Fumes, cuja base teórica-metodológica é a psicologia sócio-histórica e o posicionamento ativista transformador, orienta-se pelo trabalhar “com” os participantes, sendo um estudo comprometido com o enfrentamento do capacitismo no ambiente acadêmico. Ao dar voz a dez universitários de diferentes idades, deficiências, gêneros e cursos de graduação, a investigação agrega contribuições significativas sobre o necessário investimento nos apoios e nos espaços institucionais que possam incidir efetivamente na expansão da agência de universitários com deficiência na universidade.
A pesquisa de Rafaela Carla e Silva Soares, Leôncio José Gomes Soares e Taísa Grasiela Gomes Liduenha Gonçalves investiga as trajetórias escolares de estudantes com deficiência egressos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) para o Ensino Superior. Por meio de um amplo estudo bibliográfico, os autores atestam a invisibilidade das pesquisas que se dedicam à verticalização da escolarização de pessoas com deficiência: da EJA para o ensino superior. Buscando assentar as análises, de modo prioritário nos referenciais teóricos do campo da EJA, as estudiosas e o estudioso demonstram que, embora o debate sobre as especificidades do público da EJA inscreva tal modalidade na contemporaneidade, a experiência de constituir-se como um estudante egresso da EJA com deficiência não vem sendo contemplada.
As autoras Giovanna Santos da Silva, Erica Daiane Ferreira Camargo e Rosana Carla do Nascimento Givigi desenvolvem uma pesquisa ação-colaborativo-crítica, na qual abordam o acesso, a permanência e a inclusão de estudantes com autismo no ensino superior. Fundamentadas nos estudos de Lev S. Vigotski, as autoras problematizam os processos de estigmatização e a falta de compreensão dos modos de comunicação e de interação desses estudantes pela comunidade universitária, à luz das vivências dos próprios acadêmicos com autismo.
O estudo de Adriana da Costa Barbosa, Reginaldo Célio Sobrinho e Ken Fero também se dedicou à temática do autismo e a ampliação das matrículas desse público no ensino superior. Com base em entrevistas semiestruturadas realizadas com estudantes com autismo, a pesquisadora e os pesquisadores analisam as demandas por apoios e ajustes razoáveis por parte desses estudantes, destacando a resistência deles em revelarem o seu diagnóstico, receosos de serem estigmatizados no âmbito universitário.
Silvia Márcia Ferreira Meletti, Vinícius Neves de Cabral e Jucenir da Silva Serafim são autores do texto que investiga as trajetórias de docentes com deficiência no ensino superior e as condições de trabalho docente oferecidas a esses sujeitos. A pesquisa tem como bases epistemológicas o materialismo histórico e foi desenvolvida a partir dos microdados da Relação Anual de Informações Sociais (RAIS). O conceito de “dialética” tem destaque, nesse estudo, na análise da atuação profissional no ensino superior em transversalidade com marcadores sociais da diferença, tais como, deficiência, raça e gênero.
Abordando os processos de patologização e medicalização da educação no contexto universitário, o novo texto é de Ana Carolina Christofari, Rogério Machado Rosa e Ellen Amaral Chaves. Neste estudo, são destacadas histórias de vida de estudantes em sofrimento psíquico no ensino superior. A medicalização é anunciada como um processo que tem se alastrado em todas as esferas da vida e produz modos de ser sujeito. Sendo assim, para os autores, problematizar o sofrimento psíquico na educação é fundamental para produzir respostas ético-políticas e pedagógicas que acolham as singularidades dos estudantes universitários e reconheçam seu direito à educação e à saúde mental.
Os últimos três textos do Dossiê investigam a formação docente em nível superior para a transformação dos sistemas educacionais inclusivos, em interface com distintas ações formativas, dialogando com contextos nacionais e internacionais.
Lucas de Souza Leite, Edson Pantaleão e Denise Meyrelles de Jesus analisam a literatura brasileira e portuguesa sobre a formação inicial de professores com foco nos processos inclusivos para atuação na educação básica, buscando compreender tendências e tensionamentos nos processos de formação nesses países. Dentre as análises tecidas a partir da produção acadêmica de ambos os países, ganha destaque, sem prejuízo da oferta de disciplinas curriculares específicas, a importância de que a inclusão escolar seja compreendida como uma transversalidade curricular, isto é, como uma responsabilidade compartilhada pelo currículo formativo em sua abrangência, mediante os atravessamentos dos desafios da inclusão escolar com todas as ações do cotidiano da escola.
As pesquisadoras moçambicanas Delfina Benjamim Massangaie da Silva e Quitéria Martins Mabasso analisam, por meio de estudo bibliográfico e documental, as atividades do Curso de Mestrado em Educação Inclusiva ofertado pela Universidade Eduardo Mondlane, em Maputo, tratando-o como uma iniciativa pioneira, cujo objetivo é oportunizar formação para profissionais da educação e áreas afins. Destacam as restritas iniciativas de formação continuada docente acerca da pauta da educação inclusiva no território moçambicano, bem como, a modesta literatura da área sobre o tema na voz de pesquisadores moçambicanos. Discutem a matriz curricular, o perfil dos pós-graduandos e os desafios decorrentes das atividades do Programa de Mestrado em Educação Inclusiva, dialogando com as diretrizes políticas moçambicanas e com as pesquisas nacional e internacional sobre o tema da formação docente para os processos inclusivos.
O texto escrito pela mexicana Alma de los Ángeles Cruz Juárez analisa um programa formativo desenvolvido em uma universidade mexicana para profissionais da educação com o objetivo de promover um modelo educacional bilíngue para a escolarização de pessoas surdas, cujos objetivos são promover o ensino e a interpretação da Língua de Sinais Mexicana (LSM) como primeira língua e desenvolver a base linguística para alfabetização em espanhol como segunda língua. Essa proposta surge alinhada aos marcos políticos legais e normativos do México que incorporam documentos internacionais em defesa da educação inclusiva, tais como, a Convenção Internacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência, em suas diretrizes nacionais.
Em caráter de síntese, os 12 textos que compõem este Dossiê reforçam o compromisso ético das pesquisas em educação em assentar suas bases investigativas em perspectivas emancipatórias das pessoas com deficiência. Essa dimensão é delineada nas escolhas teóricas e/ou metodológicas dos estudos aqui explicitados, sendo possível apontar como tendência de tais pesquisas a valorização das vozes, narrativas e histórias de vida de estudantes universitários com deficiência. Portanto, a pesquisa sobre os contextos de transversalidade da educação especial no ensino superior tem percorrido um caminho que fortalece a leitura da deficiência como um assunto de interesse público e coletivo.
Não obstante, este conjunto de pesquisas reconhece as limitações e lacunas políticas e pedagógicas no que tange ao necessário investimento e aprofundamento da inclusão no ensino superior em interface com a qualidade dos apoios educacionais especializados ofertados; aos distintos marcadores sociais da diferença que delineiam as possibilidades e desafios das pessoas com deficiência antes, durante e depois de acessarem o ensino superior, entre outros desafios e tensionamentos.
Deste modo, desejamos que a leitura criteriosa e analítica deste conjunto de textos seja disparadora de novos processos investigativos com foco na inclusão escolar no ensino superior e na eliminação das múltiplas opressões que dificultam os processos de ensino e aprendizagem de estudantes e docentes com deficiência. Destarte, compreendemos que a pesquisa científica comprometida com as dimensões de atuação da universidade pode promover contribuições para a afirmação da transversalidade da educação especial com vistas à consolidação dos sistemas educacionais inclusivos nos níveis mais elevados de ensino, em contextos nacional e internacional, corroborando para a ocupação efetiva das universidades pelas pessoas com deficiência.
REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei n° 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, DF: Presidência da República, 2015. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 24 jul. 2024.
BRASIL. Decreto n° 6949, 25 de agosto de 2009. Promulga a Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, 2009. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2009/decreto/d6949.htm Acesso em: 24 jul. 2024.
BAPTISTA, Claudio Roberto. Entrevista. Educação Inclusiva. Ponto de Vista, Florianópolis, n. 3/4, p. 161-172, 2002. Disponível em: https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/216132. Acesso em: 10 ago. 2024.
DINIZ, Débora. O que é deficiência? São Paulo: Brasiliense, 2003.
HAAS, Clarissa (org.). Cotidianos de Inclusão Escolar na Educação Básica e Profissional: a acessibilidade curricular como diretriz da ação pedagógica. São Carlos, SP: Pedro e João Editores, 2021. Disponível em: https://pedroejoaoeditores.com.br/produto/cotidianos-de-inclusao-escolar-na-educacao-basica-e-profissional-a-acessibilidade-curricular-como-diretriz-da-acao-pedagogica/ Acesso em: 10 ago. 2024.
INEP. Ministério da Educação. Diretoria de Estatísticas Educacionais. DEED. Censo da Educação Superior. Resumo Técnico do Censo da Educação Superior - 2022. Brasília, DF: INEP/MEC, 2024. Disponível em: https://download.inep.gov.br/publicacoes/institucionais/estatisticas_e_indicadores/resumo_tecnico_censo_educacao_superior_2022.pdf Acesso em: 10 ago. 2024.
OLIVER, Mike. Políticas sociales y discapacidad. Algunas consideraciones teóricas. In: BARTON, Len (Comp.). Superar las barreiras de la discapacidad. Madrid: Morata, 2006, p. 19-33.
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