Justiça curricular e Educação Especial no Currículo Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Território Catarinense (2019)

 

Curricular Justice and Special Education in the Basic Curriculum of Early Childhood Education and Elementary Education in the Territory of Santa Catarina (2019)

 

Justicia Curricular y Educación Especial en el Currículo Básico de Educación Infantil y Educación Básica en el Territorio de Santa Catarina (2019)

 

 

Juliane Bonin

Secretaria Municipal de Educação de Balneário Piçarras, Balneário Piçarras, SC, Brasil

juliane.bonink@yahoo.com.br

 

Andrea Soares Wuo

Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, SC, Brasil

awuo@furb.br

 

Cassia Ferri

Universidade Regional de Blumenau, Blumenau, SC, Brasil

cferri@furb.br

 

Recebido em 06 de dezembro de 2022

Aprovado em 23 de novembro de 2023

Publicado em 06 de dezembro de 2023

 

RESUMO

A Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva orienta o desenvolvimento de políticas educacionais desde a primeira década dos anos 2000 no Brasil. No Estado de Santa Catarina, o Currículo Base do Território Catarinense da Educação Infantil e do Ensino Fundamental, publicado em 2019, reafirma o caráter inclusivo da Educação Especial e destaca a justiça curricular como um de seus princípios. Este artigo tem por objetivo discutir a noção de justiça curricular e sua interlocução com a Educação Especial, no âmbito do Currículo Base do Território Catarinense (2019). A pesquisa, de abordagem qualitativa, teve como instrumento de produção de dados a pesquisa bibliográfica e documental. Os resultados mostram que a justiça curricular é um tema recente, havendo poucas pesquisas na área da educação, sobretudo da Educação Especial. A análise do Currículo Base do Território Catarinense evidenciou que a justiça curricular, mencionada apenas na seção voltada à Educação Especial do documento, aborda, para além da ideia de flexibilização curricular, uma perspectiva de currículo que se assenta em pressupostos de equidade, democracia e justiça social que podem contribuir para novas formas de pensar a Educação Especial.

Palavras-chave: Justiça curricular; Educação Especial; Educação inclusiva. 

 

 

ABSTRACT

Special education from the perspective of inclusive education hás guided the development of educational policies in Brazil since the first decade of the 2000s. In the State of Santa Catarina, the Base Curriculum of the Territory of Early Childhood Education and Elementary Education, published in 2019, reaffirms the inclusive character of Special Education and highlights curricular justice as one of its principles. This article aims to discuss the notion of curricular justice and its relationship with Special Education, within the scope of the Currículo Base do Território Catarinense (2019). The research, based on a qualitative approach, had bibliographical and documental research as data production instruments. The results show that there is a lack of educational research about curricular justice, especially in the area of Special Education. The analysis of the Currículo Base do Território Catarinense (2019) showed that curricular justice, mentioned only in the section dedicated to Special Education of the document, addresses, in addition to the Idea of ​​curricular flexibility, a curriculum perspective that is based on assumptions of equity, democracy and justice that can contribute to new ways of thinking Special Education.

Keywords: Curricular justice; Special Education; Inclusive education.

 

 

RESUMEN

La Educación Especial desde la perspectiva de la educación inclusiva ha orientado el desarrollo de las políticas educativas desde la primera década del 2000 en Brasil. En el Estado de Santa Catarina, el Currículo Base del Territorio de Educación Infantil y Educación Básica, publicado en 2019, reafirma el carácter inclusivo de la Educación Especial y destaca la equidad curricular como uno de sus principios. Este artículo tiene como objetivo discutir la noción de justicia curricular y su interlocución con la Educación Especial, en el ámbito del Currículo Base del Territorio Catarinense (2019). La investigación, con enfoque cualitativo, utilizó la investigación bibliográfica y documental como instrumento de producción de datos. Los resultados muestran que la justicia curricular es un tema reciente, con poca investigación en el área de la educación, especialmente la Educación Especial. El análisis del Currículo Base del Territorio Catarinense mostró que la justicia curricular, mencionada sólo en la sección dedicada a la Educación Especial del documento, aborda, además de la idea de flexibilidad curricular, una perspectiva curricular que se fundamenta en supuestos de equidad, democracia y justicia que puedan contribuir a nuevas formas de pensar la Educación Especial.

Palabras clave: Justicia curricular; Educación Especial; Educación inclusiva.


 

Introdução

A educação de pessoas com deficiência no Brasil esteve, ao longo de sua história, às margens do processo educacional regular. A partir da década de 1990, movimentos voltados aos direitos das pessoas com deficiência, em consonância com a publicação de documentos internacionais voltadas ao direito à educação para todos (UNESCO, 1990; 1994), contribuíram para a emergência de políticas educacionais inclusivas voltadas a esse público.

Em 2008, com a publicação da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (PNEEPEI), a Educação Especial assume seu caráter inclusivo, definindo-se como “modalidade transversal aos diferentes níveis e modalidades de ensino”, voltada ao atendimento de pessoas com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Diante da perspectiva inclusiva, a PNEEPEI assume a missão de promover o direito à educação de seu público-alvo específico, buscando garantir o acesso, a permanência, a aprendizagem e a participação de todos os estudantes (BRASIL, 2008).

As mudanças nas políticas educacionais nacionais demandam adequações no cenário das políticas regionais, estaduais e municipais. No Estado de Santa Catarina, observamos o processo de mudanças nas concepções que permeiam a educação por meio de suas diferentes versões das propostas curriculares. A primeira Proposta Curricular do Estado foi elaborada em 1991, seguida de atualizações nos anos de 1998, 2005 e 2014. 

Em 2019, a Secretaria do Governo do Estado de Santa Catarina lançou o Currículo Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Território Catarinense. Diferentemente das propostas curriculares anteriores, que apresentam o pensamento de estudiosos e profissionais da área da Educação do Estado de Santa Catarina, o Currículo Base do Território Catarinense, aprovado em 2019, foi embasado na Base Nacional Comum Curricular - BNCC, documento nacional, previsto na LDBEN de 1996 e no PNE de 2014.

Neste documento, especificamente no Capítulo 1, intitulado “A diversidade como princípio formativo na Educação Básica”, há uma seção - subtítulo 1.7 voltada à “Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva”. Composto por seis páginas, o texto faz uma contextualização histórica da Educação Especial no Brasil e os marcos legais que levaram à Educação Inclusiva. O documento concebe a Educação Especial como indissociável da Educação Básica, prevendo, como forma de garantia e de equidade ao acesso e à permanência dos sujeitos da Educação Especial, a justiça curricular, possibilidade de diferenciação curricular, propondo repertórios cada vez mais diferenciados para tornar o conhecimento acessível a todos.

Este artigo objetiva discutir a noção de justiça curricular e sua interlocução com a Educação Especial, no âmbito do Currículo Base do Território Catarinense (2019). Para tanto, realizamos uma pesquisa de abordagem qualitativa, bibliográfica e documental, buscando compreender, em primeiro lugar, as origens do conceito de justiça curricular e, em seguida, seus possíveis significados no Currículo Base do Território Catarinense (2019).

 

Método

Para responder ao objetivo da pesquisa, utilizamos como fonte de dados bibliográficos artigos, livros, teses e dissertações produzidos sobre justiça curricular, sobretudo aqueles que buscaram articulação entre a Educação Especial e a Educação Inclusiva. Para o levantamento da literatura, debruçamo-nos sobre aspectos relacionados inicialmente aos dois temas (justiça curricular e Educação Especial), restringindo ao período de 2010 a 2021.

O levantamento bibliográfico foi realizado em agosto de 2021, a partir de dois grupos de descritores distintos: “justiça curricular e educação inclusiva” e “justiça curricular, educação inclusiva e educação especial”. Com relação às bases de dados, selecionamos, inicialmente, as seguintes: a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações (BDTD); o Portal de Periódicos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes); a Scientific Electronic Library Online (SciELO). Diante do número reduzido de obras encontradas nas três bases iniciais, decidimos, então, realizar uma nova busca por artigos científicos no Google Acadêmico, para ampliar, com isso, o número dos materiais.

Em uma busca inicial, a partir o dos termos “justiça curricular e educação inclusiva” e “justiça curricular, educação inclusiva, educação especial” localizamos, respectivamente, 137 e 141 obras em todas as bases de dados. Em seguida, realizamos o refinamento dos dados, selecionando apenas artigos científicos publicados em periódicos revisados por pares e relacionados exclusivamente ao campo da educação, chegando a 112 títulos.

Em um terceiro momento, realizamos a leitura dos títulos, resumos e palavras-chave dos textos selecionados para a organização do corpus da pesquisa. Foram definidos os seguintes critérios de inclusão:

a)         uso do conceito de justiça curricular na abordagem das temáticas educacionais das produções levantados;

b)         relação das produções com políticas educacionais voltadas à Educação Inclusiva e/ou à Educação Especial no âmbito da Educação Básica.

Com relação aos critérios de exclusão, foram descartados artigos que tratavam de justiça curricular em outros níveis de ensino, como Educação Superior, e modalidades distintas da educação especial, como educação escolar indígena e educação de jovens e adultos. Ressaltamos que nenhum texto foi localizado com os descritores “justiça curricular” e “educação especial”.

A partir dos critérios indicados, foram selecionadas 12 pesquisas, sendo: quatro artigos advindos do portal Periódicos Capes, um artigo do portal SciELO, quatro artigos do Google Acadêmico, duas teses e uma dissertação da BDTD, conforme apresentados no quadro 1.

 

Quadro 1Caracterização dos estudos selecionados

Autor

Título

Tipo de publicação

IES

Data

Plataforma

Branca Jurema Ponce

O tempo no mundo contemporâneo: o tempo escolar e a justiça curricular

Artigo

PUC-SP

2016

Capes

Marta Sampaio; Carlinda Leite

A territorialização das políticas educativas e a justiça curricular: o caso TEIP em Portugal

Artigo

PUC-SP

2016

Capes

Roberto Rafael Dias da Silva

Revisitando a noção de justiça curricular: problematizações ao processo de seleção dos conhecimentos escolares

Artigo

Unisinos/RS

2018

Capes

Michele Rodrigues; Wesley Batista Araújo

A justiça curricular no Plano Nacional de Educação (2014-2024)

Artigo

PUC-SP

2021

Capes

Rita de Cássia PrazeresFrangella

“Muitos como um”: políticas curriculares, justiça social, equidade, democracia e as (im)possibilidades de diferir

Artigo

Uerj

2020

SciELO

Wilcelene Pessoa dos Anjos Dourado Machado;

Fabiany de Cássia Tavares Silva

Desigualdade em documentos curriculares locais (2007-2008): por uma escrita da justiça curricular

Artigo

UFSM

2017

 

Google

Acadêmico

Branca Jurema Ponce

O currículo e seus desafios na escola pública brasileira: em busca da justiça curricular

Artigo

PUC-SP

2018

Google

Acadêmico

Michele Rodrigues de Oliveira

A defesa do direito à educação e o currículo: quando seus caminhos se cruzam

Dissertação

PUC-SP

2019

Google

Acadêmico

Eva Cristina do Carmo Araújo; Marcia Torres Neri Soares

O currículo escolar (des)velado no campo da Educação Especial: reflexões para o ensino em turmas comuns

Artigo

UFRN

2021

Google

Acadêmico

Zilda Gláucia Elias Franco

Um olhar sobre as escolas localizadas no campo do município de Humaitá (Sul do Amazonas): em busca da justiça curricular

Tese

PUC-SP

2018

BDTD

Wilcelene Pessoa dos Anjos Dourado Machado

A justiça curricular a partir das noções de democracia, cidadania e inclusão social: estudo de documentos curriculares produzidos na última década do século XX e primeira do século XXI

Dissertação

UFMS

2014

BDTD

Rosane Fátima Vasques

 

A metamorfose da equidade nas políticas curriculares brasileiras: das promoções de oportunidades à diferenciação pedagógica

Tese

Unisinos/RS

2021

BDTD

Fonte: Elaborado pela autora com base nos dados da pesquisa, 2021.[1]

No decorrer da leitura dos textos, outras obras que serviram de referencial teórico para os autores anteriormente descritos foram selecionadas para compor o corpus da pesquisa. Esses estudos são apresentados no Quadro 2 a seguir.

Quadro 3 Referencial teórico dos textos analisados

Autor

Título

Tipo de publicação

IES

Data

Vera Maria Candau

Direitos humanos, educação e interculturalidade: as tensões entre igualdade e diferença

Artigo

PUC-Rio

2008

Carlos Skliar

A invenção e a exclusão da alteridade “deficiente” a partir dos significados da normalidade

Artigo

UFRGS

1999

Maura Corcini Lopes

(Im)Possibilidade de pensar a inclusão

Artigo

Unisinos/RS

2007

Laura Ceretta Moreira;

Roseli C. Rocha de C. Baumel

Currículo em Educação Especial: tendências e debates

Artigo

UFP/USP

2001

Déborah Nogueira Araújo e Pio

Currículo e diferença na Educação Especial em uma perspectiva inclusiva

Dissertação

UFG

2018

Regina Célia Linhares Hostins;

Suelen Garay Figueiredo Jordão

Política de inclusão escolar e práticas curriculares: estratégias pedagógicas para elaboração conceitual do público-alvo de Educação Especial

Artigo

Univali

2014

Rosana Glat;Márcia DenisePletsch;Rejane de Souza  Fontes

Educação inclusiva &Educação Especial: propostas que se complementam no contexto da escola aberta à diversidade

Artigo

UFSM

2007

Fonte: Elaborado pela autora com base nos dados da pesquisa, 2021.[2]

No intuito de compreender o conceito de justiça curricular no âmbito do Currículo Base do Território Catarinense de 2019, realizamos a leitura daspropostascurriculares de Santa Catarina dos anos de 1991, 1998, 2005 e 2014. Com isso, foi possível apreender os processos de constituição da perspectiva curricular da educação especial no Estado de Santa Catarina e verificar possíveis relações anteriores com a noção de justiça curricular. Privilegiamos a leitura das seções: apresentação, introdução e as áreas relacionadas à educação especial. A análise do Currículo Base da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Território Catarinense deu-se, mais especificamente, a partir da leitura do capítulo referente à Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, a fim de buscarmos vínculos conceituais de justiça curricular no documento e articularmos com os autores que abordam e conceituam esse termo. A análise dos dados foi embasada na proposta de análise documental de Cellard (2012).

 

Justiça curricular: a construção de um conceito

Os estudos sobre justiça curricular no Brasil são recentes. O avanço das publicações sobre o tema nos anos 2000deve-se ao fortalecimento das políticas educacionais inclusivas voltadas aos diferentes grupos minoritários, dentre elas a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva – PNEEPEI (2008).

Anteriormente a esta data, a única obra encontrada sobre justiça curricular é de Connell (1997), que defende uma aprendizagem baseada nas relações sociais e acredita que justiça curricular se faz a partir de programas comuns de escolarização e afirma estar pautada por três princípios (CONNELL, 1997): os interesses dos menos favorecidos, a participação e escolarização comum e a produção histórica da igualdade.

Connel (1997) classifica como justiça curricular as estratégias pedagógicas utilizadas que produzem menos desigualdades no conjunto de relações sociais ao qual o sistema escolar está inserido. Segundo o autor, é preciso ampliar e compreender o conceito de justiça curricular de forma que as práticas pedagógicas contribuam para a relação nas diferenças e para uma sociedade o menos desigual possível. Dessa forma, o estudo sobre justiça curricular, volta-se para a escola e para as suas diversidades, como os estudantes com necessidades educacionais específicas e com deficiências nela inseridos.

Cabe ressaltar que o conceito de justiça curricular insere-seno âmbito das teorias críticas e pós-críticas de currículo. Tais perspectivas rompem com uma visão tradicional de currículo, concebido por um viés técnico voltado para a elaboração e planejamento de conteúdos escolares e sua eficiência e eficácia nos processos de ensino e aprendizagem. A adoção de uma perspectiva crítica de currículo considera as dimensões ideológicas e de poder envolvidas em sua construção. (SILVA, 2007). Sob a ótica das relações sociais de produção e da luta de classes, o currículo pode assumir tanto o papel de opressor, na manutenção do status quo, quanto da emancipação e da conscientização de grupos oprimidos, por meio de pedagogias críticas, como em Freire (2003; 2005).

A entrada das teorias pós-críticas nos estudos de currículo colaboram com as teorias críticas ao evocar os conceitos de multiculturalismo, diferenças, identidades, poder, subjetividade, significação, discurso, representação, cultura, gênero, raça, etnia, sexualidade (SILVA, 2010). Com isso, o currículo passa a ser visto, como afirma Silva (2010, p.145) como “[...]irremediavelmente envolvido nos processos de formação pelos quais nós nos tornamos o que somos. O currículo é uma questão de identidade e poder” (SILVA, 2010, p. 145).  É no contexto das teorias críticas e pós críticas que se insere o conceito de justiça curricular. Conceito este que busca, por um lado, o rompimento das estruturas educacionais de desigualdade, estabelecidas pelo capitalismo e, por outro, a construção de possibilidades que promovam o reconhecimento e a emancipação de grupos historicamente marginalizados.

            A justiça curricular relaciona-se à noção de Dubet (2008) de escola justa que, segundo o autor, deve:

[...] desenvolver a igualdade distributiva das oportunidades, isto é, zelar pela equidade da oferta escolar, às vezes, dando mais aos menos favorecidos, de qualquer maneira tentando atenuar os efeitos mais brutais de uma competição pura. Seria também necessário acrescentar informações sobre os atores e sobre sua capacidade de circular e se mobilizar, rompendo com algumas das formas mais banais de hipocrisia escolar, das quais os mais fracos são vítimas porque não dominam as sutilezas dos jogos hierárquicos entre os estabelecimentos, as habilitações, as sutilezas das orientações, todas essas pequenas diferenças que acabam por fazer as grandes diferenças. (DUBET, 2008, p. 12)

Na busca por uma escola justa, é necessário discutir o currículo, uma vez que ele orienta modos de pensar e fazer a educação escolar.  Além disso, é, mediante o currículo, que se expõe as concepções de ser humano e sociedade que perpassam a educação e se propõem estratégias para melhoria da qualidade do ensino.

Ponce (2018) compreende o currículo como uma prática social pedagógica que se manifesta sob dois vieses - como ordenamento sistêmico formal e como vivência subjetiva e social. O autor explica que:

 

[...] ordenamento sistêmico formal, implica pelo menos três elementos demarcadores, igualmente indissociáveis: o repertório de conhecimentos sistematizados e validados histórica e socialmente; as políticas públicas e a legislação; e as características histórico-culturais da instituição que o realiza. Como vivência subjetiva e social, mostra-se como uma ação semanticamente mais próxima do significado implícito no vocábulo latino do qual é originário: currículo é um percurso de formação. (PONCE, 2018, p. 11)

 

Santomé (2013) compreende que o currículo deve “contemplar aspectos como a inclusão, a representação, o reconhecimento, as contribuições e as valorizações das pessoas, dos grupos e das culturas que estão presentes nas salas de aula e na sociedade mais ampla na qual a escola está inserida” (SANTOMÉ, 2013, p. 11). Assim, o currículo deve contemplar todos os atores escolares, atuando como ferramenta facilitadora ao acesso à aprendizagem, considerando a diversidade de estudantes e suas formas de aprender. 

O currículo pode assumir um importante papel na perspectiva de educação inclusiva no que tange à organização escolar para o atendimento dos estudantes com deficiências. A tomada de uma posição intercultural e crítica de currículo contribui para o reconhecimento das diferenças no contexto educacional. Com isso, no âmbito da educação especial, torna-se possível assumir novas formas de ver a deficiência, a partir de sua perspectiva social, interseccional e fundamentada nos preceitos de justiça social.

Para Dubet (2008), a desigualdade escolar é produzida a partir do modelo escolar construído em nossa sociedade. A discriminação negativa, que evidencia determinados estudantes em detrimento de outros, reproduz e legitima a desigualdade social.  Nesse contexto, os atores do cotidiano escolar “são corresponsáveis pela distância entre os princípios e as práticas, entre as palavras de ordem e os fatos”. (DUBET, 2008, p. 10). Esta distância entre os princípios da inclusão, os discursos de uma sociedade inclusiva e as práticas excludentes na rotina da escola, deveria ser o principal foco da justiça na educação pois, como aborda Dubet (2008), propor uma escola em um desenho de justiça e igualdade numa sociedade desigual, mostra um nível de ingenuidade e ilusão. Por isso, ao referir-se à justiça na escola, é necessário pensar em uma sociedade justa e democrática.

A ideia de escola justa é aquela que abarca todas as singularidades, especificidades e proporciona qualidade de ensino a todos os estudantes. Ponce e Leite (2019, p. 1) afirmam que é necessário ressignificar uma “educação geradora de novos projetos de convivência humana pautados na construção da paz mundial, da igualdade e da alteridade”, ressaltando o importante papel da educação escolar, como geradora da igualdade de oportunidades.

Segundo Ponce (2018, p. 796), utiliza-se a expressão

[...] justiça curricular e não currículo justo porque se trata de uma construção cotidiana de justiça por meio do currículo escolar. A justiça pode e deve ser buscada em todos os momentos da existência, em gestos e palavras, nos vários espaços da vida social.

 

Esse currículo justo deve garantir a cada um dos estudantes os conhecimentos e as competências a que ele tem direito, oferecendo um bem comum, um bem-estar compartilhado entre todos, assegurando assim a igualdade individual de oportunidades tanto sociais quanto escolares. Nas palavras dos autores, trata-se de um currículo

[...] que reconheça as diversidades humanas; que se interesse por superar as várias desigualdades mantendo a valorização das diferenças; que promova um pensar crítico sobre o mundo; que valorize os diversos saberes das diferentes culturas; que se comprometa com um mundo inclusivo, justo e democrático; que não aceite como versão de qualquer fato, uma história única”. (PONCE; LEITE 2019, p.02)

Para Santomé (2013), relacionando a justiça curricular à valorização de diversos saberes, compromete-se com as diferenças e volta-se para a construção de ações que contemplem e atendam a diversidade de “necessidades e urgências de todos os grupos sociais” (p.10). 

Justiça curricular implica, pois, considerar as necessidades do presente para, em seguida, analisar de forma crítica os conteúdos das distintas disciplinas e das propostas de ensino aprendizagem com os quais se pretende educar as novas gerações e prepará-las para a vida. (SANTOMÉ, 2013, p. 10)

Esta análise crítica do currículo, atrelada à avaliação e investigação da ação educativa realizada, deve levar em consideração “[...] o grau em que tudo aquilo que é decidido e feito na sala de aula respeita e atende às necessidades e urgências de todos os grupos sociais. (SANTOMÉ, 2013, p. 9). O currículo orienta-se pela busca da promoção de aprendizagens em contextos democráticos.

A noção de justiça curricular como um processo que se estabelece no cotidiano escolar é evidenciada também por Pereira, Mendes e Pacheco (2019), que a conceituam

[...] como um movimento dinâmico que envolve a tomada de decisões sobre o currículo, desde a elaboração até sua atuação nas práticas curriculares, como a possibilidade de arquitetar um currículo contra-hegemônico, visando diminuir as desigualdades evidenciadas no processo de escolarização dos alunos (PEREIRA; MENDES; PACHECO, 2019, p. 20)

 

Para além da aprendizagem, a justiça curricular busca a valorização da dimensão interacional, prevendo estratégias de participação e de avaliação, seguindo o princípio de escolarização comum e construção histórica de igualdade. Pensar em escolarização comum é pensar em espaços onde os múltiplos saberes podem ser apreciados e valorizados, em que os conhecimentos individuais são importantes e coexistem com os diferentes grupos.

Araújo e Soares (2021, p.14) reiteram que “É preciso insistir em escolas e currículos comuns a todos os estudantes, atentos às especificidades de cada um, dando condições de aprendizagem a todos”. As características humanas ou qualquer condição de deficiência não podem ser impeditivos para a aprendizagem. É preciso deslocar o olhar da deficiência para as potencialidades do sujeito em suas diferentes condições. Um currículo justo para estudantes com deficiência implica assegurar as condições de aprendizagem por meio da criação de estratégias e oportunidades.

Ponce (2018) compreende a justiça curricular como um processo que se constrói de forma ativa no cotidiano, por meio das dimensões do conhecimento, do cuidado e da convivência escolar: 

[...] conhecimento, compreendido como uma estratégia de produção da existência digna; a do cuidado com todos os sujeitos do currículo, para que se viabilize o acesso ao pleno direito à educação de qualidade social, o que envolve a afirmação de direitos; e a da convivência escolar democrática e solidária, para que se consolidem valores humanitários e se crie uma cultura de debate democrático e de respeito ao outro (PONCE, 2018, p. 795).

 

Reconhecer o currículo para além da dimensão do conhecimento escolar contribui para a promoção de uma vivência ativa do currículo, tendo em vista a emancipação dos sujeitos para além da vida escolar.  Cabe ressaltar, conforme Ponce (2018), o caráter intencional da dimensão do conhecimento curricular, pois é carregado de intencionalidades, interesses, expectativas e necessidades. Dessa forma, uma perspectiva de justiça curricular considera a importância de diálogo entre os conhecimentos locais e globais, atendendo-se às necessidades e particularidade dos diferentes contextos escolares.

Sendo a aprendizagem um processo social, em que se aprende com o outro e com suas diferenças, Santomé (2013) destaca a importância de interpretar as mudanças culturais, observando novos critérios para a seleção dos conteúdos escolares. Segundo ele, nesta seleção é imprescindível

[...]contemplar aspectos como a inclusão, a representação, o reconhecimento, as contribuições e as valorizações das pessoas, dos grupos e das culturas que estão presentes nas salas de aula e na sociedade mais ampla na qual a escola está inserida” (SANTOMÉ, 2013, p. 11).

 

A defesa do conhecimento, segundo Rodrigues e Araújo (2021), relaciona-se ao desenvolvimento da convivência democrática, princípio que orienta os processos de ensino e de aprendizagem, que se constroem nas interações sociais. Para eles, o currículo deve “destacar-se como espaço de experiência democrática, propondo e criando soluções coletivas para os problemas cotidianos, orientando e fomentando as condições reais para a participação dos estudantes" (RODRIGUES; ARAÚJO, 2021, p. 6).

O cuidado destaca-se enquanto dimensão que compõe a justiça curricular e faz-se presente nos diferentes processos curriculares: na constituição de políticas públicas, na formação de profissionais da educação e nas redes de proteção a populações em situação de vulnerabilidade. Para Ponce e Leite (2019, p.16), a dimensão do cuidado refere-se a “todo zelo necessário para que se viabilize o acesso ao pleno direito à educação de qualidade social''. Nesse aspecto, cabe destacar a noção de cuidado vincula-se a uma perspectiva ética-política que o entende como princípio de justiça social, distanciando de perspectivas assistencialistas, capacitistas ou familistas (GESSER; ZIRBEL; LUIZ, 2022).

O bem-estar individual e coletivo é uma condição indispensável para o acesso ao direito à educação. A convivência escolar, como dimensão da justiça curricular, “tem como objetivos consolidar valores humanitários e criar uma cultura de debate e respeito ao outro” (PONCE; LEITE, 2019, p.20).

Rodrigues e Araújo (2021) dizem que a justiça curricular contribui para a construção de um currículo que garanta a promoção de conhecimentos e experiências para o viver democrático. No entanto, para a superação das desigualdades, é necessário formarossujeitos para tal vivência.

Desse modo, elas e eles podem ser autoras e autores de soluções para problemas coletivos e, quando essas soluções estiverem fora do seu alcance, que tenham conhecimento dos caminhos democráticos de participação na exigência cidadã da atuação do Estado (RODRIGUES; ARAÚJO, 2021, p. 5).

Os autores afirmam que justiça curricular é um conceito em construção que, se pensado nas dimensões do conhecimento, do cuidado e da convivência, possibilita aos sujeitos do currículo orientarem a realização dos seus percursos e fazerem escolhas. Ao colocar-se como possibilidade orientadora do currículo escolar, reconhecendo e valorizando as diversidades, afirma-se a escola como espaço democrático e potencialmente emancipatório (RODRIGUES; ARAÚJO, 2021, p,12).

Mantendo a defesa de uma aprendizagem baseada nas relações sociais, Connell (1997) defende que justiça curricular se faz a partir de programas comuns de escolarização e diz que

As aprendizagens comuns não podem definir-se a partir de definições abstratas das necessidades da pessoa, como se a criança se desenvolvesse em um vazio social. Mas, existem como programas para a organização e a transmissão do conhecimento, que pretendem estabelecer uma relação determinada entre o processo educativo e as formas sociais (CONNELL, 1997, p. 53).

 

Connell (1997) defende a elaboração de um programa comum a todos os estudantes por dois motivos: primeiro, seguindo os princípios de justiça social na educação articulando os interesses dos menos favorecidos e segundo, porque é intelectualmente melhor ter outras formas de organizar o conhecimento.

De acordo com Connell (1997), a natureza da justiça é a da proteção aos mais necessitados e a educação deve servir fundamentalmente a este grupo. Este princípio tem grande influência para o currículo. A justiça requer um currículo contra-hegemônico, isso quer dizer que deve ser decidido a partir de diferentes situações tendo em vista os diversos grupos existentes na realidade social.  Desse modo, pensar em justiça curricular requer a elaboração de projetos que abarquem as diferenças existentes na prática social atual, como as questões de gênero, classe social, raça, etnia, regionalidade e nacionalidade.

O segundo princípio, de participação e escolarização comum, tem a ver com a concepção de democracia, em que todos os cidadãos tomam decisões coletivas. O critério da justiça curricular “[...] é a disposição de uma estratégia educacional para produzir mais igualdade em todo o conjunto de relações sociais às quais o sistema educacional está ligado” (CONNELL, 1997. p. 69, tradução nossa).

A análise do conceito de justiça curricular apresentada pelos autores mostra forte articulação com a perspectiva da Educação Inclusiva, sobretudo no tocante à promoção de uma educação para as diferenças e para a justiça social. Nesse sentido, destacamos que, por meio da justiça curricular, a noção de educação inclusiva supera a ideia de mera inserção do estudante na escola, reforçando a importância da construção de um currículo que garanta a sua aprendizagem e participação, buscando, com isso, reduzir as desigualdades sociais.

Franco (2018) aborda a justiça curricular em uma perspectiva de igualdade de oportunidades. A autora defende que a sociedade “[...] só deve valer-se do princípio da diferença se uma desigualdade de oportunidades aumentar as oportunidades dos menos favorecidos” (FRANCO, 2018, p. 28). Não há como pensar em currículo sem pensar, em primeiro lugar, nos sujeitos nele envolvidos. Mesmo não se referindo especificamente ao termo “justiça curricular” em uma perspectiva de Educação Inclusiva, a autora remete ao entendimento do conceito de equidade na educação, em que todos tenham oportunidades iguais, mesmo que com diferentes formas de acesso aos conhecimentos escolares e à participação social.

A Educação Inclusiva pode ser classificada como uma “nova cultura escolar” (GLAT; PLETSCH; FONTES, 2007, p. 344), pois permeia uma nova concepção de escola, na qual, além de rever a estrutura e a organização escolar, deve se preocupar com a necessidade e o desenvolvimento acadêmico de todos os alunos, independentemente das condições individuais ou das experiências prévias com o processo educacional. Com isso, vemos que o conceito de justiça curricular contribui para a construção de uma concepção de educação inclusiva voltada aos princípios de justiça social e direitos humanos, considerando as diferentes dimensões da realidade educacional, com base em uma abordagem crítica de currículo.

 

Justiça curricular e Educação Especial no Currículo Base do Território Catarinense

Para a elaboração da Base Curricular da Educação Infantil e do Ensino Fundamental do Território Catarinense foram convidados professores e gestores das esferas estadual e municipal que puderam optar em qual área de estudos se dedicariam. Ao todo, cerca de 400 profissionais debruçaram-se no estudo e na elaboração do Currículo Base do Território Catarinense, além de 100 relatores e consultores advindos de escolas públicas e de instituições de Ensino Superior do Estado de Santa Catarina.

O documento prioriza dois princípios fundamentais: a educação integral e o percurso formativo, os quais alicerçam toda a base curricular da Educação Infantil ao Ensino Fundamental, assegurando as aprendizagens essenciais por meio das habilidades e das competências. A Educação integral é compreendida como princípio do processo educativo, definida como “[...] uma estratégia histórica que visa desenvolver percursos formativos mais integrados, complexos e completos, que considerem a educabilidade humana em sua múltipla dimensionalidade” (SANTA CATARINA, 2014, p. 26).

O Currículo Base afirma a diversidade como princípio formativo, preocupando-se com a escolarização de todos os residentes no Estado de Santa Catarina, e destaca o processo de alfabetização, entendendo que, além de dar conta dos componentes curriculares, a escola enfatiza os aspectos de apropriação da linguagem. Sendo um documento embasado na BNCC, o Currículo Base retoma as dez competências gerais nela contidas e explica que elas devem ser desenvolvidas da Educação infantil ao Ensino Médio (FERRI, 2019).

A diversidade como princípio formativo é apresentada em capítulo específico e é “[...] representada pelos grupos sociais, de identidades singulares, que constituem os sujeitos históricos, nas suas relações com o ambiente e com outros grupos” (SANTA CATARINA, 2019a, p. 22). Ela abrange as seguintes temáticas: “Educação Ambiental Formal e Educação para as Relações Étnico-Raciais; e as modalidades de ensino Educação de Pessoas Jovens, Adultos e Idosos, Educação Escolar Quilombola, Educação Escolar Indígena, Educação Escolar do Campo e Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva [...]” (SANTA CATARINA, 2019a, p. 23), e afirma que a educação é para todos.

O capítulo referente à Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva foi elaborado em seis páginas. Destas, as duas primeiras são voltadas a questões históricas da Educação Especial, já citadas em outros documentos.  As referências ocupam a quinta e a sexta páginas, restando duas páginas para abordar o tema. O texto foi escrito por 25 profissionais entre consultores, colaboradores e professores, com formação de Doutorado, de Mestrado e Especialização. A maior parte dos profissionais envolvidos atua em áreas relacionadas à Educação Especial.

Os documentos normatizadores da Educação Inclusiva como a Conferência Mundial de Educação para Todos (UNESCO, 1990), a Declaração de Salamanca (1994), a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (ONU, 2006), a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva – PNEEPEI (2008), citados no documento do território catarinense, regulamentam a Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva no estado de Santa Catarina. O texto evoca o direito de todos a uma educação de qualidade com equidade, respeitando as diferenças individuais.

O Currículo Base do Território Catarinense orienta, ainda, que as propostas de Educação Inclusiva devem constar no projeto pedagógico da escola e devem conter alternativas curriculares que ampliem as estratégias e as possibilidades do ensino. O texto utiliza-se de expressões como “equidade”, “desenho universal” e “justiça curricular” como forma de efetivação da qualidade da educação para os estudantes com deficiência, público-alvo da Educação Especial, sendo conceitos-chave de propostas educacionais inclusivas.

Por justiça curricular o texto compreende o “[...] compromisso com a escolarização da diversidade escolar e a equidade das práticas curriculares com base na diferenciação curricular, integrada aos componentes curriculares das áreas do conhecimento [...]”. No documento, a justiça curricular é conceituada como um conjunto de práticas e de estratégias “[...] capazes de auxiliar no combate aos sistemas de opressão, de dominação e de discriminação muito presentes nas escolas e nos currículos escolares, e que, por vezes, silenciam diferentes identidades” (SANTA CATARINA, 2019, p. 108).

No decorrer do documento, que se apresenta com 476 páginas, o termo justiça curricular foi utilizado somente no capítulo referente à Educação Especial na Perspectiva de Educação Inclusiva. Em nenhum outro momento, mesmo nos subcapítulos do capítulo de diversidade como princípio formativo, o termo é utilizado. O documento fala de acesso e qualidade de educação para todos, mas a justiça curricular é direcionada somente aos estudantes sujeitos da Educação Especial.

O termo “justiça curricular” foi utilizado cinco vezes no decorrer do capítulo referente a educação especial: três vezes vinculado à afirmação de que a diferenciação curricular potencializa a justiça curricular; uma vez ligado à equidade; e uma vez em referência ao combate da opressão, da dominação e da discriminação. Com isso, podemos compreender que, para os autores do capítulo referente à Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, o uso do conceito de justiça curricular está estreitamente vinculado ao processo de diferenciação curricular para os estudantes, à equidade e à emancipação dos sujeitos da Educação Especial.

Ao analisarmos as referências utilizadas na elaboração do texto da Educação Especial na perspectiva da Educação Inclusiva, notamos que são documentos normativos de âmbito internacional, nacional e estadual. No entanto, nenhum autor que estuda e referencia o conceito de justiça curricular foi citado, o que nos leva a interpretar que o conceito de justiça curricular foi utilizado com embasamento teórico não explícito, ou seja, os autores serviram de referência, porém não foram citados.

Embora o documento enfatize a diferenciação curricular como forma de atingir a justiça curricular, ele apresenta fragilidades ao não explicitar a perspectiva teórica utilizada, o que pode gerar divergências na compreensão dos princípios que orienta o currículo.

Dessa forma, abrem-se novos questionamentos: A Educação Especial tem força sozinha para modificar uma sociedade? Se somente a educação é incapaz de transformar uma sociedade em justa, tampouco uma modalidade de ensino é capaz de fazê-lo. E ainda, é responsabilidade somente da modalidade de Educação Especial ou apenas de sujeitos da diversidade lutar por uma sociedade mais justa?

Justiça social e justiça escolar são conceitos estudados por Dias da Silva (2018), o qual percebe uma nova visão de justiça, afirmando que existe, “[...] de um lado, lutas pela distribuição material da riqueza e melhoria das condições de vida; de outro, uma busca pela superação da injustiça que se ancora nas questões da identidade e da diferença” (DIAS DA SILVA, 2018, p. 7). O autor vincula a busca pela superação da injustiça com questões de exclusões e de preconceitos vivenciados até hoje pelas pessoas com deficiência e a constante busca pelo reconhecimento da identidade.

 

Considerações finais

Com o propósito de discutir a noção de justiça curricular e sua interlocução com a Educação Especial, no âmbito do Currículo Base do Território Catarinense (2019), analisamos o conceito de justiça curricular na literatura e sua articulação com a Educação Especial a partir de um documento curricular específico, a Base Curricular do Território Catarinense. A análise da literatura mostra que a noção de justiça curricular se fundamenta em uma compreensão de currículo crítica, que se constrói no cotidiano e busca atender as diversidades e desigualdades escolares nas dimensões do conhecimento, do cuidado e da convivência democrática. A justiça curricular alinha-se, assim, a uma perspectiva de justiça social, voltada à promoção do direito à educação.  

O texto apresentado no capítulo sobre Educação Especial do Currículo Base do Território Catarinense (2019), embora mencione o termo “justiça curricular”, não explica ou discorre sobre o conceito e suas potencialidades para pensar o currículo no âmbito da Educação Especial.

Entretanto, a análise do documento nos dá pistas acerca das contribuições da noção de justiça curricular para uma perspectiva crítica de Educação Especial, uma vez que rompe com perspectivas assistencialistas ou de reabilitação. Observamos, por exemplo, um distanciamento da ideia de adaptação curricular que tende a voltar-se exclusivamente à relação pedagógica entre os sujeitos da educação especial e educadores, mediada por um corpus de conhecimento especializado para o desenvolvimento de estratégias para o atendimento de suas necessidades. A justiça curricular, por sua vez, entende o processo para além das relações pedagógicas específicas e especializadas, mas como um processo de construção de uma escola comum a todos e todas, por meio de um viver democrático. Considera, com isso, o papel emancipador, e não simplesmente transmissor de conhecimento, da escola.  Nesse sentido, a justiça curricular considera o estudante e os diferentes atores escolares como parte do processo de tomadas de decisões a respeito das políticas educacionais inclusivas e nos direcionamentos no ambiente escolar para a proposta de inclusão.

O presente estudo mostra que, ao trazer a justiça curricular para o debate da Educação Especial é possível pensar formas de escolarização de seus sujeitos que superem as perspectivas normativas e normalizadoras da in/exclusão, cujos conhecimentos se limitam às técnicas especializadas, muitas das quais ainda enraizadas nos modelos médicos de deficiência. Tal proposta requer a construção de novos olhares sobre o papel social da escola e sobre as relações que se estabelecem com as diferenças, bem como sobre as concepções de deficiência que se constroem em torno dos saberes da Educação Especial.

 

Referências

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[1]As siglas das IES que aparecem no Quadro 2 dizem respeito às seguintes universidades: PUC-SP Pontifícia Universidade Católica de São Paulo; Unisinos – Universidade do Vale do Rio dos Sinos; Uerj – Universidade do Estado do Rio de Janeiro; UFSM – Universidade Federal de Santa Maria; UFRN – Universidade Federal do Rio Grande do Norte; UFMS – Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.

[2]As novas siglas dizem respeito às seguintes universidades: PUC-Rio – Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro; UFRGS – Universidade Federal do Rio Grande do Sul; UFP – Universidade Fernando Pessoa; USP – Universidade de São Paulo; UFG – Universidade Federal de Goiás; Univali – Universidade do Vale do Itajaí.

 

 

 

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