Grupo de apoio com pais de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento

 

Support group with parents of Neurodevelopmental disorders

Grupo de apoyo con padres de niños con Trastornos del neurodesarrollo

 

Marcos Venicio Esper

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil

marcos_esper@yahoo.com.br

Manoel Antônio dos Santos

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil

masantos@ffclrp.usp.br

Jaqueline Wendland

Université Paris Descartes , Paris, França

jaqueline.wendland@u-paris.fr

Lucila Nascimento

Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP, Brasil

lucila@eerp.usp.br

 

 

Recebido em 06 de setembro de 2024

Aprovado em 18 de dezembro de 2024

Publicado em19 de dezembro de 2024

 

 

RESUMO

Houve um tempo em que os vínculos eram renovados em rodas de conversa que aconteciam geralmente à noite, após o jantar, entre pessoas mais velhas que se sentavam nas calçadas e partilhavam “causos” e histórias do cotidiano. Inspirado por essa tradição, este estudo teve como objetivo relatar a experiência do grupo de conversa “Prosa & Café”, que reúne pais e mães de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento. O grupo visa promover um espaço de acolhimento e incentivar novos olhares sobre a parentalidade no contexto de crianças atípicas. A experiência do Prosa & Café proporcionou aos participantes a oportunidade de socializar experiências, compartilhar aprendizados e divulgar conhecimentos provenientes do convívio familiar. Ao trocar recursos e vivências, os pais puderam fortalecer modos de ser e estar mais saudáveis junto aos seus filhos. Os resultados mostraram que a desconstrução de posturas hierarquizadas entre os participantes revelou atitudes mais proativas e participativas. A atmosfera acolhedora do grupo de apoio contribuiu para a expressão de sentimentos represados. O formato descontraído e prosaico do Prosa & Café mostrou-se frutífero para conhecer os anseios, aspirações e necessidades dessa população. Dessa forma, a experiência do grupo se destacou como uma prática valiosa para fortalecer os laços entre pais e filhos e promover um ambiente mais saudável e acolhedor para todos.

Palavras-chave: Grupo de apoio; Parentalidade; Crianças com transtornos do neurodesenvolvimento; Família.

 

ABSTRACT

There was a time when bonds were renewed through evening conversations, typically after dinner, among elders who sat on the sidewalks and shared "causos" and stories from their daily lives. Inspired by this tradition, this study aimed to report on the experience of the chat group "Prosa & Café," which brings together parents of children with neurodevelopmental disorders. The group seeks to create a welcoming space and encourage new perspectives on parenting in the context of atypical children. The experience of Prosa & Café provided participants with the opportunity to socialize, share lessons, and exchange knowledge drawn from family life. We believe that by sharing their resources, parents were able to develop healthier ways of interacting with their children. The results showed that dismantling hierarchical attitudes among participants fostered more proactive and participatory behaviors. The supportive atmosphere of the group contributed to the expression of long-repressed feelings. The relaxed and informal format of Prosa & Café proved to be fruitful for uncovering the desires, aspirations, and needs of this population. In this way, the experience of the group stood out as a valuable practice for strengthening bonds between parents and children and fostering a healthier and more supportive environment for all.

Keywords: Support group; Parenting; Neurodevelopmental disorders; Family.

 

 

 

RESUMEN

Hubo un tiempo en que los vínculos se renovaban en las charlas nocturnas, después de la cena, entre personas mayores que se reunían en las aceras para compartir “causos” (anécdotas) e historias de su vida cotidiana. Inspirado en esa tradición, este estudio tiene como objetivo relatar la experiencia del grupo de conversación "Prosa & Café", que reúne a padres y madres de niños con trastornos del neurodesarrollo. El grupo busca fomentar un espacio acogedor y promover nuevas perspectivas sobre la crianza en el contexto de los niños atípicos. La experiencia de Prosa & Café brindó a los participantes la oportunidad de socializar, compartir aprendizajes y transmitir conocimientos derivados de la convivencia familiar. Creemos que al compartir sus recursos, los padres pudieron fortalecer formas más saludables de estar con sus hijos. Los resultados mostraron que la deconstrucción de las posturas jerárquicas entre los participantes permitió revelar actitudes más proactivas y participativas. El ambiente acogedor del grupo contribuyó a la expresión de sentimientos reprimidos. El formato relajado y prosaico de Prosa & Café resultó ser fructífero para conocer los anhelos, aspiraciones y necesidades de esta población. De esta manera, la experiencia del grupo se destacó como una práctica valiosa para fortalecer los lazos entre padres e hijos y promover un entorno más saludable y acogedor para todos.

Palabras clave: Grupo de apoyo; Parentalidad; Trastornos del neurodesarrollo; Familia.

 

Introdução

A importância dos grupos de apoio a pais de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento (TN) não pode ser subestimada. Esses grupos desempenham um papel crucial ao proporcionar um espaço seguro e acolhedor onde pais podem compartilhar suas experiências, desafios e estratégias de enfrentamento utilizadas no convívio diário com seus filhos. Ao oferecer suporte emocional e instrumental/prático, os grupos de apoio ajudam a reduzir a sensação de isolamento e solidão, mitigando a sobrecarga relacionada ao cuidado parental e promovendo o bem-estar e a resiliência das famílias.

A melhoria da qualidade de vida e do bem-estar dos pais de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento (TN) deve ser uma prioridade na formulação das políticas públicas de apoio familiar. Em comparação com os pais de crianças com desenvolvimento típico, os pais de crianças com TN muitas vezes enfrentam desafios crescentes ao exercitarem seus múltiplos papéis, e o estresse e a sobrecarga resultantes podem afetar negativamente seu bem-estar pessoal, muitas vezes exigindo apoio direcionado. No entanto, muitos pais de crianças com desenvolvimento atípico relatam que o suporte que recebem é insuficiente e, geralmente, focado na criança e menos frequentemente em suas necessidades como cuidadores (Fávero; Santos, 2005; Seymour; Batchelor; Schneidereit, 2020). texto brasileiro, Santos e Pereira-Martins (2016a), em pesquisa realizada com pais de crianças com TN, concluíram que a busca de apoio social está fortemente associada à construção da resiliência familiar. Por outro lado, o uso de estratégias de enfrentamento, tais como pensamento fantasioso, autoculpabilização, distanciamento e isolamento social mostrou-se negativamente relacionada ao ajustamento familiar. É preciso sensibilizar os profissionais de saúde e educadores para integrar esse tema às políticas públicas, a fim de planejar ações preventivas, diagnósticas e terapêuticas (Fávero; Santos, 2005).

Em estudo que buscou conhecer o itinerário terapêutico de mães de crianças com autismo, Fávero e Santos (2010) classificaram as situações cotidianas enfrentadas pelas famílias como de grande complexidade. A trajetória dos pais até conhecerem o problema da criança foi marcada por um movimento de peregrinação exaustiva por diversos serviços de saúde, enfrentando o despreparo dos profissionais para o diagnóstico e atendimentos pouco ou nada resolutivos. Os autores constataram a necessidade de que os serviços especializados ofereçam recursos de apoio às famílias, principalmente às mães, desde o início do processo diagnóstico, disponibilizados de preferência por equipe multiprofissional. Com base nos resultados obtidos, os autores postularam que conhecer o itinerário terapêutico contribui para o planejamento de programas e serviços especializados que sejam condizentes com as necessidades das famílias.

Estudo que abarcou 20 mães de crianças com autismo apontou que a sobrecarga emocional materna acentua sentimentos de desamparo e incertezas quanto ao futuro da criança, favorecendo o aparecimento de sintomas de depressão e depreciação da qualidade de vida (Fávero-Nunes; Santos, 2010). Em sintonia com a literatura, o estudo preconiza a oferta de espaços de escuta e acolhimento sensíveis às demandas emergentes dos pais, de modo a prevenir desajustes e o desgaste familiar.

Galiano e Portalier (2012) destacam a experiência de vários anos com vistas a favorecer que as famílias de crianças com TN consigam exteriorizar suas inquietações e sofrimento, salientando a necessidade de oferecer também um espaço para o desenvolvimento de recursos psíquicos e sociais. Por recursos psíquicos o autor entende o encontro de vários psiquismos, reunidos em grupo, com o propósito de compartilhar experiências, aprendizagens e vivências gratificantes, assim como aliviar alguns sofrimentos vivenciados no convívio familiar com a criança com TN. Por recursos sociais o autor entende o conjunto de ferramentas sociais e culturais, que inclusive muitas vezes são ignoradas ou não percebidas pelos pais: trocas de benefícios sociais (por exemplo, da Casa Departamental para Deficientes), feiras de deficientes (por exemplo, “Handica”, que acontece a cada dois anos em Lyon, “Autonomic” em Paris), material didático preparado especialmente para atender as necessidades peculiares dos filhos, entre outros (Galiano; Portalier, 2012).

Os grupos de apoio reúnem pessoas que apresentam algumas características em comum ou que vivenciam dificuldades similares para trocarem experiências, oferecer acolhimento e confortar. Há uma extensa literatura sobre grupos de pais ou multifamiliares direcionados a acolher mães e pais cujos filhos têm um diagnóstico de transtornos mentais ou vivenciam outras situações de extrema vulnerabilidade (Almeida; Melo-Silva; Santos, 2017; Peres; Santos, 2018; Santos; Leonidas; Costa, 2016a). Todavia, há escassez de pesquisas dedicadas a investigar a aplicabilidade de grupos de apoio para pais de crianças atípicas. Considerando esta lacuna, este estudo teve como objetivo relatar como um grupo de conversa, denominado “Prosa & Café”, que reúne pais e mães de crianças com TN, pode promover a construção de um espaço de acolhimento, com a perspectiva de instigar novos olhares sobre a parentalidade no contexto de crianças com necessidades especiais.

 

Método

Delineamento do estudo

Trata-se de um estudo descritivo-exploratório que teve como fundamento metodológico a abordagem qualitativa. A pesquisa qualitativa permite um tipo de enquadramento teórico-metodológico característico das ciências humanas, uma vez que seu campo de atuação, segundo Chizzotti (2018), não é pré-definido e as condições de observação dos fenômenos investigados não são totalmente controláveis. Essa abordagem abrange, além dos campos da educação e da saúde, os demais saberes da vida humana, com ênfase em aspectos subjetivos como a linguagem e as relações sociais. Em outras palavras, a designação qualitativa proporciona o aprofundamento dos significados, percepções e sentidos atribuídos pelos sujeitos às experiências e relações humanas, que não são passíveis de quantificação ou mensuração por instrumentos de medida, mas que incluem rigorosos critérios de observação e análise.

 

Participantes

Participaram do estudo 14 adultos, sendo sete pais, seis mães e uma avó de crianças diagnosticadas com TN, matriculadas em escolas públicas, municipais e especiais de uma cidade do estado de Minas Gerais, Brasil. Os critérios de inclusão foram: ser pai/mãe ou responsável legal por criança com TN; ser o(a) cuidador(a) principal e conviver diariamente com a criança.

A amostra foi estabelecida por meio de critérios de conveniência, a partir de listas de alunos(as) fornecidas pelas escolas (municipais, estaduais e especiais) do município que aceitaram colaborar com a pesquisa. Para arregimentar os participantes, os pais e responsáveis foram primeiramente informados sobre a pesquisa pelos diretores e educadores das escolas, por meio de e-mail, mensagens, cartas e telefonemas. Caso manifestassem interesse em participar da atividade, seus nomes eram repassados para o pesquisador, que estabelecia o contato e formalizava o convite.

O Quadro 1 sintetiza as características dos participantes.

 

Quadro 1 – Caracterização dos participantes do evento Prosa & Café.

Participantes

Idade e profissão

Diagnóstico da criança

Natureza da escola

 

P1 e P2

Casal:

 Mãe casada, 23 anos, do lar

Pai casado, 25 anos, mecânico

 

Criança em processo de confirmação diagnóstica de TDAH

Escola regular municipal

 

P3

Mãe casada, 40 anos, trabalhadora aposentada na área de educação

 

Síndrome de Down

Escola regular estadual

 

P4

Pai separado, 68 anos,

trabalhador aposentado do ramo de serviços gerais

Deficiência Intelectual

Escola Especial

 

P5

Pai separado, trabalhador aposentado

Deficiência Intelectual

 

Escola Especial

 

 

P6

Mãe separada, secretária

Dislexia

Escola regular municipal

 

 

P7

Pai casado, não relatou profissão

Meningite, com sequelas cognitivas

 

Escola Especial

 

P8

Avó, casada, 60 anos, do lar

Deficiência Intelectual

Escola Especial

 

P9

Pai, casado, 38 anos, motorista

Autismo

Escola regular e atendimentos em escola especial

P10

Pai casado, 48 anos, pedreiro

Deficiência Intelectual

Escola Especial

P11

Mãe casada, 50 anos, do lar

Síndrome de Down

Escola Especial

P12

Mãe casada, 30 anos, pedagoga

Autismo

Escola regular municipal

P13

Pai separado, 42 anos, serviços gerais

Deficiência Intelectual

Escola Especial

P14

Mãe separada, 33 anos, secretária

Criança em processo de confirmação diagnóstica de Autismo

Escola regular municipal

Fonte: elaboração dos autores.

 

Procedimento

Considerando que existem diferentes estratégias de suporte para pais baseadas na troca de experiências e apoio mútuo, foi proposto um dispositivo com o pressuposto de recuperar o modo comunitário de conversar e intercambiar vivências, estruturado com amparo do conhecimento científico disponível na área da grupalidade (Santos et al., 2016). A intenção era fornecer um espaço de fala e escuta capaz de garantir o rigor da intervenção e, ao mesmo tempo, assegurar o respeito aos participantes e resguardar suas especificidades. O evento “Prosa & Café” foi concebido e planejado para abrir um espaço de escuta, conversa e, sobretudo, de troca de experiências entre pais vinculados a diferentes instituições de ensino.

As reuniões do grupo de apoio tiveram periodicidade trimestral e duração média de duas horas, e aconteceram no período de fevereiro 2019 a janeiro 2020. Cada encontro reuniu no mínimo oito e no máximo 14 participantes. Foram realizados cinco encontros. Os participantes assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Eles foram informados de seu direito de desistir a qualquer momento, sem necessidade de justificativa, e de receber, ao final, um feedback sobre os resultados principais do estudo. O trabalho em grupo teve como foco o relato de experiências, buscando oferecer reflexões e oportunidades de troca de experiências entre pais de crianças com TN. Os encontros foram realizados em local preservado e com condições adequadas de conforto e ventilação. Os encontros aconteceram em uma escola municipal, em uma sala de aula disponibilizada para eventos que acontecem aos sábados pela manhã. As carteiras foram previamente organizadas em círculo, para que todos os participantes e o pesquisador tivessem a oportunidade de se olharem, de modo que todos se sentissem pertencentes ao grupo.

A atividade desenvolvida durante os encontros consistiu em roda de conversa, buscando deixar os participantes à vontade para se expressarem a partir de uma questão disparadora. O moderador/pesquisador esteve atento às características individuais dos participantes, a fim de deixá-los(as) mais à vontade durante as discussões, promovendo um ambiente permissivo e propício para se sentirem confortáveis para expressar suas opiniões. Houve inicialmente uma breve apresentação pelo moderador do objetivo da pesquisa, para que todos os participantes tivessem um conhecimento inicial. Em seguida, foi feita uma apresentação do cronograma das reuniões e esclarecidas as dúvidas iniciais quanto à dinâmica de participação. Em seguida, o moderador enunciou a questão norteadora, formulada com base nos objetivos da pesquisa, e esperou que alguns participantes o questionassem, ou iniciassem o processo de discussão. A questão norteadora foi: “Gostaria de vocês conversassem livremente sobre como é o dia a dia de vocês e como se dá o convívio com seu/sua filho(a)”

Mediante prévia autorização dos participantes, as conversas que aconteceram durante os encontros foram gravadas e as observações do pesquisador foram registradas em caderneta de campo. O material audiogravado foi posteriormente transcrito e digitado, e junto com os dados do caderno constituíram o corpus da pesquisa. Utilizou-se o método de análise temática indutiva, que busca identificar, analisar e atualizar as principais unidades temáticas que emergem dos dados. Optou-se pela abordagem indutiva proposta por Braun e Clarke (2006), considerando-se que os temas identificados estão fortemente conectados aos dados obtidos. Nessa abordagem, se os dados foram coletados especificamente para fins de pesquisa, como foi o caso, os temas identificados podem ter pouca relação com a questão específica colocada aos participantes. Assim, eles não seriam predefinidos pelo interesse teórico do pesquisador. A análise indutiva é, portanto, um processo de análise de dados que não se baseia em um referencial preestabelecido ou nos vieses do pesquisador. Por conseguinte, este método de análise temática é guiado pelos dados, tendo em vista que já ocorreram as manifestações dos participantes a partir de uma abordagem não-diretiva.

O exame do material coligido permitiu identificar os principais temas que emergiram nos grupos de discussão, por meio de uma síntese das observações e do registro textual das trocas ocorridas durante as conversações entre os pais.

 

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A análise permitiu identificar quatro eixos temáticos: “Em busca do melhor termo para expressar o problema do filho com o menor sofrimento possível para os pais”; “O cuidar de mãe e o cuidar de pai: aproximações e diferenças”, “A descoberta do transtorno e a construção de significados para atenuar a angústia despertada pelo contato com uma realidade desafiadora” e “Os desafios da integração família, escola e sociedade”, que refletem os temas recorrentes nos grupos de discussão.

Em busca do melhor termo para expressar o problema do filho com o menor sofrimento possível para os pais

Primeiramente houve um movimento do grupo de identificar a expressão com a qual os pais se sentiam mais à vontade em relação ao tratamento e os termos relacionados aos problemas de seus filhos: filho com transtorno, com deficiência, síndrome, problemas, necessidades especiais, etc. Essa questão da nomeação é um ponto sensível para os pais. Ela também foi levantada no estudo de Surjus e Campos Onocko (2014).  Embora os campos da deficiência intelectual e da saúde mental tenham a mesma origem histórica, ambos estão situados na luta pela defesa dos direitos das populações vulneráveis com percurso de institucionalização, as terminologias acabaram seguindo suas próprias orientações. Classificados na categoria de transtornos do neurodesenvolvimento, os critérios diagnósticos para deficiência intelectual mudaram significativamente no DSM-5 (APA, 2013).

Em primeiro lugar, o termo deficiência mental, empregado até então, foi substituído pelo termo deficiência intelectual, que é mais respeitoso com as pessoas e certamente mais próximo da realidade. A designação “deficiência intelectual” remonta aos anos 2000, com recentes reformulações conceituais. Essa expressão foi utilizada preferencialmente por se referir especificamente ao funcionamento do intelecto, diferenciando-se dos transtornos mentais, por sua vez entendidos como alterações que consistem em anormalidades, sofrimentos ou comprometimentos de ordem psicológica e/ou mental, mudanças significativas na personalidade ou no comportamento, sem uma razão aparente. O transtorno mental altera o relacionamento da criança com o mundo, impacta seu funcionamento nos campos interpessoal, escolar e social (Surjus; Campos Onocko, 2014). A American Psychiatric Association (APA, 2013) privilegia a utilização do termo transtornos do neurodesenvolvimento (TN), os quais se manifestam na infância, antes da criança ingressar na escola. Tais transtornos, variam desde limitações muito específicas no processo de aprendizagem até prejuízos globais em habilidades de linguagem e comunicação, sociais ou inteligência.

Uma mãe (P3) foi categórica ao afirmar: “sempre quero que meu filho seja chamado pelo nome, porém em termos de pesquisas, onde há a necessidade de ter um termo comum, não me importo... mas no dia a dia, quero que ele seja chamado pelo nome.”

Alguns pais sugeriram o uso do termo “dificuldades”. Justificam esse termo pelo fato de que cada ser humano tem suas dificuldades relativas, ao passo que, quando se fala em deficiência, o termo tem uma carga de patologia, gerando desconforto nos pais.

 

“Dificuldade é menos agressivo” [...] (P6).        

“Quando o meu filho nasceu me perguntavam: ‘seu filho é especial?’, aí eu ficava pensando: mas qual filho não é especial para os pais?, eu disse”(P3).

 

Segundo Goffman (1988), o estigma ocorre quando atribuímos a alguém com condições atípicas uma característica que o diferencia negativamente dos outros, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída, especialmente quando essa característica causa um grande descrédito.

Evidências de que ele (portador de questões mentais) tem um atributo que o torna diferente de outros que se encontram numa categoria em que pudesse ser incluída, num caso extremo, uma pessoa completamente má, perigosa ou fraca. Assim, deixamos de considerá-lo criatura comum e total, reduzindo-o a uma pessoa estragada e diminuída. Tal característica é um estigma, especialmente quando o seu efeito de descrédito é muito grande (Goffman, 1988, p.6).

Goffman (1988) aponta que o estigma advém da relação entre pessoas normais e pessoas estigmatizadas, sendo estas dicotomizadas e consideradas como anormais e desviantes pela sociedade. O estigma, então, se torna uma preconcepção elaborada pelos normais a partir de atributos considerados como habitual, costumeiro e natural, que se transforma em expectativa normativa ou regras, utilizadas, geralmente, de modo rigoroso. O estigma nasce a partir da interpretação que se dá a uma característica considerada indesejável.

De acordo com a literatura (Chamberlain, 2015, Lespinet-Najib; Belio, 2013), as definições de deficiência evoluíram no decorrer do tempo e das várias classificações propostas pela Organização Mundial da Saúde (OMS): Classificação Internacional de Deficiência (CIH; OMS, 1980) ou a Classificação Internacional de Funcionamento (CIF; OMS, 2001).

 

O cuidar de mãe e o cuidar de pai: aproximações e diferenças

Considerando que se trata de pais ou responsáveis legais por crianças com TN, houve a preocupação de fornecer o suporte necessário, baseado na identificação de questões e necessidades semelhantes. Buscou-se preservar um clima que propiciasse o alívio de ansiedade de modo a dar continência às situações de tensão intrafamiliar compartilhadas e buscar o bem-estar psicológico, social e emocional a partir da identificação da rede de apoio e da troca de experiências entre os participantes. O papel do moderador era apenas facilitar o processo de compartilhamento de experiências entre os pais. Os encontros visavam desenvolver a autonomia do grupo e de cada participante. Ressalta-se a importância de proporcionar um ambiente propício no qual os participantes se sintam seguros e confortáveis para expressarem e compartilharem suas experiências, bem como ouvir com atenção. Nesse sentido, Warschauer (2001) afirma:

 

Conversar não só desenvolve a capacidade de argumentação lógica, como, ao propor a presença física do outro, implica as capacidades relacionais, as emoções, o respeito, saber ouvir e falar, aguardar a vez, inserir-se na malha da conversa, enfrentar as diferenças, o esforço de colocar-se no ponto de vista do outro etc [...] (Warschauer, 2001, p. 179).

A vivência em grupo permite melhorar a capacidade de escuta e de verbalizar as emoções de cada participante, bem como aumentar a autoconfiança. Os pais e mães percebem que não são os únicos a vivenciarem as condições de cada criança, ainda que sejam diagnósticos diferentes.

“Pra mim está muito difícil, pra ele (apontando para o pai), eu não sei se tanto” (P1 e P2).  A partir dessa colocação de uma mãe participante, referindo-se às suas dificuldades e as do pai, perguntou-se no grupo se percebiam diferenças entre o cuidar materno e paterno:

P3 – “o cuidado do pai é mais racional, é mais em cima de resultado – ah, não conseguiu fazer, por que será? Já a mãe ...peraí... ele se sentiu como fazendo aquilo? A gente tem um lado mais...”

P1 – “Eu não sei o caso de vocês, mas na minha casa, por exemplo, eu sento pra fazer o dever de casa, eu que estou sentada ali com ele, e então o sofrimento está ali comigo e não com ele (apontando para o marido)”

Mediador – Então vocês estão dizendo que o cuidar de pai e mãe são diferentes porque ela tem mais...

P3 – “Sensibilidade. É mais aguçada. Um exemplo: se chega um filho nosso e joga um negócio em cima da mesa, o pai viu o resultado final que foi jogar o negócio em cima da mesa. A mãe já pensa assim... não é normal ele fazer isso, por que será? Por que ele fez isso hoje? [..] a gente não é pelo resultado, a gente é pelo “como”?”

Os níveis de estresse são mais elevados quando não há uma rede de apoio social estabelecida ou quando o cuidado com a criança não é compartilhado (Fávero; Santos, 2005; Gomes et al., 2015). Essa adequação familiar deve incluir os diferentes membros, de forma que não recaiam obrigações específicas a uma única pessoa, que pode passar a apresentar outros problemas relacionados ao desgaste, como os altos índices de estresse. Entende-se que é necessário estabelecer uma organização familiar e social que permita o compartilhamento de cuidados e decisões. Mesmo que a mãe seja mantida como cuidadora principal, o envolvimento de outros membros pode diminuir a sobrepeso, o estresse e as demais repercussões psicossociais negativas encontradas na vida das mães cuidadoras (Fávero-Nunes; Santos, 2010; Pinto et al., 2014; Romanelli, 2017).

Apesar do reconhecimento do interesse de uma melhor partilha de responsabilidades no cuidado do filho, o pai continua identificado com a figura do provedor, aquele que trabalha e traz o dinheiro para casa, enquanto a mãe é responsável pela vida doméstica, educação e cuidados com os filhos, como reiterado pelo estudo de Martins, Abreu e Figueiredo (2014, p. 126):

A noção de que o cuidado infantil é responsabilidade feminina é evocada por todos os participantes do estudo e as próprias mães são ativas na construção e reprodução desta ideologia, resultados consistentes com a literatura sobre a maternidade intensiva. O argumento do amor e dos laços afetivos legitima discursivamente as mulheres como principais cuidadoras e renega os homens pela sua incompetência ou natureza masculina diferente.

Isso claramente comparece nas falas dos participantes, denotando a naturalização da função de cuidadora à mulher:

P7 – “Ela está mais próxima, mais dentro. O pai tem de sair para o serviço...”

P2 – “As mulheres são mais apegadas”

 

A tradicional presença da mãe como cuidadora principal dos filhos contribuiu para a compreensão popular e acadêmica de que a relação pai-filho não seria tão relevante quanto a relação mãe-filho para o desenvolvimento infantil (Cabrera; Tamis-Lemonda; Bradley; Hofferth; Lamb, 2000). No entanto, diferentemente dos estudos sobre a maternidade, com sua longa tradição teórica e empírica, os estudos sobre paternidade começaram com uma escassez teórica e conceitual, muitas vezes adaptando os conceitos dos estudos sobre maternidade (Coutinho; Morsch, 2006).

Depreende-se que nem sempre é possível e adequado importar conceitos desenvolvidos nos estudos maternos na pesquisa relacionada ao pai. Em vez disso, por vezes é necessário usar conceitos específicos que retratem a especificidade do fenômeno da paternidade.

Houzel (2004) buscou organizar as funções e papéis parentais em torno de três diferentes eixos: exercício, experiência e prática da parentalidade. O exercício da parentalidade refere-se àquilo que define quem é o pai e quem é a mãe em determinada sociedade, e quais os seus direitos e deveres. Assim, define um campo que transcende ao indivíduo, sua subjetividade e seus comportamentos, referindo-se aos laços de parentesco e à legislação da sociedade na qual o indivíduo está inserido.

Para Houzel (2004), o exercício da parentalidade aproxima-se mais do campo da antropologia do que da psicologia. A experiência da parentalidade enfatiza os aspectos subjetivos conscientes e inconscientes do processo de vir a ser pai ou mãe e de ocupar papeis parentais, envolvendo várias questões, dentre elas o desejo de ter um filho e o processo de transição para a parentalidade, bem como as adaptações e perturbações psicológicas relativas à maternidade e à paternidade.

Houzel (2004) alertou que a experiência da parentalidade já é bastante estudada e conhecida na perspectiva das mães, mas apenas muito recentemente começou a ser investigada em relação aos pais. A prática da parentalidade diz respeito às ações cotidianas que pais e mães devem realizar com seus filhos. Essas práticas não são limitadas somente aos cuidados físicos, mas envolvem também aspectos psíquicos.

Dissertar sobre as famílias é um grande desafio, pois, na sociedade atual, novas configurações familiares estão em contínuo processo de (trans)formação, diante de diferentes circunstâncias e contextos culturais. Essas novas configurações familiares advêm de fatos históricos como, por exemplo, as duas grandes guerras mundiais e a revolução industrial, destacando-se o feminismo, e o momento histórico em que as mulheres partiram para a conquista do mercado de trabalho, o que levou a família a uma reorganização das relações de poder e dos significados atribuídos aos cuidados com a prole (Araújo, 2011).

Assim, as famílias têm cobrado seus direitos, expandindo os recursos familiares para a conquista dos desejos e vontades individuais, que muitas vezes se dão em detrimento do coletivo (Martins-Suarez; Farias, 2016). Ou seja, não existe um único modelo de família e as configurações familiares não devem ser definidas ou conceituadas apenas por sua posição no espaço social. Ao contrário, em cada família há uma dinâmica e configuração próprias, marcadas pela maneira de relacionar no contexto familiar e social, condições que são transformadas e modificadas histórica e culturalmente.

 

A descoberta do transtorno e a construção de significados para atenuar a angústia despertada pelo contato com uma realidade desafiadora

Para os pais, receber a notícia de que o seu filho possui algum TN é um momento muito difícil e doloroso (Fávero; Santos, 2005). No entanto, os estudos apontam que a forma e o momento em que o profissional da saúde ou a equipe multiprofissional vai abordá-los para informar o diagnóstico é de extrema importância, pois a maneira como essa abordagem é realizada e até mesmo as palavras que são utilizadas podem aumentar ou amenizar o sofrimento resultante (Fávero-Nunes; Santos, 2010).

Baseados em suas experiências, um participante do estudo aponta qual a melhor maneira dos pais serem informados, e que lhes ajudariam a encarar a realidade com menos sofrimento:

 

P3- “eu acho que o diagnóstico deve ser mais humanizado, não deve ser falado de supetão... nós já tínhamos percebido algo diferente nele, mas quando isso é falado, é um momento muito difícil.”

Os pais demonstraram que necessitam ser informados, esclarecidos e orientados, mas, sobretudo, compreendidos em seus sofrimentos e reações, pois acreditam e depositam esperança de uma vida melhor para o filho. Para Bogo, De Santana Cagnini, Raduenz (2014), a descoberta do TN já é por si impactante, porém nos casos em que os profissionais notificam de maneira ríspida, suscitam um sentimento de revolta nos pais, dificultando ainda mais a elaboração desse momento crítico. No estudo, a responsabilidade da comunicação recaiu em sua maioria sobre os médicos, apontando para a necessidade de melhor preparo destes profissionais para realizar adequadamente essa comunicação. As redes de apoio social, tanto familiar como de profissionais, são fundamentais no processo posterior de aceitação da condição diversa da criança, pois os pais conseguem encontrar um novo sentido e significado em suas vidas (Bogo; De Santana Cagnini; Raduenz, 2014).

 

P 14 – “eu me sinto perdida, ninguém me fala algo ao certo sobre o que minha filha tem. Me sinto sozinha nessa descoberta.”

 

No grupo estudado, o amor paterno/materno emergiu como o sentimento preponderante, o que impediu que possíveis sentimento de rejeição ocorridos no início do processo fossem mantidos. Embora tais relatos possam refletir o que é socialmente esperado, apontam que as implicações se refletem, mais explicitamente, na intensificação das reações de busca pela aceitação, a partir da vivência inicial de frustração:

P4 - “queria que ele fosse igual aos outros.”

P13 – “eles não têm a maldade.”

É possível observar a complexidade das situações que os pais vivenciam. As semelhanças e diferenças podem ser encontradas entre os pais e mães, assim, quando os pais expressam suas dificuldades do dia a dia, nem todos têm necessariamente as mesmas necessidades e os mesmos desejos, no que diz respeito às suas demandas específicas e de seus filhos.

Os desafios da integração família, escola e sociedade

Nas últimas décadas, as escolas vêm tentando melhorar suas relações com as famílias e a comunidade, propondo que pais e responsáveis participem mais ativamente da vida escolar de seus filhos. Contudo, com os afazeres e obrigações do dia a dia torna-se muito difícil conseguir que os pais dispensem tempo para participarem das atividades escolares.

A comunicação entre a escola e a família é fundamental para o pleno desenvolvimento infantil, visto que a criança é um ser em formação e essas duas instituições são os principais espaços sociais frequentados por ela. O Referencial Curricular Nacional para a Educação Infantil sublinha que todas as crianças têm direito de ser criadas e educadas no seio de suas famílias. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) reafirma, em seus termos, que a família é a primeira instituição social responsável pela efetivação dos direitos básicos das crianças. Cabe, portanto, às instituições estabelecerem um diálogo aberto com as famílias, considerando-as como parceiras e interlocutoras no processo educativo infantil (Brasil, Rcnei, 1998).

Os pais percebem que há dificuldades por parte da escola em se aproximar das famílias. Alguns pais argumentam a falta de tempo ou trabalho como justificativas para a não participação em atividades propostas na escola e baixo envolvimento na vida escolar de seus filhos. Às vezes, por necessidade ou comodidade, delegam a outros a responsabilidade de participar, levar ou buscar seus filhos na escola (Silva, 2017).

Para melhorar a integração das famílias com a escola é necessário que os pais se sintam atraídos. A comunicação com os pais deve ser valorizada, buscando uma sintonia com a instituição e com os professores. Para tanto, os canais de comunicação entre escola e família devem estar permanentemente abertos. Em especial, por meio de temas voltados para processo de ensino-aprendizagem:

 

P7 – “a escola disse, ele não vai aprender aqui, ela vai precisar ir estudar na APAE. Isso foi muito difícil pra nós.”

 

A dificuldade em aceitar uma escola de atendimento especializado na vida da criança torna-se clara quando se examinam as falas dos pais. Vale salientar que as famílias se envolvem com a educação dos filhos a partir do momento em que a escola abre espaço para esse engajamento, por meio de discussões acerca de seu processo de ensino-aprendizagem, a fim de compartilhar as informações, que cabem também aos pais, sobre o processo educativo, os projetos que foram/serão trabalhados ao longo do semestre ou do ano letivo. Portanto, o que falta é a escola promover atividades que se mostrem atrativas aos pais, e os pais buscarem comunicações mais efetivas no cotidiano escolar da criança.

          É intenção dos pais a adaptação da criança ao ambiente escolar para que ela se sinta incluída e cuidada, amada e segura. Considera-se que a escola não é apenas uma instituição de ensino-aprendizagem, mas um espaço social, no qual os alunos com TN têm possibilidades de estabelecer relações sociais, trocas de vivências e aprendizagem. Contudo, o isolamento do aluno com TN, e a realização de atividades individualizadas no contexto escolar, ainda constituem desafios a serem enfrentados na educação pública brasileira (Dos Santos; Da Silva, 2018).

Quando se fala em inadaptação escolar pensa-se, primeiramente, na inadaptação do aluno à escola. Entretanto, a inadaptação da escola ao aluno (especialmente o desajustamento da escola em relação às características e necessidades específicas de cada aluno dos vários ambientes geográficos e sociais) também deve ser considerada, conforme revela a fala de um pai:

 

P5 “[...] inadaptação da escola para receber a criança, sinto a escola despreparada para receber meu filho, não me sinto seguro.”

 

Segundo Reis (2015), apesar das mudanças observadas na LDB/MEC/1996 no que ser refere aos direitos da pessoa com deficiência à educação, essas ainda enfrentam dificuldades de participação plena e eficaz da/nas atividades educacionais e sociais desenvolvidas no espaço escolar.  É recorrente que a escola não apresente recursos humanos, sociais, materiais e financeiros suficientes para responder às suas necessidades. O problema central remete ao despreparo das escolas públicas em receber esses alunos, os desafios perpassam desde as questões de estrutura física até a formação inicial e continuada dos professores, preparação com debates, rodas de conversa dos alunos para o cultivo do respeito, valorização e convívio com a diversidade, dentro e fora do ambiente escolar (Dos Santos; Da Silva, 2018).

 

Conclusão

A análise detalhada das experiências e desafios enfrentados pelos pais de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento (TN) mostrou a urgência de implementar políticas públicas que contemplem não apenas as necessidades das crianças, mas também o bem-estar dos cuidadores. Ficou evidenciado que o suporte atual muitas vezes é percebido pelos pais como insuficiente e focado predominantemente na criança, não atendendo de forma adequada as demandas dos cuidadores familiares, que enfrentam estresse significativo e sobrecarga emocional. A pesquisa revela que o apoio social e o investimento em estratégias que favoreçam a construção da resiliência familiar são cruciais para o ajustamento e o bem-estar das famílias.

Uma dessas estratégias de enfrentamento é a participação em grupos de apoio. Estar em grupo permite que as experiências sejam compartilhadas, ampliadas e enriquecidas por meio do aprendizado compartilhado entre pares. Recursos inesperados podem ser desvelados, o que permite aos pais atenuarem sentimentos negativos e romper o isolamento social. Os resultados do estudo demonstram os efeitos benéficos quando os pais têm a oportunidade de refletirem sobre os sentimentos subjacentes às suas ações e atitudes no dia a dia, possibilitando a criação de novos sentidos para suas condutas e mudanças de comportamento, dentro de um ambiente de partilha, tolerância e promoção do convívio com a diversidade.

O contexto de grupo homogêneo favorece a coesão grupal e a troca de pontos de vista, que muitas vezes fazem com que os pais se sintam validados em seus modos de ser diante de cada experiência específica. Estar entre pares reforça os processos de identificação entre os pares, fortalecendo um clima de confiança mútua que facilita o compartilhamento de experiências, desde a descoberta do diagnóstico do transtorno do neurodesenvolvimento até as estratégias de ajustamento adotadas e os desafios da integração entre família, escola e sociedade.

Os achados deste estudo revelam que os grupos de discussão podem ter um efeito tranquilizador e estruturante para os pais. A situação de grupo entre pais de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento facilita uma troca genuína em torno de situações vividas por outras pessoas que, pelo fato de estarem vivendo situações parecidas, entendem e abrem caminho para a reflexão. Mesmo que o objetivo das rodas de conversa não seja terapêutico, é possível observar ganhos e benefícios induzidos pelo dispositivo de fala, na medida em que o trabalho não se baseia em uma visão patologizadora, mas visa à promoção do bem-estar e da qualidade de vida, mediante a potencialização do apoio entre as famílias que convivem com problemas semelhantes, ainda que dentro de suas singularidades.

O estudo realizado com o grupo "Prosa & Café" demonstrou que espaços de escuta e acolhimento, nos quais pais e responsáveis legais podem compartilhar experiências e buscar apoio mútuo, são fundamentais para aliviar o sofrimento e promover a saúde mental dos cuidadores. A identificação de termos apropriados para descrever os transtornos dos filhos e a distinção entre os papéis materno e paterno temas centrais que emergem nas discussões, refletindo a necessidade de uma abordagem sensível e inclusiva.

Além disso, a pesquisa destaca a importância da comunicação humanizada do diagnóstico, que possa minimizar o impacto emocional inicial da notícia. A trajetória de peregrinação por serviços de saúde mal preparados e a falta de um suporte continuado e especializado evidenciam a lacuna existente no atendimento a essas famílias.

Para avançar na melhoria da qualidade de vida de pais e crianças, é imperativo que profissionais de saúde e educadores sejam sensibilizados e capacitados para integrar a rede de apoio, aprimorando suas práticas em consonância com políticas públicas bem desenhadas e implementadas na comunidade. O desenvolvimento de programas e serviços especializados, bem como a criação de redes de suporte social robustas, são passos essenciais para garantir um suporte abrangente e efetivo.

Em suma, esta pesquisa sublinha que o bem-estar dos pais de crianças com TN deve ser visto como uma prioridade nas políticas públicas, visando não apenas o desenvolvimento das crianças, mas também a saúde emocional e o bem-estar psicológico de seus cuidadores. Somente com uma abordagem integral e sensível será possível promover um ambiente mais acolhedor e resiliente para essas famílias.

A conclusão deste estudo reforça a importância de reconhecer e atender às necessidades dos pais de crianças com transtornos do neurodesenvolvimento (TN) nas políticas públicas de apoio familiar. Observa-se que o suporte atualmente oferecido é frequentemente insuficiente e excessivamente focado na criança, deixando de lado a preocupação com a preservação do bem-estar dos cuidadores. O uso de estratégias de enfrentamento inadequadas, como o distanciamento e a autoculpabilização, contribuem negativamente para o ajustamento familiar, evidenciando a necessidade de uma abordagem mais compreensiva e integrada. Assim, a criação de espaços de escuta e acolhimento, como o grupo "Prosa & Café", mostrou ser eficaz na promoção de trocas de experiências e no alívio de tensões emocionais geradas pela sobrecarga decorrente dos cuidados, destacando a relevância de um suporte comunitário robusto.

 

 

         


 

 

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