Funções Executivas e TEA: contextos educacionais e reflexões docentes
Executive Functions and ASD: educational contexts and teaching reflections
Funciones Ejecutivas y TEA: contextos educativos y reflexiones docentes
Ingrid Carla Aldicéia Oliveira do Nascimento
Rio de Janeiro, (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Rio de Janeiro, (UERJ), Rio de Janeiro, RJ, Brasil.
Recebido em 27 de maio de 2024
Aprovado em 28 de agosto de 2024
Publicado em 14 de novembro de 2024
RESUMO
O presente artigo tem como objetivo apresentar as análises contextuais realizadas por professoras sobre o desenvolvimento das funções executivas por estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Pesquisas sobre as funções executivas são realizadas, em sua maioria, pelo campo da Neurociência Cognitiva. Mas, por terem fundamental importância para o desenvolvimento cognitivo dos sujeitos e para o gerenciamento de diferentes aspectos da vida humana, os estudos sobre as funções executivas são, também, de grande relevância para o campo educacional. Por isso, para que fossem realizadas aproximações entre o campo educacional e o da Neurociência Cognitiva, foram adotados dois vieses teóricos: a própria Neurociência Cognitiva, que estuda o desenvolvimento das funções executivas, e a Teoria Histórico-Cultural que, com base nas pesquisas de Lev Vigotski e Alexander Luria sobre o desenvolvimento da fala, explora o assunto a partir do que esses autores descreveram como funções psicológicas superiores. A abordagem de pesquisa que delineou o estudo, de caráter qualitativo, foi a metodologia a pesquisa-ação colaborativa, cujo campo de pesquisa se caracterizou num curso de formação docente, realizado com professoras de duas escolas públicas, de educação básica. Como resultados, destacamos a relevância da formação docente sobre o desenvolvimento das funções executivas e a importância de instrumentalização docente, para que tais funções possam ser estimuladas também nos espaços educacionais, a partir de práticas pedagógicas voltadas para este fim.
Palavras-chave: Funções Executivas; Transtorno do Espectro Autista; Campo educacional.
ABSTRACT
This article aims to present contextual analyses conducted by teachers on the development of executive functions in students with Autism Spectrum Disorder (ASD). Research on executive functions is mostly conducted in the field of Cognitive Neuroscience. However, because they are of fundamental importance for the cognitive development of individuals and for the management of different aspects of human life, studies on executive functions are also of great relevance to the educational field. Therefore, in order to establish connections between the educational field and that of Cognitive Neuroscience, two theoretical approaches were adopted: Cognitive Neuroscience itself, which studies the development of executive functions, and Historical-Cultural Theory, which, based on the research of Lev Vygotsky and Alexander Luria on the development of speech, explores the subject from what these authors described as higher psychological functions. The research approach that outlined the study, of a qualitative nature, was the collaborative action research methodology, whose field of research was characterized by a teacher training course, carried out with teachers from two public elementary schools. As results, we highlight the relevance of teacher training on the development of executive functions and the importance of teacher training, so that such functions can also be stimulated in educational spaces, based on pedagogical practices aimed at this purpose.
Keywords: Executive Functions; Autism Spectrum Disorder; Educational field.
RESUMEN
Este artículo tiene como objetivo presentar los análisis contextuales realizados por docentes sobre el desarrollo de las funciones ejecutivas en estudiantes con Trastorno del Espectro Autista (TEA). La investigación sobre funciones ejecutivas se lleva a cabo principalmente en el campo de la Neurociencia Cognitiva. Sin embargo, al ser de fundamental importancia para el desarrollo cognitivo de los sujetos y para el manejo de diferentes aspectos de la vida humana, los estudios sobre las funciones ejecutivas también son de gran relevancia para el ámbito educativo. Por ello, con el fin de acercar el campo educativo y el de la Neurociencia Cognitiva, se adoptaron dos enfoques teóricos: la propia Neurociencia Cognitiva, que estudia el desarrollo de las funciones ejecutivas, y la Teoría Histórico-Cultural que, a partir de investigaciones de Lev Vigotski y Alexander Luria sobre el desarrollo del habla, explora el tema a partir de lo que estos autores describieron como funciones psicológicas superiores. El enfoque investigativo que planteó el estudio, de carácter cualitativo, fue la metodología de investigación acción colaborativa, cuyo campo de investigación se caracterizó por un curso de formación docente, realizado con docentes de dos escuelas públicas de educación básica. Como resultados, destacamos la relevancia de la formación docente sobre el desarrollo de las funciones ejecutivas y la importancia de la instrumentalización docente, de modo que dichas funciones también puedan ser estimuladas en los espacios educativos, a partir de prácticas pedagógicas orientadas a este fin.
Palabras
clave: Funciones Ejecutivas; Trastorno del Espectro Autista;
Campo educativo.
Introdução
A Educação Especial numa perspectiva inclusiva tem sido pauta de discussão em diversos espaços de ensino. Isso porque, nos últimos anos houve um aumento no número de matrículas de estudantes público da Educação Especial nas escolas e classes regulares de ensino, sobretudo de estudantes com Transtorno do Espectro Autista (TEA). Com isso, a busca pela compreensão sobre as reais necessidades desses sujeitos tem fomentado muitos debates no lócus educacional. Pois, apesar da inclusão escolar ser um direito, existem ainda muitos educadores que consideram as práticas inclusivas como inalcançáveis.
Dambrós e Trindade (2018) explicam que as dificuldades enfrentadas para a inclusão de pessoas com deficiência nos espaços escolares são consequências de inúmeras práticas excludentes e capacitistas exercidas por diferentes instituições por décadas. Práticas essas que foram relativizadas e banalizadas ao longo do tempo, causando reflexos negativos na sociedade, sobre o que se pensava compreender a respeito das pessoas com deficiência. Atualmente, os desafios enfrentados por muitos educadores na inclusão de estudantes público da Educação Especial nas escolas e classes regulares de ensino, acontece também devido à falta de infraestrutura de muitos espaços, que não contam com recursos materiais e humanos para atender as necessidades individuais desses estudantes. Por isso, podemos afirmar que a inclusão de estudantes com necessidades educacionais especiais (NEE) requer, principalmente, mudanças nos sistemas de ensino, de modo que os espaços escolares possam se tornar mais adequados para receber esses sujeitos, o que inclui repensar sua infraestrutura, recursos materiais e humanos (Greguol; Gobbi; Carraro, 2013).
Além disso, é importante que professores(as) compreendam sua responsabilidade na preparação das aulas para atender a todos os estudantes, com atenção às respostas educativas que contemplam aqueles com NEE. Por esse motivo, ressaltamos a importância da oferta de cursos de formação docente que instrumentalizem esses profissionais para que possam desenvolver práticas e estratégias de ensino inclusivas, capazes de atender os estudantes em suas necessidades educacionais.
No caso de estudantes com TEA, Buemo et. al. (2019) nos chamam atenção para a visão estereotipada que muitos docentes ainda possuem acerca do espectro, criando situações que acabam por sobrepor o autismo aos sujeitos, demonstrando a urgência em se discutir a formação inicial e continuada desses profissionais. O Transtorno do Espectro Autista é um transtorno do neurodesenvolvimento que pode causar prejuízos no desenvolvimento das habilidades sociais, linguagem, comunicação e funções executivas. Características que dificultam o processo de escolarização desses sujeitos.
As funções executivas, conhecidas também como controle executivo, são habilidades cognitivas que ajudam os sujeitos a ter mais autonomia em diferentes aspectos de suas vidas, sendo determinantes, sobretudo, na resolução de problemas. Nos espaços escolares, por exemplo, busca-se com os processos de ensino-aprendizagem, que os estudantes consigam estabelecer as relações necessárias entre as informações adquiridas para desempenhar as tarefas escolares e construir sua aprendizagem. Segundo Metring (2016), essas relações são feitas à medida que os estudantes, por meio da inteligência cristalizada, realizam interconexões entre aprendizagens e/ou experiências vivenciadas no passado; ao mesmo tempo em que fazem uso da inteligência fluida, ao manipular novas informações, pensando de forma abstrata para resolver problemas. Por isso, é necessário que os sujeitos consigam, além de armazenar informações, evocá-las e manipulá-las sempre que for necessário para desempenhar uma tarefa; e consigam também desenvolver habilidades de controle atencional e autorregulação. Ou seja, as funções executivas.
Este artigo traz os resultados obtidos ao longo de uma pesquisa de mestrado, que teve como objeto de estudo a formação de professores(as) que atuam nos anos iniciais do Ensino Fundamental, com estudantes com TEA. Com a proposta de estudar e refletir sobre os contextos educacionais e a importância do desenvolvimento das funções executivas por estudantes com TEA, trouxemos neste recorte da pesquisa, algumas análises contextuais, e resultados obtidos ao longo da pesquisa. Para tanto, consideramos o cenário escolar de duas instituições públicas de ensino, e as dificuldades encontradas por docentes que atuam nesses espaços para a escolarização desses estudantes. Como base teórica, foram utilizados os estudos da Neurociência Cognitiva, sobre as funções executivas, e a Teoria Histórico-Cultural que, a partir dos estudos de Alexander Luria e Lev Vigotski, aborda o desenvolvimento dessas funções, pelo que os autores chamaram de funções psicológicas superiores.
Uma breve abordagem sobre as funções executivas
O termo “funções executivas” foi mencionado pela primeira vez em 1982, pela neuropsicóloga Muriel Lezak. A pesquisadora sugeria que as funções executivas começavam a ser utilizadas a partir da formulação de metas; seguidas pelo planejamento; com a utilização de comportamentos ativos e da análise de desempenho. Etapas que garantissem maiores possibilidades de os sujeitos atingirem seus objetivos com competência (Malloy-Diniz; Fuentes; Consenza, 2013). Damasceno (2020), no entanto, destaca as contribuições de Vigtoski, Luria entre outros autores soviéticos com os estudos neurocientíficos ainda na década de 1920, a partir de pesquisas sobre o desenvolvimento da linguagem e da fala.
De acordo com Vigotski (2007) e Luria (1981), à medida que a linguagem se aprimora, ocorre o desenvolvimento da fala que, com as interações da criança com o ambiente, passa a exercer função planejadora; ajuda a controlar as emoções e manter o foco atencional. Os autores afirmam ainda que, a partir das experiências socioculturais, e o aprimoramento da fala, a memória também passa a se desenvolver. Definições que possibilitam a associação entre o desenvolvimento da linguagem ao aprimoramento das funções executivas.
As funções executivas de base se dividem em: (a) controle inibitório; (b) memória de trabalho; (c) flexibilidade cognitiva. Seu bom desenvolvimento permite aos sujeitos lembrar e associar diferentes informações, rever sua maneira de pensar, planejar e filtrar distrações.
O controle inibitório é responsável pela inibição ou interrupção de ações impulsivas, bem como pelo controle atencional. É a função responsável por permitir que os sujeitos resistam a estímulos externos presentes no ambiente, como por exemplo, estímulos capazes de provocar alterações comportamentais como respostas/reações verbais ou motoras, consideradas inadequadas. O controle inibitório também é responsável pelo uso da atenção seletiva, o que permite aos sujeitos processar ações específicas em meio a outras (Sternberg, 1996; Simpson; Carroll, 2019). Para Vigotski (2007) tal habilidade trata-se de um comportamento consciente, que se desenvolve à medida em que os sujeitos estabelecem suas relações sociais participando de diferentes situações e contextos. Luria (1981) corrobora com o autor, e afirma que os processos mentais conscientes contam com a participação do sistema de comunicação, ajudando a regular o comportamento humano. Pessoas com TEA podem ter dificuldade em inibir comportamentos considerados inadequados, e em desenvolver seu controle atencional. Com isso, a captação de informações verbais e/ou visuais pode ocorrer de maneira fragmentada, tendo como consequência prejuízos no desenvolvimento da linguagem e da memória de trabalho (Nascimento; Torres; Rossi, 2024)
A memória de trabalho permite que sejam armazenadas informações temporárias, mas, diferentemente da memória de curto prazo, além de evocar informações, é possível também manipulá-las durante a realização de tarefas (Baddeley, 2001; Diamond, 2013). Isso se explica porque a memória de trabalho está diretamente ligada à linguagem, fazendo com que ela possa manipular e gerenciar informações verbais e visuoespaciais, incidindo diretamente sobre o desenvolvimento cognitivo dos sujeitos (Baddeley, 2003). Pois, essa função é capaz de articular a capacidade de percepção, o uso da memória e a(s) ação(ões) requerida(s) durante uma tarefa. Segundo Vigotski (2007), alguns processos de memorização acontecem de maneira natural, com experiências não mediadas, o que significa dizer que, para o autor, a memória está ligada à capacidade de percepção dos sujeitos. Entretanto, para os processos que não ocorrem de modo natural, é importante a realização de operações mediadas com uso de recursos e ferramentas adequadas (Luria, 2015).
Nesse sentido, considerando que o desenvolvimento da memória de trabalho está atrelado ao desenvolvimento da linguagem, concordamos com Vigotski (2021) quando ele explica que por meio dela é possível elaborar um campo temporal para a realização de uma tarefa, e que os instrumentos e signos podem ser utilizados para a inclusão de elementos do passado ou do futuro na tarefa em andamento. Isso porque,
A memorização que se apoia em diferentes sistemas de signos será diferente por sua estrutura. O signo, ou recurso auxiliar do meio cultural, forma, assim, um centro estrutural e funcional que determina a composição e o significado relativo de cada processo particular [...]. Assim, por exemplo, numa memorização mnemotécnica, a comparação, o palpite, uma antiga associação e, às vezes, uma operação lógica servem à memorização (Vigotski, 2021, p. 84).
Além disso, o bom desempenho da memória de trabalho ajuda os sujeitos a buscarem soluções para problemas que podem surgir ao longo de sua vida cotidiana. No caso de pessoas com TEA, os déficits no desenvolvimento da memória de trabalho, podem interferir negativamente diante de situações adversas. Fazendo com que esses sujeitos sejam considerados inflexíveis diante de necessidades de mudança em suas rotinas, por exemplo. Luria (2010) explica que a atividade mental se revela e varia conforme as condições ambientais oferecidas a cada sujeito, estruturada a partir do mesmo, dos recursos, apoios e interações disponíveis. Desse modo, é possível estimular a inibição de comportamentos inadequados diante de mudanças, buscando novas formas de analisar as situações adversas para que então possa ser desenvolvida a flexibilidade cognitiva.
A flexibilidade cognitiva é a habilidade de alternar com facilidade e velocidade a perspectiva ou foco atencional, permitindo a análise de informações a partir de diferentes ângulos de visão. O que significa ter a capacidade de pensar de maneira flexível para buscar diferentes soluções para a resolução de um problema (Diamond; Ling, 2016). Segundo Diamond (2013), sem a flexibilidade cognitiva, não seria permitido aos sujeitos usar sua criatividade, não somente para resolver problemas, mas também para se ajustar a mudanças de prioridade, reconhecer erros ou aproveitar oportunidades inesperadas. Nesse sentido, Luria (2010, p.33) afirma que os sujeitos que apresentam um sistema de reflexão “gráfico-funcional” desenvolvem o pensamento de maneira diferente daqueles que conseguem refletir de maneira “abstrata, verbal e lógica”, o que torna necessária a realização de operações mediadas, com uso de instrumentos e signos, considerando o contexto sociocultural, no estímulo à resolução de problemas, ainda na infância. No caso de pessoas com TEA, os prejuízos no desenvolvimento da flexibilidade cognitiva podem se justificar também pelos déficits no desenvolvimento da linguagem pois, como abordam Vigotski (2008) e Luria (2015), a fala participa diretamente da organização dos pensamentos e das ações, estabelecendo a melhor forma de interação com diferentes ambientes, sendo fundamental na resolução de problemas.
Metodologia
Este estudo atendeu a normas e critérios estabelecidos pela Resolução 510/16, recebendo parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa. Participaram da pesquisa 17 professoras e uma agente educadora, que atuam em duas escolas públicas: uma da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro; e um colégio de aplicação de uma universidade pública, também do mesmo município. Como instrumentos, optamos pelo uso de questionários e entrevista semiestruturados; diário de campo; observação participante e o curso de formação docente. O curso teve oito semanas de duração, dividido em atividades assíncronas e síncronas, com encontros realizados semanalmente (um encontro por semana), por uma plataforma digital.
A pesquisa teve caráter qualitativo, pois assim como Minayo et. al. (2002) acreditamos ser necessário a todo(a) pesquisador(a) compreender os resultados em seus processos de transformação proporcionados pelos sujeitos. Ainda de acordo com a autora, na abordagem qualitativa pesquisadores(as) “trabalham com a vivência, com a experiência, com a cotidianidade e também com a compreensão das estruturas e instituições, como resultado da ação humana objetivada” (Minayo et. al., 2002, p. 24).
Com base em tais pressupostos, buscamos realizar uma análise atenta, capaz de promover reflexões sobre os efeitos de um programa de formação docente sobre as funções executivas em estudantes com TEA. Por esse motivo, optamos por uma abordagem qualitativa, tendo como método a pesquisa-ação colaborativa, objetivando realizar melhor análise e descrição dos resultados, favorecendo a compreensão dos processos de construção dos conhecimentos durante a realização do curso de formação docente.
A pesquisa-ação colaborativa, além de ter seu caráter explicativo e investigativo também contribui com as diferentes possibilidades acerca dos processos de ensino-aprendizagem. Pois esse método requer que o(a) pesquisador(a) assuma o papel de mediador por meio de uma ação interativa com os sujeitos participantes (Araújo; Moura, 2012). No caso das professoras participantes, de maneira colaborativa, buscamos elucidar diferentes possibilidades na elaboração de estratégias de ensino para atender as necessidades individuais dos(as) estudantes.
A análise e interpretação dos dados foram realizadas ao longo da pesquisa, através das respostas dadas aos questionários, entrevista semiestruturada e diário de campo. Essa etapa foi realizada respeitando as formas de tratamento de dados da pesquisa qualitativa, analisando, descrevendo e interpretando as informações obtidas.
Para isso, utilizamos a técnica de análise de conteúdos, com método de Bardin (2016). A análise de conteúdos tem duas funções elementares à pesquisa: verificar hipóteses e/ou questões, e descobrir o que está além das informações fornecidas e registradas (Gomes, 2002). A análise se dividiu em três etapas: i) pré-análise, com a leitura e organização das informações coletadas nos questionários, entrevistas e diário de campo; ii) exploração do material, com a descrição analítica das informações coletadas na pré-análise; iii) tratamento dos resultados, inferência e interpretação, etapa na qual foram realizados os apontamentos dos dados para análise.
De acordo com Bardin (2016, p. 44), “a análise de conteúdos procura conhecer aquilo que está por trás das palavras.” E, partindo das informações coletadas nas respostas ao questionário, entrevistas, e também pela observação participante durante o curso de formação docente, foi possível registrar algumas similaridades contextuais vivenciadas pelas professoras. A frequência com a qual ocorriam as repetições de palavras e situações foram registradas como indicadores, separados para comparação e categorização, sendo posteriormente analisados de forma temática e registrados em suas respectivas categorias (Bardin, 2016).
Assim, as dificuldades enfrentadas pelas professoras participantes na inclusão de estudantes com TEA, foram organizadas em três categorias: a) comportamento; b) comunicação; c) aprendizagem.
Resultados obtidos
A partir das categorias organizadas, foram analisados termos, contextos e situações em comum enfrentadas pelas docentes que, por aparecerem em suas falas com frequência, foram elencados como códigos da pesquisa, agrupados nas categorias que se serão descritas a seguir.
[a] Comportamento
Pessoas com TEA costumam ter algumas características muito peculiares como, por exemplo, as dificuldades na interação social, na comunicação e algumas respostas comportamentais inadequadas. Lemos, Salomão e Agripino-Ramos (2014) nos lembram que, considerando o lócus escolar, um estudante com TEA com prejuízos em sua habilidade comunicacional pode apresentar comportamentos considerados inadequados, até mesmo por não conseguirem solicitar ajuda.
Durante a pesquisa, algumas professoras mencionaram alguns comportamentos com mais preocupação, dentro do contexto escolar, conforme foram organizados no quadro 1.
Quadro 1: Categoria Comportamento
Código |
Exemplos de falas das professoras |
Frequência |
Bater |
“Tem dias que o A8 está mais irritado, mas não me bate mais. Agora ele ameaça me bater e se bater.” (P8) |
06 |
“Ela se bate às vezes como forma de punição, e às vezes pra buscar sensação. Eu falo que não pode, que tem que fazer carinho.” (P7) |
07 |
|
“Tem dias mais calmos, e tem dias que ela já chega querendo bater em todo mundo.” (P12) |
09 |
|
Correr |
“Precisa de alguém sempre para acompanhar, porque ele não consegue ficar sentado na sala. Quer ficar correndo o tempo todo.” (P14) |
08 |
“Esses alunos têm necessidade de brincar e de correr. Mas na aula é difícil, porque tem os outros também.” (P6) |
10 |
|
“Se a gente se distrai por um segundo, ele sai correndo.” (P18) |
11 |
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Morder |
“O A10 usava mordedor, mas mesmo com o mordedor ele se mordia muito, também.” (P10) |
05 |
“Ele mordeu feio a professora. Eu nunca tinha visto o A9 assim. Fiquei assustada com o comportamento dele.” (P9) |
07 |
|
“É muito difícil ela se morder ou morder alguém na escola, porque tem muitas pessoas que falam e brincam com ela o tempo todo e ela gosta disso. Já se acostumou, fica bem. Mas ela já se mordeu e mordeu a professora na escola assim que chegou. As mãos são muito marcadas por causa das mordidas.” (P7) |
08 |
|
Recusar |
“Ela fala que não quer fazer e fica de mal comigo.” (P9) |
05 |
“Ele se recusa abaixando a cabeça para se esconder e não fazer as atividades.” (P4) |
06 |
|
“Quando tem um conteúdo novo, eu, P1 acho que ele fica com medo de errar, e diz que não vai fazer ou cruza os braços.” (P1) |
09 |
Fonte dos dados: diário de campo, entrevistas e questionários oriundos/as deste estudo.
Das professoras participantes, seis lidam com contextos em que os estudantes, quando se sentem irritados por alguma razão no ambiente escolar, geralmente envolvendo alguma atividade ou rotina que não querem seguir, ameaçam bater nas docentes ou em si mesmos. Sete professoras apontaram que, quando contrariados, ou sem motivo externo aparente, alguns estudantes batem em si mesmos. E há também situações, como apontaram nove professoras, em que os estudantes chegam à escola irritados e com comportamentos heterolesivos, quando querem bater em outras pessoas, como forma de expressar sua irritação.
Outro comportamento muito apontado pelas professoras tem relação com a inquietação motora dos estudantes, a qual se manifesta pela necessidade de correr nos espaços escolares. Oito professoras mencionaram que os estudantes, às vezes, ficam muito inquietos durante as aulas na turma regular, e por esse motivo correm pela sala de aula. Dez professoras mencionaram também a necessidade que os estudantes com NEE têm de brincar, e o ato de correr em alguns contextos tem relação com a brincadeira. Onze professoras disseram que em diferentes situações os estudantes saem correndo pela escola sem nenhum motivo aparente.
Poucas professoras participantes atuam com estudantes com NEE que costumam morder a si mesmos e/ou outras pessoas, apesar de todas já terem ao menos presenciado situações em que isso aconteceu. Cinco trabalham ou já trabalharam com estudantes que fazem uso de mordedores, mas que em algumas situações acabam mordendo a si mesmos. Sete professoras relataram situações nas quais estudantes que ainda não desenvolveram o autocontrole já morderam docentes em momentos de desregulação. Oito professoras também mencionaram contextos em que os estudantes já não têm mais o hábito de morder professores ou a si mesmos nos espaços escolares, mas que o fazem em outros espaços, pois costumam apresentar marcas nas mãos.
A recusa em realizar as atividades também foi mencionada pelas cursistas em diferentes contextos de sala de aula, sendo expressa, pelos estudantes, de diferentes maneiras. Cinco professoras mencionaram situações em que os estudantes informam que não realizarão a atividade proposta e, em seguida, passam a ignorar seus comandos e orientações. Seis professoras mencionaram situações em que os estudantes abaixam a cabeça, escondendo-se entre os braços cruzados, ou usando seus casacos. Nove professoras disseram que há situações em que os estudantes se recusam a fazer novas atividades, demonstrando apreensão e medo de errar.
Segundo Vigotski (2008) e Luria (2015), na medida em que os sujeitos desenvolvem a fala, também conseguem compreender melhor os espaços de convívio e passam a ter melhor organização comportamental. Se considerarmos o lócus escolar, perceberemos que é um espaço propício para as interações sociais. Por meio das quais se estabelecem relações de reciprocidade e adaptação mútua. Ou seja, tanto os estudantes conseguem desenvolver compreensão sobre a rotina escolar, se adaptando a ela, como os educadores presentes nos espaços escolares, conseguem compreender alguns comportamentos, antes considerados inadequados (Lemos; Salomão; Agripino-Ramos, 2014).
[b] Comunicação
Alguns estudantes com TEA, ou outra NEE podem apresentar déficits no desenvolvimento da linguagem, o que implica sérios prejuízos na comunicação. As habilidades comunicacionais dependem da intersubjetividade, para que os sujeitos possam se compreender mutuamente durante a conversação. E também da perspectiva, para que os símbolos linguísticos possam ser compreendidos de acordo com os contextos nos quais são empregados (Tomasello, 2003).
As docentes participantes da pesquisa relataram que a comunicação com os estudantes com TEA pode representar um desafio. Pois, além dos estudantes que não desenvolveram sua comunicação oral, existem outros que conseguiram desenvolvê-la, mas ainda não conseguem se comunicar com funcionalidade. Elas relataram ainda que alguns adotam outras maneiras de comunicar suas necessidades, vontades e frustrações, como relatados no quadro 2.
Quadro 2: Categoria Comunicação
Código |
Exemplos de falas das professoras |
Frequência |
Apontar |
“Acho que quando o aluno aponta pro que quer, ele está falando com você de alguma maneira. Só que, quando o aluno precisa melhorar a fala, eu não posso só pegar o que ele quer e pronto.” (P8) |
05 |
“Às vezes ele chegava e apontava pro que queria e eu dava. Agora não, eu pergunto pra ver se ele fala. Aí, depois que ele fala eu dou. Ou então, eu falo e peço pra ele repetir.” (P2) |
10 |
|
“Ela está muito acostumada a pegar o que quer. Agora está aprendendo a apontar pra pedir. Aí eu pergunto, entono bastante a palavra, ela continua apontando e eu dou. Nem sempre dá certo, mas vou procurar sempre insistir.” (P12) |
12 |
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Chorar |
“Quando a A2 chora eu sinto muito que é por não conseguir falar o que está sentindo. Eu tenho que aprender a fazer as perguntas certas pra ela responder.” (P2) |
06 |
“Ele tenta falar, vai ficando nervoso, vermelho, a fala fica particionada, ele começa a gaguejar, vem o soluço e depois o choro.” (P4) |
06 |
|
“Às vezes, quando a A7 não consegue expressar o que está sentindo, ela chora. Um choro de mágoa pedindo ajuda. Às vezes a gente só vai entender o que é depois que aquilo já passou.” (P7) |
11 |
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Gritar |
“O A15 gritava bastante. Às vezes ele ainda grita, só que bem menos. Ele começo a parar de gritar quando eu comecei a falar pra ele que ia ouvir o que ele queria, mas se ele falasse baixo comigo. Ele entendeu que eu ia ouvir, dar atenção e melhorou bastante” (P15) |
05 |
“Às vezes eu acho que a A9 grita porque a família faz as vontades dela e ela quer impor sempre as vontades dela na escola. Às vezes eu acho só que ela pensa que ninguém escuta o que ela fala, que ninguém está dando atenção.” (P9) |
07 |
|
“Eu acho que o grito é pra dizer: “Ei! Eu estou aqui!”, porque às vezes esses alunos só têm um pouquinho mais de atenção na escola.” (P10) |
13 |
Fonte dos dados: diário de campo, entrevistas e questionários oriundos/as deste estudo.
Dados estes relatos, compreendemos que as barreiras comunicacionais podem se dar com estudantes verbais ou não. Das professoras participantes, cinco demonstraram compreender o ato de apontar como uma forma de comunicação, e compreendem que a comunicação precisa ser estimulada. Dez professoras que atendem alunos verbais mencionaram contextos nos quais os estudantes pedem objetos apontando para os mesmos. As professoras relataram ainda que em muitos momentos atendiam as vontades dos estudantes, até perceberem a necessidade de estimular suas falas, e começaram a pedir que os estudantes oralizem suas vontades. Doze professoras relataram que no atendimento a estudantes não verbais, ou que ainda não se comunicam com funcionalidade, existe a necessidade que os mesmos apontem para os objetos, espaços, imagens, recursos visuais entre outros para mostrar suas vontades e necessidades. Para essas docentes, o ato de apontar é uma forma de comunicação com esses estudantes, por isso elas procuram reforçar seus pedidos oralmente, para que esses sujeitos compreendam que precisam indicar seus desejos e necessidades.
O choro também foi considerado uma forma de comunicação porque, muitas vezes os estudantes com TEA e outras NEE não conseguem expressar em palavras o que querem ou sentem. Seis professoras apontaram essa dificuldade e demonstraram compreender que existem contextos em que os estudantes choram por não conseguir se expressar verbalmente, por estarem em momentos de desregulação. Indicando a necessidade de perceber os acontecimentos ou comportamentos antecedentes ao choro, para tentar auxiliar na comunicação. Seis professoras indicaram também contextos em que os estudantes não conseguem organizar o pensamento para que a verbalização de suas necessidades seja concluída antes do choro. Segundo elas, os estudantes iniciam seus relatos com muita dificuldade e pouca funcionalidade, dificultando a compreensão das professoras. Onze professoras falaram ainda sobre contextos nos quais o choro dos estudantes se assemelha a pedidos de ajuda, diante do que os estudantes sentem e não conseguem verbalizar. Elas disseram ainda que muitas vezes, após conseguirem acalmá-los é que conseguem refletir sobre os acontecimentos que ocasionaram o choro e compreendem o motivo da desregulação dos estudantes
Os gritos também foram considerados como formas de comunicação, de acordo com os contextos mencionados pelas professoras. Cinco professoras descreveram contextos em que os estudantes já não têm o hábito de gritar com frequência, pois conseguem compreender que serão ouvidos se comunicarem suas necessidades. Sete professoras mencionaram contextos nos quais os estudantes gritam para impor suas vontades. Treze professoras relataram contextos em que compreendem que os estudantes gritam para chamar a atenção dos adultos presentes.
Os déficits no desenvolvimento da linguagem dos estudantes observados ao longo do curso incidem diretamente nos prejuízos comunicacionais com suas professoras e outros agentes presentes no contexto escolar. Para Vigotski (2008),
o pensamento verbal não é uma forma natural de comportamento, inata, mas é determinado pelo processo histórico-cultural e tem propriedades e leis específicas que não podem ser encontradas nas formas naturais do pensamento e do discurso (p. 72)
Premissas de alto valor para estudantes com TEA, pois estes podem apresentar, em diferentes níveis, prejuízos na compreensão e reverberação de falas estruturadas, dados seus possíveis prejuízos no desenvolvimento da memória de trabalho. Meneses e Silva (2015) relata que muitas pessoas com TEA podem reverberar inúmeras palavras conhecidas, e até mesmo utilizá-las para formular frases complexas, mas sem inseri-las num contexto. Gentil-Gutiérrez et. al. (2022) explicam que os prejuízos no desenvolvimento da memória de trabalho desses sujeitos podem interferir diretamente no desenvolvimento e compreensão da estrutura/memória semântica e na sintaxe.
Segundo Vigotski (2009), a fala se desenvolve à medida que em que os sujeitos interagem socialmente, num processo dotado de complexidade e dinamismo. Por isso, é importante que sejam pensados, elaborados e fornecidos recursos adequados que auxiliem estudantes com TEA nesse processo.
[c] Aprendizagem
A categoria aprendizagem foi mencionada com muita preocupação pelas professoras participantes, por exigir procedimentos diferenciados para que os processos de ensino-aprendizagem dos estudantes com TEA sejam favorecidos.
Ressaltamos que, nesta categoria, o código “adaptação” foi utilizado para que fosse garantida a fidedignidade das falas das professoras participantes. No entanto, embora o termo adaptação tenha sido utilizado pelas docentes, no trabalho, a reflexão se propõe a utilizar o termo “adequação.” Pois, assim como defendem Boer (2012), Pires e Mendes (2019) acreditamos que o termo “adaptação curricular” é redutor às possibilidades de ensino-aprendizagem dos estudantes com NEE por restringir-se às modificações nas atividades de sala de aula, sem propor reais mudanças na estrutura curricular, ou dos sistemas de ensino.
Por outro lado, a adequação curricular considera ações para além dos materiais que possam ser ofertados para atender necessidades educacionais de estudantes público da Educação Especial. A adequação considera a acessibilidade de todo o processo, o que inclui o currículo, os materiais e as estratégias de ensino. A proposta considera a organização de respostas educativas que promovam o engajamento de todos os estudantes envolvidos, tenham eles NEE ou não. Dessa forma, compreendemos que as respostas educativas estruturadas a partir da “adequação curricular” permitem ações pedagógicas mais inclusivas, pois geram possibilidades escolares para estudantes com NEE e, também, oportuniza que outros se beneficiem das mesmas estratégias didáticas e curriculares, pois,
adequação curricular é um termo da escola inclusiva contemporânea, que objetiva a adequação do currículo para todos os estudantes da série na qual o aluno com deficiência esteja inserido, para que esse aluno possa acompanhar as aulas e desenvolver os mesmos conteúdos que o restante da sala, de acordo com suas respectivas habilidades (Boer, 2012, p. 26).
No espaço escolar é importante que o ambiente seja favorável à aprendizagem de estudantes com TEA, mas, para isso, é importante que professores e estudantes tenham acesso a recursos que facilitem e enriqueçam a mediação docente. Com base nos relatos das professoras participantes, elencados no quadro 3, é possível compreender algumas dificuldades enfrentadas por docentes e discentes no contexto escolar.
Quadro 3: Categoria Aprendizagem
Código |
Exemplos de falas das professoras |
Frequência |
Atenção |
“Eu conheci uma professora que colou um adesivo do Chaves na testa pra chamar a atenção de um aluno e ele olhar pra ela. Eu achei a ideia maravilhosa. E o caminho é esse mesmo. Pra brincar com esse aluno, eu sempre perguntava: ‘E aí, A19, você viu o Chaves?'” (P8) |
05 |
“A única coisa que chama atenção dele mesmo, são os personagens que ele gosta. Aí, eu coloco em todas as atividades. Quando está com raiva rabisca tudo, mas ele gosta [das figuras dos personagens].” (P17) |
10 |
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“Na aula, mesmo, é muito pouca coisa que chama a atenção dele. Tem que falar toda hora.” (P11) |
13 |
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Recursos |
“Eu acho que faltam recursos, e o professor também tem que saber o que fazer com esses recursos, quando tem.” (P2) |
06 |
“A inclusão é ótima pra essas crianças, mas acho que faltam muitos recursos.” (P10) |
13 |
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“Eu gosto muito deles, mas acho injusta essa falta de recursos. Porque não é só matricular e pronto, as escolas precisam ter estrutura para eles, recursos materiais, recursos humanos.” (P4) |
18 |
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Adaptação |
“Quando você se dedica a fazer uma boa adaptação pro seu aluno incluído, aquele material serve como um reforço para os alunos que têm dificuldade, para que eles também alcancem os objetivos propostos.” (P3) |
07 |
“Eu pedia muita ajuda no início [com o aluno], depois fui observando as adaptações, e comecei a fazer com mais autonomia.” (P1) |
09 |
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“Fazer uma adaptação de conteúdo da série que o aluno está, sem ele estar preparado pra aprender aquilo é muito difícil. Por exemplo, como fazer uma adaptação de um conteúdo do segundo segmento, para um aluno que nem conhece as letras?” (P12) |
14 |
Fonte dos dados: diário de campo, entrevistas e questionários oriundos/as deste estudo.
A dificuldade dos sujeitos com TEA em desenvolver o controle atencional foi observada por todas as professoras participantes do curso de formação continuada, que buscam meios de ajudar seus estudantes nesse processo. Cinco professoras mencionaram contextos em que observam como outras docentes agem para chamar a atenção de seus estudantes com seus assuntos ou personagens favoritos, e elas aproveitam para interagir com outros estudantes, falando a respeito dos temas de seu interesse. Dez professoras mencionaram situações em que fazem uso dos personagens favoritos de seus estudantes nas atividades que precisam desenvolver, utilizando figuras e adesivos. Treze professoras mencionaram contextos de sala de aula em que, aparentemente, nada consegue chamar a atenção dos estudantes que atendem.
O uso de recursos específicos que atendam as necessidades dos estudantes foi um assunto abordado por todas as professoras. Seis mencionaram a importância de saber avaliar a utilidade de determinados recursos frente à necessidade dos estudantes, pois apesar de disponibilizarem de recursos materiais, nem sempre sabem como explorá-los com estudantes com NEE. Treze mencionaram contextos, de maneira geral, onde se observa a importância da inclusão escolar para estudantes com NEE, mas, ao mesmo tempo, enfrentam cenário onde os recursos são escassos. Todas as professoras demonstraram compreender a importância e necessidade da inclusão escolar, assim como mostraram ter ciência da complexidade que esse processo envolve. Mencionaram a necessidade de uma infraestrutura adequada, e a necessidade de recursos materiais e, principalmente, recursos humanos, para que todos os estudantes tenham acompanhamento adequado de um professor mediador.
As adaptações de conteúdos curriculares também foram mencionadas como um grande desafio enfrentado cotidianamente pelas professoras, sobretudo nas situações em que os estudantes com TEA e outras NEE já não se encontram nos anos iniciais que compõem o ciclo de alfabetização. Elas sinalizaram muita preocupação, sobretudo com aqueles que não tiveram sua alfabetização consolidada, e se deparam com conteúdos de maior complexidade nas séries mais avançadas. Sete professoras mencionaram contextos em que as adaptações se mostraram eficazes para atender estudantes que não são público da Educação Especial, mas que apresentam dificuldade em aprender alguns dos conteúdos abordados nas aulas. Nove falaram sobre contextos vivenciados em que era necessário pedir ajuda a outras professoras para explorar todas as possibilidades de adaptação para os estudantes com NEE participarem das aulas, e a partir do que aprenderam desenvolveram suas próprias adaptações com maior autonomia. Quatorze professoras falaram sobre a dificuldade em adaptar conteúdos curriculares para estudantes com TEA, principalmente aqueles que têm um nível de comprometimento cognitivo e sensorial mais elevado. Mencionando situações em que os estudantes ainda não desenvolveram formas mais funcionais de comunicação, e conceitos básicos da alfabetização, mas se encontram nas séries mais avançadas Ensino Fundamental.
No caso de estudantes com NEE, a elaboração do planejamento individual, por parte de seus professores, permite que esses sujeitos participem dos processos de ensino-aprendizagem, fazendo uso de práticas inclusivas de ensino que garantam a qualidade no acesso a um ensino de qualidade, bem como sua permanência na escola (Pletsch; Glat, 2012).
Mas, é importante frisar que o planejamento individual já não pode ser reduzido a tentativas de suprir os déficits na aprendizagem de estudantes com NEE e sua compensação. Para Boer (2012), a inclusão deve ser pensada de maneira mais ampla, e não somente para atender as necessidades mais individualizadas. Zerbato e Mendes (2021), defendem a acessibilidade educacional, e ressaltam ainda a importância de compreender que todos os estudantes são únicos, dotados de diferentes estilos e ritmos de aprendizagem. Para elas, é importante a busca por processos de ensino-aprendizagem que não estabeleçam qualquer tipo de barreira para nenhum estudante, com materiais que não sejam utilizados somente por estudantes público da Educação Especial, mas por todos, de modo a universalizar as práticas inclusivas de ensino.
Algumas professoras, como demonstrou o estudo, compreendem que as práticas inclusivas podem beneficiar todos os estudantes, como podemos observar no relato a seguir:
As informações prestadas foram cruciais! Como abriu um leque de possibilidades e entendimento para compreensão dos meus alunos de classe e também de outros convívios do dia a dia na escola. Tenho vários materiais prontos que estimulam as funções executivas, e que posso incluir nas atividades planejadas (P11).
O desenvolvimento das funções psicológicas superiores, de acordo com Vigotski (2009), depende das práticas/ações realizadas pelos sujeitos, desde a infância, mediadas por outros sujeitos (adultos), com uso de instrumentos. E, na medida em que a fala se desenvolve, os processos de mediação se internalizam, até que esses sujeitos, por meio do pensamento, possam elaborar seus próprios planos e estratégias na resolução de problemas.
Considerações Finais
Considerando que assuntos relacionados às funções executivas têm sido pesquisados quase exclusivamente pelo campo das Neurociências, procuramos realizar uma aproximação teórica com a perspectiva histórico-cultural onde, por meio das pesquisas de Luria e Vigotski, foi possível articular as propostas de estudo ao campo educacional. Vasconcellos, Rahme e Gonçalves (2020) defendem a melhoria nos processos formativos docentes, defendendo a importância da transversalidade nos cursos de licenciatura, com a associação constante entre os conhecimentos teóricos e didáticos.
Durante curso de formação, os relatos das professoras participantes demarcaram a importância dessa associação em suas práticas pedagógicas, e ratificaram a importância de cursos de formação continuada voltados para a Educação Especial. Assim como nos afirmam Pimentel e Fernandes (2014), muitos(as) docentes desenvolvem práticas pedagógicas voltadas para a escolarização de estudantes com TEA, no entanto, tais práticas nem sempre estão fundamentadas em conhecimentos teóricos, de modo que a intencionalidade seja baseada em sua experiência profissional. Compartilhamos da análise que Pimentel e Fernandes (2014) apresentam, ao afirmarem que:
Os professores, com a prática, aprendem a lidar com o aluno com deficiência, porém, não contam com conhecimento teórico que apoie essa prática. [...] Existe um despreparo para lidar com alunos com Autismo, bem como para educá-los e ensiná-los. Tal despreparo, aparentemente, é causado pela formação profissional insuficiente nas áreas especiais e pela falta de informação sobre o autismo e suas manifestações. A inclusão escolar de crianças com autismo é algo possível, desde que fundamentada no conhecimento, garantindo os recursos necessários e a clareza acerca do papel da escola (Pimentel; Fernandes, p. 173).
Cursos de formação docente voltados para a Educação Especial podem se caracterizar como espaços de trocas de informações e conhecimentos acerca de dados sobre as práticas desenvolvidas por docentes que se encontram no lócus escolar. Além disto, é uma forma potente de ampliar as possibilidades com estratégicas didáticas para atender às necessidades desses estudantes. Assim como afirmam Araújo e Moura (2012):
Nesse sentido, compreendemos a formação como um processo de desenvolvimento profissional e pessoal de natureza intencional e coletiva, sustentado pelas interações de professores com seu objeto de trabalho – o ensino – no qual está subjacente o conhecimento que possibilita ao professor lidar analítica e sinteticamente com seu instrumento de trabalho – a atividade – na qual está subjacente o ensinar (p. 85).
Com a proposta de estudos e discussões sobre a importância do desenvolvimento das funções executivas por estudantes com TEA, foi possível perceber que tais funções são de grande importância para o desenvolvimento acadêmico desses sujeitos. Notamos também como fundamental que as práticas de ensino voltadas para esses estudantes possam ser carregadas por uma intencionalidade e objetividade, com a utilização de elementos presentes no cotidiano educacional. O que só é possível através de uma boa mediação docente, planejada. (Vigotski, 2017).
A partir das análises realizadas nesta pesquisa, ponderamos ainda que: instrumentalizar professores sobre como estimular o desenvolvimento das funções executivas de estudantes com TEA e outras NEE pode ampliar as práticas docentes favoráveis à escolarização desses estudantes.
Dessa forma, reiteramos que cursos de formação docente, voltados para a escolarização de estudantes público da Educação Especial, que abordem o desenvolvimento das funções executivas, ajudam a melhorar a elaboração e desenvolvimento de práticas educacionais voltadas para a inclusão escolar.
Ou seja, a formação docente continua a ser um dos motes de atenção para as políticas públicas e para as pesquisas em educação, sem desmerecer a atenção sobre os demais elementos que precisam ser presentes no contexto da estruturação e dinamização da escola para todos. Entendemos que a formação do professor precisa ser contínua, com aportes teóricos e práticos que apoiem e ampliem as possibilidades para o processo de ensino e aprendizagem, a partir das realidades de contexto educacional, da escola e práticas nela exercidas.
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