Pressupostos higienistas e o Imperial Instituto dos Meninos Cegos

Hygienist assumptions and the Imperial Instituto dos Meninos Cegos

Supuestos higienistas y el Imperial Instituto dos Meninos Cegos

 

Cássia Geciauskas Sofiato

Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, Brasil

cassiasofiato@usp.br

 

Recebido em 16 de outubro de 2023

Aprovado em 23 de outubro de 2023

Publicado em 05 de julho de 2024

 

RESUMO

No século XIX, foi fundada a primeira instituição para a instrução de pessoas cegas no Brasil, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos, na cidade do Rio de Janeiro. Os fundadores foram José Alvares de Azevedo e José Francisco Xavier Sigaud. O primeiro era cego e professor formado em Paris, e o segundo era um influente médico higienista e vidente. Por meio da fundação da referida instituição, foram estabelecidos os fundamentos para a educação de pessoas com deficiência visual no Brasil. Assim sendo, o objetivo deste estudo foi delinear o impacto do higienismo no Imperial Instituto dos Meninos Cegos, tendo em vista a gestão de dois diretores médicos no período Imperial e a circulação e a apropriação de preceitos higienistas pela sociedade carioca. Para isso, foi realizada uma pesquisa com abordagem qualitativa, de natureza documental, com base em fontes primárias. O recorte temporal foi de 1854 a 1889. Por meio do estudo, foi possível verificar o forte impacto do higienismo na instituição em questão, a partir da atuação dos diretores e médicos nomeados que moldavam, com seus discursos e várias ações, o perfil da instituição.

Palavras-chave: Educação Especial; Educação de cegos; História da Educação Especial; Higienismo.

 

ABSTRACT

In the nineteenth century, the first institution for the instruction of blind people in Brazil was founded, the Imperial Instituto dos Meninos Cegos [Imperial Institute of Blind Children] in the city of Rio de Janeiro. The founders were José Alvares de Azevedo and José Francisco Xavier Sigaud. The former was blind and a professor trained in Paris and the latter was an influential hygienist and visionary. Through the foundation of this institution the foundations for the education of people with visual impairment in Brazil were established. Thus, the objective of this study was to delineate the impact of hygienism in the Imperial Instituto dos Meninos Cegos, taking into account the management of two medical directors in the Imperial period and the circulation and appropriation of hygienist precepts by the society of Rio de Janeiro. To this end, an investigation with a qualitative approach, of documentary nature, was conducted, based on primary sources. The time frame was from 1854 to 1889. Through the study, it was possible to verify the strong impact of hygienism in the institution, from the performance of directors and appointed doctors who shaped with their speeches and various actions the profile of the institution.

Keywords: Special Education; Education of the blind; History of Special Education; Hygienism.

 

RESUMEN

En el siglo XIX, fue fundada la primera institución para la instrucción de personas ciegas en Brasil, el Imperial Instituto dos Meninos Cegos [Instituto Imperial de los Niños Ciegos] en la ciudad de Río de Janeiro. Los fundadores fueron José Álvares de Azevedo y José Francisco Xavier Sigaud. El primero era ciego y profesor formado en París y el segundo era un médico influyente higienista y vidente. Por medio de la fundación de dicha institución fueron establecidos los fundamentos para la educación de personas con discapacidad visual en Brasil. Siendo así, el objetivo de este estúdio fue perfilar el impacto del higienismo en el Instituto Imperial de los Niños Ciegos, teniendo en vista la gestión de dos directores médicos enel período Imperial y la circulación y la apropiación de los preceptos higienistas por la sociedad de Rio de Janeiro. Para ello, fue realizada una investigación con enfoque cualitativo, de naturaleza documental, con base en fuentes primarias. El recorte temporal fue de 1854 a 1889. Por médio del estudio fue posible constatar el fuerte impacto del higienismo em la institución en cuestión, a partir de la actuación de los directores y médicos nombrados que moldeaban, con sus discursos y varias acciones, el perfil de la institución.

Palabras clave: Educación Especial; Educación de ciegos; Historia de la Educación Especial; Higienismo.

 

Introdução

A trajetória histórica da Educação Especial no Brasil, em especial a educação de pessoas surdas e cegas, tem sido destaque para alguns autores, entre eles Jannuzzi (2004), Leão (2017), Mazzotta (2001), Reily (2004), Rocha (2007), Soares (1999), Sofiato (2011). Entretanto, alguns temas ainda são férteis para o desenvolvimento de pesquisas acadêmicas, pois são pouco explorados ou nem despertaram o interesse de pesquisadores brasileiros, tendo em vista a dificuldade de acesso a fontes primárias e acervos históricos no país. Ademais, a má-conservação de muitas fontes e a sua localização geográfica também interferem no processo de estudo e recolha destes materiais para a pesquisa. Apesar das limitações que se colocam, o investimento em pesquisas dessa natureza é extremamente necessário para a constituição de novas narrativas, com elementos antes não divulgados e que podem modificar, agregar ou aprofundar os discursos já existentes.

Um desses temas diz respeito ao movimento higienista e suas repercussões na primeira instituição fundada no Rio de Janeiro para pessoas cegas no século XIX: o Imperial Instituto dos Meninos Cegos. Destarte, a presente pesquisa se justifica tendo em vista a carência de discussões sobre a Educação Especial no oitocentos, e neste caso, com o foco no higienismo institucionalizado. Sabe-se o movimento higienista impactou o Rio de Janeiro de forma bastante contundente, e o discurso médico atravessou a sociedade e materializou-se de diferentes formas, desde mudanças na estrutura urbana, na educação e nos hábitos populacionais.

Quando o Imperial Instituto dos Meninos Cegos foi fundado, em 1854, tal movimento já fazia parte do ideário médico e sua ação foi se expandindo na esfera pública e privada cada vez mais. Segundo Luengo (2010), as ações voltadas à higiene podem ser observadas desde que a Família Real se mudou para o Rio de Janeiro em 1808, e, com o aumento da população ocasionada por tal mudança, as exigências e pressões dessa população fez com que médicos fossem solicitados, além da necessidade de muitas outras mudanças estruturais para a urbanização da cidade.

No âmbito das mudanças, vale lembrar a criação da Escola Médico-Cirúrgica na Bahia, em 1807, e outra no Rio de Janeiro, em 1808, e a reativação da Fisicatura-mor[1], consideradas por Freitas e Edler (2022), como pontos de destaque no que diz respeito à saúde e que, com outras instâncias governamentais, mobilizaram outras ações envolvendo atuação e formação de médicos, gestão da saúde pública e necessidade de políticas específicas para esse fim, alterações nas condições de vida da população em geral, controle de epidemias, adequações no plano geográfico da cidade do Rio de Janeiro de acordo com os padrões de higiene, entre outras, ao longo do oitocentos.

De acordo com Gondra (2004, p. 44), pode-se observar três dispositivos ativados pelos médicos para instituir o campo médico e a vida autônoma nesse contexto:

 

A instituição de formação (a Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro – FMRJ), a organização da corporação (a Academia Imperial de Medicina – AIM) e a produção escrita dos médicos, com seus respectivos suportes materiais e modalidades narrativas (teses, livros, jornais, periódicos e literatura, dentre outros) [...].

 

Observa-se que o discurso médico foi ganhando força, e a medicina, segundo o autor, buscou ocupar um papel central na sociedade no século em questão. A efetivação do discurso médico foi mais observada a partir de meados do século XIX, pois, na primeira metade, não encontrou condições econômicas, científicas, culturais e sociais propícias para a sua efetivação, colaborando somente com a sua legitimação social. Entretanto, a partir de uma aproximação maior entre médicos e o Estado com intenção política, pôde-se estabelecer e fazer “[...] a propaganda da ciência, da higiene e da necessidade de construir uma verdadeira civilização nos trópicos” (GONDRA, 2004, p. 60).

O discurso médico adentrou o campo da educação e as práticas para o estabelecimento da higiene foram cada vez mais incorporadas nos espaços de instrução e formação. Com base nos estudos de Gondra (2004), pode-se dizer que teses produzidas pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro iluminaram o estabelecimento das práticas higienistas por meio de regras para o funcionamento dos colégios, que englobavam desde a:

 

[...] localização e arquitetura dos edifícios escolares, organização da rotina, das práticas e hábitos que deveriam ser desenvolvidos junto aos alunos, alimentação, exercícios corporais, cuidados com a excreção dos organismos e a com a educação dos sentidos, de modo a desenvolver as faculdades físicas, intelectuais e morais dos alunos (GONDRA, 2004, p. 165).

 

Nesse contexto social, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos passou a exercer as suas atividades. Tal instituição foi criada por meio do Decreto no 1.428, de 12 de setembro de 1854, no Rio de Janeiro, com a anuência do Imperador D. Pedro II (Brasil, 1854). As pessoas envolvidas no contexto de sua criação foram José Alvares de Azevedo e José Francisco Xavier Sigaud. José Alvares de Azevedo era cego e professor de Adèle Sigaud, filha do influente médico do Império José Francisco Xavier Sigaud (Brasil, 1854), que se tornou o primeiro diretor do referido estabelecimento.

De acordo com Fonseca e Monteiro (2020), o Dr. José Francisco Xavier Sigaud era francês e desembarcou no Rio de Janeiro em 7 de setembro de 1825, em função de perseguição política no contexto antibonapartista do reinado (1824-1830) de Charles X na França. O Dr. Sigaud, já estabelecido em terra brasileira, em 1829:

 

Juntamente com Joaquim Cândido Soares de Meirelles, José Martins da Cruz Jobim, Luís Vicente De Simoni e Jean Maurice Faivre, fundou a Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro, cujas reuniões preparatórias foram realizadas nas residências dos médicos, inclusive na de José Francisco Xavier Sigaud, situada na rua do Rosário, nº 185. Coube a ele, a incumbência da redação do projeto dos estatutos da fundação desta sociedade, e foi, ainda, seu presidente em várias ocasiões (1º trimestre 1830, 1º e 2º trimestres 1832, 1851-1852) (FONSECA; MONTEIRO, 2020).

 

Os autores destacam, na trajetória profissional do Dr. Sigaud, que ele foi nomeado em 12 de novembro de 1833, médico honorário da família imperial “[...] pelos serviços prestados a D. Pedro II, especialmente no tratamento de uma moléstia que acometera o Imperador. Em 1840, foi efetivado como médico da Imperial Câmara” (Fonseca; Monteiro, 2020). Além disso, seu crescimento profissional foi notório, pois, além de clinicar, publicou o livro Du Climat et dês Maladies du Brésil e outros artigos sobre medicina e desenvolveu ampla atividade no setor editorial, sendo um dos fundadores do Jornal do Commercio, um dos mais importantes jornais em circulação no Império.

Em relação a sua filha, nos registros estudados, consta que, em 15 de julho de 1843, o Dr. José Francisco Xavier Sigaud “[...] viajou para a França, com o intuito de buscar informações sobre a enfermidade (amaurose) que acometera a visão” dela (Fonseca; Monteiro, 2020). Esse fato chama atenção, pois, nessa data, ele já era médico da família imperial, e o fato de Adèle ter adquirido a cegueira deve ter chegado ao conhecimento do Imperador. A partir disso, infere-se que a formação do Dr. Sigaud e a influência que ele tinha na sociedade carioca, por meio de seus contatos sociais e profissionais, podem ter contribuído com o convencimento da necessidade de uma instituição que educasse pessoas com deficiência visual no Brasil.

José Alvarez de Azevedo estudara no Instituto de Jovens Cegos de Paris e conseguiu um resultado interessante no processo de educação da jovem Adèle, fato que, segundo Mazzotta (2001), chamou atenção do Ministro e Secretário dos Negócios do Império, Luiz Pedreira de Couto Ferraz. Tem-se como hipótese que esses fatos relatados, associados, tiveram grande força para que o projeto de fundação desse Instituto fosse levado a cabo.

É preciso também contextualizar a criação desse Instituto em um Estado com variadas formas e locais de ensinar e aprender, diversidade ainda maior no espaço urbano, que variava de acordo com os bens e os objetivos das famílias, ou as intenções das instituições escolares (Leão, 2017). No início do século XIX, havia, em várias províncias, uma intensa discussão acerca da necessidade de escolarização da população, sobretudo das chamadas camadas inferiores da sociedade. A presença do Estado na educação era pequena e pulverizada. Faria Filho (2000, p. 136 apud Leão, 2017, p. 47) afirma ainda que:

 

[...] nem a própria escola tinha um lugar social de destaque, cuja legitimidade fosse incontestável. Foi preciso então, lentamente, afirmar a presença do Estado nessa área e, também, produzir, paulatinamente, a centralidade do papel da instituição escolar na formação das novas gerações.

 

O Imperial Instituto dos Meninos Cegos compunha o conjunto de colégios que pretendiam dar escolarização às camadas inferiores da sociedade, garantindo instrução gratuita a todos os cidadãos por meio da intervenção estatal na educação. Sua inauguração abriu caminhos para que quatro anos depois fosse fundado o Imperial Instituto para Surdos-Mudos, com algumas características em comum. Diante deste panorama, com um médico responsável pelo trabalho relacionado a instrução de pessoas com deficiência visual, a pergunta disparadora desta pesquisa foi: como e até que ponto o discurso higienista orientou o trabalho na instituição em questão?

Assim sendo, o objetivo deste estudo foi delinear o impacto do higienismo no Imperial Instituto dos Meninos Cegos, tendo em vista a gestão de dois diretores médicos no período Imperial e a circulação e a apropriação de preceitos higienistas pela sociedade carioca.

 

Método

Do ponto de vista da abordagem, a pesquisa é qualitativa, entendendo que esse tipo de pesquisa se caracteriza, como pontuam Lüdke e André (1986, p. 12-13), por cinco eixos básicos, a saber: “[...] o ambiente natural como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal instrumento”; os “[...] dados coletados são predominantemente descritivos”; a “[...] preocupação com o processo é maior do que com o produto”; o “[...] significado que as pessoas dão às coisas e a sua vida são focos de atenção especial do pesquisador”; e a “[...] análise dos dados tende a seguir um processo indutivo”.

A pesquisa caracteriza-se como documental. Segundo Gil (2004), a pesquisa documental assemelha-se à pesquisa bibliográfica; entretanto, a diferença está na natureza das fontes. A rigor, a pesquisa documental “[...] vale-se de materiais que não recebem ainda um tratamento analítico, ou que ainda podem ser reelaborados de acordo com os objetos da pesquisa” (GIL, 2004, p. 45). O corpus foi constituído por Relatórios dos Diretores do Imperial Instituto dos Meninos-Cegos e Ministros e Secretários de Estado dos Negócios do Império, publicados no Almanak Administrativo, Mercantil e Industrial do Rio de Janeiro, editados pelos irmãos Eduard e Heinrich Laemmert. Os critérios que foram utilizados para a escolha das referidas fontes foram os seguintes: i) as fontes se referem ao período Imperial; ii) os documentos selecionados trazem aspectos relacionados à instrução de pessoas com deficiência visual no oitocentos; iii) são pouco exploradas.

O recorte temporal estabelecido para o estudo foi de 1854 a 1889, desde a fundação do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, até o fim do período Imperial. A organização da análise estruturou-se em torno de três polos cronológicos, a saber: pré-análise; exploração do material; e tratamento dos resultados, inferência e interpretação (BARDIN, 1979). Esses polos cronológicos foram os alicerces do diálogo com outras fontes bibliográficas das áreas de História, Educação e Educação Especial.

 

Resultados e discussões

Esta seção encontra-se dividida em duas partes. Na primeira, discorre-se sobre a gestão do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, a admissão de alunos e a atuação médica; e, na segunda, abarca-se o projeto de formação para alunos cegos.

Gestão do instituto, admissão de alunos e atuação médica

O Imperial Instituto dos Meninos Cegos teve três diretores no período delineado para o estudo, a saber: José Francisco Xavier Sigaud, cuja gestão foi de 1854 a 1856; Claudio Luiz da Costa, que atuou de 1856 a 1868 até falecer; e Benjamin Constant Botelho de Magalhães, cuja gestão foi de 1869 até o ano de 1889. Os dois primeiros diretores eram médicos, e Benjamin Constant Botelho de Magalhães era bacharel em Direito. Segundo Gondra (2004), José Francisco Xavier Sigaud, que fundou uma Sociedade Médica no Rio de Janeiro com mais quatro médicos, era o principal higienista do grupo e expandiu os pressupostos higienistas na Sociedade de Medicina do Rio de Janeiro (SMRJ) e fora dela. É importante reforçar que o Instituto em questão iniciou as suas atividades com um fundador que era um grande incentivador das ideias higienistas, porém a sua gestão foi por demais curta em função de seu falecimento e, assim sendo, a possível influência do higienismo nesse período se espraiou nos critérios de admissão dos alunos cegos. Nesse sentido, o excerto a seguir, traz o que prescreviam os artigos 23, 24 e 25 do Capítulo III do Decreto nº 1.428, de 12 de setembro de 1854– “Regimento Provisorio do Imperial Instituto dos Meninos Cegos” –, que tratava do número e da admissão dos alunos:

 

Art. 23. A admissão no Instituto dependerá de autorisação do Ministro e Secretario d'Estado dos Negocios do Imperio, devendo o pretendente juntar ao requerimento:

1.o Certidão de baptismo, ou justificação de idade;

2.º Attestado do Medico do Estabelecimento, do qual conste ser total a cegueira;

3.º No caso de ser gratuita a admissão, attestado do Parocho, e de duas Autoridades do lugar da residencia do alumno, provando a sua indigencia. Nesta hypothese a certidão de baptismo poderá ser supprida por informação escripta do Parocho, e daquellas Autoridades.

Art. 24. Nenhum menino será admittido, sem que conste de informação do Director, sobre parecer escripto do Medico do estabelecimento:

1.º Que foi vaccinado com bom resultado;

2.º Que não soffre de enfermidade contagiosa.

Art. 25. Não poderão ser tambem admittidos:

1.º Os menores de 6 annos, e maiores de 14;

2.º Os escravos (BRASIL, 1854, p. 3-4, grifos próprios).

 

Por meio dos critérios adotados, esperava-se captar alunos comprovadamente cegos, sem outras deficiências associadas e com boa saúde. A vida pregressa dos alunos deveria ser também marcada pela prevenção a doenças, aspecto evidenciado pela recomendação de vacina com bons resultados. Destaca-se que, nessa época, uma das doenças a serem combatidas era a varíola, e seu controle esteve ligado à criação da Junta da Instituição Vacínica da Corte desde 1811. Várias epidemias dessa doença assolaram o Rio de Janeiro e sua mitigação dependia de vários aspectos. De acordo com Fernandes (2003, p. 471):

 

Apesar de a vacinação se constituir como uma prática estatal, esta não respondia às expectativas de controle da doença, devido às extensas dimensões territoriais e à falta de serviços locais e nacionais articulados e adequados às necessidades e possibilidades das práticas sanitárias. A discussão em torno da vacinação envolvia também a capacidade profissional, a situação empregatícia dos vacinadores, principalmente nas províncias e nas localidades distantes da Corte, a qualidade da vacina empregada e da vacinação executada, assim como a liberdade de opção pelo uso ou não da vacina por parte da população.

 

No caso dos alunos cegos, a imunização não era opcional, era uma exigência e disso dependia a aceitação ou não na instituição. Apesar da necessidade desse controle também como política de saúde pública, nas fontes estudadas, não foram encontradas fichas médicas com anotações de saúde referentes aos alunos do Instituto. Essa limitação não permitiu o acesso a mais detalhes importantes para o conhecimento mais apurado do público-alvo e sua condição particular de saúde.

No que diz respeito aos funcionários do Instituto, observa-se que, desde a sua fundação, previa-se a contratação de médicos, além dos diretores, professores e demais agentes educativos. O Decreto nº 1.428/1854 assim estabelecia, no artigo3º do Capítulo I, que abordava a finalidade do Instituto e sua organização: “Terá desde já o seguinte pessoal: [...] Hum medico...” (BRASIL, 1854, p. 1). O art. 13, do Capítulo II, que estabelecia as funções do diretor e dos mais empregados, trazia o detalhamento:

 

O Medico comparecerá no estabelecimento, sempre que for necessario, e cumpre-lhe:

1.º Tratar dos meninos e empregados que adoecerem;

2.º Examinar o estado de saude de qualquer menino que pretender entrar para o Instituto, a fim de que seja fielmente observada a disposição do Art. 23, dando aos que o requererem os attestados exigidos no Art. 24;

3.º Examinar as qualidades das drogas e dos remedios que receitar antes de applicados aos enfermos, recusando os que por seu máo estado não deverem servir, e dando, parte ao Director de qualquer abuso, ou falta que encontrar não só neste ponto como nas dietas, e em tudo o mais que for necessario aos doentes (BRASIL, 1854, p. 2-3).

 

O fato de ter garantido a nomeação de médicos desde a fundação do estabelecimento denota a preocupação com a manutenção da saúde dos alunos que se encontravam em situação de internato e com todo o corpo administrativo da instituição. À época, o Rio de Janeiro era vulnerável e temerário às epidemias, e as condições higiênicas da cidade não eram as mais favoráveis, a insalubridade era comum e precisava ser combatida. Manter a saúde de um coletivo dentro de um espaço educacional era um desafio, dada a aglomeração que era inevitável, tendo em vista outros fatores que também interferiam no desenvolvimento do trabalho, tais como a localização geográfica do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, aspecto que será discutido ainda neste estudo.

Com base na análise dos registros encontrados, pode-se inferir que os médicos nomeados realizavam o trabalho com dedicação e seriedade, porém é preciso considerar que os relatórios produzidos eram escritos pelos gestores como uma das formas de prestar contas do trabalho realizado durante o ano. Nesse sentido, a redação era subjetiva e destacava aspectos selecionados pelos autores.

Fazia parte do conteúdo dos relatórios também uma série de doenças reportadas pelos médicos que acometiam alunos e funcionários, entre elas: “[...] reumatismos, febres gastricas, anginas, bronchites, febres intermitentes (ou paludismo), erysipelas, enterites, supressão de transpiração, febre synocha, embaraços gastricos, caxumba, optalmias, typho, lymphatite” (ALMANAK LAEMMERT, 1854-1889). Geralmente, as doenças eram tratadas no próprio estabelecimento, mas quando havia a incidência de epidemias, tais como a de febre amarela, sarampo e cólera, os cuidados extrapolavam os muros da instituição, pois existia um problema estrutural. Conforme Soares (1870, p. A-E1-14):

 

Não temos sala, nem quarto que sirva de enfermaria, onde os doentes possam ser tratados em separado dos outros alunos, e onde achem socego e repouso tão necessarios a seu estado. O pequeno e único cubículo que é decorado com o nome de enfermaria mal pode conter duas camas, e confesso, que tenho até repugnância em encerrar nelle os meus doentes, porque húmido, escuro, acanhadíssimo e sem ventilação alguma, é mais um foco de moléstias do que lugar em que se espere recuperar a saúde, além de que a falta de luz é tal, que o medico não pode examinar o doente com a minudencia que é de mister.

 

De acordo com o registro do esculápio, faltava um local adequado e digno para o atendimento médico, e esse aspecto foi observado durante todo o período estudado, algo que ia de encontro aos preceitos higienistas e, por isso, era reclamado pelos próprios profissionais envolvidos. No entanto, os alunos cegos ainda podiam contar com esse tipo de atendimento que muitas pessoas que viviam nas cidades não tinham acesso. Por vezes, também devido à insatisfação generalizada em relação aos médicos, sobretudo em tempos de epidemias, a população denunciava nos jornais da época, e os membros

 

[...] da classe médica que se sentiam responsáveis por uma grandiosa tarefa, uma verdadeira missão – a de conduzir o país ao progresso científico, rumo à “modernidade” e à “civilização” –, mal davam conta das tarefas que lhes cabiam, reconhecendo que eram impossibilitados de “atender a todas as exigências do serviço” (SAMPAIO, 2001, p. 40-41).

 

Nos documentos analisados, não foram encontradas menções às possíveis causas da cegueira, condição apresentada pelos alunos do Imperial Instituto dos Meninos Cegos. Assim sendo, a atuação do médico era focada no tratamento de doenças, embora o discurso em prol da modernidade clamasse pelo avanço científico, e isso era observado em produções da época. Leão (2023) refere que a dissertação do Dr. Eduardo Gordilho Costa, realizada em 1886, na Faculdade de Medicina da Bahia, versava sobre o glaucoma, além de outros trabalhos da mesma instituição que traziam conhecimentos a respeito da saúde ocular. Além disso, segundo Leão (2023), em 1851, foi criado o ophthalmoscopio, aparelho que possibilitava um exame mais detalhado das estruturas oculares. Tratamentos de patologias oculares também eram realizados, além da prescrição de medicamentos. A falta desse nível de detalhamento nos relatórios impediu o alargamento da compreensão a respeito dos casos presentes no Instituto.

Apesar de todos os esforços envidados pelos médicos que atuaram no Instituto e sua presença diária no estabelecimento, membros do Governo Imperial admitiam que a remuneração pelos serviços prestados era baixa e que havia a necessidade de rever essa situação (CARVALHO, 1877). Uma mudança de perspectiva só seria concretizada em 1889. Segundo Leão (2023), em 1889, foi aprovado um benefício com o intuito de aumentar os vencimentos de alguns funcionários do Instituto, incluindo os médicos. Ao que parece, o reajuste foi pequeno e não fazia jus à dedicação prestada pelos referidos profissionais. No período estudado, encontra-se a menção aos médicos nomeados apresentados no Quadro 1.

Quadro 1 –Médicos nomeados no Imperial Instituto dos Meninos-Cegos

Ano

Nome do profissional

1869, 1870

Dr. Joaquim dos Remedios Monteiro

Dr. José Rufino de Noronha (substituto)

1870, 1871, 1872, 1873, 1881

Dr. Joaquim Mariano de Macedo Moraes

Fonte: Elaborado pela autora com base nos dados coletados no Almanak Laemmert (1854-1889).

 

Projeto de formação para alunos cegos

De acordo com o “Regimento Provisorio do Imperial Instituto dos Meninos Cegos”, o fim do Instituto era o de ministrar: “[...] a instruccção primaria; a educação moral e religiosa; o ensino da música, e de alguns ramos da instrucção secundaria e o de ensino fabris” (BRASIL, 1854, p. 1).

O curso oferecido era de oito anos e o governo era responsável pelas refeições, pelas vestimentas e pelos cuidados médicos para os alunos matriculados, além do material escolar utilizado. O trabalho pedagógico era desenvolvido por meio dos pontos salientes de Luiz Braille.

O colégio tinha uma rotina rígida e os alunos acordavam às 5horas e se recolhiam às 22horas. Segundo Leão (2017), os passeios eram aos domingos e feriados, porém somente com a autorização do diretor, e as visitas poderiam ser feitas às quintas-feiras e aos domingos. De maneira geral, o Instituto investia no trabalho de instrução e formação em um ofício, para que os alunos cegos tivessem uma forma de subsistência quando egressos. Esse projeto de formação materializava-se em disciplinas, conforme o Quadro 2.

 

Quadro 2 – Disciplinas do Imperial Instituto dos Meninos Cegos de 1854 a 1889

Primeiras Letras- leitura e escrita grammatica da língua nacional

Matematica e Ciencias Naturais

Doutrina cristã- Catecismo

Geografia e História

Musica vocal e instrumental (piano, instrumentos de sopro)

Fonte: Elaborado pela autora a partir do Almanak Laemmert (1854-1889).

 

Tal projeto mantinha os alunos cegos o dia todo ocupados e, segundo Costa (1858, p. 33 apud Leão, 2017, p. 63), “[...] os alunos tem o tempo todo tomado pelo estudo ou por alguma ocupação, exceto os intervalos do recreio” e, ainda, acrescentava que “[...] parecerá talvez, excessivo o trabalho; e de fato seria para outros, que não para os cegos, os quais no estudo e no trabalho acham o seu mais aprazível recreio”. A disciplina era característica do Instituto, assim como o de outros internatos neste período e, nas palavras de Conceição (2012, p. 71):

 

O Dr. João da Matta Machado, afirmava que nos grandes colégios-internatos, sobretudo naqueles dirigidos por congregações religiosas, o regramento da vida diária chegava mesmo a aniquilar as vontades individuais, transformando o aluno em um autômato que se movia inconscientemente.

 

Ao que parece, apesar de o Instituto estudado não ter sido dirigido por congregação religiosa, o excerto anterior traduz a inércia presente na educação de pessoas cegas e legitima uma prática que também era comum em colégios para alunos videntes nesse mesmo período, apesar do caráter especializado do Instituto em questão.

Ademais, o projeto de formação desenhado para o Imperial Instituto dos Meninos Cegos vinha ao encontro de um ideal de formação também destinado a pessoas videntes, excetuando-se o trabalho com pontos salientes, a adaptação de materiais didáticos e os tempos para aprendizagem dos alunos cegos. Pode-se perceber tal aspecto quando os padrões referenciais de higiene destacados por Gondra (2004), em seu estudo sobre teses de médicos formados no Rio de Janeiro no século XIX, foram analisados. O autor, ao fazer um minucioso estudo sobre o conteúdo das teses de alguns médicos, constatou que elas se baseavam nos tratados de higiene de Michel Levy e Becquerel, com mais ênfase no Manual de Becquerel. Com esse referencial, Gondra (2004) passou a refletir sobre como o discurso higienista permeava a organização escolar ao longo do século XIX por meio das referidas teses.

Nesse sentido, traz-se à baila um padrão elencado por Gondra (2004) que diz respeito à educação literária, moral e religiosa como um propósito do trabalho nos colégios, denominado percepta. Segundo o autor, os médicos abordavam esses temas, além de propor uma educação sensorial, hierarquizando o trabalho com os órgãos dos sentidos, com vistas ao aperfeiçoamento e ao melhoramento das capacidades individuais. No Imperial Instituto dos Meninos Cegos, o Regulamento previa os aspectos que englobam o que se denominou como percepta, além de desenvolver o trabalho com o tato, especialmente por meio do ensino dos pontos salientes e outras atividades. Segundo Magalhães (1877, p. A-D2-14):

 

A tenebrosa noite em que se mergulha a cegueira, os isola de todos os objetos que o cercam. Precisam de uma mão amiga que os dirija, que ponha ao seu alcance os objetos que quiserem conhecer, e os meios de chegarem ao conhecimento, do que lhes forem inaccessiveis por suas situações, dimensões, etc.

 

Existiam, porém, muitas limitações pedagógicas, entre elas, o fato de não possuírem aulas de Educação Física, essencial para o desenvolvimento corporal e de habilidades específicas para a pessoa cega e a educação dos sentidos que restavam. Assim considerava o diretor Benjamim Constant:

 

É preciso para elle (cego) uma educação mais pedagogica que natural. A educação dos sentidos que lhe restam deve ser objeto de serios cuidados. O ouvido, o paladar e especialmente o tacto exige ser convenientemente educados, e devem sel-o com grande esmero afim de que possam servir-lhe para conhecer por meio deles objectos exteriores, procurando suprir o mais possível a falta da vista (MAGALHÃES, 1887, p. A-D2-16, grifo próprio).

 

Outra questão muito delicada e complexa para os gestores do Instituto, o oferecimento da Educação Física, especificamente da ginástica. Nas fontes estudadas, foram localizadas muitas solicitações para o Governo Imperial sobre a criação e o oferecimento da Educação Física para os alunos cegos. Uma série de particularidades foram lançadas nas petições sobre o desenvolvimento da pessoa cega e a importância da Educação Física nesse processo, mas, até o final do período estudado, não foi encontrada nenhuma solução para o problema, tampouco a contratação de um mestre para tal disciplina, como mostram os excertos que seguem:

 

A educação phisica não tem tido ali o preciso desenvolvimento, e para isto há concorrido o facto de se não achar o Instituto em condições de poder educar outros sentidos além do que falta aos alumnos, de modo a substituírem quanto possível as percepções próprias d’este (Carvalho, 1877, p. 84).

O que é indispensável, como medida hygienica, como único meio efficaz para vencer a natural tendencia para a inercia a que o cego é votado, é a gymnastica elementar, a gymnastica sem apparelhos, essa gymnastica que deverá fazer parte do programa de todos os collegios, que convem a todas as idades, a todos os sexos e a todas as condições (MAGALHÃES, 1869, p. A-F3-13).

 

Por meio das constantes insistências e cobranças dos diretores e dos Ministros e Secretários de Estado dos Negócios do Império quanto a esse aspecto, fica patente o impacto do higienismo atrelado a outro padrão referencial de higiene observado por Gondra (2004), denominado Gesta. Tal denominação diz respeito a exercitar e robustecer o corpo e o impacto do exercício para o desenvolvimento humano. O autor dedica um capítulo de sua tese para discutir a presença e a recomendação da Educação Física nas teses de medicina dos médicos do Rio de Janeiro. Segundo Gondra (2004, p. 327), a “[...] educação física, associada ao trabalho moral e intelectual, deveria cumprir vários objetivos simultaneamente: fortalecer, disciplinar, ordenar o trabalho nas escolas, moldar os temperamentos, estruturar o tempo escolar e regenerar”. No caso do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, nem a força do discurso médico e nem o aporte legal que prescrevia o ensino de Gymnastica nas escolas nesse período (BRASIL, 1854, 1879) foram suficientes para reverter a ausência dessa atividade, embora a educação para cegos não fosse obrigatória.

Por derradeiro, mais um aspecto ligado aos preceitos higienistas foi observado maciçamente nos estudos realizados e diz respeito aos espaços físicos em que funcionava o Imperial Instituto dos Meninos Cegos. Desde a sua fundação, casas eram alugadas para o funcionamento do colégio. A primeira sede ficava no Morro da Saúde e, segundo as fontes, nos anos de 1854, 1855, 1856 e 1858, as acomodações eram boas e se encontravam em excelentes condições de higiene.

A partir do ano de 1859 até o ano de 1864, os registros encontrados demonstram que o prédio sede carecia de reparos e melhoria para as condições higiênicas. Em 1864, a falta de recursos financeiros era a justificativa para a não realização de bem feitorias. O Ministro e Secretário de Estado e dos Negócios do Império, Marquês de Olinda, atestou, em 1865, que era “[...] lamentável o estado do instituto [...]” e que havia uma “[...] ameaça iminente de ruina” (OLINDA, 1865, p.19).

A procura por outro espaço era explicitada nos relatórios, e a mudança de prédio foi concretizada em 1866, localizado no Campo da Aclamação. Segundo Torres (1866), esse novo local oferecia boas condições higiênicas e foi o melhor que apareceu. Contudo, de 1869 a 1873, os registros a respeito do estabelecimento começaram novamente a expor os problemas enfrentados e os inconvenientes do prédio. O diretor Benjamim Constant reforçava que o estado sanitário era “péssimo” e que a saúde dos alunos e empregados sofria em consequência das más condições higiênicas (MAGALHÃES,1872). As reclamações foram se tornando constantes a partir de 1869, tal como se pode verificar nos excertos que seguem:

 

As aulas são no andar térreo, onde permanecem a maior parte do dia os alunos (sobretudo do sexo masculino). Essa parte é húmida, recebe pouca luz e ar. Existe dentro do quintal deste prédio uma grande valla que serve de esgoto as aguas pluviais de diversas ruas e prédios. Tinha [...] mosquitos e outros insectos, como tambem originão miasmas que podem ter acção maléfica e perniciosa sobre a economia humana. O quintal, unico lugar de recreio e por onde recebe ar toda a face posterior do edifício é fechado por altos muros. O ar que ahi se respira é viciado pela valla, além de não renovado suficientemente (MONTEIRO, 1869, p. A-F3-16).

Assim é que as alumnas, demorando-se alli apenas o tempo necessário para as aulas e voltando para o pavimento superior que é bem arejado, onde permanecem conservando-se longe dos fócos deletérios, não adoecem tanto como os seus companheiros (NORONHA, 1869, p. A-F3-17).

Não tem o edifício latrinas, quartos de banho, nem espaço algum para os necessários recreios dos alunos (MAGALHÃES, 1870, p. A-E1-30).

A cozinha está por tal forma situada, que, sempre que sopra o vento do quadrante sul, enche-se a casa de fumaça, e é exatamente sobre a cozinha que está estabelecida a enfermaria por falta de outro commodo maior (SOARES, 1872, p. A-C2-6).

 

Os estudos feitos por Gondra (2004) também mostraram que, nas teses dos médicos, havia um conjunto de observações sobre a localização dos colégios. Segundo o autor, vários aspectos deveriam ser considerados para abrigar um colégio, dentre eles a localização geográfica, o clima, a circulação de ar, a topografia do terreno, exposição ao sol e a natureza do solo. Além disso, os médicos previam uma série de detalhes referentes à composição do interior dos estabelecimentos e suas repartições, frisando a necessidade constante de asseio para o desenvolvimento das atividades. Outrossim, os médicos em suas teses concebiam um modelo de colégio misto, com pavilhões separados para meninos e meninas, para a boa organização dos estabelecimentos e disciplinamento da vida escolar dos alunos.

Apesar de todo esse conjunto de observações e determinações, a realidade dos colégios era outra e, de certa forma, bem distante do que se prescrevia. Em especial, o Imperial Instituto dos Meninos Cegos não tinha uma sede própria, e as casas arrendadas para o seu funcionamento não reuniam condições salubres perenes. Mesmo com as mudanças de prédio quando a situação sanitária se mostrava inapropriada devido a agentes nocivos à saúde, as condições higiênicas não eram satisfatórias na maioria dos anos estudados. Uma série de falecimentos eram reportados devido a doenças, e a manutenção da saúde, o controle das dietas e o próprio atendimento aos enfermos eram tarefas hercúleas frente ao cenário vivenciado na instituição. Os próprios diretores e médicos nomeados relatavam as irregularidades e demonstravam incômodo com o fazer médico nas condições anti-higiênicas presentes. O discurso higienista tinha um espaço garantido na prestação de contas ao Imperador, nomeadamente nos relatórios anuais.

Os registros contam que, no ano de 1870, o imperador D. Pedro II doou um terreno particular situado na Praia Vermelha, entre o Hospício de Pedro II e a Escola Militar para a construção de uma sede para o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (MAGALHÃES, 1870). Tal terreno, que era plano, seco, próximo ao mar e do centro da cidade, reunia condições favoráveis para o estabelecimento do Instituto. Não obstante, devido à falta de recursos e morosidade no projeto de construção, somente em 1891 o Imperial Instituto dos Meninos Cegos passou a funcionar no prédio na Urca, onde está situado atualmente (Figura 1).

 

Figura 1 – Instituto Benjamin Constant

Fonte: Extraída de Instituto Benjamin Constant [...] (2021).

Fotografia de Felipe Cohen.

Descrição da imagem: Imagem em preto e branco e desgastada da fachada do prédio do Instituto Benjamin Constant. No primeiro plano da imagem trilhos de trem e cascalho no asfalto. Do lado direito o prédio em perspectiva demonstra uma parte mais à frente em construção e o restante em recuo. O prédio possui três andares e tem janelas bem grandes por toda a fachada, na frente, um muro baixo. Do lado esquerdo da imagem alguns postes e construções baixas ao fundo. No rodapé do texto Instituto Benjamin Constant, Rio de Janeiro. Fim da descrição.

 

Considerações finais

A partir do intenso mergulho nas fontes documentais primárias utilizadas neste estudo e os cotejamentos realizados com outras referências, pode-se dizer que o movimento higienista impactou o Imperial Instituto dos Meninos Cegos de forma bastante efetiva, em função de seu caráter especializado e contando com gestão de dois diretores médicos, um deles o Dr. José Xavier Sigaud, higienista assumido e reconhecido na sociedade carioca. Assim sendo, o objetivo delineado para este estudo foi alcançado. Desde o princípio, preceitos higienistas foram observados e materializavam-se em documentos oficiais e, ao longo do século XIX, foram se ampliando na instituição fazendo eco ao que era disseminado pelo discurso médico na sociedade.

Percebe-se que o alinhamento aos preceitos higienistas assumiu diferentes formas de efetivação, a começar pelo projeto de formação que era engendrado e que primava pela formação intelectual, moral e religiosa e com o clamor pela inserção da educação física, na forma de ginástica, que, no caso do Instituto, ficou no plano de intenções no período estudado, apesar de sua urgente necessidade declarada pelos diretores para os alunos cegos.

Pôde-se também verificar uma conformidade com o discurso higienista quando se analisou a entrada dos médicos na instituição desde a sua origem e com a nomeação de mais esculápios para o acompanhamento da saúde das pessoas que trabalhavam e estudavam no local. Além disso, os registros expondo os atendimentos realizados deram um panorama das enfermidades enfrentadas à época e das epidemias mais marcantes, das condições físicas para os atendimentos, a ênfase da imunização por meio da vacina e do foco no acompanhamento das questões relativas à salubridade, o que era alcançado com muita insistência e cuidado dos profissionais, apesar das perdas de vidas também observadas.

A busca por uma “arquitetura escolar”, termo usado por Gondra (2004, p. 172), que contemplasse os ditames higienistas e que, ao mesmo tempo, viesse ao encontro das especificidades da educação de cegos, cujo modelo inspirador era francês, também ganhou contornos com a ação dos três diretores no período Imperial. Elementos como iluminação solar, circulação de ar, deslocamento de águas pluviais, necessidade de asseio dos espaços eram sempre lembrados nos registros dos gestores e médicos nomeados com o intuito de combater miasmas ameaçadores à saúde. 

Ademais, a busca pela ordem, a manutenção da disciplina rígida e o constante trabalho para a conquista da civilidade pelos alunos cegos, considerados infelizes, inertes e dignos de total compaixão, saltavam aos olhos e eram elementos também valorizados pelos esculápios higienistas em suas produções acadêmicas. Também observa-se que apesar do higienismo vigente na época, médicos mais sensíveis ou envolvidos com a causa por terem filhos com deficiência lutaram por melhores condições de vida para os estudantes do Imperial Instituto dos Meninos Cegos, apesar dos desafios e das barreiras explicitadas e a responsabilidade de efetivar um projeto de educação para cegos nos trópicos, realidade bem distinta de onde vivera um dos grandes inspiradores do trabalho, Valentin Haüy, fundador do Institut Nationaldes Jeunes Aveugles, em Paris.

O estudo também revelou que a educação especializada dialogava com o contexto social, que a instituição não realizava um trabalho essencialmente retraído, apesar de seu caráter e das adversidades presentes em diferentes momentos de sua atividade no século XIX.

 

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Nota



[1] De acordo com Torres (2008, p. 12): “No Brasil, entre 1808 e 1828, todas as atividades médicas – ou ‘artes de curar’, como se dizia – eram regulamentadas por uma instituição chamada Fisicatura-mor, órgão responsável por conceder autorizações e licenças para a atuação dos terapeutas”.