Ver para se fazer ouvir: Libras como segunda língua obrigatória para estudantes do ensino médio
Seeing to be heard: Libras as a mandatory second language for high school students
Ver para ser escuchado: Libras como segunda lengua obligatoria para estudiantes de secundaria
Universidade Santa Cecília, Santos - SP, Brasil.
EBTT do Instituto Federal de São Paulo, Capivari – SP, Brasil.
Universidade Federal de São Paulo, UNIFESP, Vila Clementino – SP, Brasil.
Recebido em 29 de agosto de 2024
Aprovado em 13 de setembro de 2024
Publicado em 12 de março de 2025
RESUMO
Analisa-se a implementação da Língua Brasileira de Sinais como disciplina obrigatória para todos os alunos ingressantes no ensino médio técnico no Instituto Federal de São Paulo, campus Capivari. Parte-se do arcabouço legal existente à educação inclusiva para a valorização desta implementação e sustenta-se a existência de uma governamentalidade democrática na inserção dessa parcela populacional dentro dos regimentos educacionais do colégio. Esta hipótese é sustentada a partir da inclusão do ensino de Libras dentro da Comissão de Atividade Docente de Linguagens, em consonância com as demandas da população local. Identificou-se que sua obrigatoriedade tem potencialidades diversas de rupturas aos padrões estabelecidos e pode, como consequência, permitir socializações outras. Conclui-se, nesse sentido, que a importância de democratizar o conhecimento acerca da Libras para a justa inclusão da população surda nos espaços de ensino-aprendizagens é de fundamental importância para que a escola se torne não apenas propício espaço de acolhimento e proteção às infâncias e juventudes, como também que os afetos sejam agenciados para a as mudanças sociais tão urgentes na contemporaneidade.
Palavras-chave: libras, ensino de surdos, instituto federal de são paulo
ABSTRACT
Analyzes the implementation of the Brazilian Language of Sinais as a mandatory discipline for all incoming students in the technical field at the Federal Institute of São Paulo, Capivari campus. Part of the existing legal framework for inclusive education to valorize this implementation and sustain the existence of a democratic government in the insertion of this population parcel within two school educational regimens. This hypothesis is supported by the inclusion of the provision of Libras within the Comissão de Atividade Docente de Linguagens, in consonance with the demands of the local population. Identified that its obligation has diverse potentialities of ruptures between established parents and can, as a consequence, allow other socializations. It is concluded, in this sense, that the importance of democratizing the knowledge about Libras for the fair inclusion of the population in our teaching-learning spaces is of fundamental importance so that the school becomes not only conducive to space for the support and protection of children and youth, as well as that the affections are organized for the social changes that are urgent in the contemporary world.
Keywords: libras, teaching the deaf, federal institute of são paulo
RESUMEN
Se analiza la implementación de la Lengua de Señas Brasileña como asignatura obligatoria para todos los estudiantes que ingresan a la educación secundaria técnica en el Instituto Federal de São Paulo, campus Capivari. Se fundamenta en el marco legal existente en materia de educación inclusiva para valorar esta implementación y sustenta la existencia de una gubernamentalidad democrática en la inclusión de esta población dentro de la normativa educativa escolar. Esta hipótesis se sustenta en la inclusión de la enseñanza de Libras dentro del Comité de Actividades de Enseñanza de Lenguaje, en línea con las demandas de la población local. Se identificó que su obligación tiene diferente potencial de romper estándares establecidos y puede, como consecuencia, permitir otras socializaciones. Se concluye, en este sentido, que la importancia de democratizar el conocimiento sobre Libras para la justa inclusión de la población sorda en los espacios de enseñanza-aprendizaje es de fundamental importancia para que la escuela se convierta no sólo en un espacio propicio para acoger y proteger a niños y jóvenes, así como que se unan afectos por los cambios sociales que tan urgentes son en la época contemporánea.
Palabras-claves: libras, enseñanza de sordos, instituto federal de São Paulo
Introdução
O ensino da Língua Brasileira de Sinais, embora esteja dentro da área de linguagens, transcende em muitos aspectos as questões educacionais e atinge uma série de particularidades que a faz merecer ser implementada como segunda língua obrigatória nas escolas brasileiras. Sustentamos sua importância a partir de detida análise de sua implementação e desenvolvimento no Instituto Federal de São Paulo (IFSP), campus Capivari, desde 2022, quando o ensino de Espanhol e Libras se tornaram obrigatórios.
Para o IFSP (2015), ações de extensão são de grande valia porque insere a rede federal de ensino nas localidades onde existem escolas e, ao mesmo tempo, enriquece o processo educativo ao possibilitar a "formação de consciência crítica tanto da comunidade interna do IFSP, quanto dos diversos atores sociais envolvidos", conforme destacado no art. 1º, § 1.º em portaria que regulamenta as ações de extensão do IFSP. Esta necessidade foi constatada em 2015, quando da realização de cursos de Formação Inicial e Continuada (FIC) em Libras: básico, intermediário, avançado e conversação para a comunidade local, sobretudo professores estaduais e municipais da região.
Ao entendermos que "a educação é comunicação, é diálogo, na medida em que não é a transferência de saber, mas um encontro de sujeitos interlocutores que buscam a significação dos significados" (Freire, 1983, p. 47) valorizamos práticas de extensão para que a educação dialógica ocorra entre o saber científico existente nos bancos universitários e o saber popular presente na sociedade local. Dessa forma, estreitam-se laços e fortalecem-se vínculos.
A capilaridade valorizada pela rede federal de ensino tem como objetivo que os cursos do ensino médio técnico verticalizem as suas formações ao ensino superior, tanto em graduação como especialização, mestrado e doutorado. Não obstante, ao identificar a existência de cursos de extensão com o objetivo de que "as ações de extensão devem promover o desenvolvimento sociocultural e regional sustentável como tarefas centrais a serem cumpridas, fundamentadas na diversidade cultural e defesa do meio ambiente e dos direitos humanos" (IFSP, 2015), busca-se se inserir na comunidade local como um agente de transformação social.
Com a obrigatoriedade do ensino de Libras para as licenciaturas (Brasil, 2002, 2005) e tendo o campus Capivari o curso de graduação em licenciatura em química, os professores da Comissão de Atividade Docente da área de linguagens levaram à reunião a importância de sua implementação não apenas aos alunos da graduação como também aos alunos do ensino médio técnico. O próprio Decreto n. 5626, dispõe que "§ 2º A Libras constituir-se-á em disciplina curricular optativa nos demais cursos de educação superior e na educação profissional, a partir de um ano da publicação deste Decreto" (Brasil, 2005).
Dada esta obrigatoriedade e a demanda da comunidade local identificada quando da realização de cursos FIC, as Comissões de Elaboração e Implementação de Projetos Pedagógicos de Cursos de Educação Básica (CEICs) do IFSP campus Capivari aprovaram a sua inserção na matriz curriculares de seus cursos médio técnicos.
Ainda nesse sentido, a reforma do novo ensino médio, implementada em 2022, trouxe alterações significativas na estrutura curricular das escolas. A reforma visava oferecer uma educação robusta alinhada às necessidades da sociedade atual e com forte influência de setores privatistas do mercado.
Vilaronga e Silva (2021) salientam que o aumento de alunos surdos no IFSP pode ser em decorrência das parcerias, capacitação profissional ou estratégias específicas para esse público-alvo. Com o interesse de melhor incluir alunos com deficiências, como no caso de alunos surdos, a rede federal de ensino conta com a existência do Núcleo de Apoio às Pessoas com Necessidades Educacionais Específicas, o Napne (IFSP, 2014), que tem como objetivo a promoção da inclusão em seus campus.
Assim, a partir desta introdução, o artigo se divide em outros dois momentos. O primeiro, intitulado o estrangeiro de si mesmo, tem como objetivo analisar como a obrigatoriedade do ensino de Libras aos alunos ingressantes no ensino médio técnico do IFSP campus Capivari impactou a comunidade escolar, a partir desta aproximação inicial com a língua. Já o segundo, nomeado desafios à democratização do ensino de Libras, sustenta a importância de, sendo ela uma língua brasileira de sinais, que esta se faça presente obrigatoriamente nos currículos escolares de maneira à efetivação da política pública de inclusão em vista do fortalecimento político no campo do afeto.
O estrangeiro de si mesmo
Pensar a educação em sua formação integral é um dos grandes pilares dos Institutos Federais. Ao situar os alunos em seus contextos históricos e trazer discussões contemporâneas ao processo de escolarização, busca-se formar cidadãos críticos e com capacidade de desenvolver relevantes mudanças de paradigmas com relação à vida.
Entre as andanças pelos corredores, construções de laços afetivos durante as aulas e produções de conhecimentos coletivos e horizontalizados nas semanas temáticas, o IFSP acredita que as funções cidadãs de seus alunos serão mais bem apropriadas ao longo de seus processos formativos.
Dentre as finalidades e características dos Institutos Federais, valoriza-se a sua constituição "em centro de excelência na oferta do ensino de ciências, em geral, e de ciências aplicadas, em particular, estimulando o desenvolvimento de espírito crítico, voltado à investigação empírica" (Brasil, 2008). Assim, localizar sociohistoricamente seus alunos nos contextos de vida e nos atravessamentos que o ensino crítico e inclusivo pode propiciar na formação integral da humanidade é de fundamental importância em seu processo educacional. Não obstante, permitir aos discentes o contato e conhecimento com a Libras possibilitará suas criticidades quanto a importância de políticas públicas de inclusão.
Como Pereira, Nascimento e Martins (2024) entendem que "há, ainda, uma grande lacuna entre as propostas de inclusão previstas na Legislação Brasileira com as experiências vividas pelos alunos surdos dentro do processo de inclusão nas escolas regulares." (p. 17), entendemos que quando o IFSP chama para si a responsabilidade de se colocar como um agente de transformação social muitos desses problemas identificados pelas autoras podem ser superados.
Ainda nesse sentido, o IFSP deve "estimular e apoiar processos educativos que levem à geração de trabalho e renda e à emancipação do cidadão na perspectiva do desenvolvimento socioeconômico local e regional" (Brasil, 2008). Para tanto, o "Conselho Superior, de caráter consultivo e deliberativo, será composto por representantes dos docentes, dos estudantes, dos servidores técnico-administrativos, dos egressos da instituição, da sociedade civil, do Ministério da Educação e do Colégio de Dirigentes do Instituto Federal, assegurando-se a representação paritária dos segmentos que compõem a comunidade acadêmica" (Brasil, 2008). Portanto, percebe-se a preocupação do IFSP em ter paridade de forças representativas da sociedade de maneira a situar cada unidade educacional dentro de sua região e conforme as necessidades ali existentes.
No campus Capivari, estas características podem ser mais facilmente identificadas quando da instituição do ensino de Libras como disciplina obrigatória a todos os alunos ingressantes em seus processos seletivos do ensino médio técnico integrado. Ao buscarem formação profissional, algo característico do ensino técnico, os alunos também vivenciam processos de formação subjetiva à cidadania. Decorre desse processo a institucionalização da matriz curricular produzida pelos próprios professores, em consonância com a liberdade de cátedra sustentada pela Constituição Federal (Brasil, 1988).
Não obstante, o Art. 28 da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência "incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar: I - sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida" (Brasil, 2015). Ou seja, ao se instituir um sistema educacional inclusivo e ao promover a obrigatoriedade do ensino de Libras para todos os alunos ingressantes no ensino médio técnico do IFSP campus Capivari, a escola visa a promoção de políticas afirmativas inclusivas e a inserção de alunos egressos melhor formados em suas criticidades.
Para Gallo (2012), esta captura do estado por meio de legislações específicas para crianças e adolescentes é o que vem a ser a governamentalidade democrática. O autor entende que a promoção de uma série de dispositivos legais que insere as crianças, desde seus primeiros anos de idade, em regimentos legais para as suas proteções, decorre da mudança do estado brasileiro que outrora era comandado por militares e que, após o fim da ditadura civil-empresarial-militar houve a necessidade de se atentar às inúmeras demandas da sociedade outrora silenciadas. Automaticamente, esta governamentalidade democrática também acaba por produzir quais infâncias foram capturadas pelos dispositivos legais e quais escaparam deste controle do estado brasileiro.
Por muito tempo, crianças neurodivergentes e com deficiências escaparam do controle do estado e foram escolarizadas às suas próprias sortes - muitas delas sequer foram escolarizadas no tempo correto. No caso das pessoas surdas, quando da não existência de dispositivos legais para sua proteção, estas chegam à fase adulta com certo grau de analfabetismo. Guarinello e Berberian (2009) afirmam que "o fato de não ouvir ou de não adquirir a linguagem oral muitas vezes é apontado como sendo a razão pela qual o surdo apresenta dificuldades com relação à apropriação da leitura e da escrita" (p. 103). Como consequência, quando a escola não se prepara para a inclusão de crianças surdas, incorre-se ao risco de ser um ambiente capaz de ampliar a segregação desta parcela populacional.
Ao valorizar o fluxo de pessoas, conhecimentos e saberes, o IFSP campus Capivari empreende na formação cidadã importantes pontos de inflexão no que se refere ao respeito às diferenças. Destaca-se, como exemplo, a existência da Comissão da Diversidade, ocupada por servidores e alunos, em que se busca de forma coletiva a promoção de políticas de inclusão no cotidiano da instituição. Outro exemplo importante é a concentração de áreas do saber na proposição de políticas públicas específicas. Aqui, ao que nos cabe, destacamos a Comissão de Atividade Docente da área de linguagens que sustentou a importância do ensino de Libras obrigatório para todos os alunos ingressantes no ensino médico técnico.
Com o objetivo de os alunos terem contato com a língua brasileira de sinais e aprender o básico necessário, tanto no que se refere ao embasamento teórico quanto na comunicação via sinais, busca-se apresentá-los a importância de as linguagens serem inclusivas e democráticas, de maneira tal que, frente a possibilidade de discentes ingressantes surdos os alunos regularmente matriculados, seus pares estarão minimamente preparados para a inclusão do aluno surdo.
A mesma preocupação ocorre perante a possibilidade de servidores ou funcionários contratados surdos também conseguirem se comunicar com os alunos na unidade educacional. Logo, esta aprendizagem do básico da linguagem, de forma obrigatória aos recém-ingressantes no IFSP campus Capivari, tem como objetivo possibilitar aos alunos que se interessarem pela Libras continuarem seus estudos como disciplina optativa, visto que sua obrigatoriedade curricular se faz presente apenas no primeiro ano dos alunos ingressantes.
Lacerda salienta que
O aluno surdo é usuário de uma língua que nenhum companheiro ou professor efetivamente conhece. Ele é um estrangeiro que tem acesso aos conhecimentos de um modo diverso dos demais e se mantém isolado do grupo (ainda que existam contatos e um relacionamento amigável). A questão da língua é fundamental, pois, sem ela, as relações mais aprofundadas são impossíveis, não se pode falar de sentimentos, de emoções, de dúvidas, de pontos de vista diversos. (2006, p. 177)
A sua constatação é importante porque coloca o aluno surdo no lugar do não-lugar, o estrangeiro de si mesmo que, por não ouvir e estar em uma escola onde seus colegas e professores desconhecem sua língua, explicita-se que barreiras educacionais serão vivenciadas diferentemente entre alunos ouvintes e surdos. Ao mesmo tempo, destaca a existência de múltiplos corpos e diversas experiências de si. Estas multiplicidades corpóreas não eliminam as singularidades existentes em cada um; muito pelo contrário, reconhece que a escola é um local plural, múltiplo e diversificado.
Nesse sentido, quando o currículo escolar se preocupa com estas identidades que transbordam e se prepara para a promoção de práticas inclusivas todos ganham com estas novas abordagens. Concomitante, coloca-se no cerne do debate o que pode uma escola e quais as possibilidades que esta pode oferecer para a sociedade quando se interessa pela superação das desigualdades e à promoção da inclusão.
A liberdade de cátedra sustentada como ponto de fixação do IFSP permite que o currículo escolar seja emancipador à comunidade escolar e provocador às cidades onde as escolas estão fixadas. Não obstante, a formação crítica de seus educandos é sistematicamente alimentada pelos profissionais ali envolvidos com o fazer educacional.
De maneira a colaborar com o trabalho docente, o NAPNE ajuda na discussão sobre o processo de inclusão escolar com base no processo de escolarização daquele aluno com deficiência. Análises sobre o contexto sociofamiliar são de grande importância para que ações específicas sejam produzidas durante a aprendizagem do aluno. Sendo o NAPNE um núcleo com a participação de servidores e colaboradores, como os professores substitutos, busca-se atuar de forma conjunta para mitigar a evasão e criar mecanismos específicos para o sucesso escolar de alunos com deficiência.
Seu caráter integrador permite que os campis articulem entre si políticas específicas de inclusão de maneira a se apoiarem coletivamente no enfrentamento de determinada questão. Com este objetivo, cabe ao núcleo a construção do Plano de Trabalho Individualizado (PEI). Em seu Art. 7' , parágrafo único, afirma-se que
as avaliações do PEl, periódicas e sistemáticas, serão planejadas pelos profissionais dos câmpus, a depender do caso apresentado. Nessas (re)avaliações, devem ser levantadas as informações anteriormente apresentadas na primeira e segunda etapa do PEl, com a atualização destas e a análise do plano pedagógico quanto ao desenvolvimento do estudante no processo de ensino e aprendizagem e as possíveis adequações necessárias. (IFSP, 2017)
O desenvolvimento de um plano pedagógico específico para pessoas com deficiência visa a inclusão, a manutenção e a conclusão dos estudos por aqueles que demandarem desta política pública existentes na rede federal de ensino. Desse modo, pode-se perceber que o IFSP busca, dentro de suas possibilidades, a promoção da democratização de acessos e permanência de todos os estudantes em seus espaços educacionais.
Desafios à democratização do ensino de Libras
Muito embora cada vez mais a comunidade surda no Brasil vem ganhando espaço e influência nas decisões das políticas públicas como, por exemplo, cargos em gestão, em secretarias e nos ministérios, a efetivação da real inclusão desta parcela populacional ainda encontra significativas dificuldades. Dessa forma, ganha-se importância o preparo da sociedade para o enfrentamento coletivo às necessidades dos surdos.
A inclusão escolar é apenas um dos pilares que estrutura a democratização ao conhecimento científico existente nos espaços educacionais. Pois, para que esta inclusão de fato ocorra, há de se ter o letramento em Libras a todos os envolvidos com o fazer pedagógico. Muito embora o arcabouço legal existente no país objetiva a inclusão e a acessibilidade, as dificuldades enfrentadas ainda denotam o quanto o país precisa evoluir em sua política de inclusão. Afinal,
estudantes surdos conquistaram oficialmente o direito de utilizar, como primeira língua, uma língua diferente do português em seu processo de escolarização a partir de 2002. Esse direito linguístico constitui consenso no campo das políticas educacionais e encontra-se objetivado nos principais documentos que compõem a política nacional de Educação Especial/ Inclusiva. (Fernandes, Moreira, 2017, p. 132)
Entretanto, é de crucial importância que todos os participantes com o fazer educacional compreendam a importância da Libras como primeira língua de maneira tal que todos realizem cursos de formação continuada para estarem mais bem preparados quando do aparecimento de alunos surdos em suas salas de aula e espaços educacionais. Chamamos atenção a este fator porque compreendemos que quanto mais bem formado os profissionais da educação estiverem mais farão da escola um espaço plural, de respeito às diferenças e pontos de referência de qual sociedade se busca formar a partir de seus espaços.
Logo, ancora-se na teoria pós-crítica pela valorização do multiculturalismo presente no itinerário formativo de cada indivíduo presente na escola e como suas realidades socioeducacionais os atravessaram na formação de suas subjetividades. Em outras palavras, entendemos que um aluno surdo observa o mundo a partir de uma perspectiva outra não presente naquele aluno ouvinte. Deste modo, quando do encontro entre ambos a escola tem maiores probabilidades de incidir na formação crítica de seus alunos e, por consequência, democratizar mais o ensino de Libras para todos.
Ainda para Fernandes e Moreira,
como resultados positivos das políticas de acesso e permanência, apontamos as contribuições ao letramento acadêmico bilíngue de estudantes surdos, o desenvolvimento de metodologia específica para elaboração de materiais bilíngues, em diferentes gêneros textuais, a ampliação dos referenciais de atuação do tradutor-intérprete no processo de inclusão. (2017, p. 146-147)
Assim, torna-se de fundamental importância o convite para toda a comunidade escolar participar como agente ativo de seus processos de formações de maneira tal que surdos e ouvintes sejam atuantes nas metodologias de ensino-aprendizagens a ser desenvolvida. Como "os estudos culturais concebem a cultura como campo de luta em torno da significação social" (Silva, 1999, p. 133) as múltiplas leituras de mundo existentes em uma mesma sala de aula permitem significativa dilatação deste processo de ensino-aprendizagem.
Quando os alunos são convidados a compreenderem os processos políticos existentes nas tomadas de decisão, consequentemente eles terão maiores condições de valorizarem a importância do coletivo na gestão de suas próprias vidas. Não em perspectiva do empresariamento de si e sua subjetividade neoliberal da individualização, mas sim a partir da valorização da luta coletivo em vista da conquista de direitos sociais.
Indubitavelmente, o currículo emerge aqui como espelhamento das relações de poder existentes na sociedade e nos locais de tomadas de decisão como espaços que necessitam ser ocupados por parcelas sociais silenciadas e marginalizadas pela própria sociedade. Outrossim,
a concepção de identidade cultural e social desenvolvida pelas teorias pós-críticas nos tem permitido entender nossa concepção de política para muito além de seu sentido tradicional - focalizado nas atividades ao redor do Estado. A conhecida consigna 'o pessoal também é político', difundido pelo movimento feminista, é apenas um exemplo dessa produtiva tendência. (Silva, 1999, p. 146).
Logo, quando da tomada de consciência política coletiva pelos alunos e profissionais envolvidos com o fazer educacional, vidas outras começam a emergir nestes espaços. Nascimento e Acosta (2023) chamam atenção "às singularidades surdas (... e) que a presença do corpo surdo na escola constitui um elemento catalisador de novos olhares que excedem a perspectiva ouvinte sobre eles, quando se mobiliza o pensar didático-pedagógico" (p. 367). Ademais, quando a escola permite que as multiplicidades se façam presentes em suas concepções pedagógicas de formação integral à humanidade, as próprias singularidades existentes em cada sujeito dimensionam o caráter político do fazer educacional.
Como consequência deste encontro entre singularidades e multiplicidades nos corpos ali presentes, todos os participantes podem direcionar seus focos em uma sociedade mais inclusiva e democrática gestacionada ainda quando estudantes escolares. Os desafios enfrentados são múltiplos e diversos, mas isso não significa que são impossíveis e irrealizáveis. Muito pelo contrário, quando da tomada da consciência política crítica pelos alunos e quando do entendimento de que as mudanças sociais começam em suas práticas cotidianas e diárias, as políticas de inclusão e de combate às desigualdades começam ali a serem efetivadas.
Esta construção política da coletividade entre alunos surdos e ouvintes permitirá a problematização do próprio modo individual que o neoliberalismo impôs à sociedade, sobretudo com suas competições. Butler (2019) destaca a dimensão pública e política do corpo e, como consequência, o quanto a precariedade de uma vida incide sobremaneira em sua vulnerabilidade. Em outras palavras, esta dimensão política do corpo é capaz de se contrapor aquilo que o Estado produz por meio da biopolítica e da governamentalidade (Foucault, 2008a, 2008b).
Para o autor francês, a biopolítica é a entrada do Estado (política) no corpo (bio) dos sujeitos por meio do controle de natalidade, higiene, sexualidade, dentre outros, com o objetivo de extrair o seu melhor poder produtivo. Já a governamentalidade decorre dos melhores mecanismos para assujeitamento dos indivíduos para aquilo almejado pelo Estado. Ambos, para Foucault, se inscrevem no governo das vidas.
Daí a importância de Sílvio Gallo na compreensão de que, com o fim do período ditatorial no Brasil e com a consolidação de políticas públicas em perspectiva social, ocorreu no país uma governamentalidade democrática. Ou seja, uma captura do Estado brasileiro para a produção e sujeição de corpos agora postos em evidência por meio de dispositivos legais.
Ainda assim, quando Delanhese e Storto (2024) analisaram a educação de surdos no ensino superior, identificaram que "quanto menor o número de surdos nessa modalidade de ensino, menor será o número de pesquisas na área (p. 23)". Suas constatações nos são de grande estima porque nos ajuda a situar os problemas vivenciados pela população surda quando do silenciamento de suas existências uma vez que eram praticamente inaudíveis pelo Estado brasileiro.
Com a efetivação das políticas públicas de inclusão os corpos outrora postos à anormalidade e aos espaços segregados podem, tão breve e como consequência, encontrar ecos a serem ouvidos ou sentidos na sociedade. Ao fim e ao cabo, a inclusão do ensino de Libras obrigatório entre alunos ingressantes no ensino médio técnico do IFSP campus Capivari produz o fortalecimento político no campo do afeto.
Vale destacar que "a inclusão pode ser tomada como contraespaço ou uma heterotopia surda capaz de promover uma experiência com a educação de outra maneira e com outras referências, a partir da escola que temos" (Carvalho, Martins, 2016, p. 413) sobretudo porque quando do surgimento do aluno surdo na escola e sua forma inaudível de ler o mundo possibilidades outras podem emergir.
Daí a importância de constantemente colocarmos a ortopedia escolar sob constante foco de crítica e análise, afinal, entre a produção dos corpos e a gestão do tempo ali existentes, transbordam toques, sensações e afetos. Em outras palavras, a obrigatoriedade do ensino de Libras tem potencialidades em transformar a escola em "espaços de experimentações educacionais de interesse público - estes, mais plurais e emancipatórios" (Acosta, 2024, p. 134). De modo semelhante, Carvalho e Gallo (2023) destacam a importância de que
compreender a norma e decifrar os processos de sua introdução e operação nos meios escolares é algo de fundamental importância, mas insuficiente. Para além de compreender tais processos, é preciso exercitar a coragem de deles desconfiar, de denunciar sua ilegitimidade, de não se deixar apaixonar por esses poderes, de colocar a nu as aleturgias que buscam garantir seu poder de verdade. Para dizer de modo breve, anarquizar a clínica, anarquizar a escola. (p. 14)
Estas sistemáticas críticas, vigilâncias e deciframentos perante as normas existentes nas escolas, seja por meio da coragem da verdade do enfrentamento ou a partir da desconfianças frente às relações de poder, dão maiores potencialidades para que a prática do ensino de Libras seja muito mais libertária do que apenas o letramento em uma segunda língua, mas sim uma maneira de ver o aluno surdo para se fazer ouvir a população surda brasileira.
Do Plano Educacional Especializado à efetivação da política de permanência estudantil às pessoas com deficiência, significativos deslocamentos são experienciados entre todos os participantes do fazer educacional. Não apenas os profissionais ali presentes como também os estudantes ali existentes, muitas das noções de normalidade marcadas no imaginário social são postas em discussão.
Conclusão
Este artigo buscou situar a importância do ensino de Libras para todos os alunos do ensino médio de maneira a democratizar o acesso aos espaços na sociedade brasileira. Quando Roque e Nascimento afirmam que "ser surdo situa o sujeito em uma situação extraordinária na qual se apresentam diferentes possibilidades linguísticas" (2020, 106), entendemos que a sua existência tem infinitas potencialidades de colocar a própria matriz a/normal e surdo/ouvinte em discussão. Isso porque sustentamos, com base na pedagogia libertária, a importância de fazer das escolas públicas locais de interesse público; não do Estado ou do empresariado.
Os agenciamentos de afeto produzidos entre estudantes e profissionais da educação transcendem documentos normativos legais e a imposição de uma Base Nacional Comum Curricular que, como diz o próprio nome, busca impor um currículo comum a todos. O que buscamos aqui foi diametralmente oposto, situar alunos e profissionais da educação como agentes ativos no processo educacional em execução e, por consequência, valor o espírito da coletividade em contraponto aos individualismo ora esperados.
Fazer o surdo ser visto é, portanto, de crucial importância para que práticas pedagógicas outras se apresentem nas escolas. Ao mesmo tempo, suas existências mostram os limites que os alunos ouvintes têm quando defrontados com aquilo que foge aos seus costumes. Ora, se a escola é espaço de socialização e aprendizagem, alunos e profissionais da educação necessitam com urgência de letramento em Libras. Não mais como uma aproximação básica e inicial para comunicação, conforme destacamos na introdução deste trabalho; mas sim em bases outras a partir do sentido político e disruptivo que a Libras é capaz de gerar nas escolas.
Ainda que acreditemos na escola como espaço propício de segurança para as infâncias e juventudes, sustentamos a importância dela dar passos para além do que é produzido e esperado pelo Estado. Ou seja, potencializar o que a escola tem de mais característico em seu cotidiano: o encontro de corpos, de símbolos, de subjetividades, objetividades, singularidades e multiplicidades. Mais do que emancipar sujeitos, suas formações políticas, solidárias e coletivas necessitam ser a força motriz das mudanças sociais almejadas.
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