Educação Especial e Inclusiva em Angola: um contexto local subalterno a uma agenda global

Special and Inclusive Education in Angola: a local context subordinate to a global agenda

Educación Especial e Inclusiva en Angola: un contexto local subordinado a una agenda global

 

António António

Gabinete Provincial da Educação de Malanje, Angola

antoniotonny1988@hotmail.com

Geovana Mendonça Lunardi Mendes

Universidade do Estado de Santa Catarina, Florianópolis, SC, Brasil

 geovana.mendes@udesc.br

 

Recebido em 22 de fevereiro de 2024

Aprovado em 11 de março de 2024

Publicado em 05 de julho de 2024

 

RESUMO

O presente artigo objetiva analisar os fundamentos políticos-filosóficos globais que, por meio das organizações multilaterais, influenciam na concepção e elaboração da Política Nacional de Educação Especial Orientada para a Inclusão Escolar em Angola. A pesquisa foi realizada com base em uma abordagem qualitativa, a partir do método da Abordagem do Ciclo de Políticas (ACP) e da Teoria de Atuação Política (TAP) de Ball, Maguire e Braun (2016). Para a sua realização, foram analisados diferentes documentos e ações internacionais da Organização das Nações Unidas (ONU), que servem de principais suportes de embasamento do ordenamento jurídico de toda a política angolana voltada à inclusão escolar da pessoa com deficiência. Os resultados evidenciam que, apesar dos importantes contributos das agências especializadas da ONU no desenvolvimento da Educação Especial e Inclusiva, a desconsideração dos saberes e das necessidades locais geraram incompatibilidades entre as políticas adotadas, a partir de uma agenda global face ao contexto local da prática.

Palavras-chave: Educação especial; Educação inclusiva; Políticas Públicas; Angola.


 

ABSTRACT

This article aims to analyze the global political-philosophical foundations that, through multilateral organizations, influence the conception and elaboration of the National Policy for Special Education Oriented towards School Inclusion in Angola. The research was carried out based on a qualitative approach using the Policy Cycle Approach (PCA) method and the Theory of Political Action (TAP) by Ball and collaborators. To carry it out, different international actions and documents from the United Nations (UN) were analyzed, which serve as the main support for the legal system and the entire Angolan policy aimed at the educational inclusion of people with disabilities. The results show that, despite the important contributions of specialized UN agencies in the development of special and inclusive education, the disregard of local knowledge and needs generated incompatibilities between policies adopted based on a global agenda in relation to the local context of practice.

Keywords: Special education; Inclusive education; Public policy; Angola.

 

RESUMEN

Este artículo tiene como objetivo analizar los fundamentos político-filosóficos globales que, a través de organizaciones multilaterales, influyen en la concepción y elaboración de la Política Nacional de Educación Especial Orientada a la Inclusión Escolar en Angola. La investigación se realizó con un enfoque cualitativo utilizando el método PolicyCycleApproach (PCA) y la Teoría de la Acción Política (TAP) de Ball y colaboradores. Para realizarlo se analizaron diferentes acciones internacionales y documentos de la Organización de las Naciones Unidas (ONU), que sirven de principal soporte al sistema jurídico y a toda la política angoleña encaminada a la inclusión educativa de las personas con discapacidad. Los resultados muestran que, a pesar de las importantes contribuciones de las agencias especializadas de la ONU en el desarrollo de la educación especial e inclusiva, el desprecio de los conocimientos y necesidades locales generó incompatibilidades entre las políticas adoptadas con base en una agenda global en relación con el contexto local de práctica.

Palabras clave: Educación especial; Educación inclusiva; Políticas Públicas; Angola.

 

Introdução

            O direito à educação, mundialmente consagrado desde 1948 pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Organização das Nações Unidas (ONU), é um compromisso retomado e reiterado em 1990 pela Conferência Mundial sobre Educação para Todos (Organização das Nações Unidas [ONU], 2009; Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [Unesco], 1990). Como um desafio inerente as políticas públicas do Estado angolano, o direito a educação vem consagrado na Constituição da República de Angola no seu Art. 79, sob a promoção do Estado que abre a possibilidade da iniciativa particular e cooperativa nesse domínio. Outrossim, esse direito vê-se reforçado no Art. 23 da mesma carta que consagra o princípio da igualdade (Angola, 2010). O ponto 2 do Art. 23 declara:

 

Ninguém pode ser prejudicado, privilegiado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão da sua ascendência, sexo, raça, etnia, cor, deficiência, língua, local de nascimento, religião, convicções políticas, ideológicas ou filosóficas, grau de instrução, condição económica ou social ou profissão (Angola, 2010, p. 146).

 

Importa enfatizar que, do ponto de vista do ordenamento jurídico, a educação angolana é regida pela Lei n.º 17/16, de 7 de outubro que estabelece os princípios e bases gerais do Sistema de Educação e Ensino que, posteriormente, foi alterada com algumas adequações pela Lei Complementar n.º 32/20, de 12 de agosto. Nessas leis, destaca-se o Art. 9º que consagra o princípio da universalidade que considera o seguinte:

 

O Sistema de Educação e Ensino tem um caráter universal, pelo que, todos os indivíduos têm iguais direitos no acesso, na frequência e no sucesso escolar nos diversos níveis de ensino, desde que sejam observados os critérios de cada Subsistema de Ensino, assegurando a inclusão social, a igualdade de oportunidades e a equidade, bem como a proibição de qualquer forma de discriminação (Angola, 2016a, 2020).

 

Todavia, apesar dos normativos que visam garantir e estender o direito à educação para todos, o contexto angolano ainda se depara com grandes desafios nesse quesito, sobretudo, o desafio é maior quando a questão tem a ver com o público-alvo da educação especial, com maior ênfase às pessoas com deficiência. Vale pontuar que a Educação Especial em Angola, como Modalidade de Ensino começa, oficialmente, em 1979, quatro anos após a independência nacional sob o jugo colonial de Portugal, porém, esse período foi marcado por uma longa e intensa guerra civil que culminou com o calar das armas em 2002, daí que, a semelhança das outras esferas da vida social, a educação foi profundamente afetada. Diga-se, a Educação Especial conheceu sua virada mais importante a partir de 1995, depois que Angola participou da Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais em 1994, terminando como um membro signatário da Declaração de Salamanca.

Atualmente, a promoção internacional pelo direito à educação de qualidade tem sido uma bandeira dentro das principais agendas globais orquestradas pelas organizações multilaterais, com grande ênfase pela ONU que, por meio de suas agências especializadas, promovem um conjunto de políticas educativas globais, adotadas, voluntariamente ou não, por países com níveis de desenvolvimento completamente desiguais. Como afirma Verger (2019, p. 18), “muitas vezes, os países adotam políticas e programas educacionais globais porque são impostos externamente condicionados à ajuda ou pela coerção ou porque os Estados-Nação estão inclinados a aderir aos modelos mundiais de organização educacional”.

Atualmente, a Educação Especial e Inclusiva vem se configurando fortemente nas agendas globais da educação por intermédio do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Banco Mundial (BM), que concebem e financiam projetos e políticas educativas, fundamentalmente em países subdesenvolvidos. Nesse quesito, a pesquisa objetiva analisar e apresentar os contornos influenciadores da política angolana de Educação Especial e Inclusiva que, com a presença das agências multilaterais, assume, cria e redireciona sua Política Nacional de Educação Especial e Inclusiva, fortemente apoiada em orientações submissas às agendas globais da educação. Tendo a Conferência Mundial sobre Educação para Todos de 1990 e a Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais de 1994 como importantes referentes, o Governo angolano alinhou os principais fundamentos filosóficos e políticos que conformam toda a sua política educacional voltada à inclusão escolar da pessoa com deficiência, um fator que, às vezes, choca com todo um contexto real.

Como afirmam António, Mendes e González (2021), ao falar da educação no contexto angolano, fundamentalmente a Educação Especial e Inclusiva, é imprescindível relevar suas particularidades histórico-cultural, multiétnica, a situação política, econômica e social do seu povo. Outrossim, como Estado Soberano, Angola é um país relativamente novo, que alcançou sua independência no final de 1975, período que se viu seguido de uma intensa e sangrenta guerra civil, que culminou em 2002. Segundo António (2023, p. 101):

 

Após o alcance da paz, marcada pelo calar das armas, uma das grandes prioridades do governo angolano no campo da educação, senão a principal, centrou-se na alfabetização da sua população, criando políticas de acesso massivo às escolas, embora, em muitos casos, em condições generalizadas de precariedade.

 

Dentro de todas as políticas educativas que visam o acesso à educação escolar, estão as das pessoas com deficiência e dos alunos com necessidades educativas especiais que, entre as várias condicionantes de garantia de acesso a educação, também enfrentam importantes barreiras culturais.

Conforme apontam António, Mendes e González (2021), a crença tradicional de associar a deficiência às forças sobrenaturais do mal, a não existência do ensino especial até antes de 1979 (quatro anos após a independência), a intensa guerra civil de 27 anos que viria a causar danos humanos e materiais nefastos, a falta de professores e escolas suficientes para garantir o direito à educação e a inclusão educativa e, a falta de recursos financeiros suficientes nos períodos pós-independência, durante e pós-guerra configuram o verdadeiro cenário das posteriores políticas de educação especial que, em grande medida, ficaram à mercê das agências multilaterais que orientam e financiam projetos em base de pautas globais.

Essa reflexão pode servir de importante contribuição para os profissionais da educação e para os formuladores de políticas públicas voltadas à educação, no confronto entre o ideal e desejado versus o real que se reflete aquém do que se espera. Concebida como uma modalidade diferenciada de educação e ensino, a Educação Especial é, segundo a Angola (2020, p. 4429), “uma modalidade de ensino transversal a todos os subsistemas de ensino e é destinada a pessoas com deficiências e aos educandos com altas habilidades, sobredotados e autistas, visando a sua integração sócio-educativa” que, todavia, apesar dos avanços que vem conhecendo, enfrenta importantes desafios que perpassam a conformação do marco jurídico. Na prática, a realidade demanda ações mais concretas e compatíveis com as reais necessidades, ou seja, a garantia da inclusão dá-se pelas ações concretas inerentes e não pela simples intenção de o querer garantir.

 

A trama da Educação Especial e Inclusiva no panorama histórico-cultural e sociopolítico do contexto angolano

Tal como em muitos outros países da África Subsaariana, em Angola há uma tendência de se enquadrar a deficiência numa estrutura médica, capacitista e de assistência social, identificando as pessoas com deficiência como pacientes, diferentes dos que não têm deficiência. A ênfase sobre as necessidades médicas das pessoas com deficiência, considerando-a como um corpo doente com necessidade de restauração à condição, conduz a um desprezo correspondente às suas vastas necessidades sociais, resultando no severo isolamento delas e de suas famílias, o que, segundo esse modelo, demanda de um tratamento que visa amenizar o considerado desvio do estado normal da natureza humana (Bisol; Pegorini; Valentini, 2017; Instituto Nacional de Educação Especial [Inee], 2006).

Por conta dessas diferenças na compreensão, a deficiência é explicada, segundo várias ocorrências e tal como refere o Inee (2006) com base em argumentos sobrenaturais como, por exemplo, o nascimento de uma criança com o Síndrome de Down ou uma deficiência física é, em muitos casos, denominada Ximbi/Simbi[1], vista como sendo causada pela cólera dos espíritos ancestrais, que têm de ser acalmados com a prestação de homenagem a esses espíritos ancestrais na margem do rio, ou na sombra de uma árvore, por meio de rituais praticados na região. No caso da deficiência mental, explica-se, para algumas famílias e grupos sociais como sendo consequência da feitiçaria de algum dos parentes mais próximos, que geralmente tem sido vítima a tia ou tio maternos (Inee, 2006). Longe de ser encarada como uma condição, em muitos casos, pessoas com deficiência, às vezes nem mesmo no seio familiar estão protegidas de discriminações. Por conta disso, o nascimento de uma criança com deficiência é motivo de um embaraço para a família, porque a deficiência é vista, para grande parte da população, como evidência das forças do mal.

Em decorrência disso, a Educação Especial teve de enfrentar e continua enfrentando, ao longo dos tempos, várias dificuldades evidenciadas no confronto às práticas discriminatórias e de exclusão que, apesar das barreiras culturais e das dificuldades econômicas, fundamentalmente impostas pelo longo conflito armado, o país foi dando passos importantes, no sentido de melhorar o atendimento educativo de pessoas com deficiência (Angola, 2017).

Embora a assunção legal e pioneira da Educação Especial em Angola esteja datada de 1979, quatro anos depois da Independência, o que se deu pelo Decreto n.º 56/79, período em que foram criadas, teoricamente, as condições mínimas indispensáveis, permitindo pôr em funcionamento as escolas de Educação Especial, cuja meta é educar a população com deficiência e os alunos com necessidades educativas especiais, sob a gestão do Departamento Nacional da Educação Especial criada no ano 1980, como indica o Inee (2006). Na prática, as condições não possibilitaram avanços. Por isso, o atendimento já era limitado só para crianças com deficiência visual e auditiva, o mesmo era precário, segregador e não contemplava todas as províncias. Por conta das condições econômicas e sociais, nomeadamente, a falta de recursos financeiros levou à abertura das primeiras salas especiais nas escolas do Subsistema do Ensino Geral[2], para atender os alunos com deficiência intelectual que não era o público prioritário das poucas escolas especiais que existiam, porém, tanto as escolas especiais como as salas especiais funcionavam em ambientes escolares segregados e de discriminação (Chambal; Rafante; Selingardi, 2015; D’Avila; Pantoja; Carvalho, 2019; Inee, 2006).

A expansão da Educação Especial em Angola, à semelhança de diferentes países, começou a partir da década de 1990, tendo como fundamento basilar as orientações advindas da Declaração Mundial sobre Educação para Todos de 1990, em defesa dos direitos educacionais das pessoas com deficiência, uma expansão reforçada com a Realização da Mesa Redonda Nacional sobre a Educação para Todos, sob apoio e financiamento do Unicef e do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) (Chambal; Rafante; Selingardi, 2015; Inee, 2006). Todavia, essa modalidade de educação, além do ambiente restrito e não estimulador que proporcionava para os alunos com deficiência, se caracterizava pela segregação e discriminação, já que a “Educação Especial em Angola estava organizada sob critério segregativo, pois os alunos com deficiência frequentavam as escolas especiais e centros de atendimento especializado” (Chambal; Rafante; Selingardi, 2015, p. 13).

A grande virada da Educação Especial em Angola acontece com a Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, organizada pelo Governo da Espanha em colaboração com a Unesco em 1994, da qual resultou a Declaração de Salamanca, com a finalidade de promover o objetivo da Educação para Todos, examinando as mudanças fundamentais de políticas necessárias para favorecer o enfoque da educação integradora, concretamente capacitando as escolas para atender a todas as crianças, sobretudo as que têm necessidades educativas especiais (Unesco, 1994). Como signatária dessa Declaração, Angola alia-se, cada vez mais, às perspectivas e experiências de outros países, no que concerne a configuração do ensino especial, tendo que marcar passos necessários face aos compromissos da inclusão educativa da pessoa com deficiência e alunos com necessidades educativas especiais, cabendo depois ter implementado o Projeto 534/Ang/10 sobre Promoção de Oportunidades Educativas para a Reabilitação das Crianças Vulneráveis (Angola, 2017; D’Avila; Pantoja; Carvalho, 2019).

Em decorrência da participação de Angola na Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais e da necessidade de implementação do Projeto 534/Ang/10, no mesmo ano de 1994, conforme o Inee (2006, p. 10), o país começou um processo de “integração de crianças com Necessidades Educativas Especiais nas escolas do ensino regular, em salas especiais e integradas”. O projeto implementado compreendeu duas etapas, sendo que a primeira fase (piloto) iniciada em 1994 abrangeu três províncias, nomeadamente, Luanda, Benguela e Huila. Com o intuito de responder rapidamente por meio dos resultados do projeto, no ano de 1995 foi criada a Direção Nacional para a Educação Especial em substituição do Departamento Nacional para a Educação Especial, com a finalidade de oferecer, à modalidade, uma maior autonomia administrativa e capacidade técnica para confrontar-se com os novos desafios colocados pela adesão à referida Declaração (D’Avila; Pantoja; Carvalho, 2019).

Com as mudanças feitas, o projeto prosseguiu com uma segunda fase em 2000 em mais três províncias, nomeadamente, Huambo, Cabinda e Bié, deixando clara a significativa influência da Declaração de Salamanca. Concomitantemente a expansão do projeto, outras ações foram sendo desenvolvidas, dentre essas, as visitas de orientações metodológicas, não somente nas províncias contempladas das duas primeiras fases, mas também em outras, foram feitos investimentos na formação de técnicos especializados no exterior e formação em serviço de capacitação local de professores em matéria de Educação Especial e Integrada (Inee, 2006). Ainda assim, a oferta desses serviços era limitada e ficou circunscrita para as zonas pouco ou não afetadas pela guerra naquele momento.

Como pode-se observar em Angola (2001), sob orientações de algumas Agências do Sistema das Nações Unidas, em 1995, o Ministério da Educação e Cultura (atualmente Ministério da Educação) identificou necessidades e formulou um Plano-Quadro Nacional de Reconstrução do Sistema Educativo para o decênio 1995-2005 de características intersetorial e pluridisciplinar, com o objetivo de adequar o ensino às exigências para o desenvolvimento humano sustentável, em uma perspectiva de reconstrução sobre novas bases, quando mais uma vez se previa o fim do conflito armado.

Porém, como consequência do modelo de política educacional herdada do colonialismo português e dos constrangimentos de ordem político-militar que geraram graves problemas sociais e econômicos, Angola viu-se completamente condicionada no cumprimento dos desafios educacionais propostos pelas agências especializadas da ONU que assessoravam e financiavam os projetos voltados a escolarização e alfabetização da população em geral. Essa avaliação resultou na elaboração da Estratégia Integrada para a Melhoria do Sistema de Educação em 2001, um documento que tinha como objetivo principal dar a conhecer as características gerais e específicas do diagnóstico e o prognóstico no curto, médio e longo prazos do Sistema de Educação, com predominância para os subsistemas, níveis e modalidades de ensino que o integram, nomeadamente: Alfabetização e Ensino de Adultos; Ensino de Base Regular; Ensino Médio (Normal e Técnico-Profissional); Ensino Superior; e Formação Profissional, no sentido de se equacionar e formular medidas e ações estratégicas no âmbito da Estratégia Global para a Saída da Crise adotada pelo Governo em 1999 (Angola, 2001).

A Estratégia Integrada para a Melhoria do Sistema de Educação 2001-2015 não só fez o diagnóstico sobre o estado da educação e grau de cumprimento dos compromissos sobre ela, mas fez igualmente um prognóstico e definiu ações necessárias que visavam reverter a situação. O seu marco de ações destaca três períodos distintos, mas complementares, nomeadamente, a Emergência (2001/2002), a Estabilização (2003/2006) e, finalmente, a Expansão e o Desenvolvimento (2007/2015) como consta no texto da estratégia (Angola, 2001). Dessa, resultou a Lei de Bases do Sistema Educação de 31 de dezembro de 2001, o que possibilitou, igualmente, a evolução da Direção Nacional de Educação Especial para o Inee por meio do Decreto Lei n.º 07/03, de 17 de junho de 2003 (Angola, 2003). Essa lei contempla a Educação Especial como uma modalidade de ensino transversal, quer para o subsistema do Ensino Geral, como para o subsistema da Educação de Adultos, e é destinada aos indivíduos com Necessidades Educativas Especiais, nomeadamente deficientes motores, sensoriais, mentais, com transtornos de conduta e trata da prevenção, da recuperação e da integração socioeducativa e socioeconômica dos mesmos e dos alunos superdotados (Angola, 2001, p. 16). Mas, sua transversalidade limita-se apenas para dois entre os seis subsistemas desse Sistema de Educação e Ensino. Embora tenha sido um avanço importante para um modelo escolar mais inclusivo e que pudesse valorizar e trabalhar a diversidade na sala de aula, não faz desse um sistema transversalmente inclusivo.

Por conta das insuficiências verificadas na Estratégia Integrada para a Melhoria do Sistema de Educação 2001-2015 e na Lei de Bases do Sistema de Educação de 2001, o Inee elaborou o Plano Estratégico de Desenvolvimento da Educação Especial em Angola 2007-2015, que além de definir ações, ampliou o conceito e campo de ação dessa modalidade de ensino, sendo uma “modalidade com caráter transversal a todos os subsistemas de ensino, com a missão de atender a todas as pessoas com necessidades educativas especiais, transitórias ou permanentes, com vistas a facilitar a sua integração escolar e social” (Inee, 2006, p. 13). Todos os projetos, planos estratégicos e leis criadas tiveram forte influência das agências especializadas da ONU.

Do ponto de vista do ordenamento jurídico, a Educação Especial em Angola, teve o seu ponto mais alto em 2017, com a aprovação da Política Nacional de Educação Especial Orientada para a Inclusão Escolar, um “pelo Inee, o Unicef e outros Departamentos Ministeriais” (Angola, 2017, p. 3675), deixando clara a importância das agências especializadas da ONU sobre essa política. Importa igualmente realçar que, a experiência brasileira, por meio do Instituto Rodrigo Mendes (IRM) teve um importante papel na prestação de consultoria técnica de profissionais brasileiros na elaboração da Política Nacional de Educação Especial Orientada para a Inclusão Escolar, o qual pautou os fundamentos teóricos e práticos na concepção da Convenção da ONU de 2006 e na Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva de 2008 do Brasil (D’Avila; Pantoja; Carvalho, 2019).

Junto da Declaração de Salamanca, a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência é um dos documentos que mais teve influência na atual elaboração da Política Nacional de Educação Especial e Inclusiva. Apesar de ter sido assinado e ratificado a Convenção e o Protocolo Adicional a 5 de março de 2013, tendo depositado em 2014 (Resoluções da Assembleia Nacional n.º 1/13 e n.º 2/13) e sendo Estado Parte desde 19 de maio de 2014, Angola já contava com a Lei e a Política da Pessoa com Deficiência desde 2011, ambas elaboradas sob fundamentos dos normativos internacionais promulgados pela ONU.

Quanto à linha do tempo, a Educação Especial, embora tenha sido oficialmente adotada como modalidade de ensino em 1979, as primeiras ações concretas e de maiores impactos foram dadas sob assessoria e financiamento da ONU, nomeadamente a Mesa Redonda Nacional sobre Educação para Todos de 1991, resultante da Conferência Mundial sobre Educação para Todos de 1990, a implementação do Projeto 534/ang/10 em 1995 que resultou da participação de Angola na Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, em Salamanca no ano de 1994. Daí em diante, a presença da ONU por intermédio de suas agências especializadas foi aumentada significativamente até que, em 2017, com a parceria do IRM no Brasil, foi elaborada a Política Nacional de Educação Especial Orientada para a Inclusão Escolar.

 

O contexto influenciador da Educação Especial e Inclusiva: uma pauta global adentrada na política nacional

A análise do contexto de influência da Política Nacional de Educação Especial Orientada para a Inclusão Escolar em Angola permite, além de alcançar sua gênese e identificar os interesses (ideológicos e políticos) em disputa, evidenciar o sentido e a frequência da influência dos principais documentos internacionais sobre o ordenamento jurídico e os projetos que sustentam a política em tela.

Importa referenciar que, embora a modalidade da Educação Especial tenha sido implementada, oficialmente, como modalidade de ensino dentro do Sistema Educativo Angolano quatro anos após a independência, as principais ações que impulsionaram sua extensão e evolução datam de 1991, ano em que foi realizada a Mesa Redonda Nacional sobre “A Educação para Todos”, sob os auspícios do Unicef e Pnud em 1991, à luz das recomendações da Conferência Mundial sobre “A Educação para Todos”, Jomtien/Tailândia 1990 (Inee, 2006, p. 10) fazendo com que fosse tomada a decisão da expansão imediata do Ensino Especial para todo o país, com a nomeação de chefes de secção em todos os Gabinetes Províncias da Educação. Segundo indica António (2023, p.103), “a grande virada da educação especial em Angola acontece com a Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, organizada pelo Governo da Espanha em colaboração com a Unesco em 1994, da qual resultou a Declaração de Salamanca” que, em decorrência da participação de Angola, foi elaborado e implementado o Projeto 534/Ang/10 sobre a Promoção de Oportunidades Educativas para a Reabilitação das Crianças Vulneráveis (Angola, 2017; D’Avila; Pantoja; Carvalho, 2019).

Essas ocorrências deixam em evidência o poder de influência das agências especializadas da ONU sobre a política angolana de educação especial e não só, conforme a Figura 1, a seguir, indica as influências dos principais documentos internacionais sobre os documentos nacionais, evidenciando, não somente os interesses em disputa, podendo-se, igualmente, observar os documentos internacionais com maior frequência de influência.

 

Figura 1 – Influência dos documentos internacionais na elaboração dos documentos nacionais

Fonte: António (2023, p. 107).

 

No quadro estão as principais influências desses documentos, do lado esquerdo têm-se os documentos internacionais influenciadores e, do lado direito, os nacionais que deles resultaram, podendo-se destacar os marcos a seguir expostos.

Em primeiro lugar, o exercício inicial de extensão e garantia de autonomia financeira e patrimonial da modalidade de Educação Especial deu-se com a criação da Direção Nacional de Educação Especial em 1995, logo após a realização da Conferência Mundial sobre Necessidades Educativas Especiais, que dela resultou a Declaração de Salamanca. A partir desse evento foi concebido e implementado o Projeto 534/Ang/10 que consistiu na Promoção de Oportunidades Educativas para a Reabilitação das Crianças Vulneráveis, em resposta a Declaração de Salamanca.

Em segundo lugar, a prévia existência de uma Lei e Política da Pessoa com Deficiência antes que o Governo angolano assinasse e ratificasse a Convenção sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência por meio da Lei n.º 21/12 de Angola (2012) deveu-se a um mecanismo de fortalecimento da parceria de Reforço Institucional entre Pnud e o Ministério da Justiça e dos Direitos Humanos, tornando, cada vez mais evidente, a influência da ONU em quase todos os momentos da Política de Educação Especial em Angola.

E em terceiro lugar, a elaboração de uma Política Nacional de Educação Especial Orientada para a Inclusão Escolar teve uma forte influência de documentos e parceiros internacionais, fundamentalmente os documentos da ONU e a assessoria técnica do IRM do Brasil que, por sua vez, tem parcerias com várias multinacionais e agências especializadas da ONU, nomeadamente, o Unicef e o BM. Além dos documentos internacionais, a elaboração dessa política adotou direcionadores filosóficos e conceituais de documentos nacionais como a Constituição da República de Angola (Angola, 2010), a Lei da Pessoa com Deficiência (Angola, 2012) e a Lei das Acessibilidades (Angola, 2016b), porém, esses dois últimos são uma extensão contextualizada dos normativos da ONU sobre as matérias correspondentes.

Outra grande influência, foi a Política Nacional de Educação Especial Orientada para a Inclusão Escolar que esteve e continua sujeita aos financiamentos do BM, por meio do Unicef e do Projeto Aprendizagem para Todos (PAT) em Angola, aprovado pelo Conselho de Diretores do BM em 2013, com sua efetivação em junho de 2014. Essa política (projeto PAT) visa melhorar os conhecimentos e as competências dos professores, assim como a gestão das escolas nas áreas designadas pelo Projeto, desenvolvendo um sistema de avaliação sistemática de alunos (Programa Aprendizagem para Todos-Angola [PAT-Angola], 2014, p. 3), tendo um crédito inicial de 75 milhões de USD financiados e uma contrapartida de 5 milhões de USD do governo de Angola. Nesse jogo de influências, o IRM, como parceiro estratégico da Unicef e do BM, foi fundamental com a elaboração do texto da Política Nacional de Educação Especial e Inclusiva, como afirma seu superintendente Rodrigo Mendes:

 

A primeira contribuição com o continente africano é, sem dúvida, um marco para a história do Instituto Rodrigo Mendes. ‘Recebemos o convite após uma aula que ministrei em um curso na Escola de Graduação em Educação de Harvard. Um dos participantes era oficial do Unicef em Angola e posteriormente, ele me escreveu perguntando se eu estaria disposto a contribuir como consultor na construção de políticas públicas para a educação inclusiva no país’ (Mendes, 2015).

 

Embora não seja taxativamente o caso do IRM que entra em ação no jogo de influência, por conta de um contato pessoal e conjugação de interesses na órbita das agências multilaterais em cena, pode-se afirmar que Mendes (2015) estabelece os primeiros contatos como um ator internacional que dissemina ideias e projetos globais de políticas educacionais. Aqui, importa realçar que atores internacionais que não sejam Organizações Internacionais também têm a capacidade de influenciar e enquadrar a política de educação global, recorrendo a normas, convicções de princípios, evidências e outras formas de ideias (Verger, 2019).

Dessa forma, a elaboração dessa política, sob grande influência do Unicef e da Unesco, deu-se, inicialmente, pelo IRM, que desenvolveu sessões de formações de alguns quadros que, posteriormente, no âmbito da parceria com o Ministério da Educação de Angola, por meio do Inee, elaborou o texto da atual política, evidenciando, conforme Verger (2019, p. 15), “a capacidade estruturante das Organizações Internacionais e outros tipos de atores transnacionais e como esses alteram a dinâmica de tomada de decisão em sistemas de políticas multiescalares”. Nesse cenário de influências, o BM aparece como um importante agente.

Retomando a ideia da influência do BM sobre a política em causa, embora o PAT esteja fundamentalmente voltado para a capacitação de professores, assim como a de gestores escolares desde a sua implementação, em 2019, depois que o Plano Nacional de Desenvolvimento (PND) 2018-2022 definiu alguns objetivos e prioridades sobre a Educação Especial, ela passou a figurar na sua agenda. Aparece, novamente em cena, o IRM sob convite do BM, que acabara de aprovar um Termo de Referência para que aquela Instituição brasileira parceira pudesse elaborar uma proposta técnica e financeira de apoio ao Inee, para a elaboração e implementação de um Plano Nacional de Desenvolvimento da Educação Especial Inclusiva (Angola, 2018; PAT-Angola, 2019).

Mantendo a lógica sobre o jogo de influências advindas de uma agenda global de educação liderada pelas agências especializadas da ONU e seus parceiros, a política angolana de Educação Especial e Inclusiva, tecnicamente elaborada e assessorada pelo IRM e financeiramente suportada pelo Unicef e BM, adota os principais fundamentos teóricos internacionalmente disseminados pelas organizações de influências, o que nem sempre é compatível com saberes e necessidades locais.

 

Elementos metodológicos da pesquisa

A epistemetodologia[3] da pesquisa fundamenta-se na abordagem do Ciclo de Políticas (Ball, 1994; Bowe; Ball; Gold, 1992) e da Teoria de Atuação (Ball; Maguire; Braun, 2016) que “adotam uma orientação pós-moderna na área de políticas educacionais” (Mainardes, 2006, p. 49). Foi assumida, nesta pesquisa, a teoria da atuação como uma forma peculiar de olhar e perceber a política educacional do macro ao microcontexto, constituindo-se de um suporte teórico próprio, ao passo que a abordagem do ciclo de políticas é o método ou modelo de análise e pesquisa de políticas educacionais nas mais diversas arenas do jogo político.

A escolha do ciclo de políticas como método de análise de políticas educacionais, nesta pesquisa, deve-se às suas potencialidades quanto à consideração dos diferentes contextos em que elas se dão, o que permite, pelas atuações e recontextualizações, olhar criticamente para o cenário de tensões em que a política se move, considerando que “as políticas são colocadas em ação em condições materiais, com recursos variados, em relação a determinados problemas” (Mainardes, 2018, p. 5). A abordagem do ciclo de políticas aqui assumido, consiste em um método cíclico e não hierarquizado de análise de políticas educativas, a partir do macro ao microcontexto, considerando igual importância entre ambos. Essa proposição foi inicialmente formulada por Bowe, Ball e Gold (1992) e reformulada por Ball (1994).

Resultante de algumas críticas ao modelo inicial de ciclos de políticas e por considerarem que esse não dava a atenção merecida às disputas e tensões entre o macro e microcontexto no curso da formulação e atuação das políticas educativas, Bowe, Ball e Gold (1992) propuseram um modelo que não obedece à hierarquia e linearidade obrigatória, contemplando fundamentalmente três contextos inter-relacionados: contexto de influência (onde normalmente as políticas públicas são concebidas e iniciadas); contexto de produção de texto (dada pela noção de representação política, disputas e debates entre aqueles que controlam os interesses políticos, consiste na articulação intencional de textos legais oficiais e textos políticos, comentários formais ou informais sobre os textos oficiais, pronunciamentos oficiais etc.); e contexto de prática (é onde a política está sujeita à interpretação e recriação, os textos são lidos diferentemente e são adaptados de acordo aos contextos locais e institucionais, em que as consequências reais são experienciadas) (Bowe; Ball; Gold, 1992; Mainardes, 2006).

 

Figura 2 – Contextos do Ciclo de Políticas

Fonte: Adaptado por António (2023), a partir de Bowe, Ball e Gold (1992).

 

A partir desse método, que obedece uma abordagem qualitativa da pesquisa, a coleta de informações deu-se, principalmente, por meio da análise documental, que permitiu analisar os grupos de interesse que disputam para influenciar a definição das finalidades da educação, no qual as influências globais e internacionais no processo de formulação de políticas nacionais são evidentes. Enveredou-se pela análise temática para o processo de análise e interpretação das informações, por ser, o procedimento que mais argumentos proporciona para contemplar falas e documentos, segundo as fontes consultadas. Segundo Braun e Clarke (2006, p. 5), “a análise temática é um método para identificar, analisar e relatar padrões (temas) dentro dos dados. A análise temática, permite igualmente evitar que a pesquisa seja de um nível meramente descritivo”, o que levaria a um dos postulados de Tello e Mainardes (2014, p. 155) quando defendem que “os fundamentos teóricos e epistemológicos de uma pesquisa em política educacional devem permitir a compreensão de um objeto de estudo e não meramente a descrição”.

 

Discussão dos resultados

Sob o argumento de que a educação é o meio pelo qual se alcança o desenvolvimento sustentável por intermédio do investimento pelo capital humano, as intervenções das agências especializadas da ONU na Política de Educação Especial Inclusiva em Angola, deixam manifestos seus interesses e suas preferências por uma escola inclusiva que eduque todos os alunos juntos, ou seja, uma ideia que indica a educação como um direito fundamental básico e a chave para o desenvolvimento e para a erradicação da pobreza, ao mesmo tempo que, por razões econômicas, as escolas inclusivas chegam a ser menos onerosas em vez das escolas especiais destinadas somente a grupo de crianças específicas (Souza; Pletsch, 2017; Unesco, 2009, 2020).

As influências das organizações multilaterais na elaboração e tradução de políticas educativas voltadas à inclusão escolar da pessoa com deficiência, em Angola, são cada vez mais evidentes nos últimos anos, como consta do relatório do PAT em 2021. O Plano Nacional de Desenvolvimento da Educação Especial Inclusiva revisado e validado pelos especialistas do BM, conta com uma proposta financeira de execução de um período de 10 anos (PAT-Angola, 2021), deixando explícito o poder de disseminação de soluções políticas das Organizações Internacionais, um poder partilhado entre BM, Unicef e o IRM na elaboração de políticas e planos nacionais voltados para a Educação Especial Inclusiva. Tal como afirma Verger (2019), dentro do campo da política educacional global, o poder também é sobre a capacidade de definir as principais prioridades e objetivos da mudança educacional, bem como quais os principais problemas que os sistemas educacionais devem tentar abordar.

Porém, embora tenham contribuído em grande medida para que Angola marcasse importantes passos no quesito da Educação Especial e Inclusiva, essas Instituições, no domínio das parcerias que celebram com os países em desenvolvimento, fundamentalmente o BM, como Souza e Pletsch (2017, p. 16) evidenciaram, “têm caráter mandatório, sem considerar a fundo as características e as necessidades específicas da nação, sobretudo quando dos acordos com países mais empobrecidos”, como o caso de Angola que, na sua proposta de parceria com o Grupo Banco Mundial (GBM) 2020-2025 obedece a abordagem da Instituição financiadora que faz o diagnóstico sistemático do país, dita o quadro ou os termos da parceria, faz a avaliação de desempenho e, finalmente, faz a avaliação dos resultados e suas consequentes lições (World Bank Group, 2019).

Nessa proposta de parceria, em que a educação é definida como uma das áreas com foco especial, o GBM não se limita ao financiamento e monitoramento dos investimentos, eles identificam as necessidades, definem as metas e as prioridades dentro do marco político do país com base em pautas internacionais estabelecidas que, em muitos casos, senão mesmo na maioria, são incompatíveis ao contexto local que se caracteriza por uma cultura diversificada, uma política de Estado peculiar e uma situação socioeconômica que não é similar ao dos países desenvolvidos.

Outrossim, os discursos humanitários assumidos nos meandros das agências especializadas da ONU pregam o caráter produtivo da educação, em que a mensagem da educação para aliviar a pobreza nos países em desenvolvimento passou a ser a estratégia para a regulação social, combate à pobreza e a garantia da segurança pelos constantes alinhamentos ao longo dos tempos, para responder as demandas neoliberais que primam mais pelo capital humano em vez do ser humano (Leher, 1999; Oliveira; Silva; Akkari, 2016), ou seja, em muitos casos, essas propostas documentadas, que visam aconselhar os governos desses países no combate às desigualdades, são propostas e impostas como redentoras.

Como definido no quarto compromisso do Objetivo de Desenvolvimento Sustentável, o de garantir “educação de qualidade inclusiva e equitativa” e promover a “aprendizagem ao longo da vida para todos”, o que faz parte dos esforços da Agenda 2030 da ONU para o Desenvolvimento Sustentável de não deixar ninguém para trás (Unesco, 2020, p. 10), esse discurso da educação é proliferado como um mecanismo de redenção e de busca de “um mundo justo, equitativo, tolerante, aberto e socialmente inclusivo, no qual as necessidades daqueles em maior desvantagem sejam atendidas” (Unesco, 2020, p.10).

Nessa agenda mundial de homogeneização das políticas educacionais e promoção das políticas educacionais globais, a ONU, por meio de suas agências especializadas tem sido aquilo que Leher (1999) chama de Ministério Mundial da Educação dos países periféricos. Visto desde a perspectiva do ciclo de políticas, conforme Mainardes (2006, p. 51) baseado em Ball, a disseminação de influências internacionais na Política Nacional de Educação Especial Orientada para a Inclusão Escolar em Angola acontece das duas maneiras como podem ser entendidas. Na primeira, foi influenciada pelo fluxo de ideias por meio de redes políticas e sociais que envolvem a circulação internacional de ideias, o processo de empréstimos de políticas e os grupos e indivíduos e suas soluções no mercado político e acadêmico por periódicos, livros, conferências e “performances” de acadêmicos que viajam para vários lugares para expor suas ideias, como foi o caso do IRM em que a parceria começa como já foi referida anteriormente. Na segunda, a política foi influenciada por meio dos financiamentos e imposição de algumas “soluções” oferecidas e recomendadas por agências como o Unicef, Unesco e BM que, além dos patrocínios e das assessorias técnicas, definem e adotam práticas que visam responder aos objetivos estabelecidos por conta das necessidades e prioridades.

Todavia, as influências dos documentos internacionais demonstram uma clara desconsideração dos saberes social e culturalmente situados nos diversos contextos da atuação política, um mecanismo de denominação e de poder alimentado e legitimado pelas influências ideológicas. Esses organismos definem, inclusive, a validade de saberes e a legitimidade de uma cultura, dependendo das circunstâncias (Dorziat, 2008). É justamente neste quesito que se debate, quando as políticas globais deixam de adotar saberes locais e desconsideram todo um contexto da prática com suas particularidades.

 

Considerações finais

De um lado, a Política Nacional de Educação Especial Orientada para a Inclusão Escolar, fortemente apoiada nos documentos da ONU para o seu embasamento político e filosófico, assume a ideia de educação inclusiva que provém, essencialmente, do trabalho desenvolvido pela Unesco em prol de uma educação que chegue a todas as crianças em idade escolar. A desconsideração de vozes e saberes locais que caracterizam as disputas e tensões entre o global e o local evidenciam a desproporção de forças entre as organizações internacionais que vendem e propõem soluções e os Estados-Nações que adotam, voluntariamente ou coercivamente, as políticas e orientações internacionais para soluções locais.

Do outro lado, a intervenção da ONU por meio de suas agências especializadas é, apesar da reflexão crítica que se assume, uma mais valia que contribui positivamente nos avanços registrados no campo da Educação Especial e Inclusiva, fundamentalmente, com a elaboração, financiamento e implementação de projetos específicos que visam impulsionar a modalidade da educação especial em uma perspectiva inclusiva. Porém, entende-se que os modos e os motivos importam, já que qualquer política pública nacional deveria, antes de qualquer outro interesse, atender e beneficiar os problemas locais sem, em circunstância nenhuma, anular a idiossincrasia local e subalternizar a identidade social e cultural das populações das quais são direcionadas as políticas globais.

Finalmente, a Educação Especial e Inclusiva em Angola, que nos últimos anos vem conhecendo importantes avanços no quesito da elaboração de projetos específicos e na conformação de um marco jurídico que defende e promove os direitos do público-alvo da educação especial, não tem dado os resultados desejados, já que a inclusão escolar não se resume no acesso (matrícula de alunos com deficiência), ela deve, igualmente, garantir permanência, participação e sucesso escolar em correspondência com as necessidades específicas do aluno, consequentemente, sua integração no mercado de trabalho.

Os resultados desejáveis para solucionar os desafios locais precisam advir de um diagnóstico real e realístico para as populações locais, mas isso não significa que não se possa fundamentar teórica e filosoficamente na ciência e nas experiências internacionalmente bem-sucedidas. A tese é a de que as agendas globais estejam ao serviço das agendas locais para intermediar e assessorar com conhecimentos, tecnologias e financiamentos, porém, sem interferir na soberania dos Estados e sem invisibilizar os reais problemas e necessidades daqueles que beneficiam do apoio.

 

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), Bolsa de Produtividade em Pesquisa; Fundação de Amparo a Pesquisa do Estado de Santa Catarina (FAPESC) – Edital de Chamada Pública FAPESC/CAPES N. 06/2023 -Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Pós-Graduação (PDPG) –Parcerias Estratégicas Nos Estados III – Edital Capes N.38/2022 Termo de Outorga N. 2023tr000952.

 

Referências

ANGOLA. [Constituição (2010)]. Constituição da República de Angola de 2010. Diário da República de Angola, I série, n. 23, Luanda, 2010.

 

ANGOLA. Decreto Lei n.º 7/03 de 17 de junho de 2003. Estatuto Orgânico do Instituto Nacional de Educação Especial. Ministério da Educação. Diário da República de Angola, I Série n. 47, Luanda, 2003.

 

ANGOLA. Decreto Presidencial n.º 187/17, de 16 de agosto de 2017. Dispõe sobre a Política Nacional de Educação Especial Orientada para a Inclusão Escolar. Diário da República de Angola, I série, n. 140, Luanda, 2017.

 

ANGOLA. Estratégia Integrada Para a Melhoria do Sistema de Educação 2001-2015. Luanda, 2001.

 

ANGOLA. Lei complementar n.º 32/20, de 12 de agosto de 2020. Altera a Lei nº 17/16, de 7 de outubro – Lei de Bases do Sistema de educação e Ensino. Diário da República de Angola, I série, n. 123, Luanda, 2020.

 

ANGOLA. Lei n.º 10/16 de 27 de julho de 2016. Estabelece as normas gerais, condições e critérios de acessibilidades para as pessoas com deficiência ou mobilidade condicionada. Diário da República de Angola, I série, n. 125, Luanda, 2016b.

 

ANGOLA. Lei n.º 17/16, de 7 de outubro de 2016. Aprova a Lei de Bases do Sistema de Educação e ensino de Angola, que estabelece os princípios e as bases gerais do Sistema de Educação e Ensino. Diário da República de Angola, I série, n. 170, Luanda, 2016a.

 

ANGOLA. Lei n.º 21/12 de 39 de julho de 2012. Estabelece a lei da pessoa com deficiência. Diário da República de Angola, I série, n. 145, Luanda, 2012.

 

ANGOLA. Plano Nacional de Desenvolvimento Nacional 2018-2022. Luanda, Ministério da Economia e Planejamento, 2018.

 

ANTÓNIO, A.; MENDES, G. M. L.; GONZÁLEZ, O. H. Políticas de Educação Especial numa perspectiva inclusiva em Angola: contexto, avanços e necessidades emergentes (1979-2017). Educar em Revista, v. 37, p. e77723, 2021. DOI: https://doi.org/10.1590/0104-4060.77723. Disponível em: https://www.scielo.br/j/er/a/T4ygrJj5rH6dHYdrPxsdnzD/#. Acesso em: 14 jan. 2024.

 

ANTÓNIO, A. Política nacional de educação especial orientada para a inclusão escolar em angola: atuação e recontextualização dos gestores educativos e escolares na província do zaire. 2023. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade do Estado de Santa Catarina, 2023. Disponível em: https://www.udesc.br/arquivos/faed/id_cpmenu/8673/Ant_nio_Ant_nio_17008486928711_8673.pdf. Acesso em: 11 jan. 2024.

 

BALL, S. J. Education reform: a critical and post structural approach. Buckingham: Open University Press, 1994.

 

BALL, S. J.; MAGUIRE, M.; BRAUN, A. Como as escolas fazem as políticas: atuação em escolas secundárias. Ponta Grossa: UEPG, 2016.

 

BISOL, C. A.; PEGORINI, N. N.; VALENTINI, C. B. Pensar a deficiência a partir dos modelos médico, social e pós-social. Cadernos de Pesquisa, São Luís, v. 24, n. 1, p. 87-100, 2017. DOI: https://doi.org/10.18764/2178-2229.v24n1p87-100. Disponível em: https://periodicoseletronicos.ufma.br/index.php/cadernosdepesquisa/article/view/6804. Acesso em: 4 jan. 2024.

 

BOWE, R.; BALL, S. J.; GOLD, A. Reforming education & changing schools: case studies in Policy Sociology. London: Routledge, 1992.

 

BRAUN, V.; CLARKE, V. Using the maticanalysis in psychology. Qualitative Research in Psychology, v. 3, n. 2, p. 77-101, 2006.

 

CHAMBAL, L. A.; RAFANTE, H. C.; SELINGARDI, S. C. A educação especial em Angola, Moçambique e Brasil: marcos históricos e a política de educação inclusiva das agências multilaterais. Crítica Educativa, [S. l.], v. 1, n. 2, p. 7-23, 2015. DOI: https://doi.org/10.22476/revcted.v1i2.52. Disponível em: https://www.criticaeducativa.ufscar.br/index.php/criticaeducativa/article/view/52. Acesso em: 18 dez. 2023.

 

D’AVILA, D. A. L.; PANTOJA, S. A.; CARVALHO, P. de. Em tempos de guerra e de paz: a Educação Especial em Angola. Revista Educação Especial, [S. l.], v. 32, p. e82/ 1-25, 2019. DOI: https://doi.org/10.5902/1984686X34186. Disponível em: https://periodicos.ufsm.br/educacaoespecial/article/view/34186. Acesso em: 21 jan. 2024.

 

DORZIAT, A. Educação especial e inclusão escolar (prática e/ou teoria). In: DECHICHI, C.; SILVA, L. C. (Orgs.). Inclusão escolar e educação especial: teoria e prática na diversidade. Uberlândia: Edufu, 2008. p. 21-36.

INEE. Plano Estratégico de Desenvolvimento da Educação Especial em Angola 2007-2015, 2006.

 

LEHER, R. Um novo senhor da educação? A política educacional do Banco Mundial para a periferia do capitalismo. Revista Outubro, n. 3, p. 19-30. 1999. Disponível em: www.revistaoutubro.com.br/edicoes/03/out3_03.pdf. Acesso em: 23 jan. 2024.

 

MAINARDES, J. A abordagem do ciclo de políticas: explorando alguns desafios da sua utilização no campo da Política Educacional. Jornal de Políticas Educacionais. v. 12, n. 16, 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.5380/jpe.v12i0.59217. Disponível em: https://revistas.ufpr.br/jpe/article/view/59217. Acesso em: 18 dez. 2023.

 

MAINARDES, J. Abordagem do ciclo de políticas: uma contribuição para a análise de políticas educacionais. Educação & Sociedade, Campinas, v. 27, n. 94, p. 47-69, 2006. DOI: https://doi.org/10.1590/S0101-73302006000100003. Disponível em: https://www.scielo.br/j/es/a/NGFTXWNtTvxYtCQHCJFyhsJ. Acesso em: 18 dez. 2023.

 

MENDES, R. H. IRM colabora para a construção de políticas educacionais inclusivas em Angola. 2015. Disponível em: https://institutorodrigomendes.org.br/instituto-colabora-para-a-construcao-de-politicas-educacionais-inclusivas-em-angola/. Acesso em: 28 dez. 2023.

 

OLIVEIRA, C. I.; SILVA, G. M. L. R.; AKKARI, A. Internacionalização das políticas educacionais: transformações e desafios. Petrópolis: Vozes, 2011. 143p. Revista Brasileira de Educação, v. 21, n. 64, p. 253-256, 2016.

ONU. Declaração Universal dos Direitos Humanos. Rio, 2009.

 

PAT-ANGOLA. Relatório do segundo e terceiro trimestre de 2019. Luanda, Ministério da Educação, 2019. Disponível em: https://www.pat-med.org/wp-content/uploads/2021/05/Relatorio-II-e-III-Trimestre-2019-v01-com-anexos.pdf. Acesso em: 2 dez. 2023.

 

PAT-ANGOLA. Relatório do segundo trimestre de 2014. Luanda, Ministério da Educação, 2014.

 

PAT-ANGOLA. Relatório do segundo trimestre de 2021. Luanda, Ministério da Educação, 2021.

 

SOUZA, F. F.; PLETSCH, M. D. A relação entre as diretrizes do Sistema das Nações Unidas (ONU) e as políticas de Educação Inclusiva no Brasil1. Ensaio: Avaliação e Políticas Públicas em Educação, v. 25, n. 97, p. 831-853, out. 2017. Disponível em: https://www.scielo.br/j/ensaio/a/7dvMYywhKCgCSwjk4ZFSW5g/abstract/?lang=pt#. Acesso em: 13 dez. 2023.

 

TELLO, C.; MAINARDES, J. Revisitando o enfoque das epistemologias da política educacional. Práxis Educativa, [S. l.], v. 10, n. 1, p. 153-178, 2014. DOI: https://doi.org/10.5212/PraxEduc.v.10i1.0007. Disponível em: https://revistas.uepg.br/index.php/praxiseducativa/article/view/7149. Acesso em: 22 dez. 2023.

 

UNESCO. Declaração de Salamanca e enquadramento da ação na área das necessidades educativas especiais. Salamanca, 1994.

 

UNESCO. Declaração mundial sobre educação para todos e plano de ação para satisfazer as necessidades básicas de aprendizagem. Jomtien, Tailândia: Unesco, 1990.

 

UNESCO. Directrices sobre políticas de inclusión en la educación. Paris, 2009. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000177849_spa. Acesso em: 28 dez. 2023.

 

UNESCO. Resumo do Relatório de Monitoramento Global da Educação 2020: Inclusão e educação para todos. Paris, 2020. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000373721_por. Acesso em: 28 dez. 2023.

 

VERGER, A. A política educacional global: conceitos e marcos teóricos chaves. In: MENDES, G. L. M.; BORGES, M. K. Empréstimo de políticas educacionais: o modelo um computador por aluno em diferentes contextos. Curitiba: CRV, 2019. p. 29-60.

 

WORLD BANK GROUP. Proposta do quadro de parceria para angola 2020 –2025. Luanda, 2019.

 

Modalidade do artigo: Relato de pesquisa( X )  Revisão de Literatura (  )

 

CC.png 

This work is licensed under a Creative Commons Attribution-NonCommercial 4.0 International (CC BY-NC 4.0)

 

Notas



[1] Simbi/Kiximbi ou Kisimbi, um termo sem tradução literal em português, são pessoas com algum tipo de deficiência física, alguma síndrome com rasgos físicos ou má formação congênita que, não de forma pontual, a cultura angolana considera ser resultado de uma cólera dos espíritos ancestrais, algumas vezes relacionados a divindades aquáticas e outras, a forças ocultas do mal que, para acalmar os espíritos ancestrais, prestam cultos de homenagem a esses, muitas vezes pedindo seu regresso (sua morte) de onde acredita-se terem vindo. Em outros casos, são considerados seres extraordinários e detentores de poderes divinos, dignos de culto (Inee, 2006, grifo nosso).

 

[2] Subsistema do Ensino Geral é o fundamento do subsistema de ensino e educação que visa assegurar uma formação integral, harmoniosa e sólida, necessária para a boa inserção no mercado de trabalho e na sociedade, bem como para o acesso aos níveis de ensino subsequentes (Angola, 2016a, p. 4434). Fazendo uma analogia ao contexto brasileiro, o ensino geral é o equivalente a educação regular não superior.

 

[3] Epistemetodologia é o modo como se constrói metodologicamente a pesquisa, com base em determinada perspectiva epistemológica e posicionamento epistemológico. Nenhuma metodologia é neutra e, por essa razão, ao explicitar as suas bases epistemológicas, o pesquisador deve se preocupar com a vigilância epistemológica em sua pesquisa (metodologia, análise de dados, argumentação, conclusões etc.), cuja construção parte da perspectiva epistemológica e do posicionamento epistemológico (Mainardes, 2018, p. 6).