http://dx.doi.org/10.5902/1984686X71375

Políticas de Educação Inclusiva: fragilização do direito à inclusão das pessoas com deficiência na escola comum

Inclusive Education Policies: fragilization of the right to inclusion of people with disabilities in regular schools

Políticas de Educación Inclusiva: fragilización del derecho a la inclusión de las personas con deficiencia en la escuela común

Kamila Lockmann

Professora doutora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

E-mail: kamila.furg@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0002-1993-8088

Rejane Ramos Klein

Professora doutora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, RS, Brasil

E-mail: rrklein1@gmal.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-7136-466X

Recebido em 16 de agosto de 2022

Aprovado em 04 de outubro de 2022

Publicado em 08 de dezembro de 2022

RESUMO

Este texto analisa as políticas de educação inclusiva com o objetivo de problematizar os deslocamentos operados nos discursos sobre a inclusão, os quais têm produzido a fragilização de direitos historicamente conquistados pelas pessoas com deficiência. Em uma perspectiva foucaultiana e com inspiração nos estudos contemporâneos de Brown, Dardot e Laval, considera-se como materialidade de análise a “Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida”, o Decreto 10.502/2020, que a instituiu, assim como notas de repúdio produzidas por organizações científicas e pela sociedade civil. A partir de tal materialidade, percebe-se o avanço de políticas neoconservadoras em pelo menos dois eixos: 1. na abordagem do princípio da liberdade individual como direito das famílias de escolherem o melhor espaço de escolarização, o que se transmuta no direito à exclusão dos sujeitos com deficiência; 2. na ressignificação da noção de inclusão escolar como algo que se dá no presente e no âmbito escolar. Esses deslocamentos discursivos têm fragilizado o direito à inclusão das pessoas com deficiência na escola comum e reforçado o processo de (des)democratização em curso no Brasil contemporâneo.

Palavras-chave: Políticas de inclusão; Escola comum; (Des)democratização.

ABSTRACT

This text analyzes inclusive education policies, aiming at problematizing the displacements operated in discourses on inclusion, which have fragilized rights historically conquered by people with disabilities. From a Foucauldian perspective and inspired by the contemporary studies of Brown, Dardot and Laval, the materiality of analysis consisted of the “National Policy on Special Education: equitable, inclusive and with lifelong learning”, the Decree 10.502/2020, which established it, and disapproval notes produced by scientific organizations and civil society. Such materiality has enabled us to see the advance of neoconservative policies in at least two axes: 1. in approaching the principle of individual freedom as the right of families to choose the best space for schooling, which is transmuted into the right to exclusion of subjects with disabilities; 2. in re-signifying the notion of school inclusion as something that takes place in the present and in the school setting. These discursive shifts have both weakened the right of people with disabilities to be included in regular schools, and strengthened the ongoing process of (de)democratization in contemporary Brazil.

Keywords: Inclusive policies; Regular school; (De)democratization.

RESUMEN

Este texto analiza las políticas de educación inclusiva con el objetivo de problematizar los desplazamientos operados en los discursos sobre la inclusión, los cuales han producido la fragilización de derechos históricamente conquistados por las personas con deficiencia. En una perspectiva foucaultiana y con inspiración en los estudios contemporáneos de Brown, Dardot y Laval, se usa como material de análisis la “Política Nacional de Educación Especial: equitativa, inclusiva y con aprendizaje a lo largo de la vida”, el Decreto 10.502/2020 que la instituyó, así como notas de repudio producidas por organizaciones científicas y por la sociedad civil. A partir de tal material se percibe el avance de políticas neoconservadoras, en por lo menos dos ejes: 1. al abordar el principio de la libertad individual como derecho de elección de las familias por el mejor espacio de escolarización, lo que se transmuta en el derecho a la exclusión de los sujetos con deficiencia; 2. al resignificar la noción de inclusión escolar como algo que se da en el presente y en el ámbito escolar. Estos desplazamientos discursivos han fragilizado el derecho a la inclusión de las personas con deficiencia en la escuela común y reforzado el proceso de (des)democratización en curso en el Brasil contemporáneo.

Palabras clave: Políticas de inclusión; Escuela Común; (Des)democratización.

Ressonâncias musicais, sociais e educacionais

Segunda-feira o seu filho tá em casa

Porque a escola onde estuda, não tem nenhum professor

E o professor está na rua apanhando da polícia

E tá cobrando seu salário lá do governador

Enquanto isso numa casa confortável

Uma família abastada reunida, assiste televisão

E praguejando fala mal de quem está na rua

Enfrentando e dando a cara pra lutar contra a situação

(Quem é você - Música - Detonautas Roque Clube)

 A música trazida como epígrafe deste artigo serve-nos de inspiração para pensar o presente e suas conexões com a precarização da educação. Em um contexto que conjuga neoliberalismo, conservadorismo e fragilização dos direitos trabalhistas, educacionais e de saúde, o cenário apresentado pelos artistas funciona como plano de fundo para analisarmos os impactos que o processo de (des)democratização tem produzido na educação e, aqui, especialmente, na manutenção do direito das pessoas com deficiência a frequentarem a escola comum.

A partir de uma análise do contexto macropolítico em curso no Brasil contemporâneo, de seus constantes ataques às experiências educativas voltadas para as diferenças e para as políticas afirmativas de inclusão escolar, pretendemos problematizar de que maneira tais deslocamentos têm produzido uma espécie de precarização das políticas de inclusão escolar.

O argumento central deste texto é o de que a racionalidade neoliberal, presente no contexto brasileiro desde a década de 1990, consolidou um quadro de desigualdade e precarização que forneceu as condições para o desenvolvimento de um processo de (des)democratização. Tal processo, mediante frequentes investidas contra a justiça social e a igualdade, vem fragilizando direitos historicamente conquistados e destituindo algumas pessoas da sua condição de cidadãs em um Estado democrático. Entre elas, encontramos o público-alvo da educação especial1.

Para compreender de que modo a fragilização do direito à inclusão das pessoas com deficiência na escola comum vem sendo efetivada, tomamos como materialidade de análise a “Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida”, o Decreto 10.502/2020, que a instituiu, e algumas notas de repúdio produzidas por organizações científicas e sociedade civil que se posicionaram de forma contrária à regulamentação da referida política. Mesmo que tal política tenha sido suspensa2, consideramos importante realizar essa análise, pois seus efeitos seguem ecoando no campo da educação.

Composição teórico-metodológica: liberdade, individualização e (des)democratização

Para evidenciar a forma como podemos observar os deslocamentos operados nos discursos sobre a inclusão na atualidade, torna-se imprescindível compreender o processo de (des)democratização em curso no Brasil e a maneira como ele coloca em funcionamento ofensivas neofascistas que produzem violência, exclusão e desaparecimento social do outro ou, pelo menos, de alguns outros. Os outros são entendidos aqui como todos aqueles que põem em perigo a ordem neoliberal e conservadora vigente.

A ordem se vê em perigo diante das culturas de etnias não hegemônicas, dos afrodescendentes, das sexualidades não binárias e também dos desempregados, nos militantes e ativistas, dos adictos, dos estrangeiros. [...], qualquer atividade que configure um grupo social diverso da norma, se não puder ser assimilado como produto de consumo, significa o perigo de regressão a um estágio bárbaro, interrompendo e causando danos à evolução civilizatória. (DARDOT, et al., 2021, p. 12).

Tal ordem, para os autores, é constituída por duas facetas: as transformações exigidas pelo modelo empresarial de mercado e os modos tradicionais de produção da subjetividade, em torno de normas autoritárias e conservadoras. A junção entre o mercado e a moralidade, entre o produtivismo e o conservadorismo, impõe uma lógica perversa, que exclui aqueles corpos outros que não se adaptam nem às normas de produtividade impostas pelo mercado, nem às normas morais inculcadas pelos conservadores de plantão. É nessa dupla performance requerida pelo neoliberalismo que encontramos as condições para o avanço de práticas excludentes e discriminatórias que fragilizam a democracia e, com isso, os direitos dos grupos menos favorecidos. Entre tais grupos, encontramos os sujeitos com deficiência, alvos da atual precarização das políticas inclusivas.

Nesta seção, esboçamos os rumos teórico-metodológicos que a pesquisa tomou. Primeiramente, discutimos as bases teóricas que nos permitiram formular o argumento central do artigo, já expresso na sua introdução, e, posteriormente, apresentamos os documentos selecionados para compor o material empírico da pesquisa.

(Des)democratização: a liberdade como ferramenta de exclusão

Quando a igualdade política está ausente, seja por exclusões ou privilégios políticos explícitos, pelas disparidades sociais ou econômicas extremas, pelo acesso desigual ou controlado ao conhecimento, ou pela manipulação do sistema eleitoral, o poder será inevitavelmente exercido por e para uma parte em vez do todo. O demos (povo) deixa de governar (BROWN, 2019, p. 33).

Iniciamos esta seção com a epígrafe de Wendy Brown, que nos ajuda a compreender o conceito de democracia. Recorrendo à etimologia da palavra, a autora lembra-nos de que o termo deriva do grego antigo e é composto por demos, que significa povo, e kratos, que remete a poder ou governo. Portanto, “democracia significa os arranjos políticos por meio dos quais um povo governa a si mesmo” (BROWN, 2019, p. 33). Entretanto, a autora vai além e ensina que a base da democracia não é apenas a liberdade, mas sobretudo a igualdade. A democracia atua em busca da igualdade de condições, de participação, de acesso, de escolaridade, de emprego, de renda, etc. Por isso, a luta por justiça social torna-se fundamental para qualquer Estado democrático. Tal luta exige do Estado, especialmente de um Estado historicamente desigual, como o Brasil, que ele aja deliberadamente por meio de intervenções no social, para que assim possa corrigir ou reduzir as desigualdades entre os cidadãos. Brown (2019, p. 38) entende o social como:

[...] o local em que cidadãos de origens e recursos amplamente desiguais são potencialmente pensados em conjunto. É o local em que somos admitidos como cidadãos com direitos políticos [...] e em que as desigualdades historicamente produzidas se manifestam como acesso, voz e tratamento políticos diferenciados, bem como o local em que essas desigualdades podem ser parcialmente corrigidas.

Para a autora, é exatamente aí, no social, que a igualdade política, essencial à democracia, é feita ou desfeita. Isso nos mostra que o fundamento da democracia é a noção de igualdade. Lutar pelo acesso igualitário ao conhecimento e pela manutenção e fortalecimento do direito à escolarização de todas as crianças no espaço público e comum da escola, por exemplo, é uma demanda imposta ao Estado pela democracia.

Entretanto, parece ser esta a noção mais fragilizada na atualidade brasileira. Recorrentemente, escutamos apelos à liberdade, mas não à igualdade. O direito de liberdade de escolha individual é o mote central da bandeira neoliberal, que pauta o contexto político brasileiro atual. Os argumentos de distintas propostas educacionais contemporâneas sustentam-se na noção de direito à liberdade.

No campo das políticas inclusivas, isso não é diferente. As propostas que se estruturavam em prol da igualdade de acesso e de participação dos sujeitos com deficiência na escola comum vêm se fragilizando. Conforme mostramos nas análises desse artigo, inclusive a noção de inclusão escolar sofre um progressivo apagamento na “nova” política. No lugar disso, a noção de liberdade toma centralidade: o direito à liberdade de escolha dos pais, da família e dos sujeitos com deficiência pelo melhor espaço para sua escolarização.

É preciso refletir sobre que concepção de liberdade é essa que pauta a atualidade brasileira e se articula aos processos de (des)democratização em curso. Como podemos perceber a formulação de uma noção de liberdade antidemocrática, por mais paradoxal que isso possa parecer?

Para Brown, o neoliberalismo imprimiu um novo significado à liberdade, utilizando para isso o manto exclusivo do direito. As formulações neoliberais de liberdade individualizaram esta noção e desatrelaram-na do social, do comum, do que é público e coletivo. Para Brown (2019, p. 54), “a liberdade arrancada do social não é apenas ilimitada, mas exercida legitimamente sem preocupação com o contexto ou as consequências sociais, sem restrição, civilidade ou cuidado com a sociedade”. Essa formulação de liberdade, Brown denominou de “liberdade associal”: uma forma de liberdade que se desatrela da sociedade e se sustenta na primazia do indivíduo, antes de considerar os efeitos coletivos das escolhas individuais. Para a autora, “a liberdade sem a sociedade destrói o léxico pelo qual a liberdade torna-se democrática [...] Liberdade sem sociedade é puro instrumento de poder, despida de preocupação com os outros, o mundo ou o futuro”. (BROWN, 2019, p.58). Uma liberdade individualizada, baseada no direito de escolha, é usada como ferramenta para a (des)democratização.

No Brasil, atualmente, essa noção de liberdade é utilizada para atacar direitos sociais, como a educação, promovendo campanhas contra a escolarização das crianças em ambientes plurais, públicos e comuns, como a escola. No que se refere à inclusão escolar, o acionamento do direito à liberdade de escolha individual faz-se presente e funciona como mecanismo de exclusão. Argumenta-se que as famílias das pessoas com deficiência têm o direito de escolher qual é o melhor espaço de escolarização para os seus filhos, se é a escola comum ou a escola especializada.

Ao preconizar a liberdade em detrimento da igualdade, tal proposta sustenta-se na compreensão de liberdade associal, que fragiliza determinados direitos, como o próprio direito à escolarização na escola comum. Para Dardot et al. (2021, p. 27), “a guerra civil contra a igualdade e em nome da ‘liberdade’ é, sem dúvida, uma das principais faces do neoliberalismo atual”. Esta faceta neoliberal a que se referem os autores também guarda paradoxos bastante instigantes. Se, por um lado, ela se baseia na noção de liberdade ilimitada, desinibida e desatrelada do social, por outro lado, impõe aos sujeitos uma obrigatoriedade: a de escolher. Para Dardot e Laval, o neoliberalismo organiza-se em torno da obrigação de escolher, que passa a ser uma nova norma de conduta dos indivíduos empreendedores. Segundo os autores franceses,

[...] a liberdade de escolher identifica-se com a obrigação de obedecer a uma conduta maximizadora dentro de um quadro legal, institucional, regulamentar, arquitetural, relacional, que deve ser construído para que o indivíduo escolha “com toda a liberdade” o que deve obrigatoriamente escolher para seu próprio interesse. (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 216).

A estratégia neoliberal consiste em criar o maior número possível de situações de mercado, as quais impõem aos indivíduos a obrigação de escolher. Isso chega ao “mercado da educação”, que passa a ser visualizado como uma escolha do sujeito, e não mais como um direito social. No lugar da obrigatoriedade da família de matricular as crianças na escola e da obrigatoriedade da escola comum de matricular todos os sujeitos, sem discriminação, encontramos a obrigatoriedade da escolha. A educação é transformada, então, em um mercado de escolhas individuais, e o cidadão dá lugar ao homem empreendedor capaz de escolher.

Ao transmutar o direito social da educação em um direito de escolha individual, essa racionalidade não nega a noção de direito. A fragilização dos direitos sociais não é produzida pela destruição da noção de direito, mas pelo seu acionamento, transformação e individualização. Abrindo-se à possibilidade de as famílias escolherem o que consideram ser o melhor espaço de escolarização para seus filhos, a noção de direito não está sendo destruída, mas retomada em outro ponto: o da individualização. O direito não é mais o direito social de frequentar e participar da escola comum, mas o direito individual de escolher sobre sua inclusão ou não nesse espaço.

A noção de liberdade e a própria noção de direito, princípios aparentemente democráticos, são acionados como vetores de destruição da democracia, já que atacam direitos sociais, como à educação pública e comum, a ser ofertada na e pela escola para todos os sujeitos. Nesse contexto, podemos compreender que os “direitos são a ponta de lança com a qual os compromissos democráticos com a igualdade, a civilidade e a inclusão são contestados” (BROWN, 2019, p. 140).

É dentro desse quadro teórico que gostaríamos de analisar as novas formulações das políticas de inclusão contemporâneas. Para isso, selecionamos dois conjuntos de materialidade. O primeiro refere-se aos documentos oficiais que regulamentam a “Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida”, assim como o Decreto 10.502/20, que a regulamenta. O segundo conjunto de documentos é composto por notas e moções de repúdio publicadas após a promulgação da referida política, que serviram como contestação à sua implementação, reforçando o movimento por sua suspensão. Para melhor apresentar o material que compõe a empiria desta pesquisa, construímos o quadro abaixo.

Quadro 1 – Empiria da Pesquisa

Documentos

Links

Decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020 (Suspenso)

https://www.in.gov.br/en/web/dou/-/decreto-n-10.502-de-30-de-setembro-de-2020-280529948

Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida (2020)

https://www.gov.br/mec/pt-br/assuntos/noticias_1/mec-lanca-documento-sobre-implementacao-da-pnee-1/pnee-2020.pdf.

Nota de repúdio da ANPEd e ABPEE (2020)

https://anped.org.br/news/anped-e-abpee-denunciam-retrocessos-em-nova-politica-de-educacao-especial-lancada-pelo-governo

Nota de repúdio da ABRASCO (2020)

https://www.abrasco.org.br/site/noticias/nota-de-repudio-ao-decreto-no-10-502-de-30-de-setembro-de-2020-que-institui-a-politica-nacional-de-educacao-especial/52894/

Nota de repúdio da AMPID (2020)

https://ampid.org.br/site2020/nota-publica-de-repudio-ao-decreto-no-10-502-2020/

Fonte: Criado pelas autoras (2022).

Diante de tais documentos, questionamo-nos: que deslocamentos percebemos nos discursos da Política Nacional de Educação Especial e como a noção liberdade associal aparece? De que maneira as notas de repúdio evidenciam resistências aos retrocessos apresentados pela Política?

Mobilizadas por essas questões é que nos colocamos a tarefa de problematizar os discursos que têm sustentado as políticas de inclusão na atualidade, percebendo que verdades elas acionam e de que maneira tais verdades são contestadas por movimentos de resistência que, felizmente, ainda pautam o nosso presente.

Disputas e tensões no contexto da educação inclusiva

[...] o poder está em toda parte; não porque englobe tudo e sim porque provém de todos os lugares” (FOUCAULT, 1985, p. 89).

Inspiramo-nos nas palavras de Michel Foucault para iniciar o exercício de problematização dos deslocamentos operados nos discursos sobre a inclusão, cuja materialização se dá em uma arena de embates e disputas que têm pautado o campo da educação especial e inclusiva3 nos últimos anos. Desde a década de 1990 até pelo menos 2016, acompanhamos um movimento de consolidação e fortalecimento das políticas inclusivas no Brasil. Ainda que na década de 1990 tais políticas tenham sido fragmentadas e pouco efetivadas no contexto escolar, a partir de 2004, como evidenciam os estudos de Mendes (2019), observa-se o avanço de uma política mais contundente do Ministério da Educação no que tange à garantia do direito do público-alvo da Educação Especial (PAEE) à escolarização no contexto das classes comuns de escolas regulares. Esse direito foi materializado, sobretudo, na Política Nacional de Educação Especial na perspectiva da educação inclusiva (PNEEPEI) (2008).

A PNEEPEI (BRASIL, 2008) apresentou-se como orientação a estados e municípios, de modo a assegurar o direito de todos à educação regular; ou melhor, na organização de sistemas educativos inclusivos, tendo como foco o público-alvo constituído por sujeitos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento (TGD) e altas habilidades/superdotação (AH/SD). (ROCHA, MENDES, LACERDA, 2020, p. 3).

Com essa política, a educação especial passou a ser compreendida como uma modalidade complementar e suplementar que atravessa todos os níveis, etapas e modalidades da educação, não tendo mais caráter substitutivo da escolarização. A educação inclusiva foi definida como “uma ação política, cultural, social e pedagógica, desencadeada em defesa do direito de todos os alunos de estarem juntos, aprendendo e participando, sem nenhum tipo de discriminação” (BRASIL, 2008, p.1), adentrando-se, assim, no campo dos direitos humanos. Percebe-se que o que prevalece nessa política é a defesa da escola comum4 como espaço legítimo de educação escolar para todos.

Após o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff, em 2016, começamos a acompanhar uma movimentação pela “atualização” e “revisão” dessa política, o que culmina na publicação do Decreto No 10.502/2020, que institui a “Política Nacional de Educação Especial: equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida” (PNEE-2020). Tal política vem a reboque de uma série de mudanças desenvolvidas pelo Governo Federal na Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (SECADI/MEC) e na Diretoria de Políticas de Educação Especial, colocando em marcha vários deslocamentos na condução da política de Educação Especial no país.

Em decorrência disso, um grande movimento de resistência à implementação da “nova” política configura-se na publicação de diversos manifestos. Advindos de pesquisadores, associações científicas, organizações de famílias de pessoas com deficiência, associações de pessoas com deficiências, confederação dos trabalhadores na educação, congressistas e setores do Ministério Público Federal (ABRASCO, 2020; AMPID, 2020; ANPED-ABPEE, 2020; entre outros), tais manifestos expressavam o caráter excludente da PNEE-2020.

Por um lado, temos o movimento em prol da aprovação e implementação da nova política, instituída por um decreto, fortalecendo a tese revisionista da política de 2008. Por outro lado, encontramos um conjunto de pesquisadores, professores e famílias das pessoas com deficiência, que se manifestam contrários à PNEE-2020, inclusive apontando a sua inconstitucionalidade. Estamos diante de “um jogo complexo e instável em que o discurso pode ser, ao mesmo tempo, instrumento e efeito de poder, e também obstáculo, escora, ponto de resistência e ponto de partida de uma estratégia oposta” (FOUCAULT, 1988, p. 96). É no bojo desse jogo múltiplo de correlação de forças que nos lançamos ao desafio de problematizar os deslocamentos operados nos discursos sobre a inclusão, seus embates e efeitos na reformulação das políticas inclusivas no país.

Nosso objetivo aqui não é traçar uma história das políticas que pautaram o campo da educação especial e inclusiva no Brasil, visto que esse movimento já foi realizado, com muita competência, por diversos pesquisadores5. Nossa intenção é realizar uma analítica do presente, problematizando os efeitos que os deslocamentos discursivos que pautam o campo da educação inclusiva podem produzir quando se encontram com o processo de (des)democratização em curso no Brasil contemporâneo.

No encontro com o material de análise, foi possível construir duas unidades, que serão discutidas nas próximas subseções do artigo. A primeira analisa a materialização do princípio da liberdade de escolha na PNEE-2020 como direito à exclusão; a segunda olha para a compreensão da noção de inclusão na política, apontando para a ressignificação dessa noção de algo que se dá no presente e no âmbito escolar para um projeto de futuro.

O princípio da liberdade de escolha na PNEE-2020 como direito à exclusão

A questão fundamental é “como” atender aos educandos da educação especial, respeitando suas características e peculiaridades, para que seja garantida a possibilidade de desenvolvimento e inclusão social, acadêmica, cultural e profissional. (BRASIL, 2020, p. 11).

A educação especial é um direito de todos que demandam seus recursos e serviços, e os educandos devem ser atendidos de maneira equitativa, ou seja, ter acesso à oferta de experiências educacionais de acordo com suas singularidades e especificidades, pois esta atenção é que vai garantir o acesso, a permanência e o sucesso nos processos educacionais, levando à possibilidade de inclusão social, cultural, acadêmica e profissional. (BRASIL, 2020, p.41).

Como falar de exclusão, de fragilização de direitos historicamente conquistados e de um processo de (des)democratização frente a discursos que se pautam no respeito às individualidades, especificidades e singularidades dos sujeitos? Sustentando-se na ideia de “atender aos educandos da educação especial, respeitando suas características e peculiaridades” e de fornecer “acesso à oferta de experiências educacionais de acordo com suas singularidades e especificidades”, a nova política está justamente encontrando respaldo para o encaminhamento dos sujeitos com deficiência aos espaços especializados, como escolas e classes especiais, e retomando o caráter substitutivo desses espaços, algo já superado pela política de 2008, como vimos anteriormente.

Estamos diante de um perverso processo de individualização que, ao exaltar as singularidades do sujeito e ancorar-se no discurso de respeito às suas individualidades, mobiliza práticas de exclusão e de fragilização do sistema educacional inclusivo que vinha sendo construído até então. Isso fica explícito em mais um excerto da PNEE-2020 quando:

[...] institui os serviços de apoio especializado, na escola regular, para atender às peculiaridades da clientela da educação especial e prescreve que o atendimento educacional seja feito em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua inclusão (BRASIL, 2020, p. 36).

Em consonância com a racionalidade política neoliberal, o público-alvo da educação especial, antes compreendido como conjunto de cidadãos, é transformado em clientela – ou seja, tais sujeitos são vistos como meros clientes-consumidores que, diante das opções que lhes são ofertadas pelo mercado, têm o direito e também o dever de escolher. Segundo Pletsch e Souza (2021, p. 1297), a nova política federal institui “o primado da família na escolha do tipo de educação a ser oferecida aos seus filhos, segundo o discurso neoliberal da soberania do consumidor em eleger livremente o melhor provedor de serviço educacional”. A liberdade de escolher une-se, no texto da política, à noção de direito, tornando o movimento de exclusão menos aparente e, por isso, muito mais perverso. Vejamos:

[...] Atualmente, urge reconhecer que muitos educandos não estão sendo beneficiados com a inclusão em classes regulares e que educandos, familiares, professores e gestores escolares clamam por alternativas. O Governo Federal não tem sido insensível a esta realidade. Em resposta a esse clamor, nasce a Política Nacional de Educação Especial [...]. Um dos pressupostos norteadores desta Política Nacional é a valorização das singularidades e o inalienável e preponderante direito do estudante e das famílias no processo de decisão sobre a alternativa mais adequada para o atendimento educacional especializado. (BRASIL, 2020, p. 6).

A preocupação maior é a de acrescentar o respeito à pessoa e à sua família, oferecendo a flexibilidade decorrente da oportunidade de escolha. (BRASIL, 2020, p. 19).

[…] priorizar a participação do educando e de sua família no processo de decisão sobre os serviços e os recursos do atendimento educacional especializado. (BRASIL, 2020a, p. 7).

Direito, oportunidade de escolha, participação nas decisões e flexibilidade são noções tomadas pela política como moedas fortes que, à primeira vista, parecem articular-se aos pressupostos democráticos. Como discutimos anteriormente, a perversidade dos processos de exclusão contemporâneos encontra-se justamente no ponto em que eles se articulam com a noção de direito: “o inalienável e preponderante direito do estudante e das famílias no processo de decisão sobre a alternativa mais adequada”.

Tal argumento encontra sustentação nas discussões de Dardot e Laval (2016), quando destacam que, a partir do neoliberalismo, os direitos sociais como à saúde, à educação, à integração social e à participação política, são transformados no resultado de um cálculo que provém de escolhas individuais e obedecem ao próprio desejo do sujeito.

Na racionalidade neoliberal, "qualquer decisão, seja médica, escolar, seja profissional, pertence de pleno direito ao indivíduo [...] A ética individualista é tratada como oportunidade de jogar todos os custos nas costas do sujeito por mecanismos de transferências dos riscos que nada têm de natural" (Dardot e Laval, 2016, p. 350). Os autores destacam que os riscos a que os sujeitos estão submetidos são cada vez menos riscos sociais, assumidos por uma determinada política de Estado, e cada vez mais riscos individuais, a serem gerenciados por suas próprias escolhas. É precisamente isso que vemos na PNEE-2020 quando se coloca sobre os sujeitos e suas famílias a responsabilidade pela escolha dos seus destinos escolares. Esse é o primeiro aspecto que salientamos.

O segundo argumento refere-se ao fato de que esse direito de escolha se constitui, ao fim e ao cabo, em um direito à exclusão. A proposta transforma o fato de não estar na escola, de não frequentar o espaço público, comum e democrático da escola, em um direito individual de escolha das famílias. Assim, a própria exclusão é transformada em um direito. "Talvez resida aí o maior perigo das práticas de exclusão contemporâneas. Elas não negam o direito, mas transformam a exclusão num direito e o direito numa escolha individual” (LOCKMANN, 2020, p.73).

Em consonância com tal argumento, a comunidade científica vinculada à Associação Brasileira de Saúde Coletiva (ABRASCO) aponta que o decreto

[...] fere os artigos constitucionais (CF, 1988 - Art. 1º e 2º) mencionados, visto que possibilita a segregação de pessoas com deficiência, sob a velha justificativa da inclusão de “pessoas especiais” em “ambientes especializados” e da autonomia das mães e pais de pessoas com deficiência em decidirem sobre aquilo que pensam ser o melhor para seus filhos, inclusive sobre a educação. [...] viola um direito humano da pessoa com deficiência assegurado constitucionalmente, quando viabiliza e legitima formatos educacionais na contramão das práticas inclusivas, corroborando para a segregação de tais sujeitos. Ao localizar no pressuposto da inclusão ou na “insuficiência da escola” a justificativa para não garantir o direito à convivência entre as diferenças, o presente decreto estigmatiza, exclui e segrega as pessoas com deficiência. (ABRASCO, 2020, s/p).

Observa-se que a promessa explícita no decreto de dar autonomia às mães e aos pais de pessoas com deficiência para decidirem sobre o que é melhor para seus filhos, o que tem sido um discurso recorrentemente aceito e tomado como verdadeiro, é questionada pela Associação porque viola um direito humano da pessoa com deficiência assegurado constitucionalmente. É dessa forma que se vê legitimada a exclusão dos sujeitos em espaços educacionais diferenciados na contramão de propostas inclusivas.

Temos, então, dois movimentos perversos: a transformação da noção de direito social em direito individual de escolha; e a constituição da própria noção de exclusão como direito. Esses dois movimentos amparam-se em uma cultura neoliberal de liberdade associal, conforme discussão anterior, com base nos estudos de Brown (2019). A autora auxilia-nos a compreender “como as formulações da liberdade inspiram e legitimam a extrema direita e como a direita mobiliza um discurso de liberdade para justificar suas exclusões e violações” (BROWN, 2019, p. 16).

Foi esse o movimento que tentamos mostrar ao longo dessa seção. Percebe-se, pois, que a liberdade associal, ao amparar noções como as de direito, de escolha e da própria exclusão, serve de arma contra as políticas afirmativas da diferença e de instrumento de destruição da própria democracia. Desde 2017, sempre foi a tônica da liberdade, e não a da igualdade, que esteve presente na reformulação das políticas inclusivas do país. Isso não ocorre à revelia do processo de (des)democratização em curso, o qual sustenta a precarização das políticas inclusivas no Brasil contemporâneo. Tal processo pode ser visualizado também pelos sentidos e significados atribuídos à noção de inclusão na política. É sobre esse aspecto que discorreremos na próxima seção.

Ressignificação da noção de inclusão escolar

[...] assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação, orientando os sistemas de ensino para garantir: acesso ao ensino regular, com participação, aprendizagem e continuidade nos níveis mais elevados do ensino; (PNEE, 2008, p.14)

[...] garantir os direitos constitucionais de educação e de atendimento educacional especializado aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação; (PNEE, 2020a, p. 7)

[...] assegurar o atendimento educacional especializado como diretriz constitucional, para além da institucionalização de tempos e espaços reservados para atividade complementar ou suplementar; (PNEE, 2020a, p.7)

Iniciamos esta seção com alguns excertos, tanto da política de 2008, quanto da política de 2020, para mostrar os deslocamentos operados na noção de inclusão escolar. Podemos dizer que a noção de inclusão escolar sofre um processo de ressignificação na PNEE-2020, pois, por mais que ela se apresente como uma resposta ao clamor de famílias, professores, gestores e educandos que não se veem contemplados pela educação inclusiva voltada aos educandos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação, ela fragiliza o direito à inclusão escolar e ao acesso à escola regular. Mais ainda, fortalece o direito ao atendimento educacional especializado e às escolas especializadas, “sempre que estas forem consideradas, por eles mesmos, como a melhor opção” (BRASIL, 2020, p.7). Vemos um importante deslocamento da PNEEPEI-2008 para a PNEE-2020, uma vez que o AEE é compreendido para além “da institucionalização de tempos e espaços reservados para atividade complementar ou suplementar”.

Além da liberdade de escolha, como já apontamos na seção anterior, chamamos atenção aqui para a possibilidade de escolha de atendimento “mais adequado”, o que remete à ideia de que o beneficiado com a inclusão seria somente o estudante com deficiência – uma escolha unilateral, feita pela família em virtude de uma opção de tratamento específico dado a um estudante. Reafirma-se, mediante essa escolha, a não participação de estudantes com deficiência na escola comum, mantendo-se, assim, uma escola comum que legitima práticas homogêneas e fundamentadas em princípios não inclusivos.

A PNEE-2020, ao considerar e prescrever os serviços de apoio especializado na escola regular, com atendimento “em classes, escolas ou serviços especializados, sempre que, em função das condições específicas dos alunos, não for possível a sua inclusão” (BRASIL, 2020, p. 36), acaba, por um lado, exaltando o atendimento educacional especializado e colocando o sucesso desses alunos na dependência de oportunidades a serem viabilizadas pelos serviços especializados. Por outro lado, ao incentivar que esses alunos sejam ensinados em outros ambientes (na escola e na comunidade), em uma espécie de seleção da normalidade, trata o AEE e a sala de aula comum como opostos. (SEPTIMIO; CONCEIÇÃO; DENARDI, 2021).

Além disso, pode-se ressaltar que a PNEE-2020 despotencializa a escola comum quando questiona sua qualidade, sublinhando sua impotência diante da inclusão de todos. Em vez de colocar-se como alternativa com vistas à melhoria da educação para todos, a PNEE-2020 reafirma a opção de dar atenção a alguns. Isso se materializa como um retrocesso no momento em que deixa de oportunizar melhorias na qualidade da educação como um todo e promove uma inclusão excludente das diferenças (VEIGA-NETO; LOPES, 2007).

Portanto, parece claro que a PNEE-2020, ao focar no AEE, como microespaço isolado, deixa de garantir a ampliação daquilo que deveria ser a condição de recursos humanos e materiais a todos os estudantes no espaço da escola comum. (SEPTIMIO; CONCEIÇÃO; DENARDI, 2021). Quais princípios de qualidade podem promover a participação efetiva de todos na escola comum?

A centralização no indivíduo para descrever os sujeitos, para conhecer suas particularidades e para respeitar essas características, como vimos anteriormente, parece enfatizar também uma centralização nos serviços especializados. Dessa forma, fragilizam-se as estratégias pedagógicas desenvolvidas no ambiente comum da escola regular.

Tal movimento ancora-se em uma concepção de deficiência pautada no modelo biomédico, o qual focaliza o sujeito e suas especificidades, advindas da produção de diagnósticos clínicos que compreendem a pessoa com deficiência como um corpo que precisa ser corrigido e normalizado. Para Bock e Nuernberg (2018, p. 2), essa concepção coloca no “[...] recurso organizado pela Educação Especial a expectativa para efetivação da aprendizagem ao invés de se pensar estratégias pedagógicas de acolhimento à variação humana”. Em outras palavras, o apelo ao respeito às especificidades do sujeito e a centralização no indivíduo e nos serviços especializados são ferramentas utilizadas pela política para justificar a exclusão das pessoas com deficiência da escola comum. Nessa mesma corrente de problematização, a Associação Nacional de Pesquisa em Educação (ANPEd) e a Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial (ABPEE) consideram que, “[...] ao retomar o modelo biomédico de deficiência, o documento [Decreto 10.502/2020] intensifica processos de segregação e discriminação dos sujeitos da educação especial”. (ANPED-ABPEE, 2020, s/p).

Reforçar as classes ou escolas especializadas em função das condições específicas dos alunos, afirmando a impossibilidade de sua inclusão em classes comuns, legitima o caráter excludente da nova PNEE-2020. Indo além, mostra o desalinhamento do documento com a perspectiva inclusiva de pesquisadores, professores e pessoas com deficiência, conforme evidenciado nas notas de repúdio. Trata-se, portanto, de uma prescrição normativa que:

[...] fere princípios dos direitos das pessoas com deficiência, acentuando um modelo segregador de educação especial e reforçando o atendimento apartado dessas pessoas – em centros especializados, escolas e classes especiais. Tais práticas retomam uma perspectiva excludente, pautada no capacitismo e no modelo médico de deficiência. (SEPTIMIO; CONCEIÇÃO; DENARDI, 2021, p.260).

Esse movimento também produz uma ressignificação da noção de inclusão escolar, como podemos perceber nos excertos que seguem:

respeitando suas características e peculiaridades, para que seja garantida a possibilidade de desenvolvimento e inclusão social, acadêmica, cultural e profissional. (BRASIL, 2020, p.11).

[...] ter acesso à oferta de experiências educacionais de acordo com suas singularidades e especificidades, pois esta atenção é que vai garantir o acesso, a permanência e o sucesso nos processos educacionais, levando à possibilidade de inclusão social, cultural, acadêmica e profissional. (BRASIL, 2020, p.41).

A inclusão, nesse sentido, não é tomada como uma experiência do presente, mas como projeto vindouro, como projeto futuro que poderá ser concretizado no âmbito social, acadêmico, cultural e profissional, mas não necessariamente na escola. A noção de inclusão escolar como algo que ocorre no presente e na escola comum vai sofrendo um progressivo apagamento na PNEE-2020, e ganham visibilidade os serviços e escolas especializados, que não mais aparecem como complementares ou suplementares ao ensino comum. No Decreto 10.502, as escolas especializadas são:

[...] instituições de ensino planejadas para o atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos. (BRASIL, 2020a, p. 7).

Os educandos dessas escolas especializadas terão sua convivência com a sociedade em geral garantida por suas famílias e incentivada pela gestão da escola em atividades extraclasse. (BRASIL, 2020, p. 42).

A inclusão, desse modo, parece ser atribuída a outros espaços e núcleos sociais, e não mais viabilizada no espaço da escola comum. A escola comum, então, parece ser alvo de ataque constante desse processo de (des)democratização, o qual furta o Estado de suas responsabilidades para com os sujeitos de direito.

Na contramão desse projeto, há a necessidade da defesa de uma escola comum: não uma escola para alguns, para quem é promessa de sucesso e capaz de assimilar e repetir o já sabido, mas uma escola como espaço de inquietação, curiosidade, pergunta, diálogo – uma escola do pensamento para todos. De acordo com Pagni (2020, p.36), “[...] é preciso remar contra a correnteza e voltar-se criticamente contra a redução da escola à governança empresarial e contra a desastrosa redução do tempo escolar ao tempo produtivo”. Isso ocorre na luta pela reafirmação da escola comum como espaço onde a diferença possa fazer-se presente e potente. Tal luta precisa dar-se no âmbito coletivo, sustentada por princípios éticos que nos mobilizam a interrogar a política e a pensar formas de resistência aos retrocessos que pautam nosso presente.

Considerações finais

Como vimos, estamos vivendo em tempos de incertezas, de retrocessos e de perda de direitos já garantidos. Segundo Carvalho, Menezes e Pagni (2022, p.2), estes são “tempos de precarização da vida, de fragilização da democracia, de recrudescimento de preconceitos, racismo, homofobia, misoginia, machismo”. Podemos dizer que a precarização apontada pelos autores ressoa nas políticas de inclusão, que vão materializando um aniquilamento da diferença. A partir de princípios neoliberais, em que o mercado define as formas de vida, assistimos a uma intensificação das desigualdades e precisamos reafirmar a defesa da escola pública e da potência da vida com o outro.

Problematizar esse projeto, que alinha as políticas brasileiras ao neoliberalismo, torna-se urgente, e as notas de repúdio evidenciaram sua força ao levarem à suspensão da política. Tal projeto mostra a sua face mais obscura, na medida em que “o público a que se destina é ainda mais restrito e distribuído em categorias e, o que é pior, responsabilizando o indivíduo e a seus familiares para que o efetuem, uma vez que a responsabilidade estatal se furta ao seu papel”. (Carvalho; Menezes; Pagni, 2022, p.10). Isso destrói a dimensão coletiva da existência, produzindo uma “[...] individualização radical que faz com que as formas de crise social sejam percebidas como crises individuais, todas as desigualdades sejam atribuídas a uma responsabilidade individual”. (DARDOT, LAVAL, 2016, p. 348).

É contra essas ofensivas individualizantes e neoconservadoras que precisamos reerguer um projeto de fortalecimento da democracia, o qual deve reforçar não apenas a noção de liberdade, mas principalmente as noções de igualdade e justiça social.

A democracia é algo muito diferente do que uma forma institucional caracterizada por “boas” práticas ou procedimentos, inspirada pela defesa das liberdades. [...] a democracia designa também uma tensão ética no íntimo de cada pessoa, a exigência de reinterrogar a política, a ação pública, o curso do mundo a partir de um si político que contém um princípio de justiça universal. (GROS, 2018, p. 16).

Acreditamos que esse sistema político precisa ser sustentado por uma ação de conjunto, por uma dimensão coletiva que interrogue constantemente as ações políticas, primando pelo bem comum e bem viver. Talvez tenha sido isso que conseguimos fazer nos movimentos de resistência levantados contra a PNEE-2020. É isso que precisamos continuar a fazer.

Referências

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Notas

1 Nas políticas atuais, a expressão público-alvo da educação especial tem sido utilizada para designar os sujeitos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação. Em alguns momentos do texto, para fins de maior fluidez textual, utilizaremos apenas a expressão pessoas com deficiência para referirmo-nos a esse grupo.

2 A PNEE-2020 foi aprovada pelo Decreto No 10.502/2020, o qual vigorou por cerca de 60 dias, sendo suspenso pelo STF devido a todo um movimento de luta pelo direito à educação que acabou sendo articulado. Conforme Rocha, Mendes e Lacerda (2021), a PNEE-2020 “favorece o não atendimento desse público na escola comum, o seu isolamento em escolas especiais e não garante que o Estado se responsabilize por esses estudantes, já que o espaço para a iniciativa privada/filantrópica, nesse campo, fica preservado, podendo até ser ampliado em função da disputa pelo financiamento público.” (ROCHA, MENDES, LACERDA, 2021, p.14).

3 Tomamos a Educação Especial e a Educação Inclusiva como perspectivas educacionais distintas. A partir de Pletsch e Souza (2021, p. 1297), entendemos que a “Educação Especial é uma modalidade de ensino transversal com técnicas e recursos especializados próprios que atua de forma colaborativa com a educação básica e a superior para garantir a inclusão [...]. Já a educação inclusiva é um paradigma de política pública que, imerso nos pressupostos dos Direitos Humanos, visa induzir o acesso à educação aos grupos que historicamente sofrem processos de exclusão de direitos”.

4 Já na PNEE-2020, evidenciamos uma recorrência das palavras educação, Educação Especial, escolas regulares inclusivas, AEE e implementação, às vezes usadas como sinônimos. No entanto, o termo regular pode gerar confusão, visto que as escolas especializadas também fazem parte da rede regular de ensino, ou seja, escolas especializadas não são irregulares, e todas as escolas, sejam elas comuns, sejam especializadas, devem ser inclusivas. (ROCHA, MENDES E LACERDA, 2021).

5 Para compreender essa historicidade, sugerimos: Rocha, Mendes e Lacerda (2021); Kassar, Rebelo e Oliveira (2019) e Plesch e Souza (2021).

 

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