Transtorno do Espectro Autista e a família: desafios e possibilidades a partir da Ética da Alteridade
Autistic Spectrum Disorder and the family: challenges and possibilities from the ethics of alterity
El Trastorno del Espectro Autista y la familia: desafíos y posibilidades desde la ética de la alteridad
Universidade Federal de São Carlos, São Carlos – SP, Brasil.
livia.nicolau@estudante.ufscar.br
Instituto Federal de São Paulo, São Paulo – SP, Brasil.
Instituto Federal de São Paulo, São Paulo – SP, Brasil.
Recebido em 06 de abril de 2025
Aprovado em 15 de setembro de 2025
Publicado em 29 de setembro de 2025
RESUMO
O presente texto visa apresentar os resultados de uma pesquisa cujo objetivo foi o de investigar os impactos éticos gerados com a chegada de um membro com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no contexto familiar. A perspectiva de análise está sustentada na ética da alteridade de Emmanuel Levinas, em seu convite para pensar o encontro com o Outro a partir da sensibilidade e da responsabilidade. Metodologicamente, o trabalho partiu de uma revisão bibliográfica narrativa sobre o TEA e a ética da alteridade, seguida da coleta de dados através de entrevistas e questionários, que foram analisados e sistematizados. Os resultados demonstram que a experiência do diagnóstico provoca uma profunda “metamorfose ética” na família, exigindo uma reconfiguração do Eu diante da irredutível alteridade do Outro. A pesquisa contribuiu para ampliar o debate sobre a inclusão, ao demonstrar que a figura do Outro com TEA é o ponto de partida para a construção de uma relação de responsabilidade, que pode, enfim, servir na construção de políticas públicas que atendam efetivamente às demandas desta população.
Palavras-chave: Transtornos do Espectro Autista; Alteridade; E. Levinas; Família.
ABSTRACT
This research aimed to reflect on the ethical impacts generated by the arrival of a family member with Autism Spectrum Disorder (ASD). The analytical perspective is based on Emmanuel Levinas's ethics of alterity, in its invitation to consider the encounter with the Other from a place of sensitivity and responsibility. Methodologically, the work started with a narrative bibliographic review on ASD and the ethics of alterity, followed by data collection through interviews and questionnaires, which were analyzed and systematized. The results demonstrate that the diagnostic experience provokes a profound "ethical metamorphosis" in the family, requiring a reconfiguration of the Self in the face of the irreducible alterity of the Other. The research contributes to broadening the debate on inclusion by showing that the figure of the Other with ASD is the starting point for building a relationship of responsibility, which can, in turn, be used to create public policies that effectively meet the demands of this population.
Keywords: Autism Spectrum Disorders; Otherness; E. Levinas; Family.
RESUMEN
Esta investigación tuvo como objetivo reflexionar sobre los impactos éticos generados por la llegada de un miembro con Trastorno del Espectro Autista (TEA) al contexto familiar. La perspectiva de análisis se basa en la ética de la alteridad de Emmanuel Levinas, en su invitación a pensar el encuentro con el Otro desde la sensibilidad y la responsabilidad. Metodológicamente, el trabajo partió de una revisión bibliográfica narrativa sobre el TEA y la ética de la alteridad, seguida de la recopilación de datos a través de entrevistas y cuestionarios, que fueron analizados y sistematizados. Los resultados demuestran que la experiencia del diagnóstico provoca una profunda "metamorfosis ética" en la familia, exigiendo una reconfiguración del Yo ante la irreducible alteridad del Otro. La investigación contribuye a ampliar el debate sobre la inclusión, al demostrar que la figura del Otro con TEA es el punto de partida para la construcción de una relación de responsabilidad, que puede, en definitiva, servir para la construcción de políticas públicas que atiendan efectivamente las demandas de esta población.
Palabras clave: Trastornos del Espectro Autista; Alteridad; E. Levinas; Familia.
Introdução
O presente trabalho traz resultados do desenvolvimento de um projeto de pesquisa fomentado pelo CNPq, cujo objetivo foi identificar e refletir sobre os impactos éticos gerados com a chegada de um membro com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no contexto familiar. O TEA refere-se a um grupo de distúrbios do desenvolvimento neurológico, que se inicia na infância (Flores; Valenzuela, 2017). A ética da alteridade de Levinas propõe uma humanização das relações humanas, transformando a relação entre o Eu e o Outro a partir da alteridade. Embora fundamental na constituição da nossa subjetividade, a figura do Outro foi cultural e filosoficamente esquecida e colocada fora de cena, preservando apenas o Eu. Isso acontece por o Outro ser diferente dos padrões historicamente estabelecidos, por exemplo: homem branco, hétero, cristão e neurotípico – um rótulo para pessoas que não possuem nenhuma neurodivergências (Rizzo, 2018).
Levando isso em consideração, a pesquisa teve como propósito refletir sobre as mudanças éticas que ocorrem com a chegada de um membro com TEA no contexto familiar, buscando compreender os impactos a partir do conceito da ética da alteridade radical, concebida pelo filósofo franco-lituano Emmanuel Levinas. Nosso problema de pesquisa pode ser formulado da seguinte maneira: como a chegada de um filho com diagnóstico de Transtorno do Espectro Autista transforma a estrutura familiar e as relações internas desse núcleo?
Para alcançar a resposta, foi preciso recorrer à metodologia de revisão bibliográfica narrativa (Rother, 2007) e a entrevistas, com casais que receberam o diagnóstico de autismo em seus filhos. A partir da análise do conteúdo de Bardin (2016), identificamos categorias que colaboram para uma compreensão sobre o TEA, suas famílias e as metamorfoses éticas que ocorrem com a chegada de um membro com TEA. Destacamos que as entrevistas, e todos os passos metodológicos, foram aprovados tanto pela Plataforma Brasil (Parecer: 5.504.013 de 01/07/2022), quanto pelo Comitê de Ética do IFSP.
Perspectiva histórica
Para entender o contexto desse desafio ético, é fundamental olhar para a história do autismo. Em 1943, Kanner publicou na revista Nervous Child o artigo Autistic Disturbances of Affective Contact, em que descreveu 11 crianças (oito meninos e três meninas) com idades entre dois e oito anos. Em sua pesquisa, ele descreveu uma condição neurológica que, aparentemente, se manifesta pela incapacidade de estabelecer laços afetivos com outras pessoas e pela dificuldade em suportar modificações do cotidiano (Brasil, 2015, p. 17).
As principais características das crianças eram a falta de habilidade para se relacionar com as demais pessoas; dificuldade na linguagem; uma instância na preservação da mesmice, isto é, uma busca pela preservação da rotina. Todas essas características se iniciavam nos primeiros anos de vida da criança (Brasil, 2015, p. 17).
Embora o termo “autismo” tenha sido utilizado pela primeira vez no início do século XX para descrever um sintoma de esquizofrenia, os cientistas citam o artigo de Kanner como a primeira descrição do autismo como um conceito único de doença distinta da esquizofrenia. Esse artigo foi o primeiro a demarcar a síndrome de Kanner, que mais tarde denominou de Autismo Infantil (Cohmer, 2014).
No ano de 1950, Kanner apresentou mais 38 casos, semelhantes àqueles observados por ele, e publicou o Tratado de Psiquiatria Infantil, no qual fez a distinção entre o autismo e a esquizofrenia (Barbosa, 2014). Ao longo de seu artigo, Kanner discorreu sobre as possíveis origens do autismo, porém mostrou-se contraditório sobre as causas. Assim, defendia que o autismo seria uma incapacidade inata de estabelecer contato afetivo e sugeriu que os problemas das crianças teriam alguma relação com a personalidade dos pais ou das relações que eram estabelecidas entre eles (Brasil, 2015, p. 19). Ele descrevia que os pais de pacientes com autismo eram impassíveis, mecânicos, ausentes e científicos, como se seus filhos fossem objetos de experimentos (Cohmer, 2014).
Infelizmente, a influência dessa ideia culminou no surgimento do termo “mães-geladeiras”, para se referir às mães de crianças autistas da época que, segundo o pensamento de Kanner, apresentavam uma indiferença emocional perante seus filhos. O termo foi difundido entre os anos de 1950 e 1960 pelo psicólogo Bruno Bettelheim. Contudo, posteriormente, o próprio Kanner retrocedeu dessa hipótese em relação aos pais, afirmando que os genitores não deveriam se sentir culpados, pois o autismo não era uma doença que seria fundamentalmente causada pelo homem e por conseguinte, não seria causada por eles (Barbosa, 2014).
No mesmo ano de 1943, o psiquiatra austríaco Johann Friedrich Karl Asperger apresentou, em sua tese Psicopatia autística na infância, casos de crianças com distúrbios sociais e utilizou do termo “autismo” para designar praticamente a mesma condição observada por Kanner, sem ter conhecido seus estudos (Brasil, 2015, p. 20).
Diferentemente das crianças analisadas por Kanner, as crianças de Asperger apresentavam um desenvolvimento cognitivo mais preservado, e a questão central era que tinham dificuldade no relacionamento com o ambiente. Ainda assim, possuíam um alto nível cognitivo. Ele atribui esses problemas a uma deficiência biológica, e não ao caráter dos pais da criança (Brasil, 2015, p. 20).
Em 1978, Michael Rutter propôs uma classificação do autismo em quatro critérios: 1) atraso e desvio sociais não só em função de retardo mental[1]; 2) problemas de comunicação, novamente, não só em função de retardo mental associado; 3) comportamentos incomuns, tais como movimentos estereotipados e maneirismos; e 4) início antes dos 30 meses (Klin, 2006, p. 4).
Essa nova definição de Rutter e o crescente aumento nas pesquisas sobre o autismo fizeram com que ele fosse reconhecido como uma nova classe de transtornos, ficando conhecido como parte da classe dos Transtornos Invasivos do Desenvolvimento (TIDs), no DSM-III em 1980 (Grandin; Scariano, 2002). O Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais, na sigla em inglês DSM, é uma das referências mais importantes para os profissionais que trabalham com a saúde mental, a fim de comprovar se o paciente se enquadra ou não nos requisitos para ser diagnosticado com alguma condição descrita no manual (APA, 2014).
Como a ciência é temporal, a compreensão sobre as condições vai aumentando e esses manuais possuem versões atualizadas. A Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), assim como o DSM, é uma das principais ferramentas de diagnóstico usadas globalmente para epidemiologia, gerenciamento de saúde e propósitos clínicos, desenvolvido pela Organização Mundial da Saúde (OMS) (Klin, 2006, p. 5).
O trabalho de Asperger só teve reconhecimento no ano de 1981 pela psiquiatra inglesa Lorna Wing, que foi uma pesquisadora muito influente para o conceito moderno dos Transtornos do Espectro Autista. Ela propôs que a condição publicada por Asperger poderia ser uma síndrome, uma vertente do autismo. Wing submeteu essa proposta à apreciação científica e, a partir daquele momento, passou-se a entender que a condição descrita por Asperger – pessoas extremamente inteligentes, que possuíam algum desajeito motor e apresentavam atipicidade de socialização – poderia ser compreendida como uma síndrome, a Síndrome de Asperger, que faria parte de uma condição maior, chamada “Autismo” (Dias, 2015).
No decorrer das décadas de 1980 e 1990, os principais tratamentos para o autismo e outras condições relacionadas foram terapias comportamentais e ambientes de aprendizagem controlados (Gradin; Scariano, 2002). Principalmente após o estudo do psicólogo Ole Ivar Lovaas, apresentando o Método da Análise do Comportamento Aplicada, ou ABA (Applied Behavior Analysis), que vem sendo utilizado até os dias atuais para interpretar o comportamento de indivíduos com algum desenvolvimento atípico, como o TEA (Bezerra, 2018).
Na versão do DSM-V, lançada em 2013, passaram a constar todos os transtornos que eram denominados anteriormente como Transtornos Globais do Desenvolvimento (TID) e que eram elencados em categorias diferentes. Por exemplo, a Síndrome de Asperger, o Transtorno Autista e os Transtornos Globais não identificados do desenvolvimento, passaram a ser considerados graduações de um mesmo espectro. Portanto, o DSM-V passou a classificar todas essas antigas subcategorias no mesmo diagnóstico: Transtornos do Espectro Autista (APA, 2014).
Um grande marco para as pessoas com deficiência, sejam físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais, foi a Lei Nº 13.146, de 6 de julho de 2015, instituída como Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Sua finalidade é aumentar a proteção e o discernimento “em igualdade de condições, o exercício dos direitos e liberdades fundamentais” aos indivíduos com TEA ou com qualquer deficiência das citadas acima (Brasil, 2015).
Olhar para esse percurso histórico revela como a compreensão do autismo mudou ao longo do tempo: das primeiras observações de Kanner e Asperger, cheias de interpretações equivocadas sobre a culpa dos pais, até chegarmos a diagnósticos mais precisos e à proteção legal garantida pela Lei Brasileira de Inclusão. Essa trajetória não só mostra a transformação das concepções científicas sobre o TEA, mas também como se ampliaram os direitos e a inclusão social das pessoas com autismo. Entender essa evolução é crucial para a reflexão ética que conduz este trabalho, pois reconhecer a alteridade e as necessidades específicas de quem tem TEA interfere diretamente na forma como a família se reorganiza, nos valores e nas práticas que passam a cultivar.
Essa evolução histórica reflete-se na definição atual do TEA.
Definição
O DSM-V classifica o Transtorno do Espectro Autista (TEA) como um grupo de distúrbios do desenvolvimento neurológico complexo que inclui o autismo, a Síndrome de Asperger e o Transtorno Global do Desenvolvimento sem outra especificação (APA, 2014). Esses transtornos acarretam problemas de comportamento, de início precoce, que perduram por toda a vida e se apresentam em níveis variados.
São utilizados os padrões de comportamento repetitivos e restritos, interesses ou atividades para realizar o diagnóstico:
i) Movimentos motores estereotipados ou repetitivos, uso de objetos ou fala (como alinhar brinquedos ou lançar objetos, frases idiossincráticas); ii) Insistência na mesmice, adesão inflexível as rotinas ou padrões ritualizados de comportamento verbal ou não verbal (tal como uma angústia extrema em pequenas mudanças, dificuldades com transições, padrões de pensamento rígidos, rituais de saudação, necessidade de seguir o mesmo caminho ou comer a mesma comida diariamente); iii) Interesses altamente restritos e fixos que são anormais em intensidade ou foco (por exemplo, forte apego ou preocupação com objetos incomuns, interesses excessivamente circunscritos) hiper e hipo sensibilidade à entrada sensorial ou interesse incomum em aspectos sensoriais do ambiente (por exemplo, indiferença aparente à dor/temperatura, resposta adversa a sons ou texturas específicas, cheirar ou tocar excessivamente em objetos, fascinação visual por luzes ou movimento) (APA, 2014, p. 50–51).
Além disso, o termo “espectro” faz uma analogia ao espectro eletromagnético, que é o intervalo de todas as frequências possíveis de radiação eletromagnética. Contudo, no caso do TEA, em vez de radiações, são características (Flores; Valenzuela, 2017).
O DSM-V divide o TEA em três níveis de comprometimento dentro dos déficits e os padrões restritos e estereotipados de comportamento. Existem os níveis leve, moderado, e severo, e o que delimita em qual nível o indivíduo se encontra é o grau de comprometimento. Consequentemente, a variação da intensidade determinará qual categoria de apoio que ele necessitará. Cada um desses níveis exige um apoio e uma intervenção específica (APA, 2014).
Portanto, há uma grande variação possível nas características do autismo. É possível encontrar, por exemplo, uma criança que interage, mas apresenta dificuldades, e outra que praticamente não apresenta esse repertório, oferecendo respostas mínimas nessas situações. Uma das formas de diferenciar os níveis de gravidade é avaliar a autonomia que o sujeito apresenta, isto é, o nível de independência de que dispõe para realizar suas atividades cotidianas (IFPB, 2020).
A versão mais recente do DSM-5-TR, lançada em 2022, trouxe mudanças importantes para o diagnóstico do TEA. Hoje, o diagnóstico é organizado em cinco critérios principais: déficits na reciprocidade social e na comunicação; padrões de comportamento restritos e repetitivos; características desde o início do desenvolvimento; deterioração funcional significativa; e a exclusão de explicações por deficiência intelectual ou atraso global no desenvolvimento. O manual também passou a considerar especificadores adicionais, como a presença de condições médicas ou genéticas associadas. Essas atualizações permitem um entendimento mais detalhado do TEA, reconhecendo e considerando a diversidade e a especificidade de cada indivíduo (APA, 2023).
Dessa forma, a definição atual do Transtorno do Espectro Autista, segundo o DSM-5-TR, evidencia a pluralidade de suas particularidades sociais, comunicativas e comportamentais. Reconhecer essa variedade permite perceber a chegada de um membro com TEA na família como um convite à reflexão ética, colocando em pauta a singularidade do Outro e a responsabilidade que isso desperta.
A ética da alteridade radical de Emmanuel Levinas
A necessidade de compreender essa pluralidade do espectro do Transtorno Autista nos levou à ética da alteridade radical de Emmanuel Levinas. O sentido da Ética é variável, modulando-se de acordo com o período histórico e daquela/e que se coloca o desafio de pensa-la. Para o filósofo franco-lituano Emmanuel Levinas, a Ética não seria apenas mais um ramo secundário da Ontologia, ao contrário, é da Ética que surge o empreendimento filosófico por excelência, assim para ele, a Ética é por excelência, a Filosofia Primeira (contrariando toda a tradição do pensamento filosófico que o antecedeu).
Emmanuel Levinas nasceu em 12 de janeiro de 1906 (30 de dezembro de 1905 no Calendário Juliano, seguido por seu país), numa próspera família judia residente em Kovno (ou Kaunas, em português), uma provinciana cidade da República da Lituânia, país da Europa Oriental (Bezerra, 2013, p. 4). Filho de judeus, ele vivenciou a perseguição da Segunda Guerra Mundial. Mudou-se para a França em 1923 e, entre os anos de 1928 e 1929, residiu na Alemanha, onde estudou com os filósofos E. Husserl e M. Heidegger (Souza, 1999).
Levinas publicou seu primeiro livro, Théorie de l'intuition dans la fenomenologie de Husserl, em 1930, e tornou-se influente na França por suas traduções de Husserl e Heidegger para o francês. No ano de 1940, Levinas foi capturado e feito prisioneiro dos nazistas, no campo de concentração da cidade de Fallingbostel, na Baixa Saxônia, no Stalag XI-B. Por cinco anos, viveu sob torturas e, testemunhou os assassinatos de seus correligionários até a derrota dos nazistas, em 1945. Esta experiência o levou a refletir sobre as relações humanas, especialmente o fenômeno que faz com que um determinado grupo de pessoas se sinta superior a outro, grupo de indivíduos, exatamente como os alemães nazistas se sentiram em relação aos judeus (Souza, 1999).
No final dos anos 1950 e início dos anos 1960, Levinas começou a formular sua própria filosofia, que se tornou cada vez mais crítica da filosofia de Heidegger e, com sua crítica dos pensadores fenomenológicos anteriores e da filosofia ocidental em geral, Levinas começou a afirmar a primazia do Outro na relação ética. O conhecimento de Levinas influenciou diretamente o movimento da fenomenologia existencial na França, suas traduções e textos secundários influenciaram pensadores como Jean Paul Sartre e Maurice Merleau-Ponty. Nas últimas décadas, Levinas tornou-se cada vez mais influente na filosofia continental e sua influência é evidente nos escritos mais recentes de Jacques Derrida, onde ele tem enfatizado cada vez mais uma ética Levinasiana como sendo o âmago da desconstrução. Derrida, como um colega próximo de Levinas, influenciou a tentativa de Levinas em seu livro, Otherwise than Being (1998), de ir além da linguagem ainda muito ontológica de seu trabalho Totality and Infinity (1969) (Pelizzoli, 2002).
A categoria da Alteridade, isto é, aquilo que emana do Outro, tornou-se central na filosofia de Emmanuel Levinas, especialmente a partir das experiências vividas pelo filósofo nos campos de concentração nazistas. Em vez de se concentrar em recrudescer as críticas à crueldade humana, representada pelo projeto nazista, Levinas toma um caminho filosófico singular: sai em defesa da figura do Outro.
Ele realça tanto a glória quanto as misérias do Outro, mas insiste que sem ele não haveria vida propriamente “humana”. Isso porque, segundo Levinas, é do Outro que recebemos nossa própria humanidade. A presença do Outro, com suas demandas e fragilidades, nos convoca eticamente. Em sua filosofia, a humanidade não é um atributo autossuficiente, mas uma resposta à alteridade, uma abertura ao rosto do Outro.
O fracasso do Nazismo expôs as contradições de um projeto completamente irracional, que paradoxalmente, foi sustentado pela racionalidade técnica, revelando que, embora extremamente importante, a erudição, a ilustração e o empreendimento tecnocientífico quando dissociados da sensibilidade e da vulnerabilidade com contornos éticos, produzem monstruosidades. Em suma, a Ética, antes de se constituir em uma idealização das relações humanas, pautadas em um corpus de conhecimento que podem ser aprendidos e ensinados, é ante de mais nada, o encontro concreto com o Rosto do Outro, que exige, antes de mais nada, sensibilidade e abertura.
Logo, é a partir do encontro, na relação face a face com o Outro, isto é, aquele que está diante de mim, que Levinas expressou uma preocupação central: a de que a relação com a outra pessoa tem sido, historicamente, condicionada por estruturas mais amplas de ideias filosóficas que se tornam intermediárias nesse encontro, distorcendo-o e até mesmo, impedindo-o. Historicamente, ao longo da modernidade, particularmente desde o Iluminismo, a noção ocidental do “Eu” tem se sustentado fortemente os ideais de autonomia, autossuficiência e individualismo (Levinas, 1998). Essa tradição filosófica, centrada no sujeito, ofusca a presença do Outro e silencia sua alteridade.
Levinas argumenta que a filosofia ocidental, desde seus primórdios, priorizou o estudo do Ser, isto é, a Ontologia, em detrimento do que está além ou aquém do Ser, ou seja, o que está fora da totalidade do Ser como transcendente, exterior e infinito: o Outro. Aliás, essa é a ideia chave de sua obra de maior repercussão, Totalidade e Infinito. Em outras palavras, a totalidade do Ser que pode ser conhecida, manipulada e controlada, não é capaz de assimilar o Infinito, isto é, o Outro em sua abrangência. De modo que o projeto totalizante da Ontologia é barrado pela aparição do Outro, que frustra seus objetivos de domínio e controle.
A ética levinasiana se baseia em um “encontro” com o Outro que não pode ser reduzido a uma relação simétrica, nem recíproca. Para Levinas (1969), ética não se refere à moralidade ou a um código de conduta, mas sim a um questionamento radical do Mesmo, do núcleo que compõe o Eu e seus interesses, onde se instala os conflitos humanos.
Um questionamento do Mesmo, que não pode ocorrer na espontaneidade egoísta do Eu, é provocado pelo Outro. A estranheza do Outro, a sua irredutibilidade ao Eu, aos meus pensamentos e aos meus bens, realiza-se precisamente como questionamento da minha espontaneidade. A metafísica, a transcendência, o acolhimento do Outro pelo Mesmo, do Outro por Mim, são concretamente produzidos como questionamento do Mesmo pelo Outro, isto é, como Ética que realiza a essência crítica do conhecimento (Levinas, 1969, p. 33).
Na relação ética descrita por Levinas, o Outro nunca se reduz ao Mesmo, sendo impossível conhecê-lo, pois está fora da totalidade da Ontologia produzida pelo Mesmo. Por esse ângulo, o poder e a liberdade do Mesmo são questionados tendo em mente que o Outro não pode ser possuído, resiste ao gozo e, à medida que o Eu se compromete com o Outro, é chamado de volta ao sentido de sua liberdade – uma liberdade que é fundada pelo Outro e que, nesta união, é chamada à responsabilidade e à obrigação para com o Outro como liberdade genuína.
Segundo Levinas, a ética não pode ser reduzida a um conjunto de mandamentos, porque o Outro chama apenas como ele mesmo. Reduzir o Outro que me chama como um Eu único, face a face, a um conjunto de princípios morais, a priori, é uma violência à sua alteridade. E como minha responsabilidade para com o Outro é para com o Outro em sua singularidade e alteridade, minha responsabilidade, portanto, é infinita.
Por fim, como o Outro não pode ser reduzido a uma ideia ou a um tema, que o Mesmo possa manipular e assimilar, a relação com ao Outro configura-se por outro modo, com a prevalência da sensibilidade sobre a inteligibilidade. Como a ideia de Infinito, que pode ser dimensionada pelo pensamento, o Outro apresenta-se como Infinito que o Eu não pode abarcar. Assim, a relação com o Outro deve ser da ordem do sensível, estruturada fenomenologicamente nas categorias da fruição, do contato, da vulnerabilidade e da substituição (Santos; Silva, 2016).
Para o filósofo franco-lituano, aproximar-se do Outro significa sentir e tocar, entrar em contato com o próximo, estando além da mediação conceitual e dos dados apreendidos à distância no conhecimento, “[...] aproximar-se de Outrem, mantendo uma relação não alérgica à sua irredutível alteridade [...] esta transformação do dado em próximo e da representação em contato, o saber em ética, é rosto e pele humana” (Levinas, 1998, p. 287).
O contato com o próximo instala-se uma inquietude produzida pelo traumatismo provocado no contato com o Outro e sentida na pele exposta da sensibilidade, e não pensada, como uma ideia, por meio da razão. Ao ressaltar a dimensão sensível da obra de Levinas, vemos que a subjetividade é caracterizada como vulnerabilidade, como passividade de uma subjetividade exposta aos prazeres e ultrajes do mundo. De modo esquemático, a sensibilidade na concepção levinasiana “[...] é fruição (gozo) contato (proximidade), vulnerabilidade (exposição, ferida, sofrimento) [...] Trata-se de uma concepção de sensibilidade sem a qual não haveria fenômeno ético [...]” que, inscrita no seio da intriga ética, entretece a relação face a face com o Outro (Santos; Silva, 2016).
Dito de outra forma, é a nossa própria delimitação uns com os outros, nossa vulnerabilidade de viver neste mundo como carnal e pequeno, e o chamado é feito pelas vulnerabilidades uns dos outros que são os pontos de partida da racionalidade, personalidade e subjetividade (Mendonça; Cardoso, 2018).
A alteridade, para Levinas, suscita a ideia de que o Eu deve se colocar no lugar e se preocupar com o Outro e se preocupar com ele prioritariamente. Essa ideia nos encaminha ao respeito e à aceitação da diversidade humana, sem preconceito e segregação entre os humanos, visto que a sociedade ocidental ao longo dos anos apresentou um discurso que dificulta e até mesmo tenta impedir a existência do Outro. Com o comprometimento do Eu com o Outro, por meio da alteridade, é possível pensar a partir do Outro, pensar “a possibilidade de se pensar uma nova ética com o Outro” (Miranda, 2011, p. 176).
A filosofia ocidental, escreve Levinas, "tem sido na maioria das vezes uma ontologia: uma redução do Outro ao Mesmo pela interposição de termos intermediários e neutros que garantem a compreensão do ser" (Levinas, 1969, p. 33-34). Como ontologia, a filosofia torna-se narcisista, numa busca de assimilação do Outro ao Mesmo. A filosofia, neste sentido, sempre afirma o ego, o Mesmo, o sujeito ou o ser. Visto que Levinas quer preservar o Outro, este o Outro não pode se tornar um objeto de conhecimento ou experiência dentro da totalidade da ontologia.
O Eu é o “viver de” que se esgota no Outro para satisfazer as suas próprias necessidades e desejos, pois para o filósofo, a "transmutação do Outro no Mesmo é a essência do gozo" (Levinas, 1969, p. 113). O outro, neste sentido, porém, não é o Outro. Apenas o outro, e não o Outro, pode se tornar uma fonte de prazer. A transcendência proporcionada pela infinitude do Rosto do Outro não é uma ameaça para o eu, para o Mesmo, mas sim uma fonte de satisfação e felicidade.
Família
A compreensão da alteridade, no sentido levinasiano, oferece uma nova perspectiva para analisar a dinâmica familiar, especialmente quando um de seus membros possui TEA. Ao considerar a responsabilidade para com o Outro em sua singularidade, é possível refletir sobre como a família se reestrutura para acolher essa nova realidade.
Nesse panorama, a família é a união de pessoas, seja por laços afetivos ou consanguíneos, que constitui o núcleo central básico onde indivíduos encontram seus significados mais pessoais. Todo grupo familiar tem sua dinâmica interna (o comportamento de seus membros no grupo) e externa (a interação dos membros com outros grupos). Portanto, entende-se a dinâmica familiar como a união entre os membros da família (pai, mãe e filhas(os)) tanto emocionalmente quanto economicamente, e os possíveis conflitos que são gerados dentro deste núcleo. A dinâmica familiar é o que os membros partilham individualmente e em grupo em diferentes situações, já as dinâmicas externas os membros interagem entre dois ou mais grupos ou com a sociedade em geral (Flores; Valenzuela, 2017).
Neste contexto, fica a dúvida: o que ocorre na configuração familiar quando a criança é diagnosticada com TEA? O desenvolvimento da dinâmica familiar com crianças com TEA pode acarretar mudanças de papéis; problemas de saúde; dificuldades econômicas, sociais e educacionais. Fatores como o estresse e a possível depressão dos pais são determinantes na mudança da dinâmica, uma vez que eles sabem que o(a) filho(a) tem um diagnóstico como o citado acima. Logo, deve haver uma comunicação fluida entre os membros da família, a fim de estabelecer vínculos afetivos dos pais para com o(a) menor com TEA, bem como o apoio mútuo, visto que a família sofreu uma modificação. É essencial aprender a lidar com essas mudanças em sua vida cotidiana (Flores; Valenzuela, 2017).
Além das situações descritas, muitas famílias enfrentam dificuldades em lidar com a chegada desse diagnóstico e com as futuras características e problemas que poderão surgir. Muitas vezes, devido ao baixo acesso às informações necessárias, a culpa, o medo e as incertezas em relação ao futuro afetam a compreensão da nova realidade (Oliveira; et al., 2017). Esse sentimento de medo, causa o constrangimento aos pais e, até mesmo, o preconceito fora do âmbito familiar (Silva, 2009).
Coleta de dados
Para a pesquisa qualitativa, foram entrevistados dois casais, de idades diferentes e de localidades distintas, que não tinham contato prévio entre si. O Casal A é formado por uma mulher e um homem, cujo filho recebeu o diagnóstico definitivo de autismo somente aos 16 anos, no início da década de 2000. Já o Casal B teve seu filho no fim dos anos 2000, e a criança foi diagnosticada nos primeiros anos de vida.
O Casal A tem entre 40 e 50 anos e formação de nível médio, enquanto o Casal B tem entre 30 e 40 anos e um dos cônjuges possui formação acadêmica e atua como professor de uma rede federal de ensino.
Por meio de sete perguntas abertas, os participantes responderam, de forma subjetiva, sobre a chegada do diagnóstico e as mudanças familiares e pessoais que ocorreram. O principal objetivo das entrevistas era captar o impacto dessas mudanças no cotidiano das famílias.
Materiais e métodos
Para cumprir o objetivo proposto, foi realizada uma revisão narrativa. Essa revisão é produzida a partir de publicações acadêmicas e tem a finalidade de descrever e discutir o estado da arte de um determinado assunto. Dessa maneira, o pesquisador busca informações em pesquisas já realizadas, tema, compilando os dados e as conclusões para um novo projeto (Rother, 2007).
O levantamento bibliográfico se baseou em assimilar a construção histórica e médica do Transtorno do Espectro Autista (TEA). As buscas foram realizadas na base de dados do Google Acadêmico, utilizando as palavras-chave: Autismo e Transtorno do Espectro Autista. Os levantamentos foram realizados pela autora, e o estudo incluiu artigos originais, de revisão e literatura nos idiomas inglês, espanhol e português. A seleção dos artigos e documentos oficiais, tanto nacionais e internacionais, abrangeu o período de 2000 a 2023.
As revisões narrativas são consideradas como de menor evidência científica por estarem sujeitas à seleção arbitrária de artigos e a vieses de seleção (Rother, 2007). No entanto, são essenciais para o debate de certas temáticas, uma vez que levantam questões e contribuem para a atualização do conhecimento. Elas também são importantes para a conscientização sobre o TEA, auxiliando no combate dos preconceitos contra o autismo e outros transtornos neurológicos, especialmente diante do capacitismo contemporâneo.
Ainda com base na revisão narrativa, um outro ponto foi alcançado: a interpretação do conceito da ética da alteridade de Emmanuel Levinas. Assim, o levantamento foi realizado na base de dados do Google Acadêmico, com as palavras-chave: Alteridade; Ética; Emmanuel Levinas. Além disso, um dos guias primordiais para esta etapa foram os livros do próprio filósofo estudado. As buscas foram realizadas pelos autores e o estudo incluiu artigos originais, de revisão e literatura nos idiomas inglês, francês e português. A seleção dos artigos, documentos nacionais e internacionais incorpora o intervalo de 1969 a 2018.
Para terminar e complementar o objetivo proposto, foi realizado uma pesquisa qualitativa com dois casais que possuem um filho com diagnóstico de autismo. O intuito foi investigar os impactos éticos decorrentes da chegada do diagnóstico de TEA na estrutura familiar. Considerando a natureza da pesquisa com seres humanos e os riscos envolvidos, um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) foi elaborado e aprovado pelo Comitê de Ética e pela Plataforma Brasil (parecer n. 5.504.013, de 1° de julho de 2022). A análise das respostas for feita com base na análise de conteúdo de Bardin (2016), que foi dividida em três etapas.
A pré-análise foi a fase inicial, na qual as entrevistas foram transcritas e lidas cuidadosamente para a familiarização com o conteúdo. Em seguida, o material foi organizado e os objetivos da análise foram definidos. Na segunda etapa, houve a exploração dos dados e a criação de esferas temáticas que emergiram das falas dos participantes: a descoberta do diagnóstico; o impacto na dinâmica familiar e as transformações pessoais. Cada esfera agrupou um conjunto de ideias ou sentimentos semelhantes, permitindo que o material bruto fosse organizado de forma lógica e coerente. No fim, na fase de tratamento dos resultados e interpretação, os dados organizados foram analisados de maneira reflexiva, buscando identificar padrões e diferenças entre as experiências dos casais. A interpretação das falas buscou correlacionar as experiências vividas com o referencial teórico da ética e alteridade de Emmanuel Levinas, conforme estabelecido no objetivo da pesquisa.
Resultados e discussões
As categorias de análise foram definidas a priori, já presentes na formulação das entrevistas com os casais. Apesar disso, durante o processo de análise, a equipe pesquisadora permaneceu aberta para a emergência de novas categorias. Neste sentido, a estratégia de comparar os dados dos casais A e B mostrou-se um caminho produtivo na interpretação e contribuiu significativamente para os resultados neste trabalho. As categorias de análise forma, portanto, definidas na seguinte ordem:
1) Impacto ético (sensibilidade) com a chegada do membro com autismo.
2) Impacto na dinâmica familiar.
3) Conhecimento prévio sobre o autismo antes do diagnóstico do(a) filho(a).
4) Características observadas pelos pais no seu filho(a), que os levaram a procurar atendimento médico.
5) Mudança em relação a preconceitos sobre o autismo após o diagnóstico.
6) Mudança na percepção do autismo após o diagnóstico.
7) Auxílio dos profissionais na convivência e na dinâmica familiar.
Sob essa perspectiva, as entrevistas com os pais que receberam o diagnóstico de autismo em seus filhos buscaram interpretar se as relações éticas entre eles foram alteradas, afinal, um integrante da família não corresponderia física e afetivamente às expectativas que os pais poderiam ter, mesmo que inconscientemente.
Em relação à primeira categoria de análise, “Impacto ético (sensibilidade) com a chegada do membro com autismo”, o tratamento dos dados nos mostrou que as respostas indicam um impacto negativo, amedrontador, incerto, permeado de dúvidas e até mesmo desesperador. Esse quadro é mais acentuado no Casal A, que recebeu o diagnóstico tardiamente, numa época em que a circulação de informações sobre o TEA era menor do que hoje.
Em relação à dinâmica familiar, a entrevista indicou que a palavra “mudança” foi a tônica do impacto na família, uma mudança como “total”, incluindo a dimensão emocional. Essa transformação ocorre para acolher o novo membro, nas palavras de uma das mães “(...) a gente gerou tudo em torno dele”. Tais mudanças ocorrem desde a dieta alimentar até a organização do cotidiano para atender às diversas demandas terapêuticas.
Ainda sobre esta questão, o impacto pode ser tão forte a ponto de levar a um desequilíbrio agudo e, no limite, à separação do casal. Por outro lado, o diagnóstico também pode levar a um amadurecimento da relação e a um fortalecimento dos vínculos entre eles.
A maioria dos pais não conhecia o autismo antes do diagnóstico e nunca teve a oportunidade de conviver com uma pessoa autista. Apenas um dos pais, com carreira acadêmica, tinha um conhecimento prévio do TEA, o que demonstra que a posição social de uma pessoa é importante no acesso às informações e no impacto que o diagnóstico repercute no âmbito interno dos indivíduos, assim como nas relações.
Em relação à quinta categoria de análise (“Mudança em relação a preconceitos sobre o autismo após o diagnóstico”), as mudanças internas significam uma ruptura de estereótipos para todos. Ao mesmo tempo, foi um convite “forçado” para o cuidado de si, como relata o Casal B: “Valorizar o dia a dia, me esforçar para ser uma pessoa melhor para levar informação até as pessoas”. Outro relato neste sentido é expresso nos seguintes termos: “me respeitar mais, no sentido de me dar o direito de descansar, quando eu estiver muito cansada, de sair um pouco da exaustão e também de procurar ajuda para mim”.
A relação familiar, especialmente entre pais/mães e filhos(as), tão íntima, colabora para um processo de humanização com outros indivíduos de outras famílias, desenvolvendo de modo mais intenso a tolerância e a paciência, conforme relata o pai do Casal B: “Eu acho que entendi melhor a coisa das dificuldades das pessoas com transtorno, com deficiência. Porque você acaba tendo em casa a experiência de conviver com uma pessoa e ser responsável por uma pessoa, acho que eu fiquei mais tolerante com as dificuldades das pessoas, entendo melhor que cada um tem o seu ritmo, seu nível de desenvolvimento (...).”
Essa humanização se reflete não apenas no aumento da tolerância, mas também na aplicabilidade prática dos aprendizados, como ilustra o relato do mesmo pai: “(...) muita coisa que a gente desenvolve para trabalhar com autista serve para trabalhar com outros alunos também, facilita o conhecimento, o entendimento e o aprendizado”.
É perceptível logo no início que as mudanças familiares são consequências de mudanças internas – existe uma mudança no Mesmo, não no Outro, no sentido conferido por Levinas – uma alteração na ética de perceber o Outro (no caso, o filho). A interação entre pais e filhos é abalada com a chegada do autismo. De início, a situação é um desafio que se aproxima de forma persistente, e se não houver mudanças por partes dos pais, o desenvolvimento da criança pode ser mais atrasado.
Essa transformação requer sacrifícios, como abandonar o trabalho e se voltar totalmente para o Outro, ação que não é recíproca, uma das impossibilidades da relação ética em relação ao Outro, como diz Levinas. Ou seja, o impacto da chegada do TEA no seio familiar é uma fissura na estrutura, que só é possível resistir com a mudança no agir dos indivíduos. Como a ética da alteridade transforma o ser numa figura mais humanizada, ela precisa ser estabelecida no lar, sendo a principal ferramenta para compreender o filho – não totalmente, pois o Outro é o Infinito para Levinas –, podendo ajudá-lo no desenvolvimento comportamental. No entanto, a relação entre pais e filhos deve ser guiada, além da ética, por profissionais da área da saúde mental, pois são esses especialistas que orientam os pais na reconstrução da “rachadura”.
Em termos imagéticos, a figura de um quebra-cabeça onde, para ficar “completa”, falta apenas uma peça que difere do espaço requerido, pode iluminar a situação ético-existencial vivenciada pela família que acolhe em seu seio um membro com TEA. Em suma, a “última” peça do quebra-cabeça não se encaixa no último espaço que falta para completá-lo, para totalizá-lo. Essa situação poderia ser interpretada sob os signos do desencontro e da frustração de expectativas, cuja reação pode ser orientada, como foi no passado, pela vergonha e pela exclusão.
Entretanto, a partir da ética da alteridade, a situação descrita acima pode se tornar um desafio ético que demanda o descentramento do Eu e a abertura à alteridade do Outro, promovendo uma recomposição das peças do quebra-cabeça, uma destotalização do jogo e, ao mesmo tempo, uma recomposição em que possa abrigar essa peça que antes não podia ser acolhida, num movimento de potência, inclusão e transformação.
A partir da visão de Levinas, a chegada de um membro com autismo no núcleo familiar desafia a totalidade do Mesmo. O relato dos pais não apenas descreve um rearranjo pragmático da vida, mas revela um verdadeiro traumatismo ético. O/a filho/a com TEA não se enquadra nas ordens pré-estabelecidas de expectativa, quebrando a ilusão de um Eu autossuficiente e capaz de controlar o futuro. É nesse momento de vulnerabilidade, de “fissura na estrutura”, que se manifesta a responsabilidade infinita para com o Outro.
A ética da Alteridade não é uma escolha, mas uma resposta inevitável ao chamado do rosto do Outro, que, no caso, é o próprio filho. A transformação interna e o “cuidado de si” mencionados pelos pais não são um simples processo de adaptação psicológica, mas uma reconfiguração do Eu a partir da exigência do Outro. Portanto, as mudanças não são apenas uma reação a um desafio, mas o nascimento de uma nova subjetividade que se humaniza justamente ao acolher o que não pode ser totalizado ou compreendido por completo.
Conclusão
Esta pesquisa teve como objetivo refletir sobre os impactos éticos gerados com a chegada de um membro com Transtorno do Espectro Autista (TEA) no contexto familiar. Através de entrevistas com pais e de uma análise fundamentada na ética da alteridade de Emmanuel Levinas, conformou-se que a experiência do diagnóstico provoca uma profunda metamorfose ética. Essa mudança não se limita a um rearranjo prático da rotina, mas representa uma reconfiguração do Eu diante da irredutível alteridade do Outro. A vivência familiar com o TEA impõe um “choque ético” que desestabiliza as expectativas prévias, exigindo dos pais uma resposta de responsabilidade e um “cuidado de si” para acolher o filho em sua singularidade.
Os resultados demonstram que, ao lidar com a frustação de expectativas, como a da reciprocidade emocional e comunicacional, os pais vivenciam um processo de destotalização, que é a desconstrução da crença de que o Outro é uma mera extensão da sua subjetividade. Isso leva a uma reestruturação da dinâmica familiar, que se torna mais resiliente e inclusiva. A vida desses indivíduos responsáveis pelo Outro com TEA sofre um abalo e se altera por conta das demandas que a alteridade radical apresenta, mudando sua visão e levando-os a compreender a existência de infinitas formas de ser, ver e interagir com o mundo.
A principal contribuição deste estudo reside em sua abordagem teórica, que transcende a visão clínica do TEA para um prisma filosófico-ético. Ao aplicar a ética da alteridade de Levinas, a pesquisa oferece um referencial para a educação especial e inclusiva, onde a figura do Outro com suas especificidades não é vista como um problema a ser totalizado ou corrigido, mas como o ponto de partida para uma relação genuinamente inclusiva. O aprendizado ético vivenciado pelos pais pode e deve ser estendido para as práticas pedagógicas e sociais, rompendo com a presunção de que o Outro neurodivergente deve se adequar a padrões pré-estabelecidos.
É importante ressaltar que a presente pesquisa, por sua natureza qualitativa e exploratória, apresenta algumas limitações. A amostra de dois casais, embora rica em detalhes, não permite a generalização dos resultados. Além disso, o estudo se concentrou na perspectiva dos pais, deixando de lado outras vozes importantes, como a dos próprios indivíduos com TEA e a de seus irmãos.
Sugere-se, portanto, que futuras pesquisas possam expandir a amostra para diferentes contextos socioecômicos e culturais e que investiguem as percepções de irmãos e das pessoas autistas, a fim de aprofundar a compreensão sobre os impactos da alteridade na dinâmica familiar e social. Também seria relevante explorar como a ética da alteridade pode ser aplicada em programas de formação de professores e profissionais de saúde, visando a uma abordagem mais humanizada e inclusiva no trato com o TEA.
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[1] Atualmente o termo “retardo mental” não é mais utilizado, mantivemos no texto para atender o contexto da frase e da época em que ela foi elaborada.