Docência na escola de surdos: narrativas sobre a experiência com alunos surdos com implante coclear

Teaching at the School for the Deaf: Narratives about the Experience with Deaf Students with Cochlear Implant

 

Docencia en la escuela para sordos: narrativas sobre la experiencia con estudiantes sordos con implante coclear

 

Bianca Ribeiro Pontin

Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre – RS, Brasil.

biancapontin@gmail.com

 

Recebido em 06 de março de 2025

Aprovado em 30 de setembro de 2025

Publicado em 10 de novembro de 2025

 

RESUMO

O presente artigo tem como objetivo analisar como as experiências educacionais com alunos surdos usuários de implante coclear (IC) são narradas pelos docentes de escolas de surdos. Para tanto, assume-se o compromisso ético e político com as comunidades surdas produzindo as análises a partir da articulação entre o campo dos Estudos Culturais em Educação e os Estudos Surdos. A materialidade da pesquisa constitui-se de entrevistas narrativas, produzidas em língua de sinais, com docentes que atuam em escolas de surdos do estado do Rio Grande do Sul. A partir das recorrências narrativas, foram organizados dois eixos analíticos: 1) modos como os alunos surdos usuários de IC são categorizados e a produção da noção de surdez pós-moderna; 2) experiências educacionais com alunos surdos usuários de IC. Conclui-se que, na contemporaneidade, existem diversas formas de ser surdo, possíveis de serem descritas como surdez pós-moderna. As narrativas apontam que esses sujeitos são produzidos por experiências diversas e singulares. Essa diversidade é uma característica do nosso tempo, definida por relações fluidas e conexões digitais, o que impossibilita uma única resposta ou identificação sobre a representação dos alunos surdos usuários do IC. Tais questões colocam-se como um desafio para inclusão escolar desses sujeitos considerando os múltiplos modos de se constituírem, como surdos, na contemporaneidade.

Palavras-chave: Narrativas docentes; Surdez pós-moderna; Surdos; Educação de Surdos; Implante Coclear.

 

 

 

ABSTRACT

The present article aims to analyze how educational experiences with deaf students using cochlear implants (CI) are narrated by teachers in deaf schools. For this purpose, an ethical and political commitment is assumed with deaf communities, producing analyses based on the articulation between the field of Cultural Studies in Education and Deaf Studies. The materiality of the research consists of narrative interviews, produced in sign language, with teachers working in deaf schools in the state of Rio Grande do Sul. Two analytical axes were organized based on narrative recurrences: 1) ways in which deaf students using CI are categorized and the production of the notion of postmodern deafness; 2) educational experiences with deaf students using CI. It is concluded that, in contemporary times, there are various ways of being deaf, which can be described as postmodern deafness. The narratives indicate that these individuals are shaped by diverse and unique experiences. This diversity is a characteristic of our time, defined by fluid relationships and digital connections, which precludes a single answer or identification regarding the representation of deaf students using CI. These issues pose a challenge for the school inclusion of these individuals considering the multiple ways of constituting themselves as deaf individuals in contemporary times.

Keywords: Teacher narratives; Postmodern deafness; Deaf individuals; Deaf education; Cochlear Implant.

 

RESUMEN

El presente artículo tiene como objetivo analizar cómo se narran las experiencias educativas con estudiantes sordos usuarios de implante coclear (IC) por parte de los docentes en escuelas para sordos. Para ello, se asume un compromiso ético y político con las comunidades sordas, produciendo análisis a partir de la articulación entre el campo de los Estudios Culturales en Educación y los Estudios Sordos. La materialidad de la investigación consiste en entrevistas narrativas, realizadas en lengua de señas, con docentes que trabajan en escuelas para sordos en el estado de Rio Grande do Sul. A partir de las recurrencias narrativas, se organizaron dos ejes analíticos: 1) formas en que se categorizan los estudiantes sordos usuarios de IC y la producción de la noción de sordera posmoderna; 2) experiencias educativas con estudiantes sordos usuarios de IC. Se concluye que, en la contemporaneidad, existen diversas formas de ser sordo, que pueden describirse como sordera posmoderna. Las narrativas indican que estos individuos son moldeados por experiencias diversas y singulares. Esta diversidad es una característica de nuestro tiempo, definida por relaciones fluidas y conexiones digitales, lo que impide una única respuesta o identificación con respecto a la representación de los estudiantes sordos usuarios de IC. Estas cuestiones plantean un desafío para la inclusión escolar de estos indivíduos considerando las múltiples maneras de constituirse como personas sordas en la contemporaneidad.

Palabras clave: Narrativas docentes; Sordera posmoderna; Personas sordas; Educación de personas sordas; Implante coclear.

 

Introdução

O presente texto compreende um recorte analítico da Tese de Doutorado intitulada “Narrativas docentes sobre alunos surdos com implante coclear em escolas de surdos” (Pontin, 2021) apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Neste artigo retomo a pergunta de pesquisa, qual seja: como as experiências educacionais com alunos surdos usuários de implante coclear são narradas pelos docentes de escolas de surdos no Rio Grande do Sul? e o objetivo geral da pesquisa, ou seja, analisar como as experiências educacionais com alunos surdos usuários de implante coclear (IC) são narradas pelos docentes de escolas de surdos no Rio Grande do Sul e, desta forma, apresento uma síntese dos resultados da referida investigação.

A escrita deste artigo é produzida a partir da perspectiva surda, ou seja, da minha experiência surda no mundo e da minha língua, a Língua Brasileira de Sinais. Desta forma, assumo o compromisso ético e político com as comunidades surdas as quais me filio e produzo as análises a partir da articulação entre o campo dos Estudos Culturais em Educação[1] e os Estudos Surdos[2]. Os Estudos Culturais compreendem a educação como um processo sociocultural com ênfase nas questões relacionadas à constituição dos sujeitos e suas identidades, bem como a representação de diferentes grupos culturais. Nesse sentido, as pesquisas sobre os surdos, suas culturas e identidades encontram um espaço de diálogo neste campo teórico.  Por isso as marcas surdas estão presentes nas análises. Ainda, considero importante destacar que a escrita deste artigo, bem como a produção dos estudos anteriores, foi produzida em articulação com as pesquisas desenvolvidas pelos seguintes grupos: Sujeitos, Inclusão, Narrativas, Alteridade, Identidades e Subjetividades (SINAIS[3]); e Grupo Interinstitucional de Pesquisa em Educação de Surdos (GIPES[4]).

Sobre os aspectos metodológicos, os dados foram produzidos por meio de entrevistas narrativas, em língua de sinais, com docentes surdos e ouvintes que atuam em escolas de surdos do estado do Rio Grande do Sul no primeiro semestre do ano de 2019. Selecionei escolas que apresentavam o maior número de alunos surdos com IC e aquelas localizadas em cidades diferentes, conforme dados disponibilizados na pesquisa do GIPES intitulada “Produções Culturais Surdas no Contexto da Educação Bilíngue[5]”. Assim, fixei-me em três escolas: uma municipal, uma estadual e, a terceira, particular. Enviei e-mail para a direção e/ou coordenação das escolas juntamente com a carta de apresentação da pesquisa e os termos de consentimento livre e esclarecido, documentos aprovados pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, sob Parecer nº 1.819.087. A pesquisa sobre IC, constituição dos sujeitos a partir de diferentes discursos e a necessidade de pensar como isso reverbera na educação, tem sido questões centrais nas minhas produções.

A pesquisa “Discursos sobre a surdez, os surdos e o implante coclear: análise do manual de informações para os pais de crianças surdas candidatas ao implante” (Pontin, 2013) investiga sobre os argumentos e discursos durante o processo de aconselhamento médico aos pais de candidatos ao IC. No processo de aconselhamento, os responsáveis recebem um manual, que denomino Manual IC, sobre o implante para leitura, auxiliando-os na tomada de decisão sobre fazer ou não a cirurgia. Esse manual se caracterizou com a materialidade da pesquisa e foi possível problematizar como os discursos, presentes no material, buscavam informar, aconselhar e convencer as famílias sobre o IC.

Na referida pesquisa, foi possível verificar que a circulação do material tem caráter pedagógico de produção de subjetividades. Produzi categorias a partir das recorrências de enunciados para mostrar como os discursos constituem novos sujeitos, ou seja, sujeitos implantados, que não são nomeados nem como surdos nem como ouvintes. Tais recorrências enunciativas resultaram nos seguintes agrupamentos: 1) as vantagens de ouvir; 2) o sucesso apresentado em números; 3) a urgência: quanto antes, melhor! Tais enunciados produzem discursos normalizadores, que passam a se constituir como verdades nos espaços educativos. Provocada pelos enunciados e com o objetivo de verificar a circulação dos discursos na educação de surdos, ingressei no Mestrado, do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, no ano de 2012.

Na pesquisa de mestrado, com o título “Discursos e processos de normalização dos sujeitos surdos através de próteses auditivas nas políticas de governo da atualidade “ (Pontin, 2014),  de inspiração foucaultiana, continuei analisando os discursos e ampliando a discussão teórica sobre os processos de normalização disciplinar e biopolítica dos sujeitos surdos. A normalização disciplinar, pode ser entendida como um conjunto de práticas que produzem formas de vida a partir de um modelo organizado dentro de uma sociedade, no caso dos sujeitos surdos, tal processo de normalização é baseado na norma ouvinte. A biopolítica, por sua vez, investe na população com surdez para que o sujeito surdo possa viver e produzir mais, novamente, a partir de uma lógica ouvinte. 

A materialidade da pesquisa, além do Manual IC utilizado na produção do trabalho de especialização, foi constituída dos seguintes documentos: (a) Documento orientador do projeto: uso do Sistema de FM na Escolarização de Estudantes com Deficiência Auditiva; (b) Nota técnica sobre o Sistema FM (BRASIL, 2013); e (c) Relatório nº 58 da CONITEC – Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS pelo Ministério da Saúde (BRASIL, 2014). Como resultados, destaquei os seguintes agrupamentos temáticos: 1) Cumprindo legalmente? 2) Liberdade de escolha? e 3) Possibilidades de sucesso, para quem?. 

Para fins de conhecimento, na categoria Cumprindo legalmente?, apresentei os discursos legais presentes nos documentos em circulação que fazem funcionar as políticas de governo para a inclusão escolar, a acessibilidade e os direitos humanos. Em Liberdade de escolha? discuti como os discursos subjetivam e conduzem os pais, familiares e professores para opção do IC e para o uso do Sistema de FM no contexto escolar. Nesses discursos, foi possível perceber que alguns sujeitos têm um leque de opções, mas são seduzidos e direcionados a escolher de acordo com as verdades assumidas pelas políticas de governo e mercado. Ainda, no tópico Possibilidades de sucesso, para quem? apresentei enunciados presentes em propagandas, apontando para um suposto sucesso para a vida dos usuários de tais tecnologias. Assim, verifiquei que, além dos pais, os professores também são capturados para formação e cuidados com os artefatos tecnológicos, como o manuseio do FM para alunos surdos usuários de IC e AASI. Nas considerações finais, problematizei sobre a produção dos novos jeitos de ser e viver a condição da surdez, bem como a discussão sobre novas identidades de crianças surdas implantadas. A partir dessa problematização, iniciei os estudos de doutorado no ano de 2016, com o objetivo de ir até as escolas para conversar com os docentes.

Segundo os dados das pesquisas produzidas pelo Grupo Sinais, GIPES e outros pesquisadores, com a implementação das políticas educacionais na perspectiva inclusiva (BRASIL, 2008), passamos a observar movimentos de in/exclusão em relação a população surda, dentre eles: 1) diminuição do número de matrículas de alunos surdos nas escolas de surdos,  conforme resultados da pesquisa Produções culturais surdas no Contexto da Educação Bilíngue desenvolvida pelo GIPES, entre os anos de 2016 - 2018; 2) investimento em políticas da saúde: ao tratar da distribuição de IC, essa política não menciona o uso da língua de sinais, o que acarreta prejuízos para crianças no processo de aquisição e desenvolvimento da linguagem; e 3) ausência de políticas e/ou programas em nível nacional e obrigatórios voltados para a aquisição de língua de sinais para crianças surdas. Ainda, destaco que o documento Subsídios para a Política Linguística de Educação Bilíngue – Língua Brasileira de Sinais e Língua Portuguesa (THOMA et al., 2014), mesmo com a implementação da Educação Bilíngue de Surdos enquanto uma modalidade de educação (BRASIL, 2021), o referido documento não tem recebido a necessária atenção para o desenvolvimento de ações, no âmbito nacional, para efetivação de políticas educacionais para a população surda no país. 

Além das questões destacadas, a produção dos dados em articulação com os espaços escolares, se deu pela necessidade de continuidade de investigação relacionada às pesquisas anteriores, pois, ao me deparar com discursos empresariais orientando as pessoas a decidir pelo uso do IC, por meio do Manual IC disponibilizado para os pais e/ou responsáveis, interessei-me em entender como esses discursos chegam às escolas. Para isso existe apoio financeiro, do Ministério da Tecnologia, juntamente com o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, para a utilização do Sistema de FM nas escolas. Para fins de esclarecimento, o Sistema de FM consiste em um microfone ligado a um transmissor de frequência modulada portátil usado pelo professor, que capta sua voz e transmite diretamente ao receptor FM conectado ao Aparelho de Amplificação Sonora Individual (AASI) e/ou IC do estudante. Essa tecnologia permite que o som projetado pelo docente possa ser recebido de forma mais clara, eliminando o efeito negativo do ruído e reverberação, típicos do ambiente escolar. 

Nesta era tecnológica e globalizada, os pais e/ou responsáveis são convencidos à colocação do IC  nas crianças surdas, e os professores são capturados para a formação, aprendendo a manejar o Sistema FM. Chamou-me a atenção um dos excertos que consta no Manual IC, sobre a composição da equipe e a atenção dos familiares na escolha de espaços que disponibilizem profissionais dispostos à trabalhar com a referida tecnologia, conforme destaco no texto a seguir:

Quais os profissionais que fazem parte da equipe de implante Nucleus? Para as crianças, um fonoaudiólogo, o professor e seus pais são importantes membros da Equipe. A Cochlear oferece cursos de capacitação formais para as equipes clínicas e outros profissionais que trabalham com os usuários de IC. [...] o programa educacional/escolar que você escolher deverá ter um membro da equipe de implante trabalhando nele e ajudando os professores e outros especialistas em reabilitação (Manual IC, p. 26 apud Pontin, 2014, p. 17-18, grifos da autora).

A escolha dos pais pelo uso da tecnologia e de espaços dispostos a atender as necessidades dos alunos com IC para atingir os “melhores resultados” é um argumento constante no Manual IC, mas como isso ocorre em um espaço educacional no qual a língua de instrução é a Libras? A partir dessa questão, compreendo que ao conhecer as experiências educacionais de docentes de alunos surdos com IC  em escolas de surdos, por meio de narrativas, é possível promover ações entre diferentes áreas, tais como a educação e a saúde. Os dados, que apresentarei na seção analítica, deste artigo, podem ser úteis para problematizar, ao lado da comunidade surda, acerca das epistemologias e/ou assuntos éticos envolvendo surdez, deficiências, culturas, diferenças e educação, noções importantes produzidas no campo dos Estudos Culturais e Estudos Surdos em Educação. Por fim, esta produção pode contribuir para a ampliação da discussão sobre a aquisição da língua de sinais e a criação de políticas linguísticas para bebês surdos, independentemente do uso, ou não, da protetização.

Questões teórico-metodológicas: conceitos e procedimentos para produção e análise dos dados

A presente pesquisa, conforme anunciado na introdução, constitui-se na articulação entre os Estudos Culturais e Estudos Surdos, nesse sentido, trata-se de uma escrita a partir de campos teóricos que permitem uma discussão crítica e política das diferentes categorias envolvendo sujeitos culturais. O campo dos Estudos Culturais, opera na/pela interdisciplinaridade, podendo aliar-se a diversos estudos, pesquisas e áreas, assim, os Estudos Surdos se aproximam dos Estudos Culturais promovendo outras formas de narrar os surdos, sem fixar esses sujeitos à um único modo de ser. Dialogando com Ribeiro (2017, p. 44), a partir de uma escrita surda, considero que, o campo dos Estudos Surdos se apresenta como uma “possibilidade de transcendência da norma colonizadora”. No desenvolvimento do trabalho, utilizo o conceito de representação para os aspectos analíticos e a narrativa como estratégia metodológica.

Sobre o conceito de representação, no processo de produção de sentidos, é produzido pelo “sistema de representação”. Esse sistema envolve duas atividades: 1) atribuição de sentidos ao mundo e as coisas do mundo, a partir dos nossos conceitos; e 2) articulação entre conceitos e signos, que existem em nossa linguagem. A relação entre “as coisas em si”, os conceitos produzidos pela nossa existência e os signos, produzem sentidos pela linguagem e na relação coisa em si-conceitos-signos produzimos uma representação (Hall, 2016). Podemos verificar que o sentido em si não existe, trata-se de uma produção operada pelos sujeitos. Assim, representação é a produção do sentido pela linguagem. O sentido é produzido dentro da linguagem, dentro e por meio de vários sistemas representacionais.

No desenvolvimento das análises, a partir do conceito de representação, entendo que os significados que circulam através das representações regulam práticas, influenciam condutas e desse modo produzem os objetos sobre os quais se fala (Hall, 2016). No caso desta pesquisa, as experiências educacionais sobre alunos surdos com IC  na escola de surdos, por intermédio das narrativas docentes, possibilitam ver como se dá a constituição das identidades ou subjetividades, por meio de nomeação ou classificação ou outros tipos de produção de sujeitos.

A entrevista narrativa é uma metodologia de pesquisa qualitativa que se concentra na produção de narrativas pessoais para entender a experiência e a perspectiva dos participantes. Depois da seleção dos participantes da pesquisa, a partir da delimitação do tema e objetivos, é necessária a elaboração de um roteiro com questões abertas e flexíveis que permitam aos participantes compartilhar suas experiências. Segundo Andrade (2012), as perguntas, geralmente, começam de maneira ampla e, em seguida, aprofundam-se à medida que a conversa avança. Tal metodologia apresenta-se como potente para a produção dos dados pois pode capturar a complexidade das experiências humanas e permite que os participantes expressem suas perspectivas.

Para a produção dos dados, conforme informado na introdução, selecionei três escolas de surdos no estado do Rio Grande do Sul, com maior número de alunos implantados, conforme apontava os dados da pesquisa desenvolvida pelo GIPES. Encaminhei os convites às escolas escolhidas e, posteriormente, recebi informações sobre as disponibilidades para realização das entrevistas. Duas escolas confirmaram o aceite e retornaram com a data sugerida, por haver um momento de reunião pedagógica no qual haveria a presença da maioria dos professores. Na escola Estadual, foram marcadas três datas diferentes, pois os professores não podiam se ausentar da sala de aula.

Quanto ao desenvolvimento das entrevistas, inicialmente, solicitei que cada professor apresentasse seu nome, seu sinal em Libras, formação, tempo na escola e o trabalho atual (cargo/função). Em seguida, pedi para que os docentes contassem sobre suas experiências educacionais com alunos surdos usuários de IC. Ao longo das narrativas, perguntei sobre a metodologia e outras questões que fui provocada a partir da sinalização de cada um.

Sobre os participantes da pesquisa, na escola Estadual, participaram 4 professoras; na escola Municipal, entrevistei 9 professores; e, por fim, na escola Particular, contei com 10 professores participantes. Do total de 23 professores, sendo 7 surdos. O tempo de docência na educação de surdos variava entre 1 a 27 anos, sendo que o tempo de experiência de envolvimento com o IC ficava por volta de 10 anos. Com relação à produção dos dados, as entrevistas narrativas foram realizadas entre os meses de março e maio de 2019 e os vídeos foram traduzidos por tradutores e intérpretes de Libras entre os meses de abril a agosto de 2019. Como a tradução envolve diferentes sujeitos, subjetividades, interpretações, fiz últimas leituras finalizando a revisão e tradução. O movimento seguinte foi fazer leituras, releituras, destacando as palavras e/ou frases recorrentes para o desenvolvimento das análises. O conteúdo da transcrição foi analisado, de modo que as narrativas recorrentes e as singularidades apresentadas pelas docentes foram organizadas e discutidas a partir do referencial teórico selecionado, conforme apresento a seguir.

Narrativas docentes sobre alunos surdos usuários de IC: discussão dos dados da pesquisa

Retomando ao objetivo deste texto - analisar como as experiências educacionais com alunos surdos usuários de IC são narradas pelos docentes de escolas de surdos no Rio Grande do Sul - apresento uma síntese dos resultados da referida investigação. A análise está organizada em dois eixos, a partir das recorrências narrativas. O primeiro trata dos modos como os alunos surdos usuários de IC são categorizados e a produção da noção de surdez pós-moderna. No segundo eixo, apresento as experiências educacionais com alunos surdos usuários de IC. Cada eixo foi desdobrado em subcategorias analíticas que apresentarei a seguir.

Na análise dos modos como os alunos surdos usuários de IC são categorizados pelos docentes, foi possível verificar a produção da noção de surdez pós-moderna. Para tanto, foram organizadas as seguintes subcategorias: 1) “Querem um filho normal!”: normal(ização) em questão; 2) “Eu não vejo diferença!”: (In)diferenças em questão e 3) “Eu não sabia que ele era surdo/implantado”: (In)visibilidade em questão.

A Surdez Pós-Moderna, a partir das representações dos professores sobre sujeitos usuários de IC, inscreve-se como um olhar sobre a surdez na contemporaneidade. Esse olhar é produzido pela experiência, pela relação que os docentes estabelecem com os alunos ao longo da prática educativa. A Surdez Pós-Moderna se inscreve em uma ordem não binária, ou seja, não se trata de classificar, de forma fixa, a identidade dos sujeitos, mas continua atravessada pelas questões na normalização. Assim, em algumas passagens os docentes apontam para o desejo dos familiares pela normalização a partir da expectativa pela audição dos surdos e, em outras passagens, os professores tratam da invisibilização do IC no contexto escolar.

Sobre o desejo dos pais pelo “filho normal”, as narrativas docentes evidenciam que algumas crianças sofrem de violência audista, por meio da omissão da cicatriz e a obrigação de fazer terapia de fala. Os professores contam que, ao trabalhar com alunos surdos, vivenciam as expectativas dos pais pela normalização, ou seja, que seus filhos possam ouvir e falar/oralizar. Contudo, alguns pais, a partir da relação que estabelecem com a escola de surdos, passam a entender que o filho é surdo, aceitando assim a não obrigatoriedade do IC e reconhecendo que o surdo pode se desenvolver também com o uso da língua de sinais. O audismo, em inglês audism, segundo Lane (1992, p. 52), “[...] é a forma de dominação dos ouvintes, reestruturando e exercendo a autoridade sobre a comunidade surda”. A prática audista pode ser institucional ou individual, em que pessoas ouvintes falam e decidem sobre a vida dos surdos – um tipo de colonialismo.

As práticas de normalização são produzidas pelos discursos que constituem modos de vida, com suas organizações engendrando formas de ser e de relacionar em diferentes espaços, e a escola é um desses. Enquanto a surdez for narrada pela ótica clínica corretiva, será tratada como algo passível de correção. Esse processo de normalizar a audição é reforçado pelo sistema audista, com ênfase nos espaços de saúde, fortalecido pelas mídias e a captura de novos consumidores de sons auditivos. Por outro lado, nas narrativas docentes foi possível identificar um elemento importante na constituição dos surdos implantados, um processo de normalização que adota uma perspectiva surda.

Os docentes optam: “Eu não vejo diferença!”, e essa afirmação possibilitou a discussão sobre a (in)diferenças nos contextos das escolas de surdos. As narrativas docentes indicam que o encontro surdo-surdo propicia a construção da identidade surda, ou seja, da identidade não-ouvinte, aproximando os alunos dos artefatos da cultura surda e manutenção de vínculos com a comunidade surda. Assim, as narrativas apontaram que a maioria dos professores não percebem diferença, em termos identitários, entre alunos surdos e surdos com IC. Segundo eles, os alunos usuários de IC continuam sendo surdos, pois atendem à norma surda, ou seja, sinalizam no ambiente escolar. A norma surda ou normas surdas são produzidas discursivamente com base na vivência da diferença linguística e cultural, através da experiência visual, do uso da língua de sinais, e do pertencimento à comunidade surda. 

Os modos de esses alunos surdos se relacionarem com o IC são variados, uns deixaram de utilizar, outros utilizam em casa, e há aqueles que o usam o tempo todo. Dessa forma, as narrativas me permitiram construir a subcategoria “Eu não sabia que ele era surdo/implantado”: (In)visibilidade em questão. Alguns professores afirmam que só descobriram que o aluno era implantado quando expôs a cicatriz ou passou a utilizar o IC na escola. 

Segundo as narrativas docentes, os motivos para o não uso do IC ou da invisibilidade do aparelho são: obsolescência, custo elevado para conserto e manutenção, não acompanhamento para atualização constante, desistência causada pela alta expectativa de normalização, resistência causada por interpelação das marcas surdas. A invisibilidade, dependendo do contexto, pode ser perigosa, como o exemplo de alunos implantados que frequentam escolas comuns. Nestes contextos existem paradoxos, resultado do movimento in/exclusivo, tais como a invisibilidade dos surdos e a visibilidade do IC. São surdos ou surdos implantados ou “ouvintes por IC”, sujeitos sem língua de sinais e isolados linguisticamente, ou seja, esses sujeitos são invisíveis ao olhar da educadora que não é bilíngue. Em geral, a invisibilidade acontece no sentido de o professor não saber ou (re)conhecer as diversidades/pluralidades/singularidades dos alunos surdos. Nas escolas bilíngues de surdos, há invisibilidade do IC e (in)visibilidade da cicatriz. Na escola comum: visibilidade do IC e (in)visibilidade do surdo.

O segundo eixo de análise, sobre as experiências educacionais com alunos surdos usuários de IC, organizei a análise em três subcategorias, são elas: 1) narrativas sobre a (in)formação dos professores sobre IC e o ensino que trata sobre uso das línguas e metodologias; 2) (e)feitos das políticas educacionais na vida dos alunos surdos; e 3) manifestações éticas dos docentes dessas escolas bilíngues.

A primeira subcategoria, intitulada Narrativas sobre (In)formação e Ensino, mostra que a maioria dos docentes obtém conhecimentos sobre IC dentro da própria escola, por meio de informações e experiências compartilhadas com colegas, dos próprios alunos que usam o IC, gestores e pais, através das reuniões e conversas. Apenas uma professora teve esse conhecimento durante o curso de especialização. É visível que docentes também passam por processos de fronteira ao se deparar com diferentes situações educacionais dos alunos surdos, pois os “novos” alunos parecem provocar mudanças nas práticas docentes. Foi notado que existe uma preocupação desses docentes sobre os efeitos do IC, como o risco cirúrgico, a diminuição do número de alunos surdos nas escolas e algumas mudanças nas práticas pedagógicas. 

Os docentes reconhecem que o trabalho de ensinar a falar pertence ao profissional fonoaudiólogo, embora não deixem de explicar quando os alunos solicitam. Assim, questiono a possibilidade de uma “nova” comunicação total ser a causa da presença do IC, pois o bimodalismo e/ou português sinalizado circulam por conta dessas tecnologias. 

Os professores dessas escolas de surdos têm conhecimentos sobre a diferença surda, alguns se transformam por causa do(s) aluno(s), a partir da experiência em aula, porém nem todos os professores são capturados para a formação continuada. Vários docentes mencionam que, de modo geral, não há diferença entre alunos surdos e alunos surdos implantados, para alguns a diferença se dá principalmente no início em termos de comportamento e construção de identidade. Mas isso nos provoca a pensar sobre a necessidade de um olhar individualizado para cada aluno.

Para analisar as mudanças nas práticas pedagógicas, desenvolvi uma análise sobre a(s) língua(s) da sala de aula: metodologias utilizadas na educação de alunos surdos implantados. Nesse item, a centralidade está no desafio que os professores têm nas explicações e orientações para os pais que seu filho é surdo e que a escola usa língua de sinais como instrução. Os docentes percebem que algumas crianças apresentam identidade fronteiriça, pois se portam como ouvintes na família e como surdos na escola; os alunos que frequentam sessões de fonoaudiologia questionam-lhes durante a aula como se pronuncia uma determinada palavra e/ou fonema e, conforme alguns professores, tem sido produtivo para os alunos conhecerem a língua oral com base na conversa que ocorre em língua de sinais. 

Também é recorrente a preocupação dos docentes sobre a quantidade de alunos surdos que chegam à escola com aquisição nula ou tardia da língua de sinais, o que lhes aumenta o trabalho, pois, além de ensinar conteúdos escolares, é preciso acompanhar a aquisição e aprendizado da língua de sinais. Cada professor tem suas estratégias metodológicas/pedagógicas, alguns deles usam duas línguas na aula, tanto na forma bimodal, quanto a predominantemente oral, com o objetivo de fazer os alunos entenderem as aulas, principalmente na fase de aquisição da língua de sinais. Esse modo de comunicação contemporânea bimodal, realizado por alguns professores, assim como por alguns usuários de IC, denomino como neocomunicação total.

A metodologia de comunicação total que ocorria no passado foi para atender a norma da sociedade ouvinte, perpassada pela ordem institucional. Agora o movimento do neocomunicação total é diferente, pois ela surge por conta do próprio aluno que usa o IC, ou por conta do pedido dos pais a fim de que o IC e os modos de funcionamento dele estejam em modo ON. A questão da in/exclusão também provoca mudanças na comunicação em sinais, os sinais historicamente criados convencionalmente e culturalmente vistos como “puros” passam a ser misturados, hibridizados. O português e a Libras se fundem, como uma comunicação express, não havendo tempo para assimilar as duas línguas separadamente. O status da língua de sinais corre o risco de ser secundário, instrumentalizado. (Pontin, 2021,  p. 98)

Observa-se uma sobreposição das línguas de sinais, por influência do IC, que induzem à oralização, bem como a influência dos avatares vindos dos dicionários on-line. É importante que os professores sejam incentivados a ter uma formação continuada para participar de eventos relacionados à área da educação surda, a fim de manter atualizados seus conhecimentos sobre as novas produções acadêmicas. (Pontin, 2021).

Na continuidade da análise sobre as experiências educacionais, foi possível organizar uma subcategoria em que abordei os (e)feitos das políticas educacionais na vida dos alunos surdos. Entre os (e)feitos, observam-se as trocas de escolas em decorrência dos conhecimentos e suas disponibilidades e/ou possibilidades, a (in)comunicação entre educação e política, os (im)procedimentos educacionais, ou seja, o funcionamento ou não das políticas educacionais. As narrativas docentes trataram dos deslocamentos dos alunos dentro do sistema de ensino, ora em escolas comuns, ora em escolas de surdos. Nessa mobilidade dos alunos, uma questão que chama atenção é a preocupação com a redução do número de alunos matriculados nessas escolas de surdos, assim como o ingresso tardio dos surdos implantados vindos da escola comum após o insucesso educacional. 

Um dos efeitos da política de inclusão é fazer com que os pais optem, incialmente, por uma escola a partir de uma visão da “normalidade”, conduzida pelos profissionais de saúde. Na escola comum, mesmo sendo inclusiva, nem todos os professores têm formação em educação bilíngue surda para efetivar a inclusão. O número de escolas para surdos é pequeno por causa das políticas de inclusão e a falta de implementação da política de Educação Bilíngue de Surdos, com destaque para o fortalecimento  da oferta do Atendimento Educacional Especializado (AEE), política cuja visão é predominantemente audista, pois não prioriza a língua de sinais como primeira língua.. O IC é também um dos efeitos desses discursos de inclusão, pois move o sujeito surdo para a escola comum. Dependendo dos discursos de quem constitui os usuários de IC, em alguns contextos o IC invisibiliza os corpos surdos, tornando-os ou denominando esses sujeitos como “ouvintes”.  

Sobre o impacto das políticas no processo educacional denominei de “(im)procedimentos Educacionais” pois não se trata, apenas, da escolha dos pais dos alunos surdos implantados, mas da forma como a administração pública tem lidado com os sujeitos. A inexistência de políticas públicas próprias para a educação de surdos é causada pela fragilidade da epistemologia surda nessa sociedade. Em outras palavras, a invisibilidade surda é produzida pelo olhar audista, que ignora a diferença linguística e cultural, sendo então o surdo considerado um deficiente. 

Há casos de impedimentos ou dificuldades relacionados ao acesso às escolas de surdos, como falta de apoio das prefeituras, problemas de transporte e custeio de despesas para famílias carentes. Os familiares são orientados a realizar a matrícula dos filhos na escola perto de casa. Sobre a questão do transporte, é possível pensar na falta de integração das políticas de inclusão e na gestão dessas políticas. Surdos que estão nas escolas inclusivas, muitas vezes, são invisíveis, e, conforme os anseios e pedidos dos professores, além da escola de surdos, a classe bilíngue ou a escola integral para surdos é uma possibilidade de escolarização, pois possibilita que os alunos tenham, além do acesso educacional na sua língua de conforto, pares surdos para convivência e trocas de aprendizados. 

Nas narrativas, os docentes sugerem uma aproximação entre as secretarias de Saúde e Educação, afirmando que essas áreas carecem de articulação com os saberes sobre surdos, a partir de uma epistemologia surda. Reflito sobre o epistemicídio surdo enraizado nesta sociedade para entender por que a comunidade surda ainda permanece lutando pela conscientização surda, pelos direitos dos sujeitos surdos, em diversos âmbitos, inclusive pela educação escolar bilíngue de surdos.

Fora do contexto escolar, não há uma recorrência de representatividade surda em diversas esferas sociais e midiáticas capaz de romper os olhares audistas. Por mais que novas produções acadêmicas surdas irrompam, a representatividade surda no meio acadêmico, político, social, é reduzida. O audismo institucional e epistêmico prevalece, subalternizando o protagonismo surdo. A episteme surda ainda não se finca em diferentes territórios de saberes e, desconsiderar a epistemologia surda, é o mesmo que desconsiderar o sujeito surdo. Questiono se aceitar e incorporar a episteme é ação da inclusão ética? A partir desse questionamento, apresento a última subcategoria na qual discuto sobre a ética na Educação de Surdos: manifestações na prática docente.

Nas narrativas docentes foi possível apresentar as manifestações éticas na prática docente, isto é, as maneiras de ser e de conduzir a docência, no contexto da educação de surdos. Realizei breves questionamentos para refletir sobre o direito, direito da criança versus dos pais, a legitimidade de fala da medicina. Os professores são conduzidos por uma postura ética que privilegia o cuidado com a vida e a educação em uma perspectiva bilíngue e bicultural.

Sobre o cuidado com a vida, as narrativas docentes apontam para duas questões, uma que diz da preocupação deles sobre o uso do IC em determinadas atividades e os custos dos ICs.  Além de serem responsáveis pelo aprendizado dos alunos, os professores são orientados pelos pais a terem cuidados com o/a filho/a e com o IC, principalmente nos momentos de atividades esportivas e intervalos recreativos, por causa do risco de acidente na região da cabeça, da obsolescência do IC e custo alto para sua manutenção e conserto. Nesse contexto, professores comunicam ao aluno para tirar a parte externa do IC e guardá-lo na mochila. Porém, alguns alunos guardam o IC na mochila porque não querem usá-lo naquele momento, e os professores entendem que aceitar isso colabora na saúde emocional/psicológica do aluno, pois o IC é geralmente uma escolha da família e não do próprio aluno. Uma professora sugere a possibilidade de um documento isentando a escola da responsabilidade para com os cuidados do IC, pois a escola de surdos é um espaço que preserva a liberdade de ser surdo. Concluo que é possível apontar que essas narrativas carregam, sim, uma ética (da educação) surda. 

Com relação ao compromisso ético com a educação dos surdos, evidenciei narrativas docentes sobre o ser professor da educação bilíngue, no espaço onde há circulação de duas línguas e culturas, de diferentes modos. Os alunos nessas escolas são reconhecidos como surdos, com suas complexidades, suas diferenças e suas particularidades, e o IC é visto como um artefato tecnológico do presente, talvez o menos problematizado, pois o que importa é que esses alunos tenham aprendizado através da comunicação efetiva. Todos os alunos surdos e surdos com deficiência são incluídos e, conforme as narrativas docentes, demandam muita atenção, pois existe a necessidade de se conhecer a história desses alunos, olhando principalmente para a questão da língua e o desenvolvimento da linguagem, a situação familiar, etc. As questões de saúde emocional e psicológica dos alunos, em consequência da normalização audista, não passam despercebidas pelos professores e equipe, mas questiono sobre um tipo de planejamento ou atendimento mais individualizado, pois, por vezes, parece que a escola se caracteriza, mais, como um espaço de socialização.

As palavras finais dos docentes participantes da pesquisa mostraram que os professores compreendem a escolha dos pais, embora afirmem que o IC causa desperdícios financeiros e acreditam que tais investimentos poderiam ser melhor direcionados para a promoção da educação bilíngue para surdos. Uma professora narra o IC como extermínio do pensamento surdo e isso me levou a discutir para além do epistemicídio e audismo, cujos pensamentos se aproximam da ideia do genocídio/eugenia; porém, acho válido reconsiderar a surdez direcionando o olhar para as discussões sobre raça e etnia. 

Desse modo, na contemporaneidade, a surdez pós-moderna, pode ser compreendida com o movimento eugênico sutil de normalização ouvinte/audista, ser e estar diante das tecnologias, vai produzindo novos e diferentes modos de ser surdos e tem como consequência o aumento de pessoas surdas não usuárias da língua de sinais, a (in)visibilidade do corpo surdo, e mudanças em alguns traços característicos da cultura surda, assim como o posicionamento identitário. 

A escola de surdos é uma escola inclusiva, aquela escola que inclui, aceita e abraça todos os alunos surdos, surdos com suas diferenças, surdos com deficiência, surdos pré e pós linguísticos, abrangendo assim a diferença e diversidade surda. O elo que os torna iguais é o uso da língua e da visualidade. E a língua oral-auditiva? Ela não é impeditiva, não é proibida, mas fica sob a responsabilidade dos fonoaudiólogos e dos pais e familiares, além do desejo do próprio sujeito surdo. Ser professora é também ter o poder de produzir novos saberes, ser professor de surdos, saberes surdos, logo, ética surda.

Considerações Finais

Como pessoa surda, é crucial ressaltar que esta pesquisa não teve como intenção apresentar argumentos favoráveis ou contrários ao IC. Em vez disso, o objetivo primordial foi problematizar e questionar os discursos que cercam esse procedimento, sob a lente dos Estudos Culturais. No entanto, é inegável que as vidas surdas enfrentam o risco de não serem reconhecidas como sujeitos linguísticos e culturais. Isso se deve em grande parte às políticas linguísticas, ou à sua ausência, que resultam no que chamo de epistemicídio linguístico. Esse epistemicídio ameaça as línguas de sinais, à medida que são apagadas no processo de educação de surdos fora das escolas bilíngues de surdos, contribuindo para o apagamento da comunidade e cultura surda.

Como mencionado, a falta de uma política linguística abrangente, que leve em consideração a língua e cultura surdas, não promove a formação de uma identidade linguística, o que, por sua vez, dificulta a efetivação do Artigo 24 da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, ratificado no Brasil pelo Decreto nº 6.949/2009. Destaco a importância da colaboração ética entre diversas áreas do conhecimento para garantir que os sujeitos surdos e suas famílias tenham acesso à aquisição de línguas e ao desenvolvimento da linguagem por meio de práticas bilíngues desde a primeira infância. Isso é fundamental para a construção de uma sociedade igualitária, baseada no respeito à diversidade surda.

Além disso, concluo esta pesquisa reconhecendo a existência de diversas formas de ser surdo na contemporaneidade, que descrevo como "surdez pós-moderna". O IC é uma ferramenta tecnológica que tem contribuído para a emergência de novas identidades surdas, enquanto a língua de sinais permanece fundamental nas escolas de surdos, nas práticas pedagógicas, na comunicação, na interação e na expressão do que chamei de "manifestações éticas". As narrativas de professores e educadores destacam como esses sujeitos são moldados por experiências escolares, sociais e familiares diversas e singulares. Essa diversidade é uma característica da nossa era, definida por relações fluidas e conexões digitais, condições que impossibilitam uma única resposta ou identificação sobre a representação dos alunos surdos usuários do IC.

No entanto, faz-se necessário que o movimento da representação surda permaneça ativo para não marginalizar as vozes dos surdos que utilizam línguas de sinais. Estamos vivendo em uma era de mudanças tecnológicas, e, inevitavelmente, nos tornamos ciborgues. Ser surdo é, em última análise, uma expressão da diversidade, e as formas de ser e estar surdo são únicas devido às diferentes experiências de cada indivíduo. O mesmo vale para os surdos implantados, cujas particularidades são moldadas pelas transformações tecnológicas e científicas do mundo contemporâneo. É importante romper com a visão binária clínico-antropológica e reconheçamos as (re)definições (in)constantes, (in)certas e ambivalentes que caracterizam a representação surda. É possível compreender os indivíduos surdos com novas formas de ser e se relacionar na sociedade, influenciados de maneira significativa pelas conexões digitais. Portanto, é válido (re)pensar na luta atual para serem incluídos no(s) sistema(s) predominantemente (bit e bytes) audista(s).

Referências

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[1] Segundo Costa, Silveira e Sommer (2003, p. 37), os Estudos Culturais (EC) emergem das “[...] movimentações de certos grupos sociais que buscam se apropriar de instrumentais, de ferramentas conceituais, de saberes que emergem de suas leituras do mundo, repudiando aqueles que se interpõem, ao longo dos séculos, aos anseios por uma cultura pautada por oportunidades democráticas, assentada na educação de livre acesso. Uma educação em que as pessoas comuns, o povo, pudessem ter seus saberes valorizados e seus interesses contemplados.”.

[2] Os Estudos Surdos, ou Deaf Studies, conforme Bauman (2008), possibilitaram a emergência de um espaço de discussão sobre as questões relacionadas à comunidade surda na perspectiva sociológica, cultural e linguística. Segundo o autor, os Estudos Surdos atuaram e têm atuado na defesa de uma cultura surda, definindo os atributos da identidade surda e discutindo a construção de uma perspectiva bilíngue/bicultural para a educação dos surdos.

[3] O Grupo de Pesquisa SINAIS foi coordenado pela professora Dra. Adriana da Silva Thoma, que, entre os anos de 2008 e 2018, desenvolveu pesquisas que problematizavam a inclusão, subjetivação e governamento de sujeitos que compõem os chamados grupos em situação de exclusão, risco ou vulnerabilidade social.

[4]  O GIPES desenvolve pesquisas desde a metade dos anos 2000, no Rio Grande do Sul, em articulação com outros pesquisadores do Brasil e de outros países, tomando como campo de investigação a Educação de Surdos. Dentre as pesquisas desenvolvidas pelos grupos, destaco minha participação na pesquisa Produções Culturais Surdas no Contexto da Educação Bilíngue, coordenada pela professora Dra. Lodenir Becker Karnopp.

[5] 4 Pesquisa desenvolvida com o apoio financeiro do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Edital Universal 14/2014, Processo 454906/2014-5.