Explorando a dinâmica familiar de crianças com Transtorno do Espectro do Autismo: uma análise dos eventos cotidianos e experiências maternas

Exploring the family dynamics of children with Autism Spectrum Disorder: an analysis of daily events and maternal experiences

Explorando la dinámica familiar de niños con Trastorno del Espectro Autista: un análisis de los eventos cotidianos y las experiencias maternas

 

Amanda Pereira Risso Saad

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, Brasil

amanda.saad@ufms.br

Paulo Roberto Haidamus de Oliveira Bastos

Universidade Federal de Mato Grosso do Sul, Campo Grande, MS, Brasil

phaidamus43@gmail.com

 

Recebido em 26 de agosto de 2023

Aprovado em 16 de setembro de 2023

Publicado em 16 de janeiro de 2024

 

RESUMO

Este artigo se propôs a investigar de maneira minuciosa a dinâmica familiar, com foco especial na análise dos acontecimentos centrais que permeiam a rotina diária de crianças diagnosticadas com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) nos períodos matutino, vespertino e noturno. Para atingir esse objetivo, foi empregada uma abordagem qualitativa de natureza descritiva, utilizando dados primários em um delineamento transversal, sendo categorizada como um estudo de caso, no qual mães de crianças com até dez anos, atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial em Campo Grande, Mato Grosso do Sul, foram entrevistadas no ano de 2021. Os resultados, analisados por meio da Análise de Conteúdo Temática, revelaram as complexas situações enfrentadas pelas mães que desempenham o papel de cuidadoras de crianças com TEA. As narrativas das entrevistas destacaram rotinas intensas, que envolviam terapias, questões alimentares e os desafios inerentes ao TEA. É importante ressaltar a notável falta de suporte proveniente das políticas públicas, agravada pelas dificuldades exacerbadas pela pandemia. A necessidade de assistência multidisciplinar, especialmente no âmbito psicológico, emergiu como um imperativo, enquanto a resiliência das mães em adaptar estratégias para enfrentar as adversidades foi reconhecida. As considerações finais destacam a crucial importância de um apoio multidisciplinar e redes de apoio robustas. O estudo enfatiza a urgência de uma abordagem compassiva e holística, alicerçada em políticas públicas eficazes e serviços acessíveis, visando promover o bem-estar das famílias no contexto desafiador do TEA.

Palavras-chave: Transtorno do Espectro Autista; Relações familiares; Práticas interdisciplinares.

 

ABSTRACT

This article has set out to thoroughly investigate family dynamics, with a particular focus on the analysis of the central events that permeate the daily routine of children diagnosed with Autism Spectrum Disorder (ASD) during morning, afternoon, and evening periods. To achieve this goal, a qualitative descriptive approach was employed, utilizing primary data in a cross-sectional design, categorized as a case study. Mothers of children up to the age of ten, who were receiving care at a Psychosocial Care Center in Campo Grande, Mato Grosso do Sul, were interviewed in the year 2021. The results, analyzed through Thematic Content Analysis, unveiled the complex situations faced by mothers who undertake the role of caregivers for children with ASD. The interview narratives emphasized intense routines, involving therapies, dietary issues, and the inherent challenges of ASD. It is crucial to highlight the notable lack of support from public policies, aggravated by the difficulties exacerbated by the pandemic. The necessity for multidisciplinary assistance, particularly in the psychological realm, emerged as imperative, while the resilience of mothers in adapting strategies to confront adversities was acknowledged. The concluding remarks underscore the crucial importance of multidisciplinary support and robust support networks. The study emphasizes the urgency of a compassionate and holistic approach, grounded in effective public policies and accessible services, aimed at promoting the well-being of families in the challenging context of ASD.

Keywords: Autism Spectrum Disorder; Family relations; Interdisciplinary placement.

 

RESUMEN

Este artículo se propuso investigar de manera minuciosa la dinámica familiar, con un enfoque especial en el análisis de los acontecimientos centrales que impregnan la rutina diaria de los niños diagnosticados con Trastorno del Espectro Autista (TEA) en los períodos matutino, vespertino y nocturno. Para alcanzar este objetivo, se empleó un enfoque cualitativo de naturaleza descriptiva, utilizando datos primarios en un diseño transversal, categorizado como un estudio de caso en el cual se entrevistaron a madres de niños de hasta diez años, atendidos en un Centro de Atención Psicosocial en Campo Grande, Mato Grosso do Sul, en el año 2021. Los resultados, analizados a través del Análisis de Contenido Temático, revelaron las complejas situaciones enfrentadas por las madres que desempeñan el papel de cuidadoras de niños con TEA. Las narrativas de las entrevistas destacaron rutinas intensas que involucraban terapias, cuestiones alimentarias y los desafíos inherentes al TEA. Es importante resaltar la notable falta de apoyo proveniente de las políticas públicas, agravada por las dificultades exacerbadas por la pandemia. La necesidad de asistencia multidisciplinaria, especialmente en el ámbito psicológico, emergió como un imperativo, mientras que se reconoció la resiliencia de las madres para adaptar estrategias y enfrentar las adversidades. Las consideraciones finales resaltan la importancia crucial de un apoyo multidisciplinario y redes de apoyo robustas. El estudio enfatiza la urgencia de un enfoque compasivo y holístico, basado en políticas públicas efectivas y servicios accesibles, con el objetivo de promover el bienestar de las familias en el desafiante contexto del TEA.

Palabras clave: Trastorno del Espectro Autista; Relaciones familiares; Prácticas interdisciplinarias.

 

Introdução

A fase da infância delineia aspectos peculiares e desafios intrínsecos a esse estágio do desenvolvimento humano, cuja complexidade pode ser exacerbada quando a criança é diagnosticada com Transtorno do Espectro do Autismo (TEA) (SUÁREZ; SOTO, 2019). No seio das famílias com crianças inseridas nesse contexto emerge uma dinâmica complexa, uma vez que as interações entre os membros familiares sofrem impacto substancial, principalmente em virtude dos comportamentos desafiadores apresentados pela criança, cujas consequências reverberam sobre a qualidade de vida de todos os envolvidos (SILVA et al., 2018; SUÁREZ; SOTO, 2019).

Após o diagnóstico de TEA em um membro da família, a vivência dos pais assume matizes complexos, tangenciando uma teia de questionamentos infindáveis acerca do desenvolvimento do filho e da subsequente necessidade de apoio (BOSHOFF et al., 2019). A intricada comunicação da pessoa no espectro do autismo impõe significativas vicissitudes no relacionamento entre os pais e a prole, engendrando um sentimento mútuo de ininteligibilidade, bem como uma dificuldade subjacente em apreender a variabilidade da comunicação peculiar da criança (PEREIRA; BORDINI, ZAPPITELLI, 2017).

De igual modo, a aflição psicológica que muitas vezes assoma aos genitores tem seu nascedouro em uma extenuante busca por serviços médicos em busca do diagnóstico, desencadeando uma gama de sentimentos díspares e uma sensação aguda de desamparo na esfera social (ANJOS; MORAIS, 2021; BOSHOFF et al., 2019). A carga emocional e financeira, que permeia a vida desses indivíduos, torna-se particularmente marcante, sobretudo no contexto de crianças que enfrentam quadros mais severos e em locais onde a disponibilidade de serviços e suporte se mostra deficiente (ANJOS; MORAIS, 2021; DANTAS et al., 2019; LORD et al., 2021; ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2021).

Nesse contexto, a culpabilidade muitas vezes experimentada pelos pais encontra suas raízes na sensação de inabilidade em controlar determinados comportamentos dos filhos, o que por sua vez desencadeia uma rejeição social por parte da comunidade, precipitando um processo de isolamento (CROWELL, 2019). A parca compreensão sobre o transtorno e o estigma correlato aos transtornos mentais, do neurodesenvolvimento e deficiências em geral impulsionam esse sentimento de culpabilidade, embora possa ser mitigado mediante a aquisição de conhecimento acerca do transtorno, a solidariedade dos pares e a vivência da espiritualidade (LORD et al., 2021)

Não menos relevante é o sofrimento psicológico dos pais, invariavelmente entrelaçado ao grau de severidade do transtorno na criança, notadamente quando este assume contornos mais acentuados, somado à percepção subjetiva desses genitores acerca do modo pelo qual criam e educam sua prole (YORKE et al., 2018). Nesse âmbito, mesmo em casos que não manifestam extrema severidade, como no cenário de crianças no espectro do autismo com necessidades leves de apoio, são documentados indícios de estresse parental e diminuição da qualidade de vida (PISULA; POREBOWICZ-DÖRSMANN, 2017).

Fundamental notar que o ônus sobre os familiares se estende ao futuro das crianças com TEA, especialmente na idade adulta. A preocupação persistente de que esses filhos necessitarão de apoio vitalício, tanto em termos médicos quanto psicossociais, destaca a ansiedade dos pais em relação à sua própria finitude. A dimensão desse fardo deve ser abordada ao longo das diferentes fases da vida das pessoas com TEA, pois está diretamente relacionada ao suporte social disponível (LORD et al., 2021; MARSACK; HOPP, 2019; MARSACK; SAMUEL, 2017).

É igualmente plausível vislumbrar que a sobrecarga originada das apreensões em relação ao porvir das crianças com TEA, particularmente em sua transição à vida adulta, radica na constatação de que jovens adultos com o transtorno experimentam resultados menos auspiciosos em atividades cotidianas que requisitam independência, assim como no âmbito educacional e profissional, quando comparados a jovens com outras deficiências (LORD et al., 2021).

Ademais, faz-se premente enfatizar a incidência de transtornos psicológicos nos pais de crianças com TEA, os quais reverberam de modo negativo sobre o funcionamento familiar. Tais distúrbios, com ênfase em ansiedade e depressão, frequentemente ocupam a cena, seguidos por transtornos obsessivo-compulsivos, de personalidade, esquizofrenia e aqueles relacionados ao consumo de álcool e substâncias psicoativas (SCHNABEL et al., 2020; SUÁREZ; SOTO, 2019). Notoriamente, mães de crianças com autismo experimentam níveis acentuados de estresse, tendo como consequência a diminuição da qualidade de vida e inarredáveis dificuldades frente ao funcionamento familiar (PISULA; POREBOWICZ-DÖRSMANN, 2017).

A configuração da dinâmica familiar é fortemente influenciada pelas características comportamentais da criança, especialmente quando há alterações sensoriais, frequentemente associadas ao TEA. Tais características sensoriais, em sua plenitude, podem incidir sobre as experiências cotidianas, gerando tensão nas relações entre a criança e seus cuidadores, demandando, por conseguinte, suporte especializado com potenciais efeitos em médio e longo prazo (KIRBY et al., 2019; PISULA; POREBOWICZ-DÖRSMANN, 2017).

No entanto, emergem como catalisadores de resiliência e superação os sistemas de apoio formais e informais destinados a famílias de crianças com TEA e outras deficiências. Esses sistemas, efetivamente, proporcionam um suporte que viabiliza o enfrentamento de eventos estressores, contribuindo para o desenvolvimento da resiliência, adaptação e confiança dos genitores (ANJOS; MORAIS, 2021; BAIXAULI et al., 2019).

A provisão adequada de assistência às necessidades intrínsecas dessas famílias engendra benefícios de caráter multifacetado, permeando o desenvolvimento infantil e culminando em aprimoramentos nos âmbitos comportamental e psicossocial. Sobretudo, propicia o empoderamento dos cuidadores, cada vez mais reconhecido como componente basilar das intervenções voltadas a crianças nessas condições, atuando como um recurso catalisador na ressignificação do diagnóstico médico e aceitação das intricadas vicissitudes correlatas ao transtorno (ANJOS; MORAIS, 2021; LORD et al., 2021; ORGANIZAÇÃO PAN-AMERICANA DA SAÚDE, 2021).

O trabalho dedicado às famílias requer uma análise meticulosa de suas potencialidades inerentes e das peculiaridades que conduzem a conquistas palpáveis em suas dinâmicas diárias. O escopo transformador reside na transição de uma perspectiva centrada em limitações para aquela que enfatiza de forma preeminente os recursos e potenciais latentes, uma mudança paradigmática capaz de orientar práticas voltadas para a superação e ampliação de elementos potencialmente intricados no seio familiar, em decorrência do TEA (ANJOS; MORAIS, 2021; GUANAES; MATTOS, 2011).

Nesse ínterim, a evolução para um modelo assistencial que destaca os processos de significação social, ancorados nas narrativas dos membros familiares, torna-se preponderante. Essa abordagem pressupõe a consideração de diversas perspectivas sobre um fenômeno e a promoção da horizontalidade nas relações entre os intervenientes, sejam eles profissionais ou usuários dos serviços de saúde. Essa metamorfose paradigmática emerge como um aspecto vital na formação de práticas mais alinhadas com as exigências contemporâneas da saúde coletiva (ANJOS; MORAIS, 2021; GUANAES; MATTOS, 2011).

Tendo em vista o panorama exposto, esta pesquisa teve como objetivo investigar a dinâmica familiar, concentrando-se na análise dos acontecimentos preeminentes da rotina diária envolvendo crianças com TEA nos momentos matutino, vespertino e noturno. Buscou-se minuciar a vivência familiar, proporcionando às participantes espaço para discorrer de maneira aberta sobre os eventos que pontuam um dia típico na vida familiar.

 

Percurso metodológico

Este artigo apresenta resultados parciais da tese de doutorado da autora principal, desenvolvida no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Saúde e Desenvolvimento na Região Centro-Oeste, na Universidade Federal de Mato Grosso do Sul (UFMS). A pesquisa adotou uma abordagem qualitativa de natureza descritiva, utilizando dados primários em um delineamento transversal, sendo categorizada como um estudo de caso. Os estudos de caso representam uma abordagem valiosa para investigar contextos complexos e multifacetados, permitindo que os pesquisadores mergulhem profundamente em situações da vida real para compreender as nuances e complexidades dos fenômenos estudados (MERRIAM, 2018).

A investigação foi conduzida no Centro de Atenção Psicossocial Infantojuvenil "Dr. Samuel Chaia Jacob" (CAPS ij – III), situado no município de Campo Grande, Mato Grosso do Sul. Os participantes do estudo consistiram em mães e/ou responsáveis por crianças com TEA, cujas idades variavam até dez anos e que estavam em acompanhamento nesta instituição. De um total de seis mães registradas na instituição em 2021, três concordaram em participar do estudo. Embora os pais das crianças também tenham sido convidados a participar, recusas foram relatadas, possivelmente devido a compromissos laborais no horário das entrevistas.

O primeiro contato com as participantes foi estabelecido por telefone, no qual a pesquisa foi divulgada e o convite para participação foi realizado. Subsequentemente, entrevistas foram conduzidas, empregando um instrumento de coleta de dados elaborado pelos pesquisadores, que consistia em questões abertas.

As entrevistas foram realizadas individualmente, utilizando videochamada por meio do aplicativo WhatsApp®, com duração aproximada de trinta minutos. Para garantir um ambiente sigiloso, ambos os participantes utilizaram fones de ouvido durante as entrevistas. O conteúdo completo das entrevistas (áudio e vídeo) foi gravado após o consentimento dos participantes, formalizado por meio da assinatura de um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE). A escolha da plataforma virtual decorreu das restrições sociais ocasionadas pela pandemia de Covid-19.

Realizamos uma pesquisa minuciosa sobre como as famílias funcionam, especialmente considerando como a rotina das crianças com Transtorno do Espectro Autista (TEA) é moldada ao longo do dia, incluindo manhã, tarde e noite. Desenvolvemos um Roteiro chamado "Um Dia de Vida" destinado aos pais ou responsáveis de crianças com TEA. Começamos com uma pergunta principal: quais são as atividades que o seu filho faz durante o dia, desde o momento em que acorda até o momento em que vai dormir? Durante as entrevistas, também formulamos outras perguntas complementares para explorar detalhes sobre diversos aspectos, como atividades da manhã, atividades educacionais, horários das refeições, medicamentos, terapias e momentos de lazer. Isso nos permitiu entender mais profundamente os temas mencionados pelas participantes sobre os eventos de um dia típico em suas casas.

Os dados coletados foram analisados empregando a técnica de Análise de Conteúdo Temática (BARDIN, 2011). Inicialmente, as respostas das entrevistas foram transcritas de forma literal e, posteriormente, uma leitura flutuante foi realizada para uma compreensão mais profunda dos dados. A organização das informações envolveu etapas de codificação e categorização, baseadas em categorias de investigação previamente estabelecidas, frente à análise dos acontecimentos da rotina diária de crianças com TEA nos momentos matutino, vespertino e noturno.

Todos os procedimentos adotados estiveram em consonância com os critérios éticos estabelecidos pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, com a aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa envolvendo seres humanos da UFMS, sob registro CAAE nº 26627919.6.0000.0021, e parecer nº 3.763.423.

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Resultados e discussão

No que diz respeito aos dados sociodemográficos dos participantes, todas eram mulheres com idades entre 40 e 45 anos, desempenhando o papel de mães das crianças envolvidas. Uma delas era casada, outra separada e a terceira divorciada, todas responsáveis pelas tarefas domésticas. Quanto à escolaridade, uma tinha ensino fundamental incompleto, outra o ensino médio incompleto e a terceira havia concluído o ensino superior. Em relação à renda familiar, variava de 1 a 2 salários mínimos em uma família e de 2,1 a 4 salários mínimos nas outras duas. As residências abrigavam 2, 4 e 5 membros familiares, respectivamente.

 

Tabela 1: Caracterização Sociodemográfica de Pais e/ou Responsáveis de Crianças com TEA, em Campo Grande, MS, (N=3), 2021

Características

Participante A

Participante B

Participante C

Sexo:

Feminino

Feminino

Feminino

Idade:

40 anos

42 anos

45 anos

Graus de parentesco:

Mãe

Mãe

Mãe

Estado civil:

Separada

Casada

Divorciada

Profissão:

Do lar

Do lar

Do lar

Escolaridade:

Ensino superior

Ensino médio

Ensino fundamental

Renda familiar:

Entre 2.1 e 4 SM*

Entre 1 e 2 SM*

Entre 1 e 2 SM*

Número de dependentes (pessoas que moram na mesma casa):

 

4

5

2

*SM: Salário Mínimo

Fonte: produção própria (2023).

 

A caracterização dos filhos com diagnóstico de TEA revelou um total de 4 indivíduos do sexo masculino, com dois destes sendo irmãos, filhos da Participante A. A primeira criança tinha 3 anos de idade, enquanto as duas seguintes contavam com 6 anos cada, e a última tinha 8 anos. Todas estavam matriculadas em instituições educacionais, sendo que apenas uma delas frequentava uma escola especial, enquanto as demais frequentavam escolas regulares da rede municipal. Todas as crianças estavam sob o acompanhamento de um psiquiatra CAPS Infantojuvenil, sendo que três delas recebiam atendimento em terapia psicológica e fonoaudiológica, enquanto uma delas era beneficiada de Atendimento Educacional Especializado (AEE), prestado por instituições não governamentais.

 

Tabela 2: Caracterização Sociodemográfica de Crianças com TEA, em Campo Grande, MS, (N=4), 2021

Características

Filhos da Participante A

Filho da Participante B

Filho da Participante C

Sexo:

Masculino

Masculino

Masculino

Idade:

3 anos e 6 anos

6 anos

8 anos

Frequência à escola:

Sim

Sim

Sim

Tipo de escola:

Escola Regular

Escola Regular

Escola Especial

Condição coexistente ao TEA:

Não

Não

Não

Assistência recebida:

1 Psicologia

2 Fonoaudiologia

3 Psiquiatria

4 AEE

1, 2 e 3

1, 2, 3 e 4

3

Fonte: produção própria (2023).

 

É importante ressaltar que a pesquisa foi conduzida entre o final de maio e o início de junho de 2021, um período marcado pelo impacto abrangente da pandemia de Covid-19 sobre a rotina familiar. Tanto a redução ou interrupção das terapias voltadas para as crianças quanto a ausência de interações sociais com seus pares foram aspectos que tiveram consequências significativas. Adicionalmente, o contexto da pandemia também influenciou a participação nas atividades escolares, com algumas crianças demonstrando desinteresse ou dificuldades em participar das aulas online.

Em relação aos dados sobre a rotina dessas crianças, na parte da manhã, ficou evidente que as mães se dividiam entre atender às demandas dos filhos e executar tarefas domésticas, incluindo a preparação da alimentação da família. Durante esse período, todas as crianças faziam uso de medicação, seguido de momentos ociosos e, posteriormente, a busca por entretenimento na forma de programas de televisão ou jogos eletrônicos. Além disso, foi observado que algumas crianças possuíam dispositivos eletrônicos exclusivos.

 

Geralmente eles acordam, tomam café e assistem desenho, pedem pra ver desenho no celular deles (Participante A).

Ele assiste tv, mas ele anda gostando muito é de ficar no celular, a gente tá tentado limitar (Participante B).

                          

Um ponto de relevância reside na intrincada rotina enfrentada por essas famílias, abrangendo não somente a preparação das refeições e a organização do ambiente doméstico, mas também o atendimento às necessidades da criança com deficiência, juntamente com as demandas dos demais filhos. Essa complexidade acaba por dificultar a aderência aos variados compromissos de consultas médicas e sessões terapêuticas, que são indispensáveis para a promoção da saúde e o desenvolvimento pleno da criança (FAW; LEUSTEK, 2015).

Em um outro relato, no qual a criança despertava, recebia sua medicação matinal e passava a manhã alternando entre a visualização de desenhos animados e perambulação pelo quintal da residência, a progenitora delineou outros elementos que lhe suscitavam inquietação. Estes elementos estavam intrinsecamente ligados à manifestação da agressividade por parte do filho quando privado dos alimentos de sua predileção. Neste contexto, emergiu com marcante relevância a premente necessidade de assistência profissional direcionada a auxiliar a mãe na abordagem desse comportamento. Tal necessidade decorreu do fato de que o repertório comunicativo da criança se encontrava insuficientemente desenvolvido, resultando em obstáculos na expressão de suas necessidades de maneira funcional e adaptativa.

 

Ele acorda às 10h, toma leite, ele tem muita seletividade, ultimamente ele gosta de tomar leite. Daí, se eu não dou, ele fica nervoso, me agride, porque eu tenho várias marcas de mordidas no rosto. Outra coisa é que ele ainda usa fralda, tudo é bem difícil (Participante C).

 

As refeições, especialmente o almoço, apresentaram particularidades individuais entre as crianças. Algumas eram capazes de se alimentar de forma independente e adaptavam seus horários de acordo com a presença de terapias. Por outro lado, uma criança necessitava de assistência da mãe para se alimentar e enfrentava dificuldades em aceitar alimentos novos, além de demonstrar impulsividade durante as refeições. Dificuldades alimentares comuns em crianças com TEA foram identificadas, refletindo a necessidade de suporte profissional para lidar com essas questões.

 

Meus filhos acordam, dão um tempinho pra ficarem bem acordados, vão pra a terapia. Chegam lá, eles fazem fonoaudiologia e depois psicologia. Daí, como eles adoram chipa, a gente vai e compra chipa, voltamos para casa, eles voltam cansados e tiram um cochilo. Depois acordam, almoçam e é um dia totalmente atípico, porque eles comem em horários diferentes, de tarde, depois que acordam. Eles têm seletividade alimentar, só comem duas coisas, que são arroz com calabresa ou macarrão sem nada. Só isso, só comem isso. Aí, comem biscoito de polvilho... antes comiam bolacha de wafer de morango, agora não estão comendo mais. (Participante A).

 

Agora ele tá na fase de não querer comer muito, tá bem seletivo. Só anda querendo comer macarrão com molho branco...pra ajudar ainda, aí, se não fizer, ele não come outra coisa. Ele não quer mais comer arroz e feijão, isso já faz um mês que ele não quer mais comer arroz e feijão de jeito nenhum. Ele é de época, tem época que ele cisma de comer certo alimento e come até enjoar (Participante B).

 

O almoço dele é só macarrão, não come arroz, não come carne, nada. Só sopa de macarrão e miojo, miojo e miojo e sou eu que dou na boca senão ele come de uma vez só (Participante C).

 

Uma das crianças dependia da mãe para ser alimentada e enfrentava dificuldades para aceitar novos alimentos, além de demonstrar falta de controle dos impulsos durante as refeições. É comum que os pais enfrentem dificuldades para promover a independência em crianças com TEA, e tais desafios requerem a assistência de profissionais qualificados para compreender os processos de aprendizagem. Isso envolve a inclusão ativa da família como agente fundamental para estimular o desenvolvimento infantil (ANJOS; MORAIS, 2021; BELO; CAVALCANTE DA FONSECA, 2020).

As famílias compartilharam características comuns durante os momentos das refeições, e essas estão intrinsecamente ligadas à seletividade alimentar manifestada pelas crianças com TEA. A seletividade alimentar emergiu como uma fonte de inquietação para as mães, tanto devido à redução da variedade nutricional na dieta das crianças, quanto devido às limitadas opções para alimentação quando estão fora de casa ou quando os alimentos específicos não estão disponíveis no ambiente familiar. Um estudo conduzido pela Genial Care (2020) com famílias de crianças com TEA no contexto brasileiro constatou que, dentre os 542 participantes, 25% das crianças enfrentavam obstáculos em relação às atividades cotidianas, especialmente a alimentação.

Através de intervenções que proporcionam orientação aos pais e/ou cuidadores, com informações abrangentes sobre o transtorno e espaço para esclarecer dúvidas sobre o desenvolvimento da criança, é possível criar oportunidades acessíveis para esse tipo de apoio (BRASIL, 2021). Esse enfoque é especialmente pertinente no âmbito do tratamento multidisciplinar oferecido pelo CAPS investigado. Entretanto, é importante ressaltar que as participantes do estudo não mencionaram qualquer iniciativa nesse sentido, mesmo considerando períodos anteriores à pandemia.  

Para além das responsabilidades ligadas ao lar, as famílias enfrentavam uma série de desafios na gestão do dia a dia, sobretudo em situações envolvendo agressividade, elaboração de refeições específicas devido à seletividade alimentar, administração de medicamentos, limitações da criança em se alimentar de forma autônoma, obstáculos no percurso para as terapias e demandas constantes de uso de dispositivos eletrônicos. Essas demandas acumulativas contribuíam para o desgaste das relações familiares.

Tal desgaste nas relações familiares ocorre principalmente quando não há uma distribuição equitativa das responsabilidades parentais no contexto das famílias com crianças com deficiência, repercutindo em um enfraquecimento nas relações conjugais. Isso doi observado em estudos como os de Faw e Leustek (2015) e Kvarme et al., (2016).

Conforme apontado pelo National Institute for Health and Care Excellence - NICE (2021), as dificuldades cognitivas, de aprendizagem, linguagem e os problemas médicos, emocionais e comportamentais frequentemente associados ao TEA podem exercer um profundo impacto na qualidade de vida da própria criança, bem como dos familiares e/ou cuidadores envolvidos.

Entre os desafios mais frequentemente mencionados, encontram-se obstáculos na interpretação da comunicação de terceiros, abrangendo a compreensão de suas intenções, sentimentos e pontos de vista. Adicionalmente, é comum enfrentar questões relacionadas ao sono e à alimentação, assim como problemas de saúde mental, tais como ansiedade, depressão e dificuldades de concentração, nesse contexto familiar. Comportamentos autodestrutivos e agressivos também fazem parte dos desafios enfrentados por indivíduos com TEA e seus familiares (NICE, 2021).

Frente à complexidade do ambiente familiar no qual estão inseridas as crianças com TEA, torna-se imperativa a implementação continuada de intervenções psicossociais no âmbito do sistema de saúde pública. Essas intervenções devem ser caracterizadas pela abordagem interdisciplinar, uma vez que é crucial abordar as diversas dificuldades que frequentemente impactam o desenvolvimento global das crianças no espectro do autismo (FONSECA et al., 2019).

Quando indagadas sobre a matrícula e o acompanhamento das atividades escolares pelas crianças, inclusive na modalidade digital, as crianças estavam devidamente matriculadas, porém somente uma delas estava participando das atividades disponibilizadas pela escola, não acompanhando, no entanto, os conteúdos ministrados nas aulas online. Outra consideração significativa no âmbito educacional diz respeito à ausência de acompanhamento por um professor auxiliar, encarregado de ajustar o currículo escolar de acordo com as necessidades da criança com deficiência. Isso resultou em consequências negativas para o progresso das habilidades sociocognitivas, que são essenciais para o desenvolvimento infantil. Em relação a esse ponto, segue o relato:

 

Não anda acompanhando as aulas online, não. É difícil até para os meus maiores, né? Imagina pra ele. Ele faz as atividades no contraturno, ou depois, mas nunca na hora que tá acontecendo, no horário da aula. Ainda mais agora que ele tá sem a professora auxiliar de apoio, porque a que tinha, saiu, né? Então, quando era outra professora, eram mais próximos, ela mandava tarefas dele, mandava as coisas pra ele, mas como ele tá sem auxiliar de sala, e tá fazendo bem pouco, eu preciso ficar em cima (Participante B).

 

As dificuldades frequentemente enfrentadas no cuidado de crianças com deficiências, aliadas aos esforços para assegurar os direitos desses filhos constituem elementos que aumentam o risco de problemas de saúde mental, especialmente para a principal cuidadora. A constante busca por atender às demandas específicas dessas crianças, juntamente com as pressões correspondentes, resulta em sobrecarga, impactando a qualidade de vida desse grupo (FAW; LEUSTEK, 2015).

As implicações no desenvolvimento físico e psicológico requerem uma abordagem focada dos gestores e profissionais de saúde e educação para mitigar as dificuldades enfrentadas pelas famílias, especialmente as analisadas neste estudo. Estas mães atuam como principais cuidadoras das crianças com TEA, mas enfrentam a carência e interrupção do apoio das políticas públicas. Portanto, é essencial direcionar esforços para oferecer um suporte eficaz a essas famílias (PEREIRA; BORDINI; ZAPPITELLI, 2017).

No caso da Participante B, a falta de participação nas aulas online e a ausência de um professor auxiliar foram atenuadas pela participação ativa da mãe, demonstrando que o interesse da criança e o envolvimento da mãe podem minimizar as consequências da pandemia na educação. No entanto, observou-se que as outras crianças não acompanhavam as aulas online nem realizavam atividades escolares em casa, seja devido às dificuldades da criança ou à falta de incentivo da responsável para obter os materiais necessários. Para um entendimento mais detalhado deste contexto, segue o relato:

 

Ele está matriculado, mas não tá tendo aula presencial e nem online, nada. Às vezes me ligam da escola para buscar material, mas não tenho ido buscar (Participante C).

 

Nesse contexto, a criança seria beneficiada ao ter acesso ao direito de receber atenção especializada por meio de um professor auxiliar. Isso permitiria priorizar o fortalecimento do vínculo afetivo na relação e facilitar a adaptação das atividades escolares, além de criar oportunidades para enriquecimento curricular com o apoio da mãe. Esse suporte poderia ser fornecido através de orientações práticas que levassem em consideração a rotina familiar.

No período vespertino, uma das famílias enfrentou desafios devido à agitação da criança, que constantemente buscava alimentos. Nesse caso específico, a mãe relatou diversas dificuldades enfrentadas pela criança em relação à rotina, à alimentação e ao uso do banheiro para necessidades fisiológicas. Ela inclusive ressaltou:

 

Ele passa bastante tempo andando, brincando com os dedos, assiste desenho. Quando dá fome, ele pega na minha mão e leva no que quer comer. Ele não toma água, só suco. Não aceita ir ao banheiro de jeito nenhum, já comprei até troninho, assento pro vaso e ele não aceita de jeito nenhum, não aceita ir ao banheiro. Quando ele fica contrariado, ele fica nervoso e avança em mim. Daí eu tento controlar ele (Participante C).

 

As mães compartilharam que no final da tarde e início da noite apenas duas crianças realizavam soneca durante a tarde. Uma mãe expressou sobrecarga, devido à agitação da criança com TEA, além das responsabilidades com os outros filhos e a casa. Isso sublinha a necessidade de apoio às mães de crianças com TEA, considerando as demandas extras que enfrentam, incluindo o impacto em sua saúde mental.

 

Ele não é de dormir não. Uma vez falei para a doutora se não tinha um remédio pra ele dormir de tarde e ela disse:não, mãe, mas ele dorme bem à noite. Aí, eu respondi: então, doutora, é que eu quero, eu tô precisando dormir também e se ele não dorme, eu não durmo (Participante B).

 

No que diz respeito à interação das crianças com TEA com seus pares de desenvolvimento, observou-se que essa interação estava restrita aos irmãos. Em uma situação específica, devido a viver apenas com a mãe e enfrentar desafios significativos na interação social, a criança tinha poucas oportunidades de se relacionar com outros adultos e crianças. O desenvolvimento das habilidades de interação social é de extrema importância e merece atenção especial dos profissionais dos CAPS. No entanto, as participantes deste estudo não receberam assistência, nem mesmo de forma remota, para lidar com essa dificuldade.

 

Às vezes eu tento, eu tento, assim...ele conviver com outras pessoas, mas ele não gosta. Ele gosta de ficar aqui em casa no cantinho dele, não brinca com nenhum brinquedo, não gosta de nada, tudo o que você vai dar, ele não gosta (Participante C).  

 

Além das dificuldades de interação social inerentes ao espectro do autismo, existem outros fatores que contribuem para a restrição social das crianças com deficiência. Entre esses fatores, destaca-se o estigma social e os preconceitos enfrentados por pessoas com deficiência e suas famílias, em conformidade com os padrões de aceitação social (FAW; LEUSTEK, 2015; JORDAN; LORD et al., 2021).

Situações que levam à restrição do convívio social da criança e/ou de seus familiares estão relacionadas ao tempo significativo que é necessário para atender às diversas necessidades do filho, à falta de apoio da comunidade ou da família, à insegurança quanto aos comportamentos desafiadores da criança e à relutância em deixar a criança sob os cuidados de outras pessoas (FAW; LEUSTEK, 2015; PARK; CHUNG, 2015).

O filho da participante C, em comparação com os relatos de outras mães, aparentava ter o nível mais acentuado de comprometimento cognitivo. Aos oito anos de idade, não possuía desenvolvimento da fala e sua comunicação era rudimentar, exigindo assistência em todas as atividades do cotidiano, como alimentação, vestimenta e higiene, além de ainda usar fraldas.

Apesar desses desafios, a mãe mencionou que o filho demonstrava interesse em frequentar a escola, algo de grande importância para adquirir comportamentos adaptativos à rotina e interações sociais. Portanto, a afinidade dele com a escola deveria ser considerada como uma oportunidade de aprimorar habilidades cruciais para seu desenvolvimento psicossocial. No entanto, essa oportunidade não foi devidamente apoiada pelas políticas públicas atuais.

Durante a noite, todas as crianças eram medicadas para reduzir a ansiedade e facilitar o sono. No entanto, uma delas encontrava dificuldades para manter um sono contínuo, conforme demonstrado pelo relato:

 

E eu tenho que deitar com ele, porque não dorme sozinho, parece que tem que estar encostado em alguém. Ele tem sono muito agitado, por exemplo, acorda muito à noite e quando tem que chegar no sono pesado, parece que não chega no sono pesado. Ele dorme bem até meia noite, depois ele começa a se movimentar, senta, conversa, quer descer da cama (Participante A).

 

No que diz respeito aos padrões noturnos do filho, uma das participantes compartilhou outras dificuldades. Isso incluía a persistência do uso da mamadeira, embora o filho já tivesse 8 anos de idade. Além disso, ela mencionou o comportamento dos vizinhos, que costumavam tocar música alta nos fins de semana, o que afetava diretamente a qualidade do sono do filho.

 

Ele toma remédio de manhã e à noite, e ele tá mais calmo por conta dos remédios. Porque eu consegui tirar a mamadeira dele à noite, mas esses dias fui na farmácia, ele pegou uma mamadeira e eu não tive como dizer não pra ele. Antes de aumentar a medicação dele, ele dormia muito tarde, mesmo quando eu dava a medicação às 8h, ele ia dormir às 10-11 h ou meia noite. E aqui na rua que eu moro tem som muito alto, eu não escuto som alto, mas os vizinhos escuta. Quando eles faz isso final de semana, ele (o filho) não dorme, passa a noite inteira acordado, porque o barulho irrita e ele fica estressado (Participante C).

 

É de suma importância desenvolver ações coordenadas entre as equipes de saúde e educação nas áreas onde essas famílias residem, incluindo abordagens para facilitar a interação entre a família e o grupo social, visando aumentar a compreensão das particularidades do TEA, reduzir preconceitos e eliminar barreiras para a inclusão social (BRASIL, 2021; LORD et al., 2021).

As rotinas das mães, que envolvem intensos cuidados com crianças no espectro do autismo, podem ser aliviadas por meio do desenvolvimento contínuo de estratégias que minimizem os desafios relatados. No entanto, essa abordagem requer um comprometimento tanto com a criança quanto com a cuidadora, visando criar oportunidades que reduzam as adversidades enfrentadas na rotina familiar (CAVONIUS-RINTAHAKA et al., 2019; KAKOOZA-MWESIGE et al., 2021).

É necessário destacar a importância da assistência psicológica para as mães cuidadoras, a fim de promover a reflexão sobre seu papel social para além da maternidade de uma criança com TEA. Isso envolve o desenvolvimento e fortalecimento de vínculos sociais diversos, levando em consideração o risco de problemas de saúde mental quando todas as responsabilidades são concentradas em uma única pessoa (FADDA; CURY, 2019).

Devido às restrições sociais impostas pela pandemia, das quatro crianças com TEA, três delas estavam recebendo assistência de profissionais psicologia e fonoaudiologia. Além disso, uma delas estava recebendo apoio psicopedagógico por meio de oficinas em uma instituição não governamental. No entanto, foi observado que a criança que mais necessitava de um acompanhamento multidisciplinar não estava recebendo assistência em psicologia e fonoaudiologia, e também não estava envolvida em atividades escolares. Essa criança recebia atendimento apenas de um médico psiquiatra a cada três meses. A Participante C expressou suas preocupações em relação à falta desse acompanhamento multidisciplinar da seguinte forma:

 

No CAPS, ele tá só com o psiquiatra e estava com a fono, mas ela pegou Covid, viu? E não sei como vai ficar, como vão fazer. Antes da pandemia, fazia grupo com a fono, depois algumas sessões individuais. Ele tá precisando de fono, de ortopedista porque tá pisando torto. Mas na verdade, ele tinha consulta marcada, mas por causa da pandemia adiaram as consultas que ele tinha. Daí vou ter que esperar... e ele não usa máscara, não fica. Então, fica difícil sair com ele de casa (Participante C).

 

De modo geral, ficou evidente que todas as crianças foram significativamente impactadas pelas restrições ocasionadas pela pandemia. Aquelas que estavam em tratamento multidisciplinar experimentaram uma considerável redução no tempo das sessões terapêuticas. Isso ocorreu para que as instituições pudessem atender às demandas individuais e também para garantir a devida higienização dos espaços institucionais.

Além dos impactos da pandemia, nota-se uma escassez de instituições de suporte para indivíduos com TEA e suas famílias no município. Em um estudo sobre a distribuição de unidades de saúde que atendem pessoas no espectro do autismo, Mato Grosso do Sul conta com apenas 4 unidades públicas de tratamento multidisciplinar, em contraste com São Paulo, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, que oferecem 431, 39 e 35 instituições, respectivamente (PORTOLESE et al., 2017).

Compreender que a promoção das habilidades familiares exige uma colaboração efetiva entre a família, especialmente a cuidadora principal, e os profissionais envolvidos no cuidado da criança com TEA é fundamental. Juntos, devem desenvolver estratégias para abordar desafios que afetam o desenvolvimento infantil e o bem-estar familiar. O enfoque na unidade familiar é fundamental para adquirir conhecimentos sobre o TEA e habilidades para lidar com dificuldades, promovendo o desenvolvimento psicossocial tanto da criança quanto da família (CAVONIUS-RINTAHAKA et al., 2019; KAKOOZA-MWESIGE et al., 2021; SALGADO-CACHO; JIMÉNEZ; RIOS-RODRIGUES, 2022; WEISSHEIMER et al., 2020).

Reconhecer a relevância da atuação familiar e que a convivência frequente com a criança acarreta desafios que podem sobrecarregar a cuidadora principal é vital. No entanto, quando as responsabilidades são compartilhadas com redes de apoio formal e informal, essa situação pode se transformar em um recurso valioso para a expansão do desenvolvimento infantil (CORRÊA; QUEIROZ, 2017).

Outro aspecto relevante sobre o convívio constante é o fato de que proporciona uma compreensão mais profunda das características individuais da criança, o que se revela extremamente útil para informar as equipes de saúde e os educadores. Além disso, esse convívio intensivo contribui para fortalecer os laços afetivos com a criança, o que é essencial para seu desenvolvimento abrangente.

É importante destacar que, durante a pandemia de COVID-19, esses benefícios do convívio constante tornaram-se ainda mais cruciais. A falta de acesso a serviços de apoio e o isolamento exacerbaram os desafios enfrentados pelas mães cuidadoras. Faz-se necessário reconhecer a importância de uma assistência qualificada para as mães e cuidadoras de crianças com TEA a fim de contribuir com oportunidades significativas para o desenvolvimento das habilidades infantis. No entanto, é lamentável que as participantes da pesquisa tenham sido negligenciadas pelas políticas públicas de saúde, especialmente por parte do CAPS.

Esta pesquisa abordou os desafios das mães cuidadoras de crianças com TEA durante a pandemia de COVID-19. A relevância reside na falta de estudos detalhados sobre o impacto da pandemia e o acesso a serviços de apoio. Os relatos revelaram complexidades, orientando futuras intervenções e políticas de saúde e educação. Apesar de limitações, como uma amostra geográfica restrita e uma possível falta de abordagem completa das perspectivas das crianças com TEA, enfatiza a necessidade de abordagens interdisciplinares e políticas sensíveis para o bem-estar das famílias e o desenvolvimento das crianças com TEA.Parte superior do formulário

 

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Considerações finais

Destacamos os desafios enfrentados pelas mães que cuidam de crianças com TEA que emergiram de narrativas profundas e detalhadas. A rotina dessas mães é extraordinariamente complexa, abrangendo desde as dificuldades de acesso a terapias multidisciplinares até a gestão dos desafios alimentares e comportamentais das crianças. Além disso, a falta de apoio das políticas públicas é exacerbada pela escassez de recursos e pela inadequação das estruturas disponíveis.

A pandemia de COVID-19 intensificou consideravelmente esses desafios, com acesso limitado a tratamentos, interrupção de terapias e adaptações para o ensino remoto. Nesse contexto, a assistência multidisciplinar, especialmente a psicológica, torna-se crucial para preservar a saúde mental das mães.

No entanto, é notável a resiliência das mães, que buscam alternativas e adaptam estratégias para atender às necessidades de suas crianças. A dedicação ao cuidado integral é um testemunho do profundo amor e comprometimento dessas mães. Para melhorar as condições de vida dessas famílias, é imperativo um enfoque interdisciplinar e uma rede de apoio mais robusta e acessível. Capacitar as mães, educar o público sobre o TEA e aprimorar a qualificação dos profissionais de saúde e educação são passos essenciais.

Em síntese, este estudo enfatiza a necessidade de uma abordagem compassiva e abrangente para apoiar as famílias que enfrentam os desafios do TEA. As narrativas destacam a complexidade de suas realidades e a importância de políticas públicas eficazes, serviços de saúde acessíveis e intervenções que considerem o bem-estar de todos. Essa colaboração interdisciplinar é essencial para criar um ambiente no qual as crianças com TEA alcancem seu potencial máximo, e suas cuidadoras encontrem o apoio necessário.

Contudo, é crucial reconhecer as limitações do presente estudo devem ser consideradas ao interpretar e aplicar seus resultados. O foco exclusivo em mães de crianças com TEA atendidas em um Centro de Atenção Psicossocial específico impõe restrições à generalização dos achados para outras populações. Adicionalmente, a realização da pesquisa durante a pandemia de COVID-19 introduz um componente excepcional às experiências das mães, potencialmente influenciando os resultados de maneira singular e, consequentemente, limitando a aplicabilidade desses resultados em contextos normais. Essas considerações ressaltam a necessidade de cautela ao extrapolar as conclusões deste estudo e destacam a importância de investigações futuras que abordem essas limitações para enriquecer ainda mais a compreensão da dinâmica familiar no contexto desafiador do TEA.

 


 

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