A pessoa com deficiência e a educação especial no Brasil nos últimos 200 anos: sujeitos, conceitos e interpretações

 

People with disabilities and special education in Brazil in the last 200 years: subjects, concepts and interpretations

 

Personas con discapacidad y educación especial en Brasil en los últimos 200 años: sujetos, conceptos e interpretaciones
 
 
Rogério Drago
Universidade Federal do Espirito Santo, Vitória, ES, Brasil
rogerio.drago@ufes.br
 

Emilio Gabriel

Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, ES, Brasil

emilio.gabriel@edu.ufes.br

 

Recebido em 05 de dezembro de 2022

Aprovado em 07 de julho de 2023

Publicado em 26 de julho de 2023

 

 

RESUMO

O artigo analisa as diferentes conceituações de aluno e educação especial no Brasil desde 1822, objetivando entender a evolução conceitual dos termos através dos séculos XIX, XX e XXI, nos caminhos da segregação, integração e inclusão, analisando os impactos do momento histórico e das ideologias dominantes na construção de conceitos relativos ao aluno especial e à educação especial. O método utilizado no estudo assume o estudo teórico-documental de obras que tratam da temática da história da educação especial e da deficiência, além da análise de atos legais que complementam nossas interpretações. A partir do estudo realizado, evidenciamos que os conceitos de aluno especial e educação especial evoluíram de acordo com os pontos de vista predominantes em cada época: de uma interpretação médico-mística-religiosa, para uma psicologicista e, após, pedagógica. Além disso, concluímos que os processos históricos guiaram a educação especial no caminho da segregação para a integração e, finalmente, para a inclusão, de acordo com o ideal de nação pretendido em cada época.

 

Palavras-chave: Aluno Especial; Educação Especial; História; Conceitos; Inclusão.

 

ABSTRACT
The article analyzes the different concepts of student and special education in Brazil since 1822, aiming to understand the conceptual evolution of the terms through the 19th, 20th and 21st centuries, in the paths of segregation, integration and inclusion, analyzing the impacts of the historical moment and the ideologies dominant in the construction of concepts related to special students and special education. The method used in the study assumes the theoretical-documentary study of works that deal with the theme of the history of special education and disability, in addition to the analysis of legal acts that complement our interpretations. From the study carried out, we evidenced that the concepts of special student and special education evolved according to the predominant points of view in each era: from a medical-mystical-religious interpretation, to a psychologist and, later, pedagogical. In addition, we conclude that historical processes guided special education on the path from segregation to integration and, finally, to inclusion, according to the ideal of nation intended in each era.
 
Keywords: Special Student; Special education; History; Concepts; Inclusion.

 

RESUMEN
El artículo analiza los diferentes conceptos de estudiante y educación especial en Brasil desde 1822, con el objetivo de comprender la evolución conceptual de los términos a lo largo de los siglos XIX, XX y XXI, en los caminos de segregación, integración e inclusión, analizando los impactos de la historia momento y las ideologías dominantes en la construcción de conceptos relacionados con los estudiantes especiales y la educación especial. El método utilizado en el estudio supone el estudio teórico-documental de obras que tratan el tema de la historia de la educación especial y la discapacidad, además del análisis de actos jurídicos que complementan nuestras interpretaciones. Del estudio realizado evidenciamos que los conceptos de alumno especial y educación especial evolucionaron según los puntos de vista predominantes en cada época: desde una interpretación médico-mística-religiosa, a una psicóloga y, posteriormente, pedagógica. Además, concluimos que los procesos históricos guiaron a la educación especial en el camino de la segregación a la integración y, finalmente, a la inclusión, según el ideal de nación pretendido en cada época.
 
Palabras clave: Estudiante especial; Educación especial; Historia; Conceptos; Inclusión.
 

 

Introdução

 

O artigo analisa as diferentes conceituações de aluno e educação especial no Brasil desde 1822 e tem como objetivo entender a evolução conceitual dos termos através dos séculos XIX, XX e XXI, nos caminhos da segregação, integração e inclusão, analisando os impactos do momento histórico e das ideologias dominantes na construção de conceitos relativos ao aluno especial e à educação especial. Trata-se, portanto, de um estudo teórico-documental. Não nos preocuparemos demasiadamente com os aspectos legais referentes à educação especial, mas em como impactaram na objetivação conceitual dos termos estudados. Nosso foco são os escritos históricos e como eles levantam explicações que criaram a interpretação da sequência histórica da educação especial no Brasil: segregação-integração-inclusão.

Esta investigação se torna extremamente necessária diante da continuidade de algumas definições preconceituosas em relação aos alunos e à educação especial, muito vinculadas a períodos arcaicos da educação brasileira e que, portanto, precisam ser questionados e corrigidos.

Sabemos que nas escolas, atualmente, ainda predominam as interpretações do aluno público-alvo da educação especial pela perspectiva laudista, relegando ao aluno especial – que é um aluno da escola – uma educação limitadora e que não leva em conta suas especificidades e capacidades próprias, independentemente de suas condições orgânicas.

O corpo do artigo está dividido em cinco partes: na primeira, traremos a perspectiva da pessoa com deficiência e da educação especial no Brasil Império; na segunda, as inovações introduzidas com a República até a fundação dos institutos especializados; a terceira parte abarca a segunda metade do século XX e a transição conceitual da segregação para a integração; na quarta parte, trataremos do século atual e dos conceitos embasados na ideia de inclusão; por fim, na quinta parte, faremos algumas considerações finais, entendendo ser impossível concluir um assunto que está em constante construção.

 

 

Século XIX: a educação especial e o deficiente no Brasil Império

 

Nosso recorte temporal inicia-se pelo século XIX por duas razões: em primeiro lugar, deve-se ao fato de, neste período, o Brasil ter se tornado um país politicamente independente de Portugal, em 1822, iniciando sua trajetória emancipada e, portanto, teoricamente construindo um ideal de país por meio de suas normas legais; em segundo lugar, foi neste momento que surgiram as primeiras tentativas de escolarização das pessoas com deficiência, o que revela um olhar sobre estes indivíduos capaz de construir definições e problematizações acerca do tema da educação especial, ainda que ela fosse deveras embrionária e aquém do que se considera, hoje, como uma educação voltada para o processo de inclusão e aprendizagem de pessoas com deficiência.

Se nos detivermos na nomenclatura recebida pela educação especial no século XIX, encontraremos termos como Pedagogia de Anormais, Teratológica, Curativa ou Terapêutica, da Assistência Social ou Emendativa (MAZZOTTA, 2011). Estes termos, normais à época, guardavam em si características de interpretação da educação do deficiente vista pela ótica médica, mística ou religiosa, marcadamente visões de períodos anteriores ao nosso recorte temporal, mas que ainda predominavam naquele momento. Vale mencionar que estes termos são oriundos da Europa e chegaram ao Brasil como resultado da expansão de institutos responsáveis pela educação das pessoas com deficiência no continente americano.

Ainda, é importante salientar, como nos diz Mazzotta (2011, p. 27) que

 

Durante um século [o século XIX], tais providências [as de atender pessoas com deficiência] caracterizaram-se como iniciativas oficiais e particulares isoladas, refletindo o interesse de alguns educadores pelo atendimento educacional dos portadores de deficiências.

A inclusão da “educação de deficientes”, da “educação dos excepcionais” ou da “educação especial” na política educacional brasileira vem a ocorrer somente no final dos anos 1950 e início da década de 1960 do século XX.

 

Ou seja, o que temos no século XIX, e que nos permite pensar em termos de conceituação e problematização em torno da educação especial, deriva de iniciativas pouco abrangentes, uma vez que o Estado brasileiro não havia se preocupado em definir políticas públicas referentes à pessoa com deficiência, além do que a própria instrução para toda a população já era extremamente precária ou inexistente. Ademais, emanavam concepções que já estavam sendo superadas na Europa com os estudos evolucionistas e a tentativa de uma explicação científica para os defeitos


[1] na formação biológica do indivíduo e que chegariam ao Brasil mais tarde.

Neste sentido, a vertente médico-hospitalar era muito forte e, como nos diz Lobo (2008, p. 48),

 

Foi bastante comum entre os médicos brasileiros do século XIX atribuir à imaginação da mãe, durante a gestação, as características teratológicas do recém-nascido, ou mesmo as qualidades e méritos em sua vida futura.

 

Por esses motivos, compreendemos as razões das primeiras tentativas de educação para as pessoas com deficiência no Brasil terem sido o Imperial Instituto dos Meninos Cegos (1854) e o Imperial Instituto dos Surdos-Mudos (1857): a deficiência não era tão aparente quanto aqueles que carregavam marcas mais características de suas condições e o ensino voltava-se para atividades laborais, inserindo-os, mesmo que de maneira pouco abrangente, no mundo do trabalho.

Corroborando com essa análise, Jannuzzi (2004, p. 23), revela que

 

Eram provavelmente os mais lesados os que se distinguiam, se distanciavam, os que incomodavam, ou pelo aspecto global, ou pelo comportamento altamente divergente. Os que não o eram assim a olho nu estariam incorporados às tarefas sociais mais simples, numa sociedade rural desescolarizada.

 

Neste contexto, como nos diz Jannuzzi (2004), outro elemento se insere no cenário brasileiro: o liberalismo econômico – mesmo que limitado pelas condições histórico-sociais de um país que convivia com o escravismo e estava bem adaptado a ele. Assim, uma parte da elite preocupava-se em reforçar alguns ideais que desafiavam as instituições da época e inserir o Brasil no contexto das potências mundiais mais civilizadas, procurando dar utilidade às camadas mais baixas da população, mesmo que de maneira tímida, uma vez que a manutenção da mão de obra escravizada garantia os braços que mantinham a economia do país.

Assim, notamos que a educação especial, no período, excluía aqueles visivelmente defeituosos, julgados sob a ótica místico-moral da sociedade médica da época, imbuída de uma concepção higienista que se preocupava com a degeneração social causada pela herança de pessoas com deficiência, além de outras caracterizações malvistas à época. Ademais, o caráter liberal empurrava as pessoas com deficiência para uma educação laboral utilitarista, com severos limites à sua inserção social.

            Importante salientarmos também que, é na segunda metade do século XIX, que chegam ao Brasil as teorias racistas do darwinismo social, em voga na Europa. Esta teoria, vendida à época como ciência objetiva, defendia a classificação das sociedades como mais ou menos civilizadas, de acordo com padrões técnicos, sociais e raciais definidos pelos europeus. Ou seja, na prática, quanto mais parecido com os europeus, mais civilizado. Assim, estava posta uma justificativa eugenista para o tratamento das pessoas consideradas anormais, pois representariam, segundo este pensamento medíocre, a escória da sociedade, obstáculo para o futuro positivista de progresso da humanidade. No Brasil, os principais discriminados com base nesses ideais foram os negros, mas poderíamos incluir aí, também, as pessoas com deficiência.

Novamente, Lobo (2008, p. 52) nos dá uma explicação de como funcionava a preocupação higienista e, por que não, eugenista, baseada no darwinismo social em relação aos males futuros de uma sociedade construída sob os tipos inferiores:

 

O que poderia provocá-la [uma raça decadente], além dos descuidos morais? A consanguinidade e a miscigenação. E os produtos privilegiados desses dois tipos condenáveis de mistura de sangue foram, além dos loucos e dos epiléticos, os surdos-mudos, os idiotas e os deformados, todos portadores em algum lugar do corpo de um estigma de degenerescência.

 

Portanto, percebemos que o Brasil Império foi negligente quanto à educação do deficiente e, para além do abandono, persistiram os conceitos baseados em estereótipos que culpavam a hereditariedade desses indivíduos. Ademais, a educação especial – entendendo os limites do termo em relação à época – tinha caráter laboral em uma sociedade que recebia influências do pensamento eugenista, baseado no darwinismo social, e segregacionista, uma vez que isolava as pessoas com deficiência menos visível em instituições, muitas vezes de caráter assistencialista e/ou médica.

 

Século XX: da instauração da República à década de 1950

 

Em 1889, um golpe militar derrubou a monarquia e instituiu a república no Brasil. Importantes mudanças legais foram estabelecidas e, pela primeira vez, o cargo do executivo no Brasil seria escolhido por meio do voto, restrito àqueles que cumpriam determinados requisitos: ser homem, alfabetizado, dentre outras exigências que tornavam eleitora a minoria da população.

Este novo modelo político emanava de críticas ao atraso de nosso país, engajado no cenário internacional como grande exportador de gêneros agrícolas, com especial menção ao café. As ideias progressistas que formaram coro ao abandono da monarquia, desta vez bradavam a necessidade de estabelecer ordem e progresso em um país de enorme potencial, mas estagnado por sua elite interessada em manter privilégios vindouros desde a época colonial.

Assim sendo, logo após proclamada a república, sem nenhuma participação popular, e passados os governos da República da Espada (1889-1894), a antiga elite agrária assumiria o poder para sair apenas em 1930, por meio de um outro golpe de Estado, desta vez deflagrado por Getúlio Vargas. Se, em termos de política e sociedade, os mesmos atores desempenhavam os mesmos papéis, o que dizer das pessoas com deficiência? O que mudou de fato no seu tratamento e nas reflexões sobre sua escolarização?

De imediato, podemos constatar que a ideia de educação para as pessoas com deficiência permaneceu ligada ao mundo do trabalho e à segregação, adicionada à noção de periculosidade das camadas mais baixas da população, cada vez mais marcada pela expansão do capitalismo no Brasil e seu recorte de classe. Este argumento pode ser assim explicado:

 

Pois bem, é num modo de organização social assim estruturado que pode ser compreendida a amplitude do conceito de anormalidade, abrangendo todos que ameacem a segurança da camada social estabelecida; a função social da educação do retardado é estar a serviço de um trabalho visando à produção de mercadorias rentáveis a essa mesma camada social (JANNUZZI, 2004, p. 63).

 

Portanto, a pessoa com deficiência estaria sim inserida no contexto da educação na Primeira República (1889-1930), mas relegada a uma classe subalterna, cumprindo uma função dentro do sistema econômico brasileiro que se queria modernizar, mas enraizado na monocultura de exportação. Nem nossa industrialização ocorreu neste período – embora notemos o surgimento de algumas fábricas e a expansão da zona urbana – nem a integração do aluno com deficiência teve caráter pedagógico emancipatório.

 

Além do cenário socioeconômico descrito anteriormente, notamos que foi em fins do século XIX e início do século XX, que a psicanálise avançou no Brasil, tendo uma importante influência na interpretação do aluno com deficiência. Neste período, foram realizados congressos médicos com debate de temas ligados à deficiência e fundadas instituições voltadas para o atendimento destes indivíduos. Entretanto, é importante saber que, em grande parte da primeira metade do século XX, houve um grande apelo à continuidade da vertente médico-hospitalar, ligando os casos de necessidades especiais aos problemas de saúde, falta de higiene ou promiscuidade, como já havia acontecido em épocas anteriores. Prova dessa vertente foi a fundação, em 1904, no Rio de Janeiro, do Pavilhão Bourneville, com o objetivo de aliar atividades pedagógicas ao tratamento clínico de crianças severamente prejudicadas por patologias de todo tipo.

Pelos dados expostos, é possível notar a tentativa de cientificar as diferentes formas de deficiência, mesmo que não houvesse um estudo prático para tal no Brasil, pois, conforme afirmado nesta pesquisa, ainda havia muitas permanências de épocas anteriores em relação ao conceito de pessoa com deficiência, além da influência de estudos que vinham de fora, especialmente da França (LOBO, 2008).

Neste sentido, o que percebemos na Primeira República é a mudança de eixo em relação ao controle desses indivíduos, que sai dos hospitais para o meio social cotidiano. Para Lobo (2008, p. 110-111),

 

Foi uma ação mais contínua e eficaz, que passou a ser indispensável à manutenção de um Estado mais adequado às novas relações capitalistas, econômicas e políticas, que começariam a despontar no Brasil a partir da década de 1920. Um novo tribunal (nem sempre judiciário), que preencheu o espaço livre deixado pela lei, constituindo a norma médica paradigma de julgamento dos corpos, suas funções e comportamentos.

 

Neste sentido, a vertente pedagógica passa a ser uma alternativa para o controle desse grupo social e a necessidade de escolarizar toda a população, defendida pelo movimento da Escola Nova, estende-se às crianças com deficiência, buscando, além de dar assistência médica, promover a identificação e condução disciplinar das crianças anormais[2]. Portanto, neste período, nota-se a expansão do atendimento especializado aos alunos com deficiência, conforme nos informa Mazzotta (2001, p. 31-32):

 

Na primeira metade do século XX, portanto, até 1950, havia quarenta estabelecimentos de ensino regular mantidos pelo poder público, sendo um federal e os demais estaduais, que prestavam algum tipo de atendimento escolar especial a deficientes mentais. Ainda, catorze estabelecimentos de ensino regular, dos quais um federal, nove estaduais e quatro particulares, atendiam também alunos com outras deficiências.

No mesmo período, três instituições especializadas (uma estadual e duas particulares) atendiam deficientes mentais e outras oito (três estaduais e cinco particulares) dedicavam-se à educação de outros deficientes.

 

Importante notarmos que é neste período, a primeira metade e início da segunda do século XX, que temos a criação de instituições importantes na condução da educação especial no Brasil, muitas delas filantrópicas, mas que recebiam verbas públicas, como a Assistência à Criança Defeituosa (AACD), fundada em 1950, e as Pestalozzi, fundadas em diferentes cidades, em diferentes anos, além de, no início da segunda metade do século XX, mais especificamente em 1954, no Rio de Janeiro, e em 1961, em São Paulo, a Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE). Estas instituições, junto à outras menos conhecidas, caracterizavam-se pelo atendimento educacional especializado, mas também ao atendimento médico-hospitalar com caráter assistencialista.

Se tornou muito popular, neste período, o termo reabilitação como objetivo da educação especializada. Segundo Mazzotta (2011), este termo se refere ao processo de tratamento de pessoas com deficiência por via médico-psicossocial, com vistas ao seu desenvolvimento físico, psíquico e social. Logo, tinha caráter multidisciplinar, envolvendo, além de atividades educacionais, outras que possibilitassem a melhora do quadro do deficiente. Importante salientar, ainda, que Mazzotta (2011) ainda explicita o termo habilitação, que, à época, era utilizado para crianças que já nasciam com a deficiência.

Mas, historicamente, o que mudou para que fosse possível uma nova postura perante a pessoa com deficiência e sua necessidade de educação, mesmo que não nos moldes do que consideramos ideal atualmente? Uma das explicações pode ser a chegada de Getúlio Vargas ao poder, em 1930, e a pretensão de um novo ideal de nação, onde o setor produtivo ganharia mais atenção, pois o projeto varguista é de desenvolvimento interno da economia, tendo como base o processo de industrialização e urbanização, logo

 

O crescimento industrial e a reurbanização de cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo tornaram mais patente a questão econômica como assunto do Estado e a consequência de sua participação: para quem eram dirigidos os gastos, estes deveriam ser devolvidos com aumento da produção. Seleção e hierarquização de trabalhadores conforme sua eficiência; seleção de alunos, homogeneização das turmas para maior eficiência do sistema de ensino. As vertentes da economia dos gastos e dos controles tornaram-se então mais visíveis pela apropriação por parte do Estado dos argumentos de médicos e pedagogos. Elas seguiram uma ordem de prioridades: primeiro o aproveitamento dos mais capazes, depois a recuperação dos menos capazes e por fim a manutenção em uma zona de sombra dos que sobraram dos dois primeiros dispositivos (LOBO, 2008, p. 390).

 

Em termos práticos, o que pode ter explicitado essa situação da educação brasileira como projeto de nação e, assim, trazendo a relevo a questão da educação especial, foi a fundação do Ministério da Educação e Saúde Pública, em 1930, por ocasião da estruturação do governo varguista. Ao longo da década de 1930 e nas seguintes, as redes regulares de ensino se expandiram, bem como o número de alunos e professores, além de outros agentes inseridos no sistema, deixando mais evidentes as mazelas sociais brasileiras à época.

Pelo que foi exposto, podemos notar que, entre a Proclamação da República e meados do século XX, a educação especial sofreu importantes transformações: se insere numa interpretação científica da deficiência, passa a contar com o poder público auxiliado por instituições especializadas, públicas ou privadas, para promover a habilitação e reabilitação das pessoas com deficiência e se insere num contexto de Brasil que pretendia engajar-se no capitalismo mundial como país que se industrializava, se urbanizava e se modernizava. Porém, ainda podemos notar o caráter precário com que se tratava a pessoa com deficiência, uma vez que ainda predominavam generalizações na definição do que era uma questão de patologia ou deficiência propriamente dita. Além disso, ainda predominava o caráter segregacionista da educação para  as pessoas com deficiência, mesmo com a ampliação das redes regulares após o Golpe de 1930.

 

 

A educação especial na segunda metade do século XX: a caminho da inclusão

 

Na segunda metade do século XX, o Brasil viu a continuidade de governos populistas, seguindo a tradição varguista, como nos casos de Juscelino Kubitschek e João Goulart e mais um golpe de Estado, em 1964, onde os militares, contado com o apoio de parte da sociedade civil, derrubaram o presidente eleito democraticamente. Neste contexto, tivemos a elaboração de um importante documento definidor da educação especial e de seu aluno  atendido: a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, no ano de 1961 (LDBEN/61). Vale lembrar que a problematização do atendimento ao deficiente vinha sendo objeto de debate desde a primeira metade do século XX, no contexto da expansão das redes de ensino.

Este documento fixava como objetivo da educação dos excepcionais[3] sua integração à sociedade, enquadrando-os, “quando for possível”, segundo seu artigo 88, ao sistema geral de educação. Ademais, garantia a participação de institutos especializados de caráter filantrópico e assistencialista como parte do sistema, podendo receber verbas públicas para sua atuação. Ou seja, a educação especial, em sua base, mantinha o caráter segregacionista, mesmo com vistas à integração do aluno com deficiência. É ele que deve se adaptar à escola e à sociedade, relegando, na prática, aqueles indivíduos mais comprometidos ao apagamento da convivência social.

Outro documento importante para entendermos a evolução conceitual e legal da legislação referente à educação especial no período, foi a Lei nº 5.692/71, que criou novas diretrizes e bases para os 1º e 2º Graus, colocando a educação especial atrelada ao ensino regular (MAZZOTTA, 2011).

Essas leis, no entanto, mesmo com o complemento de portarias ministeriais e interministeriais, não abrangeram o sentido real do atendimento especializado, pois não explicitavam a ideia de uma educação especial em sentido pedagógico pleno e usavam o termo excepcionais em sentido clínico e/ou terapêutico (MAZZOTTA, 2011). Logo, temos base para questionar o sentido legal e normativo adotado pelo Estado durante o regime militar, a somar-se que, nos Planos Nacionais de Educação do referido período, mesmo que haja referência a valores repassados pelo Estado para a educação dos excepcionais, nota-se um distanciamento em relação ao discurso governamental no que se refere ao desenvolvimento social, uma vez que vivíamos um regime sem liberdades e sem vistas ao avanço social e combate às desigualdades, além de evidentes desrespeitos aos direitos humanos. Além disso, seja na definição de uma educação mais adequada ou ao direcionamento do recurso financeiro, percebe-se uma maior ênfase às instituições especializadas, deixando notória a segregação e assistencialismo.

Podemos afirmar que, nas décadas de 1950, 1960 e 1970, a expansão dos institutos especializados se deu pela negligência do Estado em conceder de fato e não apenas legalmente uma educação regular aos alunos com deficiência e que isso só mudaria no contexto das lutas pela redemocratização do país, em especial na década de 1980. No período final da Ditadura Civil-Militar[4] brasileira, a luta pelas liberdades democráticas despertava o país para a emergência dos direitos sociais, dentre eles a educação e, no bojo, a educação da pessoa com deficiência.

Inicia-se ali a luta contra a segregação e a benevolência que marcavam a história da educação especial no Brasil, além do debate sobre os direitos da pessoa com deficiência como um sujeito de cidadania. Poderíamos citar como um dos elementos responsáveis pela discussão dos direitos das pessoas em sentido amplo, no cenário internacional, a crise econômica mundial da década de 1980, que viria a colocar fim à Guerra Fria. Na verdade, a década de 1980 foi um período de transformações, não só pelo fim do breve século XX, como sustentaria o historiador egípcio-britânico Eric J. Hobsbawm (1917-2012), em sua obra A Era dos Extremos, mas porque ali veríamos o nascimento do capitalismo com uma nova roupagem – o neoliberalismo – e a urgência de políticas que protegessem as pessoas das mazelas de crises econômicas como a daquela década.

Se na primeira metade do século XX a interpretação da pessoa com deficiência estava influenciada, no Brasil, pelas teorias psicanalíticas principalmente provenientes da França, a segunda metade do mesmo século veria a penetração da influência estadunidense, a exemplo da fundação das instituições assistencialistas filantrópicas e beneficentes, como a APAE.

Neste contexto, deveria ocorrer deslocamento da visão do deficiente para uma objetivação mais definida. Um ensaio se realizou quando o anormal se torna portador de deficiência, conforme mencionado nos artigos 7º, 23, 24, 37, 203, 208, 227 e 244 da redação original da Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Interessante observar que, neste contexto, o aluno especial é aquele que apresenta deficiência física e/ou mental, atraso escolar em relação à idade-série e os superdotados, pois os atos legais das décadas de 1970 e 1980 os garantiam tratamento especial (FERRARI, 2018). Na prática, porém, acabava não sendo assim. Podemos comparar essa situação pelo exposto a seguir.

Na primeira metade do século XX,

 

[...] anormal seria tudo que foge à norma. Nesse sentido tão amplo, os autores brasileiros descrevem classificações estrangeiras que ora limitam o termo a idiotas, imbecis, surdos-mudos e cegos, ora estendem-no aos mais diversos tipos de “déficit”, doença, lesão ou perturbação de qualquer natureza ou grau. Desse modo, incluem-se além dos já citados: os atrasados pedagógicos, retardados mentais, débeis mentais, os fisicamente débeis, astênicos ou preguiçosos, os paralíticos ou epiléticos, histéricos, os imbecis morais, instáveis, retardados instáveis ou mistos, indisciplinados, desequilibrados, as crianças maltratadas, viciosas, viciadas, abandonadas e as anomalias transitórias (LOBO, 2008, p. 379).

 

Já no fim do século XX, com a emergência da cidadania e das lutas pelos direitos sociais, o aluno com deficiência passa a ser definido como alguém que porta uma condição especial que deve ser observada pelo Estado ao oferecer o processo de escolarização. Entretanto, podemos perceber aqui uma permanência da primeira metade do século XX, pois há uma indefinição sobre

 

[...] a expressão ‘tratamento especial’, bem como o tipo de tratamento que receberiam os sujeitos superdotados e os sujeitos que não se enquadravam na idade regular de matrícula. Mais uma vez, o destino do aluno fica à mercê da classificação imposta pela lei, reforçando o encaminhamento dos alunos que escapam do padrão ‘normal’ para as classes e escolas especiais (FERRARI, 2018 p. 37).

 

Podemos perceber, desta maneira, que o quadro que se apresentava em relação às pessoas com deficiência, o sentido da educação especial e as reflexões sobre o tema estavam diante de uma nebulosa questão sociopolítica engendrada pelos impactos da proximidade do fim da Guerra Fria e do rearranjo político que daria rumo à uma nova sociedade, impactada pela ascensão do neoliberalismo e pelos órgãos mundiais de controle pairando sobre a sociedade brasileira, ainda marcada pelos resquícios da trágica experiência do regime militar e por um sistema de classes desigual e excludente.

Entretanto, como nos diz Perinni (2018, p. 56):

 

É perceptível que as contradições são parte dos movimentos históricos, sociais, culturais e esta constituição foi resultado de um longo processo de luta por reconhecimento de direitos.

 

Outrossim, a década de 1980, no Brasil, deve ser enxergada como aquela que deu condições legais para que pessoas e/ou instituições lutassem pelos direitos das pessoas com deficiência, direitos esses presentes em nossa Constituição Cidadã. A contradição a que Perinni (2018) se refere, fará com que o Brasil entre na década de 1990 com mais subsídios para questionar a realidade que ainda prevalecia.

E é neste contexto que, na última década do século XX, finda a Guerra Fria e, com a formatação de uma nova realidade mundial, veremos ocorrer importantes eventos internacionais que impactarão na conceituação do aluno e da educação especial, compondo uma nova realidade rumo à inclusão: a integração.

Dentre tais eventos, podemos citar a Conferência Mundial sobre Educação Especial, realizada em Salamanca, Espanha, no ano de 1994, que originou a elaboração da Declaração de Salamanca. Importante salientar que, apesar de o Brasil não ter participado da elaboração do documento, o governo brasileiro se comprometeu em construir um sistema escolar acolhedor e instituiu o termo inclusão nos discursos oficiais relativos à educação, como aponta Ferrari (2021).

É importante pontuar, ainda, que o momento em que este documento, bem como outros, impacta o Brasil era de crise econômica e estabelecimento de uma política neoliberal, reafirmando o que já havia sido evidenciado anteriormente, portanto, muitas das ações assumidas pelo governo brasileiro se fizeram por débito com instituições internacionais, como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. Assim, dava-se muita importância aos aspectos quantitativos, priorizando o acesso dos alunos com deficiência à escola. Desse modo, a inclusão pensada naquele momento tinha caráter conservador, até por não terem sido redigidas especificamente para a realidade brasileira do início da década de 1990. Entretanto, não podemos negar o valor histórico daquele momento na constituição da educação especial e inclusiva no Brasil.

Assim, a educação especial se torna ainda mais visível no ensino regular, mesmo que ainda houvesse uma tendência à presença maior destes indivíduosem instituições especializadas. Enfatizar a necessidade de integrar o aluno com deficiência, neste momento, significava que ele poderia estar na escola e que a escola deveria estar pronta a recebe-los. Era como se, ao aluno com deficiência, era oferecido estar na escola, apenas. Na prática, entretanto, o discurso de adaptação das escolas girava mais em torno da criação de um espaço físico apropriado (rampas de acesso, banheiro adaptado, transporte adequado, etc.) do que na adaptação do currículo, das metodologias, da formação do professor e do processo de ensino-aprendizagem.

No ano de 1996, durante o processo de integração do aluno com deficiência à escola regular, foram elaboradas novas diretrizes da educação brasileira, com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394 (LDB 9.394/96). Este documento introduziu e/ou reforçou novos conceitos referentes ao aluno com deficiência e à educação especial. O primeiro estava definido como um sujeito com necessidades especiais, conforme o Inciso III, do artigo 4º de sua redação original; e a segunda, como a modalidade de educação escolar oferecida para alunos portadores de necessidades especiais, conforme o artigo 58, também de sua redação original.

Na história da educação especial brasileira, a década de 1990 termina com muitos dilemas: quem é o aluno especial ou o que é necessidade especial? O que significa portar uma necessidade especial? A educação especial é demanda do Estado ou de instituições especializadas? Perguntas que parecem ter respostas óbvias, mas que ainda suscitavam debates acalorados, pois a própria continuação da segregação era legal, uma vez que muitos alunos com deficiência tinham a opção de não frequentar a escola regular por causa de dispositivos legais que não poderiam passar despercebidos nesta pesquisa, como o termo preferencialmente, presente em documentos oficiais desde a LDB/61, passando pela Constituição de 1988 e pela LDB/96, que davam a opção de frequência destes indivíduosem locais separados de outros alunos, ou como no parágrafo 2º do artigo 58 da LDB/96, que desobriga a presença do aluno com necessidades especiais quando sua integração ao ensino regular não for possível.

 

O que reservava o século XXI?

 

Depois de pouco mais de duas décadas do século XXI, o que podemos apresentar como avanços na conceituação do aluno e da educação especial? Antes de tentar responder a esta questão, é importante analisar o contexto histórico em que nasce o novo século no Brasil. Após cerca de vinte e um anos de ditadura e quase duas décadas de governos de direita, o Brasil chegou ao século XXI com uma certeza: era hora de olhar o social. As marcas deixadas pelos governos neoliberais dos anos 1990 e início dos anos 2000 eram de recuperação econômica, mas de forma muito dura para o povo brasileiro, haja vista as premissas do Plano Real, responsável por tirar o Brasil da crise pós-regime militar, mas com o fardo sendo carregado pelo povo: aumento de impostos, falta de investimentos em infraestrutura, saúde e educação e privatizações, além do desamparo aos mais vulneráveis.

A maior prova dessa virada para o social foi a eleição, pela primeira vez depois da ditadura, de um político de esquerda, Luís Inácio Lula da Silva, que governou entre 2003 e 2011. Neste período, foram notórios os avanços sociais, com especial olhar para o amparo aos mais necessitados, com vários programas sociais; maior pluralidade no exercício do poder; e maiores investimentos em infraestrutura, por exemplo, com os Programas de Aceleração do Crescimento (PAC’S). Não nos interessa aqui apontar as contradições deste governo, sucedido pela presidenta Dilma Rousseff (2011-2016), e interrompido pela guinada midiático-política à direita no cenário nacional, que produziu o fenômeno de extrema-direita, Jair Messias Bolsonaro, ex-chefe do poder executivo. Nos interessa pontuar os ganhos sociais e avanços proporcionados por tal período que, inclusive, foi de grande crescimento econômico – principalmente a primeira década deste século. Também nos interessa relevar que foi em tal momento de nossa história que a educação especial ganhou traços mais delineados e conceituações mais ligadas à inclusão. Tais avanços não seriam possíveis num contexto de conservadorismo e manutenção de antigas interpretações sobre a educação, inclusive a educação especial.

A tendência foi abandonar a concepção de que o aluno público-alvo da educação especial[5], por sua condição específica, era alguém inadequado ao sistema regular de ensino para emergir uma concepção realmente pedagógica do sujeito com deficiência, ou seja, deficiência e dimensão pedagógica não são pontos contraditórios, muito pelo contrário. Todos os alunos têm suas especificidades, sejam elas advindas de alguma condição orgânica ou social e o sistema de ensino está aí para atendê-los, não tomando por base o que ele não pode atingir, mas o que ele é capaz de realizar dentro de um meio organizado para tal, conforme defende o Plano Nacional de Educação Especial de 2008, importante documento orientador de conceitos relativos ao aluno e à educação especial. Neste documento, o aluno público-alvo da educação especial é assim definido:

 

Consideram-se alunos com deficiência aqueles que têm impedimentos de longo prazo, de natureza física, mental, intelectual ou sensorial, que em interação com diversas barreiras podem ter restringida sua participação plena e efetiva na escola e na sociedade. Os alunos com transtornos globais do desenvolvimento são aqueles que apresentam alterações qualitativas das interações sociais recíprocas e na comunicação, um repertório de interesses e atividades restrito, estereotipado e repetitivo. Incluem-se nesse grupo alunos com autismo, síndromes do espectro do autismo e psicose infantil. Alunos com altas habilidades/superdotação demonstram potencial elevado em qualquer uma das seguintes áreas, isoladas ou combinadas: intelectual, acadêmica, liderança, psicomotricidade e artes. Também apresentam elevada criatividade, grande envolvimento na aprendizagem e realização de tarefas em áreas de seu interesse. Dentre os transtornos funcionais específicos estão: dislexia, disortografia, disgrafia, discalculia, transtorno de atenção e hiperatividade, entre outros (BRASIL, 2008).

 

Interessante notar que, na sequência do documento, é ressaltada a importância de não se levar de maneira cristalizada esta definição, uma vez que existem diferentes níveis e potencialidades ligadas aos indivíduos, tratados como singulares em sua objetivação humana.

Seguindo nesta linha de interpretação, o aluno público-alvo da educação especial será definido como o sujeito com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, conforme redação da Lei nº 13.796/2013, que alterou o texto da LDB/96, que definia o aluno especial como portador de necessidades especiais. Outrossim, podemos perceber que o conceito de deficiência se torna mais objetivado[6], criando a necessidade de uma melhor definição da educação especial, uma vez que, desde à Constituição de 1988 o direito à educação é um direito de todos e a escola deve ser de todos e para todos.

Assim, o ambiente escolar deve se adaptar para receber o aluno especial em suas diversas matizes, em suas especificidades. Não se trata mais de, na educação especial, adaptar o aluno ao meio, mas criar um meio propício para a aprendizagem do aluno com deficiência, levando em conta suas potencialidades, coisa que se estende a todos os alunos, pois o aluno especial, antes de mais nada, é um aluno da escola, tecido social e necessidade básica de qualquer sociedade que quer se tornar evoluída. Para tanto, a educação especial deveria perder seu caráter de segregação ou integração, incluindo o aluno com deficiência em todos os processos, na sala comum e/ou com atendimento personalizado especial para atingir seus objetivos de aprendizagem.

Para muitos especialistas, a educação especial deve ocorrer no ambiente da escola comum e foi justamente neste século que este aspecto aparece com mais destaque, conforme nos dizem Kassar e Rebelo (2018, p. 63):

 

O princípio de que a inclusão se fundamenta na frequência de todas as crianças na escola comum foi adotado no governo Lula e, na gestão de Dilma, fortaleceu-se a ideia de que outra forma de atenção que não ocorresse em salas comuns seria vista como segregação e de desrespeito aos Direitos Humanos, discurso este presente em documentos orientadores.

 

Com a ampliação dos espaços ocupados por esses indivíduos, a própria noção de docente deveria passar por uma transformação. O professor é aquele que conhece seu aluno especial e medeia seu desenvolvimento de acordo com as suas possibilidades. O professor se torna, ainda mais, um importante ativo de transformação social, responsável pela inclusão destes indivíduosno meio social representado pela escola, mas que não está separada da vida de fora de seus portões.

 

Para tanto, deve o professor mediar o saber do ponto de vista positivo[7], pois o aluno com deficiência pode aprender tanto quanto qualquer outro. Quando o professor vê o aluno com deficiência como alguém limitado, com uma barreira para aprender,

 

[...] a diferença não é vista como sinônimo de diversidade: diferença tem o peso do entendimento negativo, em que ao aluno são atribuídas características que o transformam em deficiente. Dadas as peculiaridades, cada aluno deveria receber atendimentos diferenciados, sem que isso se constituísse demérito e desencadeasse um processo de marginalização (DENARI, 2006, p. 39).

 

Neste sentido, o aluno especial é especial em seu atendimento, mas é um aluno como outro qualquer da escola: com seu desenvolvimento próprio, com suas características pessoais e sociais, com seus sonhos, seus medos e suas pretensões, seus processos de avaliação. O que muda? A importância à palavra equidade, entendida aqui como a oportunização para o desenvolvimento do sujeito no meio social em que ele está inserido. No século XXI, esta é a educação especial que surge, uma educação equânime, que inclui o aluno com deficiência não por suas características biológicas específicas, mas por se tratar de um sujeito de direitos e de possibilidades.

Melo (2014), nos chama a atenção para a interpretação social da deficiência, entendida por ele e outros especialistas como uma construção histórico-social. Para ele, a deficiência não deve ser encarada como um impedimento, mas como uma possibilidade de diferentes modos de aprendizagem a partir da forma de como o meio é organizado para o aluno público-alvo da educação especial e completa dizendo que

 

Mesmo que possua biologicamente uma deficiência, ou melhor, um impedimento orgânico, independente [sic] de você ter consciência ou não de sua condição física e social, você vive ou não uma deficiência em função do reconhecimento social (ou a falta dele) de suas condições objetivas e subjetivas de existência. Você é ou não uma pessoa com deficiência, pela forma como a sociedade em que se está inserido te encara, te recebe e te acolhe, material e subjetivamente (MELO, 2014, p. 57).

 

Skliar (2006, p. 17) corroborando o argumento anterior, vê a educação especial no século XXI como uma superação da dicotomia normal e anormal, quando enfatiza que

 

[...] é possível afirmar que a “educação especial” não existe, mas sim uma invenção disciplinar, desordenada, heterogênea, criada pelas idéias [sic] e os conceitos vagos do “normal”, da “norma”, da “normalidade”. Tal invenção disciplinar talvez tenha tido como objetivo principal, em sua origem, a pretensão de ordenar a desordem originada pela perturbação dessa outra invenção, dessa outra fabricação, dessa outra produção que chamamos habitualmente de “anormalidade”.

 

Baseados na fala de Skliar, entendemos a educação especial hoje como uma modalidade de ensino, introduzida pela LDB/96, e que, como tal, está inserida em todo processo escolar comum. Não podemos enxergar a educação especial como a educação do diferente, mas como do aluno singular, dentro de um universo de alunos singulares que compõem o todo da escola. A educação especial, na atualidade, não deve ser movida pelo laudismo que perpetua a ótica médica na educação. Superando isso, a educação especial será uma vertente pedagógica importante para a busca pela igualdade tão necessária nas maneiras de ensinar e aprender.

 

Considerações finais

 

Por meio do levantamento das informações, pudemos perceber como o século XIX foi o século da segregação e do preconceito para com as pessoas com deficiência. Naquele período, a educação especial esteve voltada para as atividades laborais para alunos com deficiências menos visíveis e todos carregavam estigmas de uma sociedade baseada na tradição médico-mística-religiosa. A passagem dos séculos XIX ao XX, por sua vez, teve como características, a preocupação higienista e a intepretação psicologicista da deficiência no contexto do capitalismo em expansão. Na segunda metade do século XX, assistimos o surgimento dos institutos especializados, por influência dos movimentos internacionais, e sua liderança na responsabilidade pela educação especial, sendo que será a partir da década de 1980, e a luta pela democracia, que presenciaremos o movimento pela inclusão, que passará pela nova realidade do neoliberalismo e as novidades legais do Brasil de fins do século XX e início do XXI, que trarão à lume a inclusão e a vertente pedagógica como conceitos essenciais da educação especial.

Estas questões nos chamam à necessidade de um olhar histórico sobre a trajetória do aluno e da educação especial, tornando-se de grande importância a ruptura com velhas concepções que o descaracterizam como um sujeito de direitos, como qualquer cidadão presente numa sociedade democrática.

Na escola, o aluno especial deve ter o conhecimento mediado pela via pedagógica, não sendo reduzido a um laudo apresentado no momento da matrícula, pois, como vimos ele carrega em si, como potência, a capacidade de aprendizagem como qualquer outro aluno, ou seja, de acordo com suas possibilidades, coisa comum em alunos que também não apresentam alguma limitação orgânica. Neste sentido, o laudo, de responsabilidade médica[8], deve ser mais uma ferramenta da escola para o planejamento das atividades pedagógicas.

Essa nova interpretação do aluno com deficiência exige uma postura radical para afirmarmos o aluno público-alvo da educação especial como um aluno. Talvez estejamos diante de um dilema: em uma sociedade tão excludente quanto a brasileira, a educação especial tem sido um processo de aprendizagem que tem vistas à inclusão ou estamos diante de um debate teórico que não chega à prática cotidiana? Seria apenas uma batalha de conceitos e definições? Ainda temos bem mais da metade do século XXI pela frente e a certeza de que a educação especial, bem como seu público-alvo, está em construção dentro do tecido social historicamente situado.

Inclusive, a própria história revela a necessidade de desenvolvermos a palavra, pois os termos aos serem debatidos, geram transformações políticas que podem surtir efeito na prática, mesmo que a longo prazo. Como vimos, a caminhada rumo à inclusão foi longa e motivada por diferentes contextos, mas hoje temos um norte, um caminho a percorrer rumo a um destino que queremos enquanto sociedade: a equidade. São se trata de criar estigmas, mas entender que pessoas partem de lugares diferentes, e têm em comum o direito e a capacidade pessoal de ser. Conquanto, também se faz necessário repensar o próprio paradigma atual em que vivemos: uma sociedade capitalista que prega a competição e o individualismo, dentro de valores empresariais burgueses.

Portanto, entendemos que é de suma importância pensar, analisar e debater a temática de quem é o aluno especial e o que seria uma educação especial ideal, não para criar rótulos com base na diferença, mas garantir que, numa sociedade tão plural, todos sejam contemplados com a possibilidade de existirem enquanto seres sociais, se desenvolverem enquanto indivíduos autônomos e fazerem parte de um contexto histórico que os valorize.

 

 

Referências

 

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VIGOTSKI, Lev Semionovitch. Obras completas – Tomo Cinco: Fundamentos de Defectologia. Tradução do Programa de Ações Relativas às Pessoas com Necessidades Especiais (PEE); revisão da tradução por Guillermo Arias Beatón. Cascavel: EDUNIOESTE, 2019.

 

 Modalidade do artigo: Relato de pesquisa (x)  Revisão de Literatura (  )



[1] Termo utilizado à época para se referir à deficiência física ou intelectual.

[2] Termo utilizado à época e que passou a compor os discursos médicos-pedagógicos referentes às crianças com deficiência (LOBO, 2008).

[3] Termo que consta no Título X da Lei 4.2024, de 20 de dezembro de 1961 (LDBEN/61), utilizado à época.

[4] Utilizamos a expressão Civil-Militar, por entendermos, em consonância com a historiografia atual, que o Golpe de 1964, que instituiu o regime militar no Brasil, contou com o apoio de parte da sociedade civil: parlamentares, elites burguesa e rural, Igreja Católica, dentre outros setores.

[5] Termo cunhado na Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, publicada em 2008, e que se refere aos alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades e superdotação.

[6] Por influência da Convenção da Guatemala, o Brasil aprimora o conceito de deficiência com o Decreto nº 3.956 de 8 de outubro de 2001. Sobre a conceituação presente neste ato legal, há o desenvolvimento de outros conceitos nos anos seguintes.

[7] Educar pelo positivo, neste contexto, não se refere ao que foi idealizado por Auguste Comte (1798-1857), na formulação do ideário positivista, mas ao que Vigotski se refere na obra Fundamentos de Defectologia, quando sugere abordar as capacidades dos alunos com deficiência pelo que lhes capacita a aprender e não aos seus impedimentos orgânicos.

[8] No caso de alguns transtornos, a responsabilidade do laudo também pode ficar a cargo do profissional da Psicologia.

 

 

 

 

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