Inclusão Educacional no estado do Piauí: um olhar a partir da Teoria Histórico Cultural

 

Educational Inclusion in the State of Piauí: a view from the Cultural Historical Theory

 

La inclusión educativa en el estado de Piauí: una mirada desde la Teoría Histórico Cultural

 

Lauro Araújo Mota

Universidade Federal do Piauí, Teresina, PI, Brasil

lauro.mota@ufpi.edu.br

 

Recebido em 22 de agosto de 2023

Aprovado em 25 de novembro de 2023

Publicado em 14 de dezembro de 2023

 

RESUMO

A produção na área da educação especial Brasil vem sendo ampliada de maneira significativa nas últimas três décadas em virtudes dos avanços nas políticas educacionais e no reconhecimento ao direito a educação das pessoas com deficiência contrastando com os avanços das reformas neoliberais e as políticas privatistas que ameaçam a educação brasileira. Desse modo, o presente estudo se caracteriza como sendo de natureza qualitativa por meio de uma pesquisa documental e bibliográfica das produções realizadas no estado do Piauí sobre as temáticas da educação especial e inclusiva e que referenciem a Teoria Histórico Cultural, tanto na relação com a Pedagogia Histórico Crítica quanto com relação à Psicologia Histórico Cultural com foco nos estudos da Defectologia de Vigotski como matriz teórica, epistemológica e metodológica. Os resultados indicam que apesar de um número considerável de trabalhos na área estudada fazendo uso dos referenciais Vigotskianos nenhum deles fazem referência aos textos da defectologia que exploram os aspectos do desenvolvimento e da escolarização das pessoas com deficiência de maneira mais específica.

Palavras-chave: Educação Especial; Educação Inclusiva; Teoria Histórico Cultural.

 

ABSTRACT

Productions in the area of ​​special education in Brazil have been significantly expanded in the last three decades due to advances in educational policies and recognition of the right to education of people with disabilities, contrasting with the advances of neoliberal reforms and privatist policies that threaten the Brazilian education. In this way, the present study is characterized as being of a qualitative nature through a documental and bibliographical research of the productions carried out in the state of Piauí on the themes of special and inclusive education and that refer to the Historical Cultural Theory, both in relation to Pedagogy History Critical about Psychology Historical Cultural with a focus on studies of Vigotski's Defectology as a theoretical, epistemological and methodological matrix. The results indicate that despite a considerable number of works in the studied area making use of Vigotskian references, none of them make reference to defectology texts that explore aspects of the development and schooling of people with disabilities in a more specific way.
Keywords: Special education; Inclusive education; Cultural Historical Theory.

 

RESUMEN

Las producciones en el área de la educación especial en Brasil se han ampliado significativamente en las últimas tres décadas debido a los avances en las políticas educativas y al reconocimiento del derecho a la educación de las personas con discapacidad, en contraste con los avances de las reformas neoliberales y las políticas privatistas que amenazan la educación brasileña. De esta manera, el presente estudio se caracteriza por ser de carácter cualitativo a través de una investigación documental y bibliográfica de las producciones realizadas en el estado de Piauí sobre los temas de la educación especial e inclusiva y que se refieren a la Teoría Histórico Cultural, tanto en relación con la Pedagogía Historia Crítica sobre la Psicología Histórico Cultural con foco en los estudios de la Defectología de Vigotski como matriz teórica, epistemológica y metodológica. Los resultados indican que a pesar de un número considerable de trabajos en el área de estudio que hacen uso de referencias vigotskianas, ninguno de ellos hacen referencia a textos de defectología que exploran aspectos del desarrollo y la escolarización de personas con discapacidad de manera más específica.

Palabras clave: Educación especial; Educación inclusiva; Teoría Histórico Cultural.

 

Introdução

O movimento em prol da inclusão escolar das pessoas com deficiência é algo bem recente na história da educação brasileira remontando a década de 1990. Período marcado por eventos em âmbito nacional e internacional que direcionaram as políticas públicas que orientam a educação brasileira a partir desse período.

O marco mundial do movimento inclusivo pode ser considerado como o encontro ocorrido em Salamanca - Espanha que deu origem ao documento: Declaração de Salamanca: sobre princípios e práticas de educação inclusiva (1994), no qual o Brasil é um dos signatários e influenciou na promulgação da primeira Política Nacional da Educação Especial (1994) ainda de caráter integracionista e, posteriormente, com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (2008). Esses marcos legais são importantes na configuração e na defesa da educação como direito público, gratuito, subjetivo a ser mantido pelo poder público a todos os brasileiros, indistintamente.

Os avanços reais no sentido da garantia da escolarização básica obrigatória no Brasil puderam ser sentidos de maneira mais efetiva a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988 (SANTOS, OLIVEIRA NETA, ANACHE, 2023) e posteriormente, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional - LDB nº 9.394/96 que assegurou acesso, permanência e sucesso como princípios norteadores a serem alcançados pelos sistemas de ensino.

Avanços consideráveis na escolarização das pessoas com desenvolvimento atípico podem ser constatados no aumento significativo de matriculadas desses alunos nas classes comuns de ensino (SANTOS, FALCÃO, 2020) e que nem sempre corresponde aos outros pilares e princípios preconizados pela LDB que garantem a permanência e o sucesso com aprendizagem e as possibilidades de desenvolvimento das máximas potencialidades humanas através da aquisição dos conhecimentos e das experiências produzidos historicamente pela humanidade e sistematizado nos conteúdos escolares.

Diante desse breve cenário histórico da educação brasileira o presente trabalho teve como objetivo discutir a inclusão escolar no Brasil e refletir sobre as produções acadêmicas realizadas no estado do Piauí e que foram desenvolvidas nos diferentes programas de Pós-Graduação da Universidade Federal do Piauí.

A metodologia utilizada na investigação foi à pesquisa documental, de natureza qualitativa realizada na biblioteca de tese e dissertações da instituição a partir dos descritores: “Educação Especial” e “Educação Inclusiva”, visando identificar os trabalhos produzidos no estado que pudessem ampliar o olhar para a educação destinada as pessoas com deficiência como direito público no diálogo entre os fundamentos e referenciais da Teoria Histórico Cultural proposto por Vigotski e seus colaboradores.

 

Educação inclusiva como direito à educação

 A inclusão escolar não diz respeito somente às pessoas com algum tipo de deficiência que busca o direito à escola comum. Pode-se pensar a inclusão escolar como sendo um movimento político, educacional e social que envolve todos os sujeitos que de alguma forma foram, são ou estão excluídos não apenas das instituições escolares mas também de outras instâncias da vida social e principalmente das experiências e do conhecimento produzido historicamente pela humanidade.

Vale ressaltar que o direito à educação escolar no Brasil é algo muito recente. Possuir uma legislação que assegura ensino fundamental de 9 anos a população brasileira só foi possível após 496 anos depois do “achamento” do Brasil. Até então, a população se via diante da desobrigação do poder público brasileiro em garantir o acesso ao patrimônio cultural produzido pela humanidade e sistematizado através das disciplinas escolares, sendo restrito a uma pequena parcela da população.

A educação oferecida para partes dos brasileiros, muitas vezes, reduzia-se, quando existia, a escolas de primeiras letras que englobava as habilidades de ler, escrever e contar. Vivia-se uma oscilação entre uma educação idealizada (desejada por grande parte da população, mas a ser financiada com recursos próprios) e requerida pela população e uma educação enquanto privilégio das elites (e mantida pelo poder público), marcas ainda dos processos de colonização e escravidão (CURY, 2002; MOTA, 2021).

A colonização, a escravidão e o racismo foram os três processos sociais primordiais de socialização e constituição do povo brasileiro e que deixou marcas profundas na organização social, política, econômica e principalmente cultural do país influenciando nos modos de subjetivação e de constituição social (SOUZA, 2021).

 Esses três grandes processos perpassaram e perpassam as relações sociais e constituíram/constituem os modos de sentir, pensar e se relacionar do povo brasileiro, entendidos a partir da Teoria Histórica Cultural como modos de constituição humana e de possibilidades de ação no mundo ancorados na história, na cultura e nas relações sociais (SMOLKA, FONTANA, LAPLANE, CRUZ, 1994; SMOLKA, MAGIOLINO, 2018).

São essas marcas históricas e culturais que perpassam a educação destinada às pessoas com deficiência no Brasil. Refletem e refratam as condições do tempo histórico e a consciência da sociedade da época, impregnada por ideais religiosos e morais sobre a deficiência e a pessoa afetada por ela. O ideário pedagógico predominante durante muitos séculos foi influenciado por concepções limitadas e conservadoras sobre o desenvolvimento e as potencialidades do ser humano afetado pela deficiência, bem como as possibilidades de aprender e conviver socialmente.

Faz-se relevante ressaltar que a história da educação especial no Brasil é marcada por um total desinteresse do poder público no período colonial, por primeiras iniciativas caritativas e benevolentes e de algumas ações isoladas no período imperial, como a criação do Imperial Instituto dos Surdos Mudos (Atual INES), do Imperial Instituto dos Cegos (Atual Instituto Benjamim Constant), até as ações mais pontuais no período republicado com escolas e classes especiais antes do movimento inclusivo que vem se vivenciando a partir da década de 1990 (MAZZOTA, 2005; JANUZZI; 2004; MAGALHÃES; 2002).

Somente no final do século XX é que começam a mudar efetivamente os discursos e as práticas escolares propriamente ditas. O atendimento direcionado as pessoas com deficiência é marcado por enfoques que são de caráter assistencial, clínico e de reabilitação (GARCIA e MICHELS, 2018).

A segregação, a marginalização e a exclusão são resquícios, também, dos processos de exploração e colonização do povo brasileiro, principalmente da população pobre, negra, deficiente e indígena e que se materializou na perspectiva de uma educação especial segregada em escolas e classes especiais, quando existia. De acordo Baptista (2019) relação entre continuidade e ruptura são as marcas das politicas públicas de educação especial no Brasil com predomínio da filantropia e do assistencialismo.

A ideia de educação especial como política pública tem como marco referencial a criação em 1973 do Centro Nacional de Educação Especial que tinha como objetivo ampliar e melhorar o atendimento direcionado a essa clientela no país (GARCIA, MICHELS, 2018).

Patto (2008) refletindo sobre as políticas atuais de inclusão escolar pontua a existência do “uso pandêmico da palavra inclusão” uma vez que se fala de inclusão no momento em que o capitalismo mais acelera os seus mecanismos de exclusão social, produzindo novos ritmos e nos formas de exclusão. A inclusão que se defende segue as orientações do modelo neoliberal. É uma “[...] inclusão precária e instável,  marginal. Não são políticas de inclusão (PATTO, 2008, p. 12). A crítica da autora é sobre a existência de práticas pobres de inclusão para os pobres.

Nesse sentido, Libâneo (2012) faz uma importante reflexão ao problematizar o dualismo perverso que permeia a escola pública brasileira, apontando a existência de uma escola do conhecimento para os ricos, com acesso ao patrimônio cultural produzido pela humanidade através das disciplinas escolares e uma escola do acolhimento social e da socialização para os pobres.

Importante salientar que nesse cenário apresentado por Libâneo (2012) as escolas públicas que possibilitam o acesso aos conhecimentos artísticos, estéticos, filosóficos, das ciências da natureza e social mais elaborados da cultura geralmente encontram-se concentradas em espaços sociais e geográficos já favorecidos por outros equipamentos e instituições sociais.

Com a reforma do ensino médio e seus itinerários formativos bem como a proposição de ensino em tempo integral, parte dos alunos pobres estão sendo, novamente, empurrados para fora da escola ou recebendo conhecimentos simplificados e reduzidos que colaboram significativamente para a exclusão social, tanto dos alunos sem deficiência, mas principalmente dos alunos com algum tipo de deficiência.

O que se constata é um descompasso entre as garantias legais propostas na legislação educacional e nas políticas públicas e as práticas desenvolvidas no chão da escola. Práticas como as avaliações externas em larga escala que padronizam o ensino, estimulam a meritocracia, a competitividade, que negam a diversidades presente no processo de ensino e aprendizagem não favorecem a superação de concepções organicistas e biologizantes acerca da compreensão da natureza social do desenvolvimento humano e que interfere diretamente nos processos de aprendizagem organizados para os alunos com deficiência na escola comum (SANTOS, FALCÃO, 2020).

Verifica-se ainda, como princípios norteadores na construção de algumas propostas pedagógicas uma concepção de desenvolvimento humano ancorada fortemente nos aspectos biológicos e maturacionais da espécie. Uma concepção de desenvolvimento reducionista, evolucionista, linear onde o desenvolvimento ontogenético repetiria o desenvolvimento filogenético da espécie humana, não colaborando para uma reestruturação da escola de modo em que ela seja capaz de atender as necessidades dos alunos e promover o desenvolvimento através da aquisição das experiências sociais historicamente acumuladas através dos conteúdos escolares e dos conceitos científicos.

 

Metodologia

A metodologia utilizada nessa investigação se caracteriza como sendo de natureza qualitativa por meio da análise documental e bibliográfica das produções realizadas no estado do Piauí e que se encontram no repositório institucional da Universidade Federal do Piauí.

A pesquisa qualitativa tem como característica a busca por explicação dos fenômenos estudados, suas significações e relações, buscando compreender a constituição dos fenômenos em estudos (LUDKE, ANDRÉ, 1986). Para Vigotski (2007) as pesquisas devem ultrapassar uma dimensão puramente descritiva e assumirem uma posição analítico-interpretativa da realidade em estudo.

A análise documental é um tipo de investigação onde o foco são documentos que ainda não passaram por outro tipo de análise constituindo-se, portanto, como fontes primárias de investigação. Esse tipo de pesquisa oferece a vantagem de registro da história de maneira mais fiel e fidedigna possível. Não sofreu interpretação anterior e por isso, não apresenta tanta interferência quando de sua leitura e análise.

 A análise dos trabalhos buscou identificar, nos resumos investigados, aquelas produções que fizessem menção ao referencial da Teoria Histórico Cultural e seus desdobramentos - Psicologia Histórico Cultural e a Pedagogia Histórico Crítica, mais especificamente. Desse modo, foi realizado uma consulta ao repositório institucional da UFPI nos meses de julho e agosto de 2023 com os seguintes descritores: “Educação especial”, e “Educação Inclusiva” com o objetivo de encontrar  trabalhos que fizessem referência  a Teoria Histórico Cultural e especificamente aos textos referentes a Defectologia elaborados por Vigotski e que abordam os processos de aprendizagem, desenvolvimento, personalidade, etc., das pessoas com deficiência.

 

Resultados e discussão

A análise dos documentos (teses e dissertações) se deu a partir da leitura dos resumos de todos os trabalhos que foram encontrados no repositório para os descritores: “educação especial” e “educação Inclusiva”. Com o descritor “Educação Especial” foram encontrados 20 trabalhos e com o descritor “Educação inclusiva” foram encontrados 12 trabalhos, que abordam diferentes aspectos da área da educação especial e que foram organizados em categorias de acordo com similitudes das temáticas encontradas. Vale ressaltar que, um dos trabalhos aparece nos dois descritores e outro trabalho aparece duas vezes no mesmo descritor, alterando assim o resultado real encontrado.

1- Políticas públicas inclusivas: Políticas inclusivas em escolas privadas; Políticas de acessibilidade no ensino superior, Politica de Inclusão escolar; Impacto da PNEE no ensino superior; Inclusão na educação profissional e tecnológica; Política de inclusão para alunos surdos.

2- Prática pedagógica e atendimento educacional especializado: Prática de professores de língua portuguesa para alunos surdos, escolarização de surdos; Prática Pedagógica na Deficiência Intelectual; Acompanhamento terapêutico; significação de professores acerca dos alunos com NEE; Avaliação de alunos com síndrome de Down; comunicação de alunos com paralisia cerebral; Educação inclusiva na docência superior; processamento sensorial e aprendizagem de crianças com TEA.

3- Metodologias e recurso de inclusão: Tecnologia assistiva para o atendimento de alunos autistas; Tecnologia assistiva na sala de atendimento educacional especializado; Escovas automáticas para crianças e adolescentes com síndrome de down; Uso de software gamificado de matemática para crianças com TEA; Comunicação de alunos com paralisia cerebral a partir da comunicação alternativa que apareceu duas vezes.

A leitura dos resumos apresentou o seguinte cenário: a maioria dos trabalhos fez menção às políticas educacionais no Brasil e a relação com o direito à educação dos alunos com deficiência. Em apenas 8 trabalhos estavam explícitos o referencial teórico utilizados na investigação. Na sua grande maioria os resumos não apresentavam todos os elementos necessários para identificar quais os autores de referência haviam sido consultados, quais as metodologias e técnicas de construção dos dados formam utilizadas na discussão da temática da inclusão e para a análise do material empírico. Vigotski e a Psicologia Histórico Cultural apareceram referenciados em apenas um único trabalho (LIMA, 2017).

Não foram encontradas referências a Pedagogia Histórico Crítica e nem a outras abordagens que se desenvolveram a partir desse referencial teórico metodológico como a Psicologia Sócio-Histórica, por exemplo, e que tem como base teórico metodológica o materialismo histórico dialético. Fato esse que chama atenção uma vez que somente o Programa de Pós-Graduação em Educação da UFPI possui dois núcleos específicos que realizam pesquisas nessa área de investigação: o Núcleo de Estudos em Educação Especial e Inclusiva (NEESPI) e o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Educação na Psicologia Sócio-Histórica (NEPSH).  

Com base nos achados pode-se inferir que a falta de trabalhos com foco nos estudos Defectológicos de Vigotski pode está relacionada a dois fatores específicos: 1- Pouca circulação desses textos do autor no estado, com maior divulgação de outras obras e teses centrais já conhecidos pelo grande público como também foi constatado por Cenci (2015) num estudo realizado nos textos publicado nos GTs 15 e 20 da ANPED; 2- Dificuldades dos autores na elaboração de resumos de trabalhos acadêmico, não informando todos os elementos no resumo e impossibilitando que o trabalho seja identificado nas bases de busca, como também constatou Mota (2019).

O trabalho de Lima (2017) que se referiu a Psicologia Histórico Cultural e ao materialismo histórico dialético foi o único encontrado dentro dos critérios estabelecidos para esse estudo. Aborda a atribuição de sentidos e significados que uma professora do ensino médio fez sobre a presença de alunos com Necessidades Educacionais Especiais na sala de aula. Utiliza como referencial metodológico os núcleos de significação propostos inicialmente por Aguiar e Ozella do Grupo de Psicologia Sócio-Histórica da PUC-SP que procuram desenvolver a Teoria Histórico Cultural de Vigotski considerando a realidade brasileira num diálogo também com a Psicologia Social.

A seguir, apresentamos algumas ideias, princípios e fundamentos do conjunto de textos denominados: Fundamentos da Defectologia que foram construídos por Vigotski no período entre 1924 e 1931 e foram organizados no Tomo V das obras escolhidas (VIGOTSKI, 1989; 2013)[1]. Nesse conjunto de textos o autor discute a questão das deficiências física, mental, sensorial, os problemas de desenvolvimento e especificamente a educação destinada as pessoas com deficiência principalmente nas escolas especiais da URSS pós revolução de 1917.

Parte das teses centrais e das ideias apontadas por Vigotski em seus estudos e elaborado para um outro contexto e outros sujeitos da Rússia revolucionária ainda mantém-se atuais[2] e podem inspirar a pesquisa e o trabalho pedagógico na escolas brasileiras (MOTA, 2019; 2021; GÓES, 2002; LACERDA, 1996) no século XXI e num período pós pandemia.

Inspiram a ação de profissionais que trabalham com pessoas com desenvolvimento atípico e enfatizam o papel da escolarização, das relações sociais e do coletivo no desenvolvimento das funções psicológica superiores tipicamente humanas e que por sua vez não emergem de forma espontânea na pessoa.

Vigotski argumenta em vários dos textos que as leis e os princípios do desenvolvimento são os mesmos tanto para as pessoas sem deficiência quanto para as pessoas com deficiência e que a criança é antes de tudo uma pessoa, antes de ser uma pessoa com deficiência. Esses mesmos princípios também são ressaltados por eles quando se refere à escolarização da criança com deficiência. A escola deve procurar ensinar a pessoa e não a pessoa com deficiência.

De acordo com seus postulados, o desenvolvimento não pode ser concebido como um processo puramente evolucionista e linear dependente da maturação orgânica e do amadurecimento do sistema nervoso. Para Vigotski a concepção de desenvolvimento compreende os aspectos históricos culturais e é marcado por crise, rupturas, pontos de viragem que alteram significativamente as possiblidades biológicas de funcionamento psicológico, de atuação no mundo e de participação na cultura.

Desse modo, o autor não nega a importância da maturação do sistema nervoso, a existência de um substrato material do funcionamento psicológico humano (cérebro) e nem reduz o papel da biologia no desenvolvimento da espécie humana como espécie animal. No entanto realça que somente os aspectos biológicos não são suficientes para a constituição das características tipicamente humanas e para os comportamentos mais sofisticados da espécie que são dependentes das formas históricas e de práticas culturais como a leitura, a escrita, capacidade de operação aritmética, desenho, etc., mediados por signos e aquelas atividades mediadas por instrumentos que só podem emergir no sujeito caso existam no grupo cultural em que a pessoa está inserida.

Partindo da perspectiva histórico cultural de desenvolvimento humano uma pessoa que nasce ou adquira alguma deficiência tempranamente ou ao longo do ciclo de vida não fica impossibilitada de desenvolver uma função que esteja presente no grupo cultural, como ler ou escrever, por exemplo. A potencialidade de aprendizagem é uma capacidade presente na espécie humana e não desenvolver, adquirir esta ou aquela habilidade cultural está muito mais relacionado aos fatores sociais do que biológicos.

É justamente a ambiência cultural onde a pessoa está inserida e as relações que ela estabelece com os outros e com as práticas do mundo da cultura que vão influenciar e às vezes determinar os rumos do desenvolvimento da pessoa com deficiência. Sobre questão da relação da pessoa com meio Vigotski desenvolveu de maneira mais aprofundada num conjunto de aulas ministradas para professores nos anos de 1933-1934. A quarta aula especificamente trata dessa relação da criança com o meio e aborda de maneira mais detalhada o conceito de perijivanie que o autor começou a desenvolver na sua obra mas não teve tempo de aprofundar. A perijivanie trata justamente de como as experiências vivenciadas pela pessoa no seu meio social são refletidas e refratadas na personalidade. Um conceito importante para compreender como a pessoa com deficiência vivencia sua condição e as relações com as pessoas no seu meio social e na escola especificamente (DAINEZ, SMOLKA, SOUZA, 2022).

Nesse sentido, as possibilidades de constituição humana e operação no mundo estão enraizadas na cultura e nas condições materiais e simbólicas oferecidas por cada grupo social. De acordo com Vigotski o problema para a pessoa não é a deficiência em si (primária, de causa orgânica), mas como o meio social significa a pessoa afetada pela deficiência e oferece, ou não, as possibilidades de desenvolvimento e participação na cultura. A deficiência modifica a relação da pessoa com meio social e rebaixa sua condição nas relações sociais. Provoca uma “luxação social” uma vez que os grupos culturais se ressentem das pessoas que não possuem uma constituição psicofisiológica típica.

Desse modo, o meio social, o âmbito das relações sociais interpessoais não apenas constituem o ser humano, mas representa o espaço de compensação social da deficiência que ocorre quando a cultura cria meios artificiais que possibilitam outros modos possíveis de constituição humana como, por exemplo, falar com as mãos no caso das pessoas surdas usuárias da língua de sinais, por exemplo.

Outro aspecto importante nos textos defectológicos é o papel que a escolarização assume no desenvolvimento psicológico humano. Vigotski tece duras críticas à escola especial de sua época destinada as pessoas com deficiência intelectual afirmando que estas instituições que funcionavam na antiga URSS desenvolviam um trabalho pedagógico que enfatizava apenas as funções elementares, os aspectos sensoriais, atividades de discriminação de cheiros, cores, atividades do mundo concreto e que muitas das vezes infantilizava a pessoa com deficiência.

O trabalho pedagógico realizado por estas escolas especiais não possibilitava que os alunos com deficiência intelectual desenvolvessem as funções psicológicas superiores, o pensamento abstrato, a capacidade de generalização, o trabalho com os conceitos científicos e os aspectos mais elaborados do conhecimento humano sistematizado através das disciplinas escolares. Não se ensinava a ler, escrever, operar com aritmética, álgebra e outros elementos simbólicos da cultura humana.

No caso dos alunos cegos o que predominava na época era a ênfase no trabalho manual, na fabricação de artesanato e a pouca ênfase no aprendizado da escrita através do braile. Para os alunos surdos a escola oferecia o ensino da linguagem oral, artificial e distanciada da vida o que na maioria das vezes não era acessível a estes alunos devido ao grau de perda auditiva.

Desse modo, os desafios de pensar uma educação escolar inclusiva ancorada nos aportes da teoria Histórico Cultural proposta por Vigotski e seus colaboradores parte do princípio de que a aprendizagem funciona como um motor do desenvolvimento psíquico e que a aquisição dos conceitos possibilita o desenvolvimento das funções psicológicas superiores e um modo distinto de constituição e funcionamento psicológico. A pessoa com deficiência precisa ter garantidos não somente o direito a escolarização comum, mas principalmente as condições de aquisição do patrimônio cultural produzido pela humanidade através dos conhecimentos científicos, artístico e estéticos. Um desafio que ainda se faz necessário enfrentar no Brasil de maneira geral e no nordeste de maneira específica, no sertão semi-árido onde as condições materiais e sociais são mais desiguais, mas não impeditivas do desenvolvimento de todo o potencial humano presente na espécie.

 

Considerações

Os resultados do estudo documental indicam que apesar de existência de vários trabalhos acadêmicos produzidos no estado do Piauí nos últimos anos nas áreas de educação especial e educação inclusiva (foram encontrados ao todo 32 trabalhos), esses trabalhos não faziam referência nem a Psicologia Histórico Cultural e nem a Pedagogia Histórico crítica de maneira mais geral e nem aos textos defectológicos mais especificamente, objeto de estudo da investigação e que seria importantes elementos para a compreensão de como os conceitos desenvolvidos por Vigotski estão sendo disseminados na realidade piauiense e contribuindo com a melhoria da  prática pedagógica. Um aspecto que chama a atenção da praticamente inexistência de trabalhos encontrados diante da existência de duas linhas de pesquisa somente no Programa de Pós-Graduação em Educação e que seria um lócus por excelência de produção de conhecimentos na área de Educação Especial e Inclusiva

Os resumos consultados apresentam uma série de inconsistências que dificultam encontrar os elementos necessários para identificar o tipo de pesquisa realizada bem como outros elementos importante tais como o referencial teórico, os principais autores utilizados, a metodologia utilizada e os resultados encontrados. Apesar desses aspectos mais técnicos dos trabalhos consideramos positiva a variedade de temáticas abordadas nos trabalhos, a ênfase na prática pedagógica e na formação docente e a busca por metodologias e instrumentos que favoreçam a inclusão.

Retomando ao objetivo proposto para o estudo e com base nos indícios encontrados nos resumos é possível afirmar que ainda são pouco difundidos os textos defectológicos de Vigotski que abordam de maneiras mais sistematizadas os aspectos referentes aos processos de aprendizagem e desenvolvimento da pessoa com deficiência. Acredita-se que as ideias, princípios e leis propostos nos textos supracitados poderiam colaborar de forma positiva para a formação docente e a consequente melhoria na qualidade do atendimento oferecido aos alunos com deficiência no estado do Piauí nas escolas comuns e no atendimento pedagógico especializado desenvolvido nas Salas de Recursos Multifuncionais.

 

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Modalidade do artigo: Relato de pesquisa ( X )  Revisão de Literatura ( )

 



[1] As referências de Vigotski sobre a Defectologia serão feitas com base nas traduções dos textos cubano (1989) e espanhol (2013).

[2] É preciso considerar algumas modificações teóricas que ocorreram tendo em vista que Vigotski e seus colaboradores não tiveram acesso aos conhecimentos produzidos pela humanidade na atualidade.

 

 

 

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