Sofrimento Psíquico e Educação: pistas sobre patologização e resistências em trajetórias de estudantes universitárias

Psychic Suffering and Education: clues about pathologization and resistance in the trajectories of college students

Sufrimiento Psíquico y Educación: pistas sobre patologización y resistencia en trayectorias de estudiantes universitários

 

Ana Carolina Christofari

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

acarolchristofari@gmail.com

Rogério Machado Rosa

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

rogeriorosa.ufsc@gmail.com

Ellen Amaral Chaves

Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

ellen.amaralchaves@gmail.com

 

Recebido em 22 de setembro de 2024

Aprovado em 08 de outubro de 2024

Publicado em 10 de dezembro de 2024

 

RESUMO

Este artigo objetivou visibilizar narrativas de histórias de vida de estudantes em sofrimento psíquico no Ensino Superior. Por meio de entrevistas semiestruturadas, foram analisados os lugares sujeito e de assujeitamento que duas estudantes de licenciatura têm ocupado nos seus respectivos percursos formativos. Além de compreender como a universidade tem construído dispositivos pedagógicos na relação com pessoas em sofrimento psíquico; também foi possível conhecer as estratégias de resistência criadas pelas estudantes a esses dispositivos. Por ser uma questão que ocupa um lugar marginalizado na sociedade, problematizar o sofrimento psíquico na educação é decisivo para se produzir visibilidade às múltiplas formas de aprender, sentir, se manifestar e construir relação com o mundo dos sujeitos frequentem o Ensino Superior. A produção de respostas ético-políticas e pedagógicas sistemáticas que assegurem o direito à saúde mental, à singularidade e à aprendizagem dessa população depende, fundamentalmente, da integração entre as políticas educacionais e de assistência integral.

Palavras-chave: Estudantes; Sofrimento Psíquico; Patologização; Resistência.

 

ABSTRACT

This article sought to visibilize the narratives from the lives of students dealing with psychic suffering at higher education. Through a pair of semi-structured interviews, an analysis was performed about the subject role these two undergraduate students have been occupying throughout their formative path. Besides understanding how the University has been building pedagogic devices regarding people in psychic suffering; it was also possible to learn the coping mechanisms created by students to resist these devices. Because it is an issue that occupies a marginalized place in society, problematizing the subject of psychic suffering at education is crucial in giving visibility to the many ways of learning, feeling, manifesting and building relationships towards the world of subjects who attend higher education. The production of ethical-political and systemic-pedagogical solutions that assure the rights to the mental health, singularity and learning of this population fundamentally depends on the integration between educational policies and integrated care.

Keywords: Students; Psychic Suffering; Pathologization; Resistance.

 

RESUMEN

Este artículo tuvo como objetivo visibilizar narrativas de historias de vida de estudiantes en sufrimiento psíquico en la Educación Superior. A través de entrevistas semiestructuradas, se analizaron los lugares de sujeción del sujeto que han ocupado dos estudiantes de licenciatura en sus respectivos trayectos formativos. Además de comprender cómo la universidad ha construido dispositivos pedagógicos en la relación con personas en sufrimiento psíquico; también fue posible conocer estrategias de resistencia creadas por estudiantes a estos dispositivos. Por tratarse de un tema que ocupa un lugar marginado en sociedad, problematizar el sufrimiento psíquico en educación es determinante para visibilizar múltiples formas de aprender, sentir, manifestar y relacionarse con el mundo de los sujetos que cursan Educación Superior. La producción de respuestas ético-políticas y pedagógicas sistemáticas que aseguren el derecho de esa población a salud mental, a singularidad y al aprendizaje depende, fundamentalmente, de integración entre políticas educativas y de atención integral.

Palabras clave: Estudiantes; Sufrimiento Psíquico; Patologización; Resistencia.


 

Afeto-pistas iniciais

O presente artigo objetiva visibilizar narrativas de histórias de vida de estudantes em sofrimento psíquico no Ensino Superior a partir da análise dos lugares de sujeito que os estudantes têm ocupado. Este texto é desdobramento de uma pesquisa[i] realizada entre os anos de 2018 e 2021 na Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Realizou-se entrevistas semiestruturadas com duas estudantes do curso de Pedagogia para compreender suas trajetórias acadêmicas e o modo como a Universidade tem construído as relações pedagógicas com pessoas em processo de sofrimento psíquico. Este artigo apresenta e analisa trajetórias de estudantes que vivenciam o sofrimento psíquico, mas também criam e reivindicam modos de resistência a ele.

O encontro com a arte, que coexiste na trajetória das estudantes entrevistadas, ocupa lugar de destaque quando narram e refletem suas táticas de resistência ao sofrimento durante os percursos formativos. A experimentação da arte, para elas, figura como um lugar onde se reconhecem como sujeitos. Um importante componente na produção de saúde e vida desses sujeitos, uma vez que o sofrimento psíquico, comumente representado à luz da loucura em sua força biopolítica, exige a construção de “dispositivos multifacéticos, ao mesmo tempo políticos, estéticos, clínicos na reinvenção das coordenadas de enunciação da vida” (Pelbart, 2003, p. 37).

 O tema do sofrimento psíquico na educação de modo geral e no ensino superior, de maneira específica, é de suma importância para dar visibilidade às múltiplas formas de aprender, se manifestar e construir relação com o mundo sem que as especificidades de cada um sejam invisibilizadas e nem transformadas em um processo patológico. Historicamente, essa gramática tem sido incorporada pelas instituições, dentre as quais figuram as de ensino superior funcionando como parâmetro para avaliar, diagnosticar e prescrever práticas corretivas ou de ajustamento de conduta de estudantes “sintomáticos”. Um processo pelo qual problemas não médicos são definidos e tratados como problemas médicos, geralmente em termos de doenças e transtornos Moysés e Collares (2010). Há, com isso, um fortalecimento de discursos que produzem subjetividades patologizadas e medicalizadas. Uma vez legitimadas pelo saber e poder biomédico, naturalizam-se e são assumidas como legítimas. Enfatizamos, assim, a defesa de que a escola é um lugar de encontros de diversas formas de experienciar a vida e expressar essa relação. Nesse sentido, o contexto escolar e acadêmico produzem atravessamentos na constituição psicossocial, sendo assim, um espaço a ser problematizado constantemente.

Ao analisarmos, a partir das narrativas de vida das estudantes a sujeição dos corpos e as possibilidades de resistência na vida acadêmica consideramos a saúde mental como um fenômeno eminentemente biopolítico. Ao assumir as questões de saúde mental como produzidas política, histórica e socialmente, enfatizamos o entendimento de formação humana como uma dinâmica transversalizada por múltiplos fatores que vão delineando o modo como cada sujeito vive sua experiência de vida. Problematizar o sofrimento psíquico e sua invisibilidade na educação é defender a educação para todos e resistir às estratégias de exclusão e silenciamento das pessoas que não se modelam aos padrões sociais instituídos.

 

Derivas metodológicas

O debate do sofrimento psíquico na educação perpassa o questionamento de como a educação básica tem produzido estratégias de enfrentamento de questões referentes à saúde mental dos estudantes desde a base da formação escolar. Pesquisar, investigar e produzir conhecimento sobre a relação saúde mental e educação escolar é uma possibilidade de resistir aos modos explicativos que simplificam a vida, de resistir às padronizações e, sobretudo, denunciar estratégias que visam silenciar e normatizar determinados sujeitos.  

 Dar visibilidade às vidas que historicamente são negligenciadas na escola é um processo que encontra consonância com as narrativas de vida. Nesse sentido, nos aproximamos do conceito de (auto)biografia proposto por Caetano (2016), que consiste em apresentar a vida com base em diversas dimensões do sujeito; as várias perspectivas que o compõe como ser humano, tramando a criação e recriação de aspectos da vida individual com as múltiplas identidades individuais e coletivas. Compreender uma biografia em sua complexa singularidade se expressa no desejo de compreender todo um sistema social produtor de modos de vida.

O método narrativo em pesquisa permite a crítica às explicações universalizantes e simplificadoras já que a experiência humana, é composta por atravessamentos produzidos pelo social. Ao narrar suas histórias, cada sujeito dá corpo às suas sensações, ideias, memórias, organizam o mundo, dão sentido a ele e produzem, ao mesmo tempo, novos sentidos e interpretações para sua experiência. Ao trabalharmos com narrativas de vida problematizamos de que modo as determinações sociais que se entrelaçam na construção da subjetividade produzem ou não a saúde mental. As narrativas representam o modo como nos constituímos e nos relacionamos com o mundo a partir das relações sócio-historicamente construídas. “O que importa é a “verdade” construída pelo sujeito datado, na teia de relações na qual ele se constitui” (Carneiro, 2007, p. 50).

Narramos e refletimos, neste artigo, passagens da vida de mulheres, estudantes do curso de Pedagogia da UFSC cujas trajetórias acadêmicas foram atravessadas pela experiência do sofrimento psíquico. Assim, Amábile e Violeta, ajudam a pensar de que maneira podemos construir rupturas na lógica medicalizante, patologizante e excludente que a escola e o sistema universitário produzem sobre a vida.

Nosso encontro com as estudantes participantes da pesquisa foi produzido a partir da busca por pessoas que estavam na Universidade disponíveis a compartilharem suas histórias. Ao saberem da pesquisa, quatro voluntárias se interessaram e se disponibilizaram em participar da pesquisa.

No final do ano de 2019, antes da pandemia, duas estudantes foram entrevistadas presencialmente. Foi apresentado um questionário com 13 perguntas semiestruturadas que objetivaram estabelecer um ambiente dialógico propício para a abordagem das experiências do sofrimento psíquico na formação universitária.


 

Sofrimento Psíquico e Saúde Mental no Brasil: limites e possibilidades

O sofrimento psíquico pode ser entendido como um processo de adoecimento do aparelho psíquico, podendo ir de um sofrimento facilmente tratável a um sofrimento severo e persistente. Pode ser uma restrição mental de caráter passageiro ou permanente, que limita ou impede o sujeito de viver com qualidade Sanches e Oliveira (2011, apud Brasil, 2004, p.281). Para Ceccarelli (2005), quem tem um sofrimento psíquico “(...) padece de algo cuja origem ele desconhece e que o leva a reagir de forma imprevista”. Esse pensamento lembra o conceito de psicopatologia, advindo do grego psiche - alma/mente, pathos - paixão e logos - saber, significando uma área de conhecimento que estuda as paixões da mente e da alma, também narrado por ele. 

Historicamente, aquele que apresenta características como mudanças repentinas e/ou constantes de humor e comportamento foram e ainda são tratados como loucos. Loucura também poderia ser deficiência (Pessotti,1984), pobreza extrema, principalmente para pessoas em situação de rua, ou questão de gênero (Foucault, 1972). No século XX, mulheres que desafiassem a autoridade dos pais, perdessem a virgindade e engravidassem fora de um casamento, eram “indesejadase recebiam o rótulo de loucas e internadas em sanatórios (ARBEX, 2013). De acordo com Foucault (1972), no século XV, na Europa, os hospitais que mantinham pessoas com sofrimento psíquico (pobres, deficientes ou indesejados) tomaram lugar das antigas gafarias (hospitais para leprosos). Nesse contexto, às pessoas consideradas loucas era vetada a entrada na igreja, mas não proibida a comunhão dos sacramentos. Podiam permanecer nas cidades onde nasciam, desde que confinadas. Quando trancadas nos hospitais, não recebiam qualquer tratamento médico, mas viviam como em uma prisão. Eram considerados impuros, e, por vezes, também chicoteados (Foucault, 1972).

O século XVII é fortemente marcado pelo pensamento cartesiano e tem algumas de suas ideias pautadas na falta de razão como fruto da inconfiabilidade dos sentidos, assim como à falta do pensamento que é existencial. Esse século é marcado pela institucionalização das pessoas em espaços asilares. O primeiro a surgir foi decretado pelo rei Luís XIII da França, em 1656, chamada Hospital Geral, que funcionava como casa de acolhimento às pessoas em situação de rua, aos insanos, deficientes e indesejados, independente de idade ou gênero que entravam espontaneamente ou levados por autoridades real ou judiciária, para receber alimentação e acolhimento físico (Foucault, 1972). O louco era recolhido das cidades como inválido e deixado entre os vagabundos e ociosos Jabert (2001). O esquema de internamento com fins higienistas perdurou até o final do século XVIII e a separação dos chamados alienados dos demais, assim como a necessidade de um local exclusivo a eles se deu no século XVIII.

 Na virada do século XVIII para o século XIX nasce a psiquiatria como disciplina médica (até então só havia cirurgia e clínica) e como campo de pesquisa, da qual um dos maiores expoentes da época foi Phillipe Pinel (1745-1778). Pinel, médico chefe do Hospital Bicêtre trabalhou no hospital de Salpetrière implantando diversos tratamentos e estudando profundamente a questão mental[ii]. Ele marcou a história da Psiquiatria quando lutou para libertar os pacientes das correntes que os prendiam no hospital de Bicêtre.

No século XX houve mudanças de paradigma da psiquiatria, o avanço da ciência e medicina quanto aos tratamentos de saúde, a expansão dos serviços de saúde, e a concepção de remédios, principalmente para o tratamento da saúde mental. O que permaneceu foram práticas higienistas da medicina, dos internamentos e a institucionalização das pessoas com patologias mentais. A Psicanálise de Freud (1856-1939) alçou a teoria do inconsciente e provou que as emoções exercem papel sob os processos de saúde, sobretudo, emocional. O século XXI é marcado por forças antagônicas: de um lado o movimento antimanicomial contra a patologização da vida (Amarante, 2020), que coloca o paciente como um sujeito de direitos. Por outro lado, profissionais da saúde mental potencializando o processo de medicalização da vida patologizando experiências humanas e classificando-as como desviantes.

 

Histórico brasileiro: a saúde mental e seus movimentos

No Brasil, a institucionalização começa com a chegada da família real, no século XIX. Famílias que tinham alguma pessoa com deficiência ou doença mental logo as encerravam nas Casas de Misericórdia, pois era inadmissível as presenças destas no convívio social. As institucionalizações oficiais, num local próprio para isso, aconteciam como resultado de um decreto assinado em 18 de julho de 1841, com objetivo de solenizar a coroação do Imperador Pedro II.

Jabert (2001) descreve o tratamento dispensado aos considerados loucos como um sistema prisional: ficavam em uma pequena cela, sem vista para o céu ou ar para respirar, recebendo pouca luz emprestada. Cansado de lidar com essa realidade, José Clemente Pereira, o provedor da Santa Casa de Misericórdia, solicitou ao Imperador a construção do hospício, e foi atendido em julho de 1841. Dez anos depois, ficou pronto o estabelecimento que seria mantido pela provedoria da Santa Casa sendo batizado de Pedro II. O hospital psiquiátrico no Brasil foi criado antes de uma medicina psiquiátrica, dado que esta foi instituída como disciplina médica a partir de 1881. O primeiro psiquiatra brasileiro, Pereira das Neves, teria sido afastado do trabalho em pouco tempo de atuação devido aos maus tratos com os internos. A história da saúde mental no Brasil é marcada por inúmeras e múltiplas violências.

Outros Hospitais foram abertos em cidades como Salvador, Pernambuco e Minas Gerais. O mais emblemático entre eles, no entanto, é o Hospital de Assistência a Alienados de Barbacena, inaugurado em 1903, em Minas Gerais, conforme afirma Jabert (2001). Este hospital fica conhecido por ser palco de uma das maiores atrocidades da história nacional: o Holocausto Brasileiro[iii], que ceifou 60 mil vidas.

Em 1912, foi promulgada uma Lei Federal de Assistência aos Alienados, que consagrou o status de especialidade médica autônoma aos psiquiatras e aumentou o número de instituições destinadas a pacientes com doenças e transtornos mentais. Essas instituições objetivavam disciplinar através de hospitais ou espaços especializados, produzindo a normalização dos comportamentos com o intuito de higienizar a sociedade. A partir desse momento surgiram asilos e manicômios por todo o país, relegando o tratamento do doente mental às medidas disciplinadoras, atrelando este tratamento às estruturas manicomiais (Freitas, 2018).

Os primeiros passos para uma luta antimanicomial foram dados no Brasil após a Segunda Guerra Mundial, quando na Europa e Estados Unidos eclodiram movimentos contrários a forma como eram tratados os pacientes com transtornos mentais. Os principais movimentos ocorreram na França e Inglaterra que defendiam uma psiquiatria mais humanizada. O movimento brasileiro iniciou-se na década 1970, pelo Movimento de Trabalhadores em Saúde Mental, partindo das denúncias de violência contra os pacientes em péssimas condições de trabalho (Freitas, 2018). 

A partir de então a saúde mental passa por um processo de ressignificação de suas práticas com objetivo de adotar uma postura mais humanizadora. Desse modo, o Movimento Antimanicomial brasileiro se fortalece a partir do I Encontro Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental, em 1987. Nesse evento foi defendida uma sociedade sem manicômios bem como, “(...) a eliminação dos meios de contenção presentes no tratamento, o estabelecimento da relação do indivíduo com sua autonomia, produção de relações, espaços de interlocução, restituir os direitos, eliminação da coação e das tutelas (Freitas, 2018, p. 8).

Em 1989, deu entrada no Congresso um Projeto de Lei, de autoria do Deputado Paulo Delgado, do qual regulamenta os direitos da pessoa com transtorno mental e o fim dos manicômios no Brasil. Pela primeira vez a luta toma proporções jurídicas e normativas. Contudo a lei só viria a ser aprovada em 2001, porém as instituições psiquiátricas permanecem no Brasil. Ainda em 2001, foi promulgada a Lei da Reforma Psiquiátrica, Lei 10.216, que reformulou o modelo de saúde mental no Brasil, conferindo mais direitos às pessoas em sofrimento psíquico.

A Reforma Psiquiátrica objetivou desconstruir o modelo de assistência pautado no aprisionamento do indivíduo. Com o novo modelo, o foco desloca-se da doença para a invenção de práticas constitutivas de qualidade de vida. De acordo com Freitas (2018), entre os anos de 1987 a 2002, aconteceram duas Conferências Nacionais de Saúde Mental, junto ao Sistema Único de Saúde (SUS), para discutir novas experiências sobre saúde mental e sofrimento psíquico.

A partir dessas discussões, percebeu-se a necessidade de novos modelos de tratamento, nascendo assim os centros de atenção psicossocial (caps) e núcleos de atenção psicossocial (naps), fazendo crescer a esperança de um atendimento de maior qualidade e de uma saúde mental melhor apoiada. No entanto, mesmo diante dessa luta, o modelo psiquiátrico manicomial ainda não foi superado, e o desmonte das políticas da saúde mental pública é uma contundente evidência deste processo. Sujeitos usuários dos serviços de saúde mental seguem carregando o estigma da loucura. Mesmo dentro das universidades ainda há pouca compreensão referente à saúde mental, situação que tem impacto direto na evasão escolar; ela é uma contundente expressão da falta de apoio, de visibilidade e de acolhimento às diferenças. A universidade ainda não se constituiu como espaço de fala, afirmação e escuta ativa da diversidade humana.

 

Vivências afetivas e escolares

Cada vez mais tem sido maior o esgotamento mental que as pessoas no ensino superior enfrentam, adoecem mentalmente e precisam de serviços voltados à saúde mental. Como possibilidade de apoio, na Universidade Federal de Santa Catarina é oferecido um pronto socorro psicológico pelo SAPSI - Serviço de Atenção Psicológica e, também, um serviço de psicologia via SUS oferecido pelo Serviço de Atendimento à Saúde da Comunidade Universitária/SASC. Recentemente a Coordenadoria de Acessibilidade Educacional/CAE, que atende pessoas com deficiência, começou a atender pessoas em sofrimento psíquico, apesar de não ser esse o público de atendimento. Criada em 2013, a CAE visa proporcionar condições de acessibilidade para os estudantes com deficiência que são matriculados na graduação e na pós-graduação. Apesar de ser uma coordenadoria para garantia de direito das pessoas com deficiência, tem tido demanda por pessoas que não estão nessa condição. Algumas mudanças ocorreram no trabalho da CAE a partir da promulgação da Lei 13.146/2015 - LBI (Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência), que abrange também a condição de doença mental e psíquica como deficiência, caso ela siga determinados critérios da Lei:

 

Art. 2º Considera-se pessoa com deficiência aquela que tem impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, o qual, em interação com uma ou mais barreiras, pode obstruir sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas.

§ 1º A avaliação da deficiência, quando necessária, será biopsicossocial, realizada por equipe multiprofissional e interdisciplinar e considerará:  

I - os impedimentos nas funções e nas estruturas do corpo;

II - os fatores socioambientais, psicológicos e pessoais;

III - a limitação no desempenho de atividades; e

IV - a restrição de participação.

(Brasil, 2015).

 

Após a LBI houve mudança no público da CAE, que passou a acolher alguns transtornos psíquicos. No entanto, o trabalho da CAE não é destinado ao acompanhamento e apoio de pessoas em situação de sofrimento psíquico e o fato da coordenadoria acolher estudantes nessa situação evidencia a falta de um olhar mais atento para esse público e, sobretudo, uma lacuna em relação a articulação entre saúde mental e educação. Pois, se não há serviços na universidade que façam essa articulação e esse acolhimento.

Ainda que a universidade tenha propostas de auxílio para que os estudantes possam permanecer e concluir seus cursos, nada foi estruturado em saúde mental. Foucault (1972) nos lembra que as pessoas com uma condição diferente do chamado “normal”, ficam à margem da sociedade, excluídas, sem as suas necessidades atendidas. Muitas vezes, sequer, reconhecidas. E é nesse cenário, que Amábile e Violeta constroem suas trajetórias acadêmicas.

 

As mulheres participantes desta pesquisa

Alice, mulher branca, de estatura média, estudante da terceira fase do curso de Pedagogia da UFSC. Tem interesse por cultura pop e livros e afinidade com a área de Psicologia. Com diagnóstico de ansiedade generalizada, luta contra crises de pânico frequentes. Faz tratamento medicamentoso e psicoterapia.

 Violeta, mulher branca, de baixa estatura, estudante da terceira fase do curso de Pedagogia da UFSC. Tem interesse por assuntos relacionados ao misticismo e esoterismo, e joga cartas de tarô. Violeta não sabe se quer permanecer na área da Pedagogia e, segundo ela, essa dúvida tem causado sofrimento constante. Com diagnóstico de transtorno borderline, enfrenta extremos emocionais. Assim como Alice, Violeta também faz tratamento medicamentoso e psicoterapia.

Ambas as estudantes participantes da pesquisa estão vinculadas ao curso de Pedagogia, do CED (Centro de Ciências da Educação). Jovens, em torno dos 20 anos, experimentam alguns sentimentos da adolescência e também da vida adulta. São estagiárias do Núcleo de Desenvolvimento Infantil/NDI [iv] em turmas distintas. Ao se autodescrever, Alice diz:    

 

Uhm, difícil, né? Assim, é complicado... Eu já não arrumo nem na terapia como falar de mim mesma. Eu sou uma pessoa completamente de cabeça para baixo, que lida com as situações da forma mais dramática possível, por impulso e que tenta fazer tudo por todo o mundo, porque é assim que eu me sinto bem e que nem diz um professor: “Você é muito ‘amábile”. Teve um professor que ele olhou pra mim: “Que nome amável”. É isso (Alice, participante, 2019).

 

 Violeta também se autodescreve:

 

Eu sou uma poetisa (...) bem... Poetisa, borderline, flamenguista, acadêmica, e solitária. Sou solitária. Sinto angústia. Fico abalada pelas psicoses, é o estado natural. O que eu tenho, o F60.3[v], ele faz com que você se sinta angustiado o tempo todo. E faz com que você tenha uma percepção alterada da sua identidade. Pra eu chegar onde eu te falei de me reconhecer como poetisa, borderline, flamenguista... eu precisei de terapia (Violeta, participante, 2019).

 

   Ao escutarmos Alice e Violeta percebemos que falam de lugares muito distintos. Alice tem uma relação mais voltada para si, numa perspectiva mais à parte do seu diagnóstico de Transtorno de Ansiedade Generalizada. A partir de sua narrativa é possível perceber um sentimento de não adequação ao afirmar que é “uma pessoa completamente de cabeça para baixo, que lida com as situações de uma forma mais dramática possível”. Alice também usa a literatura para se explicar e tem uma relação bem estreita com Alice no País das Maravilhas (Carrol, 2009).

   Violeta tem uma relação mais afim com seu diagnóstico de Transtorno de Personalidade Borderline. Ela conta com muita propriedade sobre o CID (Código Internacional da Doença) e suas características, sabe muito sobre os remédios, seus usos e efeitos colaterais. Ela vive com o diagnóstico e às vezes responde às perguntas como se ele fosse primeira pessoa do singular, não ela. Isso vem, segundo ela, da influência de sua história familiar, que se mistura à sua própria. Violeta nos conta um pouco mais de sua trajetória:

 

A minha bisavó morreu em 6 de janeiro de 1966, no Hospital Colônia Santana. Ela tinha depressão naquela época, era época do eletrochoque, da insulinoterapia. Tinha um corredor da Colônia Santana, que era chamado de geladeira, onde as pessoas dormiam no chão e todos os dias, os guardinhas tinham que recolher entre quatro e cinco corpos mortos. Essa foi a época que a minha bisavó viveu lá na Colônia Santana. É isso que me traz aqui: é minha história no sistema psiquiátrico brasileiro, porque eu fiz parte disso sem saber que minha avó também tinha sido parte. Só fui saber quando a minha mãe foi correndo me tirar da Colônia Santana, quando fui internada. Ela falou: “Sua avó morreu aqui”. Eu nem imaginava (Violeta, participante, 2019).

 

 Houve um dia que o Núcleo de Desenvolvimento Infantil entrou em contato com os estagiários próximos de Violeta anunciando que ela estava desaparecida. Depois de uns três ou quatro dias, Violeta apareceu e contou que ficara internada no hospital Colônia Santana ou Instituto de Psiquiatria. Segundo ela, foram dias assustadores, que ela ficou amarrada numa cama e também conversou com pessoas em estado mais grave que o dela.

 Nas entrevistas, Violeta e Alice contaram sobre suas vidas com paixão e os sentimentos à flor da pele. Manifestaram diversos tipos de emoção durante o processo: medo, raiva, tristeza, rancor, emoção, nostalgia. Nos contaram como foram suas vidas escolares e como isso afetou suas relações com a universidade, sendo o caso de Alice bastante emblemático, conforme sua afirmação

 

Ah, foi bem ruim, eu tenho que te falar. Foi muito ruim, assim, eu sempre fui um tipo de pessoa gordinha, e aí as crianças pegavam muito no meu pé. Muito mesmo, tipo... antes de uma época que se ouvia falar de bullying, sabe? Me senti velha agora, mas enfim... Pois é, era uma época em que não se falava tanto de bullying e eu apanhava dos meninos. Eu lembro bem dessa cena na sexta série que o menino, sabe aqueles repetentes? Que eu não sei bem o que aconteceu, mas ele me deu um mata leão no meio da sala de aula. E ninguém fazia nada para me defender, sabe? (Alice, participante, 2019).

 

 Alice sofreu violência física e psicológica na escola básica. Muitos autores têm estudado a violência na escola, e esse é um fenômeno que não é novo e nem exclusivo de escolas públicas ou particulares; a violência está enraizada no chão da escola independente da classe. Rosa (2010, p. 145) afirma que a violência escolar “trata-se de um comportamento agressivo através de insultos, apelidos cruéis, gozações, ameaças, acusações injustas, atuação de grupos que hostilizam a vida de outros levando na maioria das vezes o agredido à graves consequências psíquicas e à exclusão escolar e social”.

Ela nos conta como se sente acerca do curso e das aulas, bem como sobre o sentimento de inadequação com o curso de Pedagogia, e como a ansiedade a afeta. Alice trouxe para a universidade muitas marcas da violência que passou no Ensino Fundamental.

 

Eu me sinto totalmente sufocada. Às vezes eu preciso sair, e é muito raro eu conseguir ficar a aula inteira. Assim, tem que ser ou uma aula que eu me interesso muito, mas às vezes até a aula que eu me interesso eu saio, por não conseguir ficar mesmo. Me fez querer sair do curso, sabe? Porque eu me sentia impaciente, não parecia me interessar por nada. E eu queria muito sair do curso. Meu Deus do céu, acho que o CED inteiro ouviu dizer que eu queria sair do curso. E é muito ruim, porque você pensa: “Caramba! Vou ter que começar tudo de novo! Porque a transferência é quase impossível, né?”, e isso me deixou muito mal (Alice, participante, 2019).

 

   As marcas de violência que Alice carrega da vida escolar afetam não só sua vida acadêmica, mas também sua vida pessoal. Ela tem crises de pânico frequentes e se sente acuada em seu curso, tanto que pensa em mudar. Cabe aqui indagarmos: quem de fato se importa com a saúde mental dos/as estudantes universitários/as? Como, efetivamente, a universidade (re)conhece e ampara os/as estudantes em situação de sofrimento psíquico? Violeta nos conta sobre como a universidade trata quem está em sofrimento psíquico.

 

Na universidade, quando você assume que você tem um transtorno, as pessoas têm medo de você, as pessoas têm medo, porque elas não querem encarar que existe esse tipo de pessoa na sociedade. (...) quando eu cheguei aqui na universidade, veja bem, em junho de 2018; eu era conhecida por fazer a prova em dez minutos, provas de filosofia extremamente complexas, era adotada de uma extrema... um extremo foco. A partir do momento que a risperidona foi inserida como coquetel, eu perdi isso e, veja bem, eu perdi isso quando eu entrei numa universidade onde as coisas eram mais difíceis, onde era tudo mais competitivo, onde querendo ou não falando bem curto e direto, excelência. E eu senti um baque, porque eu senti que tinha que ser duas vezes melhor; eu senti que tinha que ser duas vezes melhor que todos os meus colegas. Mas como é que vou ser duas vezes melhor se meu cérebro não funciona igual ao deles? Se a minha predisposição genética, e a forma como o meu sistema cerebral funciona é diferente? Porque eu sou diagnosticada com depressão e a depressão ela reduz o seu foco (Violeta, participante, 2019).

 

   Violeta discorre sobre a universidade tratar igual as pessoas desconsiderando suas especificidades. Nos conta sobre como encontrou acolhimento e apoio nos professores da Pedagogia, mostrando a importância do docente para além dos processos de aprendizagem.

 

Eu me lembro que no primeiro semestre ao encontrar uma professora eu estava com a boca tremendo, batendo queixo e dizendo: “Professora eu estou tendo uma crise”, e ela olhou para mim, tocar no meu ombro e dizer: “Tudo bem, eu entendo, vai lá”, com tom de desdém. O lado bom é que eu encontrei apoio de alguns professores da Pedagogia. Quando eu fui internada, a coordenadora do curso foi atrás de mim para saber onde é que eu estava. Se fosse em outro curso eu não sei se aconteceria, sinceramente, porque tem muito preconceito ainda na academia com relação a isso. Mas quantas pessoas que estão aqui dentro, passando pelo que eu passo, com as mesmas dificuldades, tentando entender textos de doutorado, extremamente complexos, sofrendo com nota baixa e não são compreendidas? (Violeta, participante, 2019).

 

Alice e Violeta enfrentam o desafio de estarem na universidade com suas especificidades, de conseguir continuar a formação e concluir o curso, de ter que enfrentar a solidão e o desamparo rumo à busca dos seus objetivos de vida.

Mais do que nunca é preciso lutar para garantir o direito à saúde mental. E diferentemente de como aconteceu com Violeta, que se internou voluntariamente, pois não sabia mais o que fazer e temia por sua vida, é preciso a garantia de um tratamento em saúde mental que seja humanizador, que respeite a subjetividade do sujeito. A luta por essa saúde mental já é antiga, e ainda continuamos lutando.

 

A arte como forma de resistência

A arte é o pulsar da vida. (Violeta, 2019)

Ao longo da pesquisa compreendemos o modo como a arte e as questões de ordem mental se aproximam, se entrelaçam, e, em muitos casos, andam juntas. Através da arte o “louco” encontra formas de expressão; é através da arte, em todas as suas formas, que o sôfrego encontra redenção.

Podemos encontrar na história da arte muitas obras criadas a partir do sofrimento do artista como o aclamado quadro Noite Estrelada, de Vincent Van Gogh[vi], as esculturas e pinturas de Aranhas de Louise de Bourgeois[vii] e as fotografias de Francesca Woodman[viii] Encontramos no cinema obras que expressam o tema da saúde mental das maneiras mais líricas como Cisne Negro (2010), de Darren Aronofsky; Bicho de Sete Cabeças (2000), de Laís Bodanzky; e Coringa (2019), de Todd Phillips.

No contexto dos tratamentos mentais e das instituições asilares, segundo Machado (2016), a arte foi introduzida como forma de atividade terapêutica a partir do século XIX, e servia como uma forma de ocupação, mas com um sentido de caráter moral: o tempo, os corpos e as mentes dos internos precisavam ser ocupados, a vida normatizada, e então poderia vir a cura. No Brasil esse método da cura pela arte chegou na virada do século XIX para o século XX, e seus principais representantes são Osório César e Nise da Silveira.

Osório César era médico psiquiatra a serviço do Hospital Psiquiátrico do Juquery, em São Paulo, onde atuou em meados de 1920. Era músico e crítico de arte, muito influenciado pelo Movimento Modernista, foi pioneiro em perceber que as produções dos pacientes eram mais que desenhos, mas que continham elementos psicológicos envolvidos, até mesmo sendo algumas obras semelhantes às modernistas. Construiu uma escola de artes no hospital e escreveu o livro "A expressão artística dos Alienados". Via na arte dos pacientes não apenas um caráter terapêutico, mas também possibilidades para uma vida além do hospital (Machado, 2016).

Nos anos de 1940, no Rio de Janeiro, a alagoana Nise da Silveira, começava seu trabalho no setor de Terapia Ocupacional do Engenho de Dentro. Ela enfrentou preconceitos na medicina pela questão de gênero e por ser contra métodos tradicionais de tratamento como eletrochoques, lobotomia, contenção física e química. Ela entendia o processo da terapia ocupacional em seu amplo sentido e oferecia pintura, escultura e música aos internos. Começou a perceber que através da arte eram manifestadas suas relações inconscientes, então passou a conferir especial importância às produções dos pacientes para poder acessar esses conteúdos (Castro; Lima, 2007). Sua abordagem era humanizada e tinha uma perspectiva multidisciplinar, tendo o sujeito como foco. Em 1947 organizou a primeira exposição com o trabalho dos internos, no Rio de Janeiro, impressionando críticos de arte com a qualidade dos trabalhos, que acabou por dar origem ao Museu de Imagens do Inconsciente, em 1952 (Castro; Lima, 2007). Junto à Nise da Silveira trabalhou a cantora, compositora, poeta, enfermeira e assistente social Ivone Lara, também militante e precursora de uma saúde mental mais humanizada. Ivone tratava seus pacientes com afeto, ciência, música e dança. Cantava e tocava cavaquinho desde criança, e usava essas habilidades em prol da melhora dessas pessoas em condição de internamento. Nas instituições em que trabalhou também procurava as famílias dos internos para lhes apresentar suas humanidades, e apresentar possibilidades além das que os médicos diziam, principalmente àqueles que eram abandonados, para tentar retomar ou estreitar laços. Recolhia as histórias de vida pelos pavilhões e tentava transformá-las, nem que tivesse de percorrer quilómetros para isso. Dedicou boa parte de sua vida à saúde mental, aposentando-se em 1977, para dedicar-se ao samba (Raphael, 2018). Outra figura emblemática na história da saúde mental e importantíssimo à reforma psiquiátrica é Arthur Bispo do Rosário, um interno da Colônia Juliano Moreira que produziu uma vasta obra com pinturas, esculturas, bordados e colagens, diz Soares (2000). Bispo passou praticamente toda a vida internado, sendo seu primeiro registro em 1938, e achou na arte uma forma de vida e beleza. Encontrou nela também uma forma de resistência: dizia que os tratamentos da época (eletrochoques, lobotomia etc.) interfeririam em sua produção. Após uma briga na qual agredira um outro interno, Bispo teria recebido uma mensagem divina na qual estaria incumbido de recriar o mundo e o apresentar no dia do juízo final, (Machado, 2016). Assim, cunhou sua obra cheia de detalhes e sem preocupações acadêmicas. Foi reconhecido como um artista completo por diversos críticos de arte até internacionalmente. É muito interessante perceber através do Bispo do Rosário, e tantos outros artistas internos, que o movimento a favor da arte e da vida não aconteceu de forma unilateral. Hoje se tem um movimento desinstitucionalizante que tem os CAPS como principais órgãos promotores de saúde mental, e é neles que ocorrem os trabalhos com a arte.

Acreditamos que a experiência com as mais diversas formas de arte nos perpassa, atravessa e possibilita nosso processo de construção de subjetividade desde muito pequenos. Alice e Violeta têm experiências fortes para dividir sobre isso. Essa seção é aberta por Violeta dizendo que “a arte é o pulsar da vida”, ela se reconhece como poetisa e tem essa questão muito latente em si. Para Alice a presença mais forte da arte se dá através dos livros, da música e do cinema. Ambas precisam da arte para viver uma vida mais plena. Ao ser questionada sobre a importância da arte em sua vida, Alice tem uma certa dificuldade em definir o que a arte representa para si, e dá respostas cujo tema central é a ansiedade. Mostra também uma forma de transgressão dessa ansiedade e significação desse contato.

 

Eu acho que a questão da música, é...eu sou uma pessoa sem ritmo nenhum, mas que eu gosto muito de música e às vezes, a única coisa que traz alguma calma, às vezes para controlar a compulsão alimentar. Depois do almoço eu quero simplesmente comprar todo o sorvete do CFH, sentar num cantinho e chorar. E ajuda muito porque eu coloco o fone e consigo separar os instrumentos musicais da música, tipo, cada um. Ajuda bastante a música, e como eu disse o teclado é única coisa que faz eu prender a atenção por uma hora, assim, sem eu ver essa hora passar, sem eu pensar em sair dali. Eu ando com um pouco de impaciência nos livros, mas, às vezes, só porque eu não achei a coisa certa para ser lida, mas ajuda bastante sim. (Alice, participante, 2019).

 

Sousa (2014) apresenta em seu artigo a arte como uma forma de transgressão; uma transgressão que salva, não necessariamente uma perversão. Começa sua exposição a partir de uma frase de Adorno (1980, p. 53) em que diz que “Toda obra de arte é um crime não realizado”. Assim parece ser a arte na fala de Alice: uma mediação que contorna uma ferida aberta. Colocar um curativo é também transgredir, pois é muito difícil sair de uma situação de dor, enxergar possibilidades nela além do que está posto. A transgressão tira Amábile da dor, traz a ela vida; a vida do e no mundo, e a vida dela. Apesar de ter um pouco de dificuldade em responder à pergunta sobre o que arte representa, ficou animada e até um tanto eufórica ao falar dos filmes e da música com paixão. Mesmo não tendo expressado essa paixão em palavras, ficou evidente na fala de Alice o lugar que a arte ocupa em sua vida.

 

Se eu não tivesse a música teria... seria tudo mais impossível. Tanto que está sendo um drama, porque o meu fone estragou. Para diminuir a ansiedade a música é fundamental pra mim, sabe? E, tinha visto, tava vendo muito filme no ônibus, para mim não ficar doida. Os livros! Os filmes! Tipo: “Com Amor Van Gogh”, que provavelmente - é lindo, né? Aí eu comecei a ver muito filme e me ajudou bastante com a ansiedade. Agora eu parei; agora eu tô cantando outra coisa para fazer na ansiedade, mas é, realmente ajuda bastante. (Alice, participante, 2019).

 

Quantos de nós não buscamos curativos ao longo de nossas jornadas? Alice encontrou os seus e ainda bem que ela pôde transgredir assim. Quando em contato com a arte ela sente o mal-estar se afastar, sente que pode sonhar. Ela sabe também da importância de se ter um tratamento psiquiátrico e psicológico em sua jornada, pois segundo Sousa (2014) “A arte renova sempre esse curativo, esconde e trata a ferida, mas a ferida nunca cicatriza totalmente. Como poderíamos cicatrizar o vazio? Talvez a perversão seja uma tentativa extrema (e fracassada) também de acreditar que cicatrizar o vazio fosse possível” (Sousa, 2014, p. 788).

Violeta, ela não fala de si diretamente no início, fala como se fosse o transtorno afetivo borderline sua voz. Ao indagar como percebia sua relação com a arte, Violeta, seguiu falando de si na terceira pessoa do singular, mas em seguida, voltou para a primeira. Violeta expressa sobre como a arte afetou sua formação.

 

O Borderline é muito artístico, ele é muito artístico, porque ele tem muita dor, muita angústia, então ele põe para fora. É, como eu falei no início da entrevista, eu me identifico como poetisa, é como as pessoas me conhecem no meu centro. Eu sou famosa pelas minhas poesias. E a arte ela... já ouviu falar da Eli Heil? Não se sabe o que ela tinha, mas a professora de Artes, levou a gente numa exposição dela. Eu olhei o quadro dela e falei: “Professora, isso aqui é dor pura”, e ela falou: “Não, porque isso é arte, porque isso e aquilo”. Aquela coisa de artista chato. (Violeta, participante, 2019).

 

Violeta me faz lembrar um pouco de um ponto da filosofia nietzscheana, que fala sobre transformar o sofrimento em pulsão de vida. O sofrimento é inerente à condição humana, mas não precisa ser a causa de nossas existências, o sofrimento é posto como uma força motriz para nos tornar versões melhores de nós, para que possamos nos tornar aquilo que nós somos. Ela procura transformar sua dor e seus sofrimentos em arte. Pega sua pulsão de morte e converte em pulsão de vida através de movimentos artísticos, assim como a Eli Heil[ix] e tantos outros que ela admira.

Alice e Violeta têm experiências significativas com a arte, e esta tem papel fundamental em suas vidas e na manutenção de sua saúde mental. Essa experiência com as mulheres reforça a ideia apresentada no início desta sessão, de que a arte se configura como um meio de humanização, produção de subjetividade e aumento das potencialidades do ser (Machado, 2016). Na arte encontramos alento, identificação, aplacamento das dores, e tantas outras coisas. Como diz Violeta: “A arte é o pulsar da vida”, e a vida é muito mais completa e digna com o pulsar da arte.

 

Considerações finais

A presente pesquisa procurou compreender a trajetória de estudantes universitárias com sofrimento psíquico e o lugar que os estudantes em sofrimento psíquico ocupam no Ensino Superior. Para tal, foram analisadas entrevistas realizadas com Alice e Violeta, estudantes do Curso de Pedagogia da Universidade Federal de Santa Catarina. Buscamos conhecer as marcas de resistência e sujeição dessas estudantes no Ensino Superior; a questão da medicalização e o sofrimento psíquico no Ensino Superior; e a importância da arte como experiência legitimadora de singularidades nas trajetórias dos estudantes com sofrimento psíquico.

O que se pode aferir desta pesquisa é que o sofrimento psíquico ocupa um lugar marginalizado na sociedade, sendo tratado desde os tempos mais remotos como um peso para ela. Quem não estava dentro da norma era encerrado numa instituição e assim segue sendo. Hoje há algumas políticas públicas no Brasil para tratar de sofrimento psíquico, mas ainda não é suficiente e o acesso à saúde mental precisa ser ampliado. A medicalização, como um processo que tem se alastrado a todas as esferas da vida produz modos de ser sujeito. Percebeu-se a arte como uma forma de humanizar e afirmar outros modos de subjetivação, para além das supostas normalidades. Nas trajetórias das mulheres pudemos perceber que o assunto da saúde mental na Educação carece de mais atenção, pesquisa e discussão.

Nosso desejo, após a pesquisa, é de que as mulheres em sofrimento psíquico no Ensino Superior sejam acolhidas e consigam se adequar às novas demandas e continuar com o bom trabalho. Cada vez mais o trabalho delas ganha importância na promoção e cuidado da saúde mental dos estudantes universitários. Sentimos necessidade de saber como estavam enfrentando esse período de pandemia E, com isso, enviamos quatro questões simples via WhatsApp para saber como estavam, se estavam fazendo acompanhamento de saúde mental, como estavam os estudos, e planos para depois da Pandemia. As duas estão bem, apesar do sentimento de solidão que bate às vezes. Apenas Alice segue acompanhada pelo psiquiatra. Violeta descobriu novas paixões e abandonou o curso de Pedagogia. Alice segue com seus estudos na Pedagogia. Violeta quer ir à praia, Alice quer abraçar as amigas.

Desejamos que a saúde mental se livre dos estigmas seculares, e que possa alcançar mais pessoas. Esperamos que as pessoas em sofrimento consigam ter acesso para buscar ajuda profissional e também seus alentos. Que a Universidade passe a olhar para as pessoas em sofrimento psíquico e acolhê-las também, que esse não-lugar que elas ocupam vire lugar. Que a medicalização possa ser discutida em todas as esferas. Que a arte possa alcançar mais pessoas e tocar seus corações. Que a gente possa seguir juntos em frente, pois, parafraseando Belchior: "Temos pressa de viver". 

 

Referências

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Notas



[i] Esta pesquisa foi submetida ao Comitê de Ética da Universidade Federal de Santa Catarina, sendo aprovada pelo parecer: 3648027 e CAAE 18845219800000121/2019

[ii] Biografias: Philippe Pinel. Disponível em: <http://www.ccms.saude.gov.br/hospicio/text/bio-pinel.php>.

[iii] Premiada obra de Daniela Arbex, narra a trajetória das pessoas que sobreviveram ao hospital e a história do próprio, apresentando entrevistas, documentos, fotos e fatos históricos.

[iv] Núcleo de Desenvolvimento Infantil, uma instituição pública de ensino infantil da Universidade Federal de Santa Catarina.

[v] A sigla F60.3 designa o Transtorno de Personalidade com Instabilidade Emocional, também conhecido como Transtorno de Personalidade Borderline.

[vi] Pintor holandês (1853-1890) consagrado depois de sua morte. Passou a vida atormentado pelo sofrimento psíquico e morreu vítima de uma tentativa de suicídio, na qual o tiro mal dado o fez agonizar durante vinte dias. Noite Estrelada retrata a vista da janela de seu quarto, quando esteve no hospital psiquiátrico.

[vii] Artista plástica francesa (1911-2010), morou a maior parte da sua vida em Nova York. Ficou famosa por trabalhar sexualidade, inconsciente e memória em suas obras.

[viii] Fotógrafa estadunidense (1958-1981) apesar do pouco tempo de vida, deixou um vasto trabalho. Sua obra é, em sua grande maioria, em preto e branco e retrata a si mesma e pessoas próximas. Faleceu em decorrência da depressão que a levou ao suicídio.

[ix] Eli Malvina Diniz Heil foi uma artista catarinense que desenvolveu um amplo e belo trabalho como pintora, desenhista, ceramista, escultora, tapeceira e poeta. Faleceu em Florianópolis, em 2017, aos 87 anos