http://dx.doi.org/10.5902/1984686X71470

Fundamentalismo e deficiência: a obstinação moderna pela igualdade

Fundamentalism and disability: modern obstination for equality

Fundamentalismo y discapacidad: obstinación moderna por la igualdad

Maura Corcini Lopes

Professora doutora da Universidade do Vale do Rio dos Sinos, São Leopoldo, RS, Brasil

E-mail: maura@unisinos.br ORCID: https://orcid.org/0000-0002-2419-9208

Alfredo José da Veiga-Neto

Professor doutor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

E-mail: alfredoveiganeto@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-7148-3578

Recebido em 26 de agosto de 2022

Aprovado em 07 de outubro de 2022

Publicado em 08 de dezembro de 2022

RESUMO

A igualdade é um ideal perseguido pela Modernidade; porém quanto mais a defendemos, parece que mais nos afastamos dela. Aqui, assume-se o pressuposto de que tal afastamento conecta-se com uma crescente adesão a variados “tipos” de fundamentalismos. Para compreender as conexões entre o ideal da igualdade e os fundamentalismos contemporâneos, aborda-se a relação entre os discursos pela igualdade e a deficiência, com foco nos mecanismos de positivação das desigualdades, circulando nas escolas de educação básica. Entende-se por positivação das desigualdades as práticas que marcam a presença da pessoa com deficiência e somam (de)méritos àqueles que com ela convive. As estatísticas das matrículas — da inclusão de pessoas com deficiência nas escolas de Educação Básica — e as narrativas docentes sobre práticas pedagógicas permitem concluir que discursos fundamentalistas sustentam a positivação das desigualdades e estigmatizam as pessoas com deficiência.

Palavras-chave: Normalidade; Desigualdades; Inclusão.

ABSTRACT

Equality is an ideal pursued by Modernity; but the more we defend it, it seems that we are further away from it. Here, the assumption is made that such a departure is connected with a growing adherence to various “types” of fundamentalism. In order to understand the connections between the ideal of equality and contemporary fundamentalism, the relationship between the discourses for equality and disability is approached, focusing on the mechanisms of positivization of inequalities, circulating in basic education schools. The positivization of inequalities is understood to be the practices that mark the presence of people with disabilities and add (de)merits to those who live with them. Enrollment statistics — on the inclusion of people with disabilities in Basic Education schools — and teachers' narratives about pedagogical practices allow us to conclude that fundamentalist discourses support the positivization of inequalities and stigmatize people with disabilities.

Keywords: Normality; Inequalities; Inclusion.

RESUMEN

La igualdad es un ideal perseguido por la Modernidad; pero cuanto más lo defendemos, más parece que nos apartamos de él. Aquí, se asume que tal desviación está relacionada con una creciente adhesión a varios “tipos” de fundamentalismo. Para comprender las conexiones entre el ideal de igualdad y el fundamentalismo contemporáneo, se aborda la relación entre los discursos por la igualdad y la discapacidad, centrándose en los mecanismos de positivización de las desigualdades, que circulan en las escuelas de educación básica. Se entiende por positivación de las desigualdades las prácticas que marcan la presencia del discapacitado y suman (des)méritos a quienes conviven con él. Las estadísticas de matrícula —sobre la inclusión de personas con discapacidad en las escuelas de Educación Básica— y las narrativas de los docentes sobre las prácticas pedagógicas permiten concluir que los discursos fundamentalistas apoyan la positivización de las desigualdades y estigmatizan a las personas con discapacidad.

Palabras clave: Normalidad; Desigualdades; Inclusión.

Introdução

A partir da perspectiva sociológica apresentada por Dubet (2020), pode-se dizer que a busca pela igualdade é um princípio perseguido pela Modernidade, em todas as suas formas de caracterização. Se a igualdade funciona como um princípio de Estado em países em que crescem as desigualdades, investir na diminuição das desigualdades tornou-se uma condição inegociável para a viabilidade da Modernidade. Todavia, na Contemporaneidade, ao invés da diminuição da desigualdade tem-se observado o fenômeno de sua multiplicação. A diversificação das desigualdades se dá sobre bases econômicas, complexificando as leituras dos acontecimentos que materializam lutas, exclusões históricas, ressentimentos e, em parte, explicam o crescimento de sentimentos de ódio, de essencialismos culturais, de pertencimento de indivíduos a comunidades que buscam em si mesmas a segurança de que necessitam para sobreviver etc.

Seguindo o raciocínio que abre este texto, por um lado, as reflexões aqui construídas são, em parte, alimentadas por autores da sociologia crítica que tensionam as manifestações sociais típicas deste tempo; por outro lado, tais reflexões são inspiradas em resultados de pesquisas realizadas no campo da educação, mais especificamente, com docentes atuantes em escolas de Educação Básica brasileiras, nos últimos 20 anos. Sobre as pesquisas, vale ressaltar que seus dados — extraídos de mais de 100 narrativas docentes gravadas e transcritas sobre suas práticas pedagógicas —, não serão diretamente explicitados aqui; mas eles possuem a função de servirem como materialidades para as análises de contexto expostas a seguir. Os dados referidos anteriormente estão sendo produzidos há mais de 5 anos e compõem o banco de dados analisados por pesquisadores do campo da educação, atentos às muitas formas de ressignificação dos saberes docentes sobre a inclusão. Feito estes esclarecimentos iniciais, seguimos com as discussões propostas.

Ao olhar para o cenário social e educacional brasileiro — por mais turvo e difícil que seja sua leitura — estatisticamente percebe-se que, nas duas primeiras décadas do século XXI, o Brasil saiu de um cenário laico, otimista e próspero para um cenário de crises, de incertezas, de fortalecimento de práticas fundamentalistas e de notável fragilidade democrática. Todas essas transformações resumem um panorama construído sobre desigualdades múltiplas, que foram asseveradas pela pobreza e pela miséria da população agudizadas pela pandemia da Covid-19, a partir do início de 2020.

Conforme escreveram Barbosa, Souza e Soares (2020, p. 1), “entre 2001 e 2011, a renda média das famílias cresceu mais de 30%, a desigualdade medida pelo coeficiente de Gini caiu mais de 10%, e as taxas de extrema pobreza e de pobreza recuaram, respectivamente 4 e 12 pontos percentuais.” Aqueles autores alertam que, embora aguardássemos uma continuidade do cenário próspero vivido até 2015, o que o Brasil acabou vivenciando “foi a perda de controle sobre as contas públicas, a pior recessão desde a redemocratização, um impeachment traumático, a eleição mais polarizada da nossa história e a recuperação econômica mais lenta que já experimentamos.” (BARBOSA, SOUSA, SOARES, 2020, p.1). Eles marcam o ano de 2015 como um divisor de águas; se antes daquele ano a renda média da população havia aumentado 6,6% (entre 2012 e 2014), em 2015 a renda média cai para 3,3%. Resumindo: de 2015 em diante, com destaque para os anos de 2020 e 2021, assistimos ao Brasil entrando com passos largos em uma profunda crise generalizada. Em 2021, o rendimento médio mensal domiciliar por pessoa foi de R$ 1.353,00. Tal valor, conforme Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio (PNAD, 2021), foi o mais baixo desde o ano de 2012. E as regiões Norte e Nordeste seguem sendo as mais afetadas, apresentando valores de R$ 843,00 per capta.

De 2015 para cá, aqueles indivíduos situados mais na periferia do gradiente inclusivo — ou seja, aqueles que viviam mais próximos à linha da pobreza e da pobreza absoluta — foram mais fortemente impactados com a diminuição da renda e com a falta de políticas de Estado para contensão e reversão das desigualdades. Seguindo uma tendência fortemente vivida até o século XX, a desigualdade, embora minimizada na primeira década até meados da segunda década do século XXI, seguiu no encalço dos brasileiros. Sem tempo suficiente para viradas radicais nas condições de vida da população, o Brasil parece ter seguido um projeto histórico e (ironicamente) exitoso de desigualdades. Em 2020, 58% das riquezas estavam concentradas em 1% da população. Pelo índice de Gini — coeficiente que calcula o grau de desigualdades de uma economia — em 2010, o indicador da desigualdade estava em 82,2; em 2020, ele subiu para 89. Tal fato mostra que temos mais desigualdades do que nunca e que a concentração de renda no país é ainda mais expressiva.

Além da desigualdade de renda, também é visível o empobrecimento mais acentuado da população negra brasileira. Conforme dados publicados por Silva e Silva (2021, p. 47)

As pessoas que se declararam pretas e pardas correspondiam em junho de 2020 a 54,9% da força de trabalho, sendo 52,5% dos ocupados e 60,3% dos desocupados. Durante os primeiros meses da pandemia no país, a taxa de desocupação cresceu para todos os grupos de cor ou raça, com média geral passando de 10,7% para 13,1% entre maio e julho. Considerando-se somente a população negra – homens e mulheres –, essa elevação foi ainda superior: passou de 10,7% e 13,8% para, respectivamente, 12,7% e 17,6% [...]. (p. 47)

Os dados acima mostram que as desigualdades são ainda mais nocivas para a população negra, que se vê alijada de condições de participação e de inclusão no mercado de trabalho.

Considerando a educação dentro do cenário das desigualdades, mais especificamente da educação básica, as estatísticas mostram a situação dramática de degeneração social no Brasil. Conforme dados do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF, 2021), no ano de 2020, 623.187 estudantes das redes públicas de ensino abandonaram a escola. Desse total, 329.058 são pretos, pardos e indígenas. Nas regiões Norte e Nordeste, estão os maiores índices de abandono. A pobreza e a pobreza absoluta crescentes, somadas à falta de escolas, torna ainda mais grave a situação do país. Embora estejamos vivendo práticas crescentes de vigilância policial, cuidado e algumas tentativas de aproximação entre tipos distintos de indivíduos, observa-se claramente um crescimento da barbárie.

No ano de 2020, 4 milhões de estudantes abandonaram a escola. Como justificativas para tal realidade são apontados problemas financeiros das famílias, falta de acesso à internet, falta de contato (de qualquer natureza) com a escola, problemas familiares e de saúde etc. Na base do conjunto das justificativas dadas para o abandono de crianças e de jovens da escola, estão o descaso governamental, o crescimento das desigualdades, as condições da escola, a pobreza, entre outras. Enfim, como escrevem Lopes e Veiga-Neto (2022, p. 80-81):

A pandemia mostra que, nos limites de uma governamentalidade neoliberal, apenas o mercado — sem um Estado gestor e interventor forte na promoção de condições básicas de vida da população — não consegue dar conta de, em meio à crise, mobilizar esforços para encontrar saídas inovadoras para os problemas que enfrentamos. Os mecanismos de economização financeira das vidas, que operam por dentro das tecnologias de subjetivação, não encontram terreno fértil em países em que a miséria cresce de forma descontrolada e a educação e a escola não operam com qualidade para atingir a todos.

Seguindo na mesma esteira de argumentação dos autores se, conforme Foucault (2008), nunca se governa um Estado, um território, mas sim pessoas, indivíduos e população, o Brasil tem demonstrado viver uma intensa crise não só de governo, mas de governamentalidade, pois aqui se carece de uma educação mínima capaz de gerar autonomia, espírito crítico e posicionamento minimamente claro e refletido diante do vivido. A falta da educação e, por dentro dela, da escola e de uma formação crítica, associadas às crescentes desigualdades e à pobreza da população, poderão se converter, devido aos intensos processos de degradação humana, em elementos de profunda crise de humanidade. Tal crise tende a ser intensificada por um estado generalizado de violências. Violências que podem ser observadas na exacerbação da competição, na precarização da vida e na vontade moderna de limpeza e normalidade.

No que se refere à educação, os dados estatísticos mostram que entre os anos de 1990 e 2018, a igualdade de acesso à escola era muito animadora. Todavia, em um movimento contraditório e até ambivalente, no mesmo período, as desigualdades se expandiram e se complexificaram. Neste contexto, cruzam-se atravessamentos de gênero, de raça/etnia, de religiosidade, de neurodiversidade e de performances identitárias diferenciais que dificultaram a realização das premissas de igualdade e de democracia idealizadas na Modernidade.

Como brasileiros e brasileiras, não nos espanta afirmar que na Modernidade a escola passa a ser um espaço no qual — mergulhada em uma ambiência neoliberal —, tecnologias meritocráticas e identitárias cruzam-se com tecnologias redencionistas, de base fundamentalista, a operarem sobre os indivíduos. Em tal operação, aponta-se o uso de mecanismos de positivação das desigualdades para exemplificar tal processo. Para tanto, faz-se referência a experiências pedagógicas em que alunos com deficiência (ou ditos diferentes) são tidos como presença positiva ou desafiante para o amadurecimento e o aprendizado dos demais. Como um desafio, comportamentos restritivos do sujeito permanecem sendo observados e marcados como problemas e até mesmo como ameaças para os que desejam a redenção por tolerância e como estigma para aquele que segue sendo apontado e castigado pela sua presença. Conclui-se que — mesmo após todo o investimento nas políticas de inclusão, feito nas duas últimas décadas —, sustentando a positivação da desigualdade, estão discursos fundamentalistas que, paradoxalmente ao marcarem e perseguirem os ideais da igualdade e da normalidade, continuam a estigmatizar a pessoa com deficiência. Entende-se por positivação da desigualdade todo um movimento, fortalecido por discursos fundamentalistas religiosos, que marca a presença da pessoa com deficiência na sociedade, inscrevendo-a como uma figura necessária para a reafirmação da normalidade como uma condição meritória.

Depois desta breve introdução contextualizadora, o artigo se subdivide em três seções. A primeira desdobra o tema da Modernidade articulando-o ao neoliberalismo e aos fenômenos da igualdade e das desigualdades múltiplas. A segunda seção aborda o fundamentalismo religioso presente no contexto da educação e, mais especificamente, nas pedagogias modernas. Foca-se na abordagem da deficiência como uma ocorrência que, ao distinguir negativamente quem a possui, exalta o mérito cristão daquele que a tolera e que com ela convive. Na terceira seção, são feitas algumas reflexões a partir de pesquisas com narrativas docentes sobre suas práticas pedagógicas, a fim de discutir os mecanismos de positivação das desigualdades em circulação nas escolas de educação básica. Por fim e de modo um tanto provisório, chega-se a algumas considerações finais.

Modernidade, neoliberalismo e (des)igualdades múltiplas

O objetivo desta seção é abordar resumidamente alguns aspectos da Modernidade, de modo a articulá-la ao neoliberalismo e aos fenômenos da igualdade e das desigualdades múltiplas. Para tanto, embora a Modernidade tenha sido amplamente tematizada por inúmeros pesquisadores, vale recuperá-la para mostrar suas vinculações com a igualdade e, por extensão, com as desigualdades. Tais vinculações, na Contemporaneidade, fazem sentido se postas em um contexto cultural neoliberal, pois esse não se resume a uma doutrina econômica, mas vai muito além disso: trata-se de uma racionalidade que se estende a todas as esferas da vida. Seguimos Michel Foucault (2008a), para quem, como bem sabemos, o neoliberalismo deve ser compreendido como uma forma de vida, como uma lebensform. Todas as práticas engendradas nessa forma de vida, nessa racionalidade imperativa constituem projetos de sociedade e de sujeitos convertidos em agências de investimentos capitais, cada vez mais voltados para a competição com os outros e, mais ainda, para a competição consigo mesmos (autocompetição).

Há muitas divergências na datação do começo da Modernidade. De forma inicial e até esquemática, os inícios culturais da Modernidade podem ser apontados na Reforma Protestante, no Renascimento e no movimento iluminista do século XVIII. Para Giddens (1991), em meio a um acelerado movimento de urbanização, a Modernidade se estabeleceu a partir de algumas marcas, por exemplo: abertura para a secularização; emergência das lógicas da coletivização e divisão do trabalho, da produção industrial e da economia de mercado; emergência dos Estados modernos, das democracias de massa e da ciência. Tais marcas agregaram à Modernidade a noção secularização e de progresso, em oposição a um espírito conservador de inspiração religiosa que predominou ao longo da Idade Média. Trata-se da exaltação da racionalidade orquestrada por uma lógica de razão instrumental. (PINKER, 2018)

Para Foucault (2006), a Modernidade deveria ser marcada mais como uma atitude e menos do que como um tempo histórico. Veiga-Neto e Lopes (2010, p. 152), escrevem, inspirados no pensamento foucaultiano, que a Modernidade é “um período em que o Homem foi pensado e colocado no centro e como alfa e ômega do mundo”. Isso significa “romper com a transcendência e com as representações divinas que o pensamento medieval havia construído em torno do humano” (VEIGA-NETO, LOPES, 2010, p. 152). Tal afirmação remete à compreensão de que o éthos de Modernidade exigia uma atitude de compromisso com seu tempo. Como argumenta Foucault (2006, p. 568), trata-se de “uma maneira de pensar e de sentir, e também uma maneira de agir e de se conduzir que, ao mesmo tempo, marca um pertencimento e se apresenta como uma tarefa”.

Veiga-Neto e Lopes (2010, p. 152-153), ao destacarem as divisões da Modernidade, afirmam que a primeira significou a negação da transcendência e de forma simétrica a essa, a relevância da imanência de um novo paradigma de vida. A Modernidade “pautou-se pela crença de que o planejamento do futuro e a sua consecução eram questões seculares, dependentes de nós e de nosso engenho e capacidade de criar e gerir [...]” (LOPES, VEIGA-NETO, 2022, p. 78); a segunda Modernidade reinstaurou a transcendência, porém não tendo essa um cunho místico, mas sim um cunho secular. A segunda Modernidade quer dominar o desejo. Trata-se de uma Modernidade

transcendente e laica, em que se estabeleceram as condições de possibilidade para a invenção das metanarrativas modernas, levadas às últimas consequências com o Iluminismo, quase dois séculos mais tarde. É principalmente com essa Segunda Modernidade — secular, mas que repôs em seu laicismo boa parte da transcendência religiosa medieval — que a pedagogia se articula, se firma e se dissemina como um conjunto de saberes laicos, mas de acento fortemente transcendente e fundacionalista. (VEIGA-NETO, LOPES, 2010, p. 153).

A terceira Modernidade está fortemente marcada pela queda do Muro de Berlim (1989), pela digitalidade, pela flexibilidade, pela personalização dos investimentos, pela velocidade e por movimentos contraditórios que entendem a diversidade como um problema que ameaça o consenso e a emergência de um líder, em nome do fortalecimento de uma massa (ECO, 2021). Nos campos sociais e educacionais, a terceira Modernidade está marcada pelas lutas identitárias, pela fragilidade formativo-crítica, pela in/exclusão, pelos ressentimentos étnicos, religiosos, de gênero, de classe, entre outros. Articulada à tecnologia digital, a terceira Modernidade tende a investir na produção de dados e na inclusão de indivíduos na sociedade da informação. Em meio a movimentos contraditórios, essa “Modernidade contemporânea” tende também a robustecer os problemas históricos não resolvidos, como é o caso, por exemplo, das desigualdades múltiplas e do estabelecimento de um estado de violência generalizada. Igualmente, tende a asseverar os fundamentalismos e as muitas formas de manifestações de fascismos que esfumaçam e perturbam a racionalidade moderna.

Aqui, cabe um rápido comentário acerca dos fundamentalismos nos quais se ancora o pensamento pedagógico moderno. De uma maneira um tanto radical, talvez se possa dizer que o pensamento educacional hoje não consegue se desvincular dos fundamentalismos sobre os quais e a partir dos quais ele se estruturou, desde a escolástica medieval até as teorias pedagógicas mais atuais. (VEIGA-NETO, 2004)

O amplo campo das teorias e práticas pedagógicas assenta-se numa forte tradição tributária dos fundamentalismos herdados a partir da articulação entre o neoplatonismo medieval e as doutrinas do cristianismo primitivo. Aquilo que, em sintonia com Werner Jaeger (2016), podemos chamar de “fundamentos remotos do pensamento ocidental”, transferiu-se ampla, mas sub-repticiamente, para os modos de pensar das diferentes culturas europeias. Uma vez impregnando na base os modos de pensar ao longo do primeiro milênio europeu, os fundamentalismos se invisibilizaram e foram — e continuam sendo até hoje — tomados como naturais e, consequentemente, como necessários.

Assim é que praticamente todo o edifício epistemológico no campo da Educação moderna — ou, se quisermos, da Pedagogia, aqui entendida como o conjunto das teorias e correlatas práticas educacionais — está assentado nos e se alimenta dos pensamentos de matriz fundamentalista. Aí estão dadas, então, as condições de possibilidade para a articulação automática e quase natural entre, por exemplo, a educação e os fundamentalismos que interessam à racionalidade neoliberal.

Mas o que têm a ver os tradicionais fundamentalismos com o neoliberalismo? Ora, não é difícil compreender que, na ausência dos tradicionais “ganchos no céu” (RORTY, 1988) — onde se penduravam e, com isso, se legitimavam — os pensamentos de matriz religiosa, é preciso recorrer a outros pontos de apoio que, por si só, possam conferir respeitabilidade, credibilidade e legitimação ao que se pensa, se diz e se fala.

Brown (2019), ao buscar compreender como a racionalidade neoliberal tem preparado terreno para mobilizar discursos antidemocráticos a partir da segunda década do século XXI, problematiza a corrosão das instituições democráticas, da ciência e da laicidade. A autora argumenta que nada está intocado pela forma neoliberal. Além de tal racionalidade inspirar a extrema direita que encontra espaço para, por dentro do discurso pela liberdade, justificar violências e exclusões, ela também provoca a demonização do social, rotulando a esquerda como responsável por esgarçar o tecido social, incluir e premiar quem não merece. Diante de uma onda conservadora, vivemos sentimentos moralistas, autoritários, higienistas, sexistas, racistas, de ódio e de ressentimento que nos fazem voltar a questionar, em coro com Butler (2016), quais vidas importam e quais vidas merecem ser vividas em uma racionalidade política cujas implicações abarcam o fortalecimento de princípios de mercado, bem como de princípios que nos fazem reconhecer, no presente e em distintos jogos sociais, práticas fascistas que reforçam o racismo, o machismo, as deficiências, as intolerâncias etc.

Dubet (2001, p. 5), ao analisar distintas compreensões do conceito de igualdade, diz que nossas sociedades são dominadas por uma contradição; a saber: “como sociedades democráticas, afirmam a igualdade por essência de todos os sujeitos. Como sociedades capitalistas não param de construir mercados que hierarquizam as competências e os méritos.” Modernamente, perseguimos de forma obstinada a igualdade. Dubet (2001, p. 6) afirma que essa igualdade moderna não constitui a “descrição empírica da pura igualdade real das condições de vida, mas sim a extensão de um princípio: o da igualdade dos indivíduos a despeito e para além das desigualdades sociais reais.” A discussão do autor permite entender que, na Modernidade, os indivíduos em si “são considerados cada vez mais iguais e que suas desigualdades não podem encontrar justificativas no berço e na tradição”. Assim sendo, configura-se uma espécie de orientação para que os indivíduos sejam vistos como iguais, esmaecendo o entendimento de que as suas desigualdades são oriundas de sucessivos processos históricos e estruturais de discriminação negativa, colonização e abandono. Nessa linha de interpretação, são os próprios indivíduos — em uma sociedade individualista, meritocrática e fortemente marcada por aquilo que Eco (2021) chama de fascismo eterno — os responsáveis por suas próprias desigualdades e por reivindicarem direitos de oportunidades, acessos e permanência. Acontece aquilo que Beck chamou de metamorfose: a transformação dos problemas sistêmicos, cujas causas são externas, em fracassos pessoais (BECK, 2010). No mesmo sentido vão as palavras de Bauman (2005, p. 67): “agora, se espera dos indivíduos que eles procurem soluções biográficas para contradições sistêmicas”.

Seguindo as orientações de Dubet (2001), é possível afirmar que a igualdade cresceu no Brasil, pois ampliaram-se as instituições de ensino no país e porque, até 2018, o número de alunos na escola de Educação Básica estava acima de 90%. Todavia, ao adentrarmos nos microuniversos escolares e individuais, é possível perceber que as desigualdades permanecem sendo engendradas por dentro do sistema educacional. Elas se materializam no tipo e na qualidade das instituições, nos aprendizados realizados, nas condições de participação, nas formas de operacionalizar a inclusão, entre outras variáveis. O mesmo raciocínio pode ser operado para se falar de inclusão escolar. Sem dúvida, há muito mais matrículas de crianças e jovens com deficiência na escola brasileira desde a política de inclusão implantada no início do século XXI. Entretanto, as fragilidades desse processo deixaram evidentes o caráter in/excludente das práticas igualitárias de acesso à escola. As inúmeras narrativas e representações de respeito à igualdade de acesso e de permanência na escola — as quais ofereciam contextos promissores para nossas leituras de inclusão — parecem se desmanchar diante das muitas denúncias de não aprendizagem, de evasão escolar, de reprovação, de anulação e estigmatização dos sujeitos.

Dubet (2020, p. 11) escreve sobre a diversificação das desigualdades e os sofrimentos gerados nos indivíduos para explicar os sentimentos de cólera, ressentimentos e violências vividas cotidianamente. O autor diz que sofremos na qualidade de. Nesse sentido e cruzando com a problemática da inclusão, somos desiguais na qualidade de pessoa com deficiência cognitiva, de pobres, de pretos, de moradores fora dos grandes centros, de estudantes precarizados, de mulheres, de dependentes de assistência e de apoio, de surdos sem acesso às condições para o desenvolvimento necessário de uma língua, de neurodiversos etc. Enfim, essas tipificações são infinitas; elas podem ser tantas quantas forem as possibilidades de nos depararmos, em nosso dia a dia, com outros desiguais e com outras formas de nomear os grupos sociais. Portanto, usar a categoria das desigualdades múltiplas tem o propósito de acentuar a percepção de tal heterogeneidade e barganhar novos sentidos para os indivíduos — permitindo-os questionar e criticar as práticas em que estão inseridos. Tem, ademais, o objetivo de retomar as discussões da in/exclusão, abordando-a pelos operadores do ressentimento e da tolerância meritória, ambos articulados às desigualdades múltiplas.

Ressentimento e tolerância meritória

Conforme escrevem Lopes e Veiga-Neto (2022, p. 85),

[...] na condição de incluídos estão muito poucos e cada vez menos pessoas; na condição de in/excluídos se encontra uma grande maioria de pessoas que buscam diariamente prover sustentabilidade, muitas contando com redes de solidariedade em momentos de desfiliações (Castel, 1998) e até de expulsões agudas (Sassen, 2016). E na condição de excluídos (Castel, 1998), estão aqueles, cada vez mais numerosos, invisíveis e “inúteis” para o mercado.

Inúmeras são as discussões sobre inclusão que nos permitiriam abordar esse tema. Tanto para salvaguardá-lo quanto para criticá-lo ou até mesmo descartá-lo como política de Estado para as instituições. Inspirados em Dubet (2020), entendemos que por dentro das práticas de inclusão operam alguns mobilizadores que dificultam e até impedem que tais práticas sejam lidas sem o seu outro constitutivo, a exclusão. Dito de outra maneira, por dentro da in/exclusão estão operadores como, por exemplo, o ressentimento e a tolerância meritória, ativando os sujeitos a práticas de empoderamento individuais. Entendemos que tais práticas são contraditórias ao idealizado pensamento moderno de reposicionamento político da diversidade e da diferença; porém nos meandros dos jogos da inclusão, elas não são eliminatórias umas das outras. Pelo contrário, elas se potencializam acrescentando mérito àqueles envolvidos.

Conforme argumenta Dubet (2020, p.88), o “ressentimento não é apenas uma relação do fraco com o forte. Contra o questionamento de seu valor, ele é também uma maneira de resistir ao desprezo, acusando os outros e a sociedade em geral de serem as causas de sua indignidade”. Weschenfelder (2018), ao refletir sobre o ressentimento racial, destaca que os processos de subjetivação pelo ressentimento podem ser canalizados para as lutas políticas e para a transformação ética dos sujeitos. Acreditamos que o ressentimento observado em muitas manifestações sociais e nas pedagogias escolares pode ser um mobilizador de resistência oposicional, mas também pode ser uma manifestação que instiga a aceitação de uma condição posta de anormalidade em contextos ditos inclusivos. Conforme escrevem Lopes e Enzweiler (2021, p. 16), ao discutirem a ação do sujeito sobre si mesmo em tais contextos, “a inclusão pode converter-se em uma estratégia de decomposição subjetiva endógena”, isso significa que o sujeito acaba gerando sobre si mesmo uma “força centrifuga que o expulsa, de maneira progressiva e lenta, dos limites do aproveitamento mínimo satisfatório e das relações interativas previstas para acontecerem na perspectiva da inclusão escolar.”  Inicialmente conduzido a acreditar em si mesmo, o sujeito passa a experienciar a sua progressiva precarização e anormalização, sendo invisivelmente conduzido a acreditar na sua impossibilidade de aprendizagem (LOPES, ENZWEILER, 2021). Ressentido, ele converte-se em impotente, aceitando sua condição de “naturalmente inapto”. Dito de outra maneira, o ressentimento converte-se em uma manifestação de complacência facilmente vinculado aos discursos religiosos e de tolerância. Igualmente, pode ser vinculado aos discursos fascistas presentes em distintas práticas embrenhadas em nossos cotidianos.

Eco (2021), ao escrever sobre o ur-fascismo ou fascismo eterno, destaca 13 características que fazem o fascismo se perpetuar e ser percebido em diferentes situações. Entre as características citamos três delas: a educação para ser herói, o sentimento de inferioridade diante da força do outro e a exacerbação do natural medo à diferença. Nas palavras daquele autor, “em qualquer mitologia, o ‘herói’ é um ser excepcional, mas na ideologia Ur-Fascista o heroísmo é a norma.” (ECO, 2021, p. 54). Ao usar a norma como um referente, o fascista submete a diferença à comparação, convertendo tal diferença em um problema estatístico e diagnóstico, ou seja, convertendo-a numa anormalidade. Seguindo o raciocínio de Dubet (2020) e de Eco (2021), entendemos que o ressentimento pode ser convertido em mais uma característica do fascismo investido nas formas de ser e de reagir dos sujeitos. É no intervalo entre o ressentimento e a superação ou entre o ressentimento e a complacência que o fascismo poderá encontrar espaço para sua renovação.

Voltando à discussão para a educação — e, mais especificamente, para a educação escolar —, nas pesquisas que inspiram este texto é recorrente a exaltação da diversidade nas práticas pedagógicas. Por dentro de tal exaltação, é perceptível a estruturação do ressentimento como um mobilizador da consciência dos estudantes diante da condição de exploração de seus grupos originários.

Associado ao ressentimento, pela marcação da exploração e exclusões vividas, há a ação de uma pedagogia meritocrática sobre os indivíduos. Exemplos de pessoas pretas, de mulheres, de indígenas, de surdos, de pessoas com deficiência são trazidos para as aulas para mostrarem possibilidades de superação e sucesso. O mérito do sucesso está no próprio indivíduo que sofre a discriminação, bem como naqueles heróis, abnegados e tolerantes, que se dedicam ao outro como se fora um ato de caridade e de salvação de si mesmo. No ato de tolerância meritória, há uma necessária positivação das desigualdades. Isso significa que manter a desigualdade entre os sujeitos é condição necessária para que seja possível exaltar aquele voluntário que inicia sua diferenciação formativa. Eis um exemplo: nas narrativas pedagógicas, aparece com frequência a presença de um aluno com deficiência na sala de aula. A presença desse aluno é razão para desencadear uma experiência que deve ser positivada pelos docentes que afirmam que todos irão aprender com a diferença do colega. Além disso, destacam que há um mérito cristão naquelas pessoas capazes de tolerar e de conviver com os “diferentes”, de modo a ganhar créditos por sua capacidade de tolerância. E não há como não ver, justamente nesse ponto e mais uma vez, o débito da educação moderna para com os fundamentalismos cristãos.

Considerações finais

Retomando parte das questões discutidas até aqui, sublinhamos que, apesar de todos os avanços éticos, sociais e educacionais feitos nas últimas décadas, ainda resta muito a trilhar para apagar ou, pelo menos, abrandar os estigmas que marcam indelevelmente as pessoas com deficiência. Ainda há muito a trilhar por caminhos capazes de problematizar e colocar em xeque as posturas fundamentalistas, de modo a enfraquecê-las

Sejam ou não de matriz religiosa, os fundamentalismos amesquinham a razão e travam o livre-pensar. Com isso, eles são uma triste — mas eficiente — alavanca para pensar negativamente a diferença. E, mais do que isso, os fundamentalismos servem para cristalizar as diferenças humanas em patamares que, ao colocá-las abaixo daqueles que com elas se deparam, fazem delas um instrumento de hierarquização, subjugação e repressão. Ao mesmo tempo e ironicamente, mesmo que se queiram colocar a favor do igualitarismo, os fundamentalismos acabam por recolocar, pela porta dos fundos, os imperativos de limpeza, normalização e desigualdade que pretendem expulsar pela porta da frente.

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