http://dx.doi.org/10.5902/1984686X71319
Neoconservadorismo e arcaísmos no neoliberalismo: implicações para a corrosão da inclusão escolar
Neoconservatism and archaism on neoliberalismo: implications toward the scholar inclusion corrosion
Neoconservadorismo y arcaísmos en neoliberalismo: implicaciones para la corrosión de la inclusión escolar
Alexandre Filordi de Carvalho
Professor pós-doutor da Universidade Federal de Lavras, Lavras, MG, Brasil
E-mail: afilordi@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0003-4510-9440
Jonas Rangel de Almeida
Doutor pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, São Paulo, SP, Brasil
E-mail: jradavisao@gmail.com ORCID: https://orcid.org/0000-0001-8698-6082
Recebido em 11 de agosto de 2022
Aprovado em 26 de agosto de 2022
Publicado em 08 de dezembro de 2022
RESUMO
O artigo investiga a relação existente entre neoconservadorismo e neoliberalismo para sustentar a hipótese de que todo sujeito deficiente ou socialmente excludente é uma crítica encarnada ao neoliberalismo, logo, sujeitos insuportáveis. Parte-se da concepção que suas singularidades somáticas e existenciais engendram eficiências diferentes aos padrões das competências e das habilidades neoliberais. O neoliberalismo não pode suportar nem aceitar tal perspectiva e faz uso do neoconservadorismo como estratégia conveniente para rechaçar as multiplicidades existenciais por intermédio de uma série de estigmatização. Será na análise dos arcaísmos que se pode melhor compreender o funcionamento deste neoconservadorismo e as razões pelas quais as políticas públicas de inclusão escolar devem ser corroídas e exterminadas. Para tanto, dois eixos de análises são desenvolvidos. No primeiro, investiga-se a relação entre neoconservadorismo e arcaísmos no neoliberalismo, ressaltando como ambos requerem subjetividade conservadora. Em seguida, avança-se na compreensão de como a modelização subjetiva neoliberal alcança seus sujeitos dentro e fora dos muros da escola, porém, para destruir a inclusão escolar. Ao cabo, o artigo sustenta algumas razões por que ainda é preciso defender a inclusão escolar.
Palavras-chave: Neoconservadorismo; Neoliberalismo; Inclusão escolar.
ABSTRACT
The article investigates the relationship between neoconservatism and neoliberalism to sustain the hypothesis that every disabled or socially excluding subject is an incarnated critique of neoliberalism, therefore, unbearable subjects. It starts from the conception that their somatic and existential singularities engender different efficiencies to the standards of neoliberal competences and skills. Neoliberalism cannot support or accept that perspective and makes use of neoconservatism as a convenient strategy to reject existential multiplicities through a series of stigmatization. It will be upon the analysis of archaisms that it can better understand the functioning of this neoconservatism and the reasons why public policies for school inclusion must be eroded and exterminated. To this end, two axes of analysis are developed. On the first axe, the relationship between neoconservatism and archaisms in neoliberalism is investigated, highlighting how both require conservative subjectivities. After this, it advances to understanding how the neoliberal subjective modelling reaches its subjects inside and outside the school walls, however, to destroy school inclusion. In the end, the article supports some reasons why it is still necessary to defend school inclusion.
Keywords: Neoconservatism; Neoliberalism; School inclusion.
RESUMEN
El artículo investiga la relación entre neoconservadorismo y neoliberalismo para sostener la hipótesis de que todo sujeto discapacitado o socialmente excluido es una crítica encarnada hacia el neoliberalismo, desde luego, sujetos insoportables. Se parte de la concepción que sus singularidades somáticas y existenciales engendran eficiencias diferentes de aquellas de los padrones de las competencias y habilidades neoliberales. El neoliberalismo no puedo aguantar y tampoco aceptar referida perspectiva, haciendo uso del neoconservadorismo como estrategia conveniente para rechazar las multiplicidades existenciales por medio de una serie de estigmatización. Será en el análisis de los arcaísmos que se puede mejor comprender el funcionamiento de este neoconservadorismo y la razones por las cuales las políticas publicas de inclusión escolar precisan ser corroídas y exterminadas. Para lográrselo, dos ejes de análisis son desarrollados. En el primero, se investiga la relación entre neoconservadorismo y arcaísmo en neoliberalismo, subrayando como ambos requieren subjetividades conservadoras. Adelante, se avanza en la comprensión de como la modelización subjetiva neoliberal alcanza sus sujetos dentro y fuera de los muros de la escuela, todavía, para destruir la inclusión escolar. Al término, el artículo sostiene algunas razones por qué aún es imprescindible defender la inclusión escolar.
Palabras clave: Neoconservadorismo; Neoliberalismo; Inclusión escolar.
Questões iniciais
A compreensão da dissolução das políticas públicas voltadas para a inclusão escolar está absolutamente correlacionada com a assunção do neoconservadorismo a parasitar as próprias engrenagens do Estado. Não se alcança, porém, a perceber como referido neoconservadorismo se instalou sem pensarmos sua manifestação como sintoma ou efeito, se preferirem, da consolidação do neoliberalismo. Por sua vez, o neoliberalismo há de ser perspectiva muito menos no sentido de uma plataforma econômica, mas muito mais como uma máquina de produção de subjetividade demandante de certas especificidades e eficiências somáticas, psíquicas, afetivas, relacionais e produtivas de adequação à adaptabilidade à conservação de seus princípios.
Neste artigo, desenvolvemos a relação existente entre neoconservadorismo e neoliberalismo para sustentar a hipótese de que todo sujeito deficiente ou socialmente excluído é uma crítica encarnada ao neoliberalismo, pois a dotação singular de suas eficiências somáticas produz e demanda políticas existenciais de diferenças que não convém aos padrões da eficiência das competências e das habilidades neoliberais. A performatividade subjetiva do neoliberalismo é exigentemente controladora. Conservá-la é o índice expressivo a se manifestar na padronização das mesmas eficiências somatopolíticas educacionais. No caso específico das deficiências, mostraremos que o Decreto 13.632 (BRASIL, 2018), que instituiu “a aprendizagem ao longo da vida”, foi o estopim para que as mãos do governo do Pilatos neoliberal deixasse à revelia da “vida” dos deficientes a inalcançável socialização de suas experiências de vida e de subjetividades: eles nunca mais estariam preparados para se somarem ao corpo social produtivo, eficiente, competente, habilidoso; doravante, eles precisam ser conservados na exterioridade silenciosa e claudicante da exclusão normativa. O que se sucede a partir do Decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020, implementando a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao longo da Vida (BRASIL, 2020), é o refinamento neoconservador, cuja roupagem verbal reluzente, imaginada pelas cabeças dos gestores neoliberais, nada mais é do que a entrega individualizante de todos os níveis de deficiência a seu próprio destino.
Sustentamos ser toda e qualquer singularidade somática, fora dos circuitos de demandas de eficiência neoliberal, um dialeto expressivo, um idioleto de eficiência singular, uma passagem às multiplicidades subjetivas intensivas a escapar do centro ou da convergência significante de sentidos. O neoliberalismo não pode suportar isso, e o uso que faz do neoconservadorismo é convenientemente interessante para rechaçar tudo o que é gradiente existencial diferente de seus índices normativos. Na medida que exploramos tal perspectiva, sustentaremos que as lutas contra os efeitos neoconservadores do neoliberalismo não têm seus lugares exclusivamente em novas propostas políticas, econômicas ou de defesa das redes de proteção social, mas na própria singularidade de cada corpo.
Para tanto, o artigo se organiza em duas seções. Na primeira, evidenciamos por que o neoconservadorismo requer a produção de subjetividades reacionárias, entendendo-as como expressão dos arcaísmos subjetivos que o neoliberalismo exige para a sua manutenção. Em seguida, exploraremos o reflexo da relação do neoconservadorismo e dos arcaísmos com as razões justificantes, mas jamais justificadoras, da desidratação das políticas públicas da inclusão escolar. Trata-se de se dar a conhecer as estratégias de modelização subjetiva que perpassam a escola dentro e fora de seus muros, visando a instituição calculada e insensível da exclusão como normalização neoliberal. Aqui tudo se encontra: o outro, sobretudo na sua contraeficiência, é sempre o perigoso a ser esconjurado, empurrado para as longínquas fronteiras da capacidade inatingível, supostas nos delineamentos convenientes de uma “aprendizagem ao longo da vida” – vida impedida de ser vivida como é. Por isso mesmo, o autoritarismo precisa viger como demanda regulatória do controle sobre a vida em um perfeito encaixe entre neoconservadorismo e neoliberalismo.
Neoconservadorismo e arcaísmos no neoliberalismo: a requisição de subjetividades reacionárias
Ao escrever acerca da história dos bilionários estadunidenses operando de forma oculta na criação, defesa, organização e disseminação de valores conservadores, Mayer (2017) revela os nichos de extrema direita na roupagem sedutora de uma direita alternativa (Alt right) que, ao mesmo tempo, gerencia e comanda a lógica político-econômica neoliberal. A relevância dessa concepção está no fato de evidenciar que neoliberalismo não é uma fantasmagoria sem sujeito. Se há mercado central, ou seja, se há regras reconhecidas e instituídas a demandar estratégias políticas que os Estados devem adotar para fazer valer e justificar seus modos produtivos, suas políticas públicas – em especial as de educação –, suas tendência avaliativas de destinação de recursos e, não menos importante, a defesa de seus princípios e fundamentos, há de se saber quem concebe e detém o mercado. Follow the money (siga a grana) é a regra básica para se ter consciência dos proprietários do mercado e, evidentemente, do próprio neoliberalismo.
Mayer (2017) explicita ainda ser os bilionários que se especializaram em criar fundações devotadas à defesa da educação, desde a guerra fria. Eivadas pelos valores familiares (COOPER, 2019) por eles defendidos, sempre coerentes com os princípios de idealização de uma sociedade em que o diferente deve ser colonizado conforme a grade avaliativa de tais valores ou dela excluído por ser ameaça, a educação propalada por suas fundações sempre resvalou na defesa da boa família patriarcalizada; arrimo das capacidades demandadas como servilismo de função adaptativa à mão de obra barata; mas também da defesa da meritocracia individual, donde o combate a tudo que agencia coletividade, por exemplo, os sindicatos ou os direitos coletivos. Soma-se a isso o terror de políticas que pudessem minar o reinado da exploração capitalista, razão de todo recurso voltado para se combater políticas sociais ou inclusivas, como se presume encontrar no socialismo ou nos partidos de esquerda (KINZER, 2006). As privatizações defendidas pelo neoliberalismo, além de convergir riqueza para os ricos, têm por objetivo secundário desgastar as redes de proteção da justiça social e da vida participativa democrática.
A privatização econômica neoliberal subverte profundamente a democracia. Ela gera e legitima a desigualdade, a exclusão, a apropriação privada dos comuns, a plutocracia e um imaginário democrático profundamente esmaecido (BROWN, 2019, p. 141).
Hosang e Lowndes (2019) aprofundam tal quadro, evidenciando a perversão totalizante que o neoliberalismo engendra: ou se é adepto ou se é contra, logo, inimigo a ser combatido. Do primeiro lado, situam-se patriotas e produtores, ou seja, os que não dependem das redes de seguridade do Estado para se ter acesso à saúde, à educação e à segurança, ou seja, os ricos. Estes, valem-se de uma guerra semiótica para desqualificar todo aquele que se encontra na outra ponta. São eles designados de “parasitas”. No Brasil, um ministro de Estado da Economia chegou a qualificar, recentemente, de “parasitas” e “zebras gordas” todo servidor público (SAKAMOTO, 2020). Não é do nada que tal concepção emana. A matriz geradora de tal concepção situa-se na mão invisível, mas existente, dos donos do dinheiro. Atacar o serviço público faz todo sentido, pois instiga o precariado contra a própria natureza de um Estado que deveria proteger seus interesses e que, paradoxalmente, dele necessita para se educar, cuidar de sua saúde, ter proteção de seus direitos civis, renda mínima etc.
Ora, o patriota manipulado das camadas que mais necessitam das redes de proteção se volta contra o Estado na ilusão de estar defendendo seus próprios interesses, quando, na verdade, a sua subjetividade foi formada para proteger a voz oculta dos donos das riquezas. Aqui, como veremos abaixo, os arcaísmos funcionam como argamassa de adesão aceleradora do neoliberalismo. É a marcha da ilusão detrativa contra a sua própria condição. Entretanto, o mecanismo regente dessa possibilidade está na forma pela qual os padrões segregadores do neoliberalismo revestem a percepção individual de que, mesmo se estando na pior situação, eu não pertenço aos miseráveis, espécie narcotizante e alienada de ruptura com a realidade. O conservadorismo explora essa massa sem dó nem piedade.
Ora, quando Hosang e Lowndes (2019) analisam que toda extrema direita consolida o que denominaram de etnoestado1, e cientes que são seus financiadores os bilionários (MAYER, 2017), passamos a compreender que o neoliberalismo é uma racialização do próprio Estado. Em outros termos, a lógica longínqua das guerras raciais dos impérios colonizadores (MBEMBE, 2021) passa a ser revivida no ideário identificador de quem são os indivíduos produtores e patriotas e, com seus marcadores valorativos, ameaçados pelos “parasitas”, os improdutivos, os vagabundos, os escolhos, os preguiçosos e, para o que nos interessa, os deficientes ineficazes .
Conforme Hosang e Lowdens (2019), no etnoestado a matriz básica de seu vigor e de sua seletividade normalizante emana dos indivíduos localizados nos feixes das estratégias políticas do White power, isto é, no poder do Branco, velha suposição dos valores WASP – White, Anglo-saxon, Protestant (Branco, Anglo-saxão e Protestante). Ora, vê-se imediatamente que o neoliberalismo é seletivo por essência e conservador por funcionalidade. Os seguintes termos são aqui importantes:
Expresso politicamente, a branquitude nos Estados Unidos tem relação com o individualismo, a autonomia, a propriedade e a ética no trabalho; tudo o que se interpõe àquela relação é considerado negativamente como dependência, pobreza e doença (HOSANG; LOWDENS, 2019, p. 151).
As consequências antagonistas ao etnoestado são gritantes. Fora do reino do individualismo, com sua ética meritocrática pelo trabalho, herança precípua do calvinismo (WEBER, 1994), tem-se o fundamento imprescindível para solapar o Estado que se volta para a justiça e o bem-estar social de todos. Aliás, Weber (1994, p. 75) também mostrou como o Calvinismo pode ser considerado base delirante, condição primordial para os arcaísmos, já que ele sempre teve “suas tendências para arrancar o indivíduo dos mais fortes laços pelos quais ele se liga a este mundo”, isto é, a sua própria realidade. No etnoestado, dependência e pobreza passam a ser vistos como metástase ameaçadora. Com efeito, considerar as deficiências e os sujeitos excluídos não como singularidades somáticas, mas sim como doença, é um passo muito curto, embora firme, nesta sociedade. Ainda que isso não seja verbalizado, eles emergem como o negativo da capacidade demandada para a afirmação do individualismo, da autonomia, da propriedade e do mérito. Especificamente nas deficiências, o menor lastro de dependência prefigurada na semiótica singular seus corpos, não importando qual seja a sua especificidade e demanda, depõe contra eles. Incapazes de conformarem-se ao imperativo da independência, ou melhor, de ser autoinvestidor de si mesmo, a somotoeficiência dos deficientes é uma prótese sem ajustes possíveis ao etnoestado. Logo, por que se haveria de continuar a dar manutenção às políticas inclusivas se, virtualmente, seus resultados jamais serão convenientes e lucrativos ao etnoestado?
Vê-se, rapidamente, que etnoestado é apenas um nominalismo, isto é, trata-se de um nome síntese a acampar um referencial majoritário por meio do qual se projetam outras matrizes de exclusão. O neoconservadorismo, assim, é a reescrita sufixal de velhos conservadorismos. O neo é a extensão projetiva de algo que nunca se acabou, porque, tanto na conjuntura WASP como na atualidade, eram os donos do dinheiro o deus ex machina agindo para escorraçar os sujeitos inconformados, renitentes e obstinados com a improdutividade demandada. “Se as teorias econômicas do mercado livre rejeitam a intervenção do governo e venera o trabalho duro e o sucesso inspirado na tradição Calvinista” (HOSANG; LOWNDES, 2019, p. 282), em ato contínuo, percebemos o quão é desnecessário gastar recursos com aqueles que jamais poderão trabalhar duro. O estigma é a moeda corrente de todo neoconservadorismo, pois é fundamental a exposição aviltante dos sujeitos considerados incapazes ou indesejados pelo etnoestado. Donde vislumbramos um conjunto muito próximo de estigmas convergentes entre neoliberalismo e neoconservadorismo:
apoio às políticas de restrição de imigração, antipatia para com as demandas da diversidade racial e étnica e seus pluralismos culturais, e a percepção de que a própria branquitude [whiteness] tem se tornado um objeto de discriminação, desvantagem e estigma social” (HOSANGE; LOWNDES, 2019, p. 87).
Em Family values – between neoliberalismo and the new social conservatism (Valores de família – entre o neoliberalismo e o novo conservadorismo social), Cooper (2019) confirma que o neoconservadorismo emergiu a partir dos anos de 1960 como respostas às mesmas demandas dos neoliberais. No Brasil, A marcha da Família com Deus pela Liberdade, realizada pela primeira vez em 13 de março de 1964, foi um precursor importante para o golpe cívico-militar de 31 de março daquele mesmo ano. A coalisão entre neoconservadores e neoliberais sempre esteve sob a rubrica da rejeição das mudanças sociais em curso nos anos de 1960. Tratava-se mesmo de combater a independência sexual da mulher e os movimentos políticos feministas; a emersão da liberdade de expressão em todas as formas e do amor livre, exemplificados na contracultura hippie; a laicização da sociedade; a luta dos movimentos negros pela inclusão social e pelo reconhecimento de direitos civis amplos; a organização de greves reivindicando melhores condições de salário e redistribuição de riquezas. Cooper (2019, p. 19) vislumbra nos neoconservadores complexa gama de interesses que converge para o “antiestatismo (antistatism), o antissemitismo, a aversão à democracia racial e qualquer compromisso com o New Deal da esquerda”.
A radicalidade do etnoestado está na confluência do neoconservadorismo com o neoliberalismo. E levando a bons termos a análise de Cooper, não nos demora a perceber que a assunção atual de toda política de inimizade, nos termos de Mbembe (2021), rescaldada no neonazismo, no neofascismo, na extrema-direita, no racismo contemporâneo, na dissolução da presença pública do Estado, na inversão da democracia, nas LGBTQIA+fobias, na precarização da vida, no solapamento das políticas de inclusão escolar e sucessivamente, não passa de emissão de mensagens cuja a voz profunda e grave ressoa o mesmo estertor contra toda forma democrática de incluir formas de vida não conformes ao etnoestado. Portanto, “Os direitos são a ponta de lança com a qual os compromissos democráticos com a igualdade, a civilidade e a inclusão são contestados nas batalhas legais neoliberais” (BROWN, 2019, p. 140).
O que não pode ser ignorado é o fato de a coalizão do neoconservadorismo com o neoliberalismo estar assentada nas bases do funcionamento de produção de subjetividades de consistência neoarcaizantes. Ao modo de Cooper (2019), que associou o neoconservadorismo com o paleoconservadorismo, isto é, as raízes profundas das aspirações coloniais WASP, os neoarcaísmos são reduplicações da matriz arcaizante de uma busca por segurança na massa, na idealização projetiva, no animismo reconfortante e na infantilização consoladora em meio aos limites da realidade. O neoarcaísmo é um agenciamento de subjetividade aderente aos interesses do capitalismo. A associação da religião com a extrema direita (MBEMBE, 2021); a pós-verdade com a política (KEYES, 2018); o narcisismo com a insensibilidade relativa à dor do outro (TWENGE; CAMPBELL, 2013); o delírio como crença irrefutável ao que não é real com o autoengano capitalista (DUNKER, 2020); a precarização assumida como autoempreendedorismo com a degradação das redes de proteção social (CARVALHO, 2020) são exemplares nas demandas arcaizantes. Mas o que é arcaísmo e quais os processos que ele agencia para fazer circular a conformação subjetiva ao neoconservadorismo e ao neoliberalismo?
Os alicerces do interesse do neoliberalismo com sua vontade de conservação residem no acúmulo do capital. É importante, contudo, considerar tal perspectiva por intermédio da
ordem capitalista das coisas monoteístas, monoenergética, monossignificante, monolibidinal, em suma, radicalmente sem beleza, onde nada pode evoluir a não ser com a condição de que tudo permaneça no seu devido lugar. As produções subjetivas (as subjetividades) são compelidas a se submeter a esses axiomas de equilíbrio, de equivalência, de constância, de eternidade Guattari (2009, p. 283).
“Mono” expressa valor único; demanda por identidade reconhecida e localizada facilmente para sobressaltar o que dela se difere. “Mono” sequestra a multiplicidade não para demandar o seu resgate, mas para mantê-la cativa da equivalência majoritária. Ora, o arcaísmo é o que permite a naturalização dos absurdos do “mono”, instituindo adesão convincente pelo fato de serem precisamente inexplicáveis, ou se preferirem, irracionais. Foi Freud (2011), em Psicologia das massas e análise do Eu, quem forjou condições de sabermos que o arcaísmo é mecanismo de defesa importante à reação de desorientação do Eu frente aos desafios dos limites e das adversidades da realidade. A busca por segurança está culminada em suas análises acerca da Igreja e do Exército como massas artificiais que respondem às demandas por segurança. Mas para além disso, as massas reconfortam na mesma proporção que “o hipnotizador desperta no sujeito uma porção da herança arcaica” (FREUD, 2011, p. 91), quer dizer, das seguranças iniciais de ser acolhido pelos braços maternos e paternos, ser cuidado, ter suas necessidades satisfeitas, suas birras autorizadas e até mimadas, um erotismo egocentrado e ainda não ajustado à realidade. “A hipnose tem direito a ser descrita como uma massa dois; para a sugestão resta a definição de ser um convencimento que não se baseia na percepção e no trabalho do pensamento, mas na ligação erótica”, completa Freud (2011, p. 91-92).
Ora, o capitalismo é desorientador e desterritorializador por princípio (GUATTARI, 2009; LAZZARATO, 2019). Perante às angústias de suas desorientações e do terror de não pertencer a uma ligação significativa consigo mesmo e com os outros, os arcaísmos cumprem a função de dar sentidos à existência que, ironicamente, os perdeu justamente pelas imposições monoteístas do neoliberalismo, com suas demandas monoenergéticas para a potência humana – mas não apenas, vide o caso das matrizes energéticas – e com seus monossignificantes, como já dissera, acima, Guattari. O preponderante no arcaísmo é a supressão da consciência e seus efeitos de julgamento, discernimento, distinção entre a realidade e a fantasia, Eu e os outros e, sobretudo, a possibilidade de entender causas e consequências por intermédio de elementos lógicos. A força do arcaísmo é semelhante ao “enamoramento em suas mais desenvolvidas formas, chamadas de ‘fascínio’ e ‘servidão enamorada’” (FREUD, 2011, p. 73).
Processa-se, desde então, o que Mbembe (2021, p. 71) bem designou por mundo desvinculante. Com os arcaísmos, os vínculos com a vida social encerram-se na ilusória destruição do que justamente permitem os vínculos com a vida social: a alteridade, as diferenças e as singularidade humanas, os lugares-experiências-outros da produção material, a multiplicidade das culturas e de suas expressividades e, ao que concerne nosso interesse, a tecnoplasticidade somática como eficiência idiossincrática, heterogênea e aberta às polivocidades de sentido. O ciclo do ódio é a fronteira limítrofe dos arcaísmos com dupla via. De um lado, situam-se os sujeitos considerados fora do delírio da crença, mas profundamente necessária aos processos identificatórios das massas. Aqui, o sentimento de pertença é forjado como bóia de salvação no oceano desorientador do próprio capitalismo. De outro lado, a borda interna reforça o identitarismo igrejeiro dos que congregam a “servidão enamorada” por deus, família, pátria, igreja, convenção, partido, “pai primevo” – a fantasia do grande protetor, que conhecemos nos líderes fascistas, nazistas, da extrema direita – educação com valores conservadores etc. Sobrepostos pelo arcaísmo, é fácil compreendermos por que, então, para os identificados com as fantasias arcaicas
não há nem culpa, nem remorso, nem reparação. Tampouco existem injustiça que devemos reparar, ou tragédias que possamos evitar. Para unir, é preciso necessariamente dividir; e cada vez que dizemos “nós”, devemos a todo custo excluir alguém, despojá-lo de alguma coisa, proceder algum tipo de confisco (MBEMBE, 2020, p. 70).
Mais direto é impossível: as deficiências e os excluídos devem ser atacados, pois emanam o lado de realidade existencial insuportável no neoliberalismo, qual seja, de que é mais fácil ser handicap do sistema e dele ser expulso facilmente, cair no desemprego e no desamparo, ter de morar na rua, passar fome, não poder matricular os filhos na escola, morrer como rato na calçada, sem acesso à saúde, perder nas jogadas pela sobrevivência, donde o partido populista sempre tem de ganhar. Ademais, cada deficiência é o grau zero da crítica ao neoliberalismo. Todavia, como a crítica gera discernimento, isso não convém aos circuitos do autoengano, e “do pranto às armas, o caminho já está sempre traçado”, ressalta Mbembe (2021, p. 91).
Os neoarcaísmos são a argamassa que une as conveniências neoliberais com os valores neoconservadores; são forma de justificar o injustificável, de dar fé à má-fé, de abraçar o inexplicável como única forma aceitável dos delírios massificados. Os neoarcaísmos são os estatutos revistos dos condomínios mentais e atitudinais calcados em crenças por identificação projetiva e ilusória, presumindo “a abertura ao real, a criatividade afetiva e perceptiva que são, de fato, tributárias da realização de matérias de expressão em sua disparidade, em sua heterogeneidade” (GUATTARI, 2011, p. 301) como ameaças insuportáveis e perigosas. Nesse contexto, vale lembrar os argumentos de Berardi (2020, p. 213):
A identidade é a projeção de algumas qualidades do passado sobre a imaginação do futuro. A identidade não existe, o que existe é a identificação. A identidade é a estabilização de um processo de identificação que em geral reduz a complexidade a um padrão previsível de comportamentos de acordo com necessidades psicológicas e com intenções políticas [...] A identidade tem como base uma noção imaginária de pertencimento a um passado comum, ao passo que a transformação cultural antecipa os futuros inscritos no presente da vida social.
Como não existem necessidades psicológicas e intenções políticas destituídas do corpo, o etnoestado também supõe um etnocapitalismo e um etnocorpo. Logo, as deficiências são barreiras a priori do corpo pressuposto pelo padrão previsível de comportamento, conforme os termos de Berardi. Nenhuma insegurança ontológica ou corporal é suportável aqui. E pouco dados às contradições, os sujeitos no e do neoliberalismo são incapazes de perceber suas adesões ao sistema como condição determinante de suas desgraças. Eis a força e o sentido dos neoarcaísmos: não ocultar, mas dar à visibilidade matéria de produção subjetiva única, monoexpressiva e universal, como se não houvesse outras possibilidades de vida, outros corpos, outras formas de ser e estar no mundo. Sendo assim,
As democracias liberais dependem nos dias de hoje, para sua sobrevivência, da divisão entre o círculo dos semelhantes e dos dissemelhantes, ou então entre os amigos e “aliados” e os inimigos da civilização. Sem inimigos, é difícil para elas se manterem de pé por conta própria. Se tais inimigos realmente existem ou não é irrelevante. Basta criá-los, encontrá-los, desmascará-los e expô-los à luz do dia (MBEMBE, 2021, p. 91).
Em que medida esse amplo horizonte se interpõe à temática da inclusão escolar? Seria por que incluir é ampliar a dissemelhança e isso não convém ao neoliberalismo e seus consolos infantis arcaicos? Atacar as políticas de inclusão escolar não seria uma das formas prementes do etnoestado continuar operando? Vamos explorar tais questões a seguir.
Modelização subjetiva dentro e fora dos muros da escola: destruir a inclusão escolar
Pensemos com Deligny (2018, p. 35, grifos nossos):
Existe sempre, em algum lugar não se sabe onde, uma Corte Suprema que zela pelos direitos: por aí se vê, de certa forma, o avesso do direito: ao alegar que elas realmente têm o direito de querer [as pessoas deficientes], por mais ‘autistas’ que sejam, e por menos que tenham a prática adquirida do projeto pensado, eu as oprimo e condeno, com esse direito, a uma semelhantidade – uma identidade ainda mais pesada por ser fictícia.
A ideia que exista uma Corte Suprema sintetiza a capacidade majoritária de designar referentes a partir dos quais as verdades devem ser acatadas. A semelhantidade é a reduplicação micropolítica do direito propalado como repetição do que deve ser conservado. Desse modo, é impossível sair de um projeto pensado para absorver todas as singularidades, no lugar de potencializá-las. Destrói-se, então, o que é inoportuno à semelhantidade. As convenções subjetivantes do neoconservadorismo se arrimam no neoliberalismo justamente como poder de convencimento ao que é “natural” assemelhar-se.
Recentemente, Aguiar Filho (2022) mostrou como o Estado brasileiro foi marcado com bases eugênicas, conformadas e confirmadas por suas elites, ao mínimo desde os anos de 1930. Derribar as políticas de inclusão não é algo estranho às elites, cujo projeto de mundialidade está longe de ser confundido com posições ignorantes e ingênuas face ao lugar do outro. Misoginia, racismo, eugenismo, exclusão, guetos, bolsões de pobreza, muros físicos, políticos, econômicos e de significantes são mesmo usados como dispositivos políticos de exclusão, distinção social e políticas da inimizade (MBEMBE, 2021).
No livro Redes e paredes, Sibilia (2012, p. 27-28) argumenta que a escola moderna foi construída a partir da proliferação das instituições disciplinares, instituições proto neoliberais, cuja “[...] chave consiste em encerrar os indivíduos num espaço delimitado por paredes, grades e fechaduras [...]”. Mas os novos dispositivos em rede da sociedade do controle e das tecnologias digitais estão “atravessando as paredes”, produzindo novos modelos subjetivos que já não pertencem ao restrito modelo disciplinar. A cultura escolar atual se caracteriza assim pela sua fluidez e pela dispersão. É importante considerarmos tal dimensão pois a escola não está desvinculada das formas pelas quais as redes sociais, as mídias, a sociedade comunicacional e seus condicionantes de pós-verdade vêm potencializando o neoconservadorismo e o neoliberalismo.
Seguindo essa direção de mutação tecnológica, os dispositivos que atuam dentro e fora dos muros da instituição escolar transformam e às vezes deformam a prática pedagógica, as relações entre estudantes, professores, gestão e comunidade, as relações sociais e a ecologia subjetiva, justamente pelo fato de estarem contaminadas com os valores majoritários dos arcaísmos. Poderíamos dizer que os novos processos disciplinares normalizam a reativação dos arcaísmos para servirem de plataforma à circulação das forças de modelização subjetivas do neoliberalismo. Essa modelização diz respeito à formação de certos bolsões existenciais – lugares de apego, de pertencimento, de identidade e de segurança infantilizadora – que servem como maneiras de conduzir a conduta dos indivíduos e das populações. De acordo com Lazzarato:
[...] a sujeição social e suas semiologias significantes (linguagem, narrativas, discursos) são técnicas de controle das consequências da desterritorialização que desfaz as antigas comunidades, suas relações sociais, políticas e seus antigos modos de subjetivação. Cabe a elas modelizar, formatar, modular e reconfigurar os processos de subjetivação, recentrando-os sobre o “sujeito individual”, operação cujo fracasso sistemático sempre desembocou e desemboca no contrário do individualismo, o “coletivismo” do nacionalismo, da raça, do fascismo, do nazismo, do maquinismo etc. (LAZZARATO, 2010, p. 176).
Ora, a inclusão sempre será contra-ato ao coletivismo do etnoestado. Para tanto, entendemos por inclusão a promoção de práticas sociais produzidas para se garantir a dignidade humana e a promoção de todas as potencialidades de seus sujeitos como condição conectiva às associações coletivas, não importando a sua singularidade ou a possibilidade de eficiência somática, implicando, assim, na formação de subjetividades que possam exercer suas cidadanias; performar seus corpos, produzir simbólica, material e relacionalmente; desejar outros modos de se viver; ampliar os horizontes da virtualidade dos territórios existenciais para além daqueles supostos pelas Supremas Cortes valorativas do neoliberalismo e de seus correlatos. Incluir é tomar o complexo e sensível espectro das deficiências, dos improdutivos, dos ineficazes, dos excluídos social, sexual, racial, política e economicamente como gradiente crítico, um “ponto de singularidade”, nos termos de Guattari e Rolnik (2005, p. 60), cujo anúncio básico é: somos vidas que questionam as estratégias e os resultados das redundâncias da estratificação social que anula, inviabiliza, desdém e mortifica a singularidade como recusa ao serialismo funcional e reduzido às eficiências reduplicadas. Sob esse ponto de vista, a inclusão supõe e produz um sujeito, alguém que existe correlacionando-se com outrem – o que já é uma mudança na curvatura do individualismo histórico neoliberal – sem, contudo, ser destituído de seu núcleo de vontade própria, sob o qual age com relativa independência para afirmar demandas transformacionais nas próprias relações humanas e sociais. Ao cabo, a inclusão interpõe-se a todo tipo de política que supõe a produção de sujeição, inclusive a sujeição na dimensão de servidão maquínica, isto é, na dimensão molecular e supraindividual da subjetividade no qual servimos como elementos e engrenagens dos dispositivos empresariais, comunicacionais, do Estado neoliberalizado e das finanças algoritimizadas.
Outro ponto que devemos ressaltar é que a inclusão não se destina somente às pessoas com deficiência, porém, às diversas camadas desfavorecidas e excluídas historicamente da sociedade. Surgida no contexto do pós-guerra, período de reconstrução dos países afetados pelo conflito, sobretudo, em um momento marcado, de um lado, pelo esforço dos países capitalistas em oferecer saídas diante do avanço do socialismo soviético, e, de outro, das reformas pelas quais estavam passando as instituições disciplinares, as políticas de inclusão apareceram como mecanismo de promoção da igualdade e de reconhecimento das diferenças. O problema começou a ocorrer quando a inclusão deflagrou demandas para além da família fordista patriarcal (COOPER, 2019), desestabilizando a matriz whiteness – da branquitude – do etnoestado.
Precisamente por isso, não nos surpreende as práticas de inclusão serem alvos do neoliberalismo. Elaboradas no contexto do Estado de bem-estar social fordista, as práticas de inclusão tornaram-se um obstáculo a ser subsumido pela lógica economicista, especificamente, porque pressupõe outra maneira de viver a vida, outras temporalidades, outras formas de se relacionar com o corpo, contrapondo-se ao modelo de eficiência e autorresponsabilização neoliberal. Carvalho (2017) procurou analisar essas investidas neoliberais mediante uma série de interrogações acerca dos efeitos deletérios que essa configuração da dívida traz à economia subjetiva, especialmente, na dos deficientes. Em diálogo com Guattari e Lazzarato, Carvalho (2017) acentua a intensificação dos mecanismos de culpabilização e de infantilização como estratégias de modelização subjetiva. E como vimos, é peculiar aos arcaísmos infantilizar, projetar um mundo ilusório e fantasmagórico para seus sujeitos. Dessa maneira, a inclusão, à medida que implica uma ontologia da deficiência, clarifica a miséria do tempo presente regido pela política da dívida que impede o resgate real da e com a diferença.
Nesse pano de fundo, o apego arcaico da escola por formas normalizantes de exames, que acontecem especialmente graças à modelização que o neoliberalismo se apodera, por dentro” e “por fora”, da subjetividade, a fim de equipá-la com certos modos de percepção e de sensibilidade, sedimenta apenas certas representações aceitáveis na sociedade e na comunidade escolar. Discursos marcados pela lógica da exclusão se tornaram correntes. Até mesmo um Ministro da Educação chegou a enunciar, entre outros juízos de valor depreciativos, que são as pessoas deficientes que atrapalham as aulas, que atravancam o desenvolvimento dos normais e consomem a energia da escola em algo inútil (CARVALHO; PAGNI, 2021). Em jogo estão verdadeiros devires fascistóides que, a pretexto de se proteger os direitos individuais dos normalizados, promovem precisamente a lógica eugenista e excludente, sem receio de se mostrar à luz do dia. Vê-se, por aí, que o delírio neoconservador não se distancia das bases eugênicas da sociedade brasileira (AGUIAR FILHO, 2022); o velho sonho coletivista de uma comunidade pura, livres de pessoas imperfeitas e ineficazes. Nas mesmas proporções apresentadas por Hosang e Lowndes (2019) acerca das campanhas “It’s Okay to be White” (Tudo bem ser Branco), recurso do etnoestado para desqualificar a inclusão de negros, latinos, povos indígenas e imigrantes nos Estados Unidos, associando-os aos “parasitas”; no Brasil, é como se dissessem: tudo bem ser normal, pois é o normal a norma eficiente desejada pelo neoconservadorismo e neoliberalismo.
Nesse cenário, o fetiche pelo velho exame – a lógica examinadora regida pela hierarquia de habilidades e desempenhos dos estudantes em índices internacionais – faz-se tanto no nível da sujeição, mediante os discursos motivadores e empreendedores, quanto pelas estratégias de culpabilização individual. Ainda que não se seja deficiente, os sujeitos não adequados aos índices instituídos serão lançados para os guetos da ineficiência neoliberal. Esse processo não é descolado do discurso sobre a crise que sempre acompanha a modelização capitalística. Para Lazzarato (2019, p. 143), “a gestão da crise não se faz pela intervenção dos dispositivos automáticos, mas pela ação de uma tecnocracia e uma burocracia que agem como subjetivação da megamáquina do capital.” Existe um cálculo de desempenho, uma exigência por eficiência, produtividade e performance que corroboram para aniquilar qualquer encontro com a diferença de outrem.
Na vontade de semelhantidade, nenhuma subjetividade dissidente é suportada; na educação por semelhantidade, jamais haverá espaço para o deficiente e o excluído socialmente; no neoconservadorismo, a colonização política emana o velho apetite pela servidão voluntária, angariada pelos arcaísmos cujo catedral aceita unicamente professar a fé no neoliberalismo. Se lembramos que o Decreto 13.632 (BRASIL, 2018a), que instituiu “a aprendizagem ao longo da vida”, foi promulgado em 6 de março de 2018, passamos a nos dar conta da guinada neoliberal e conservadora que o Brasil se destinou desde então. A política acomodada desde o impeachment da Presidenta Dilma Rousseff com a satisfação da voracidade de interesses da extrema-direita, por sua vez, concubinada na alcova dos interesses da elite2, ditou nos ouvidos das políticas públicas para a educação inclusiva, infelizmente não exclusivamente apenas para esta, a profecia autorrealizável de sua destruição como bem público.
Assim como as fundações educacionais fizeram a festa com a grana pública e a promoção dos valores neoconservadores (MAYER, 2017) nos Estados Unidos, no Brasil, muitas delas se fartaram com a possibilidade de tomar a vez e a voz do Estado. A educação ao longo da vida sempre foi uma demanda dos setores privados, pois auxilia na justificativa de que o Estado não consegue cumprir com um papel essencial. Ainda mais, pressiona o Estado, com parcerias público-privadas, a aceitar os ditames dos propósitos de quem passa a financiar as estratégias para a formação ao longo da vida. Aliás, como evidenciou Carvalho (2020), a BNCC é toda fundamentada com documentos internacionais cujos financiadores e fundamentadores teóricos possuem lastro com as fundações Alt right estadunidenses e, não menos importante, bancadas pelos bilionários donos do dark money (MAYER, 2017), isto é, a mão invisível donatária das regras para a educação, já que as financia.
Pois bem, qual é a ênfase que o Decreto 10.502, de 30 de setembro de 2020, implementando a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao longo da Vida (BRASIL, 2020) disparou para a inclusão escolar, leia-se, para os deficientes sem dotação de eficiência neoliberal? Aprendizagem por toda vida; aprendizagem ad nauseam. Aprender e não mais ter experiência; aprender e não mais afirmar multiplicidades e diferenças somáticas; aprender a aprender para aceitar que não sendo aceito como se é, claro está, é porque ainda não se aprendeu o suficiente. Apenas no tópico “Dos princípios e objetivos da política nacional de educação especial” (BRASIL, 2020, p. 47), os termos aprendizagem e aprendizado, em poucas linhas, aparecem em torno de uma dúzia de vezes. Todas elas convergem para as demandas internacionais e a constituição de um “projeto de vida”: “Nesses casos [ da inclusão], o aprendizado ao longo da vida pode não estar diretamente atrelado à escolarização no sentido convencional, mas a saberes e competências que são articulados com projetos de vida” (BRASIL, 2020, p. 49).
É com grande elegância que o cinismo neoliberal aí se engendra. Que projetos de vida podem ser concebidos para os sujeitos deficientes quando os marcadores do aprendizado ao longo da vida advêm dos saberes e das competências delineadas pelo próprio neoliberalismo e seus financiadores? A pergunta é retórica, porque a resposta é óbvia: nenhum. O cinismo não para por aí. Segundo a proposta, a aprendizagem ao longo da vida é concebida “a fim de que os educandos tenham plenamente assegurados seus direitos à aprendizagem e eles próprios e suas famílias tenham a liberdade de escolher a mais adequadas alternativas educacionais” (BRASIL, 2020, p. 48). Nada mais assustador, portanto, do que a defesa das escolas especiais para os deficientes; o assalto privatista sem considerar todo acúmulo de abordagens e epistemologias desenvolvidas desde a democratização do Brasil para a inclusão escolar, como presume o Decreto 10. 502, ainda sob análise no STF. Note-se, “liberdade de escolher” é a concepção-valise do esvaziamento justificador das políticas públicas de inclusão escolar. A verdade lacrada para a deficiência é uma só: vocês estarão entregues ao deus dará; vocês não podem ser aceitos fora dos circuitos das respostas adequadas das competências eficientes e das atitudes valorizadas.
Não obstante, o cinismo também é astuto e eloquente. Quando a Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos defende o homeschooling, alegando que os pais preferem que seus filhos deficientes fiquem em casa (BLOG DA CIDADANIA, 2019), toda convergência neoconservadora com a violência neoliberal se copula. O Estado fugitivo de suas responsabilidades engenhosamente a transfere para as famílias dos deficientes a formação escolar. Pouco importando a especificidade de cada um, a família ressoa como a moeda de investimento subjetivo para absorver, quem sabe em um porão profundo, aqueles que devem mesmo ser destinados à invisibilidade social. É eugenia vestida com traje de gala. Não é tudo, a própria família vê-se desamparada de suportes sociais, como no caso a escola, para que os deficientes possam, ao mínimo, terem a possibilidade de convívio e de socialização. Nada mais surpreendente, pois o neoconservadorismo requenta a “virtude do egoísmo”, nos termos da célebre filósofa do neoliberalismo Ayn Rand (1991), para imputar aos sujeitos a responsabilização de seus fracassos.
Vamos de mal a pior. Fora dos muros da escola, as Supremas Cortes do neoconservadorismo e do neoliberalismo manipulam a fragilidade das subjetividades que o próprio neoliberalismo desorienta, enfraquece, precariza e coloca em estado de choque (KLEIN, 2007) para poder, mais facilmente, inocular seus arcaísmos delirantes cuja função é a zumbificação subjetiva, coletiva e política. Assim, os que ainda soerguem aspectos críticos ao que vai se instalando como verdade lacrada precisam ser reduzidos às representações a serem combatidas. São esquerdopatas, vagabundos, parasitas, comunistas, não patriotas, preguiçosos, zebras gordas, ateus, inimigos da família, satanistas etc. Dentro dos muros da escola, presenciamos estratégias de desertificação das experiências de inclusão justamente porque multiplicidades, singularidades e diferenças não convêm ao neoconservadorismo e tampouco ao neoliberalismo. Dissolver as políticas públicas de inclusão é consumação eficaz das estratégias desses dois novos tipos de Rômulo e Rêmulo imperiais: neoconservadorismo e neoliberalismo.
Considerações finais: por que precisamos da inclusão escolar
Nesse artigo vimos que neoconservadorismo e neoliberalismo são sinonímias de estratégias de produção de subjetividade voltadas para a produção da semelhantidade. Os ataques recentes às políticas públicas de inclusão escolar são procedimentos convenientes a ambos e, ao mesmo tempo, por eles engendrados. Apesar disso, é preciso defender a inclusão escolar.
Em primeiro lugar, pela razão de a inclusão agenciar somatopolítica e subjetividade múltiplas, singulares e diferentes. Isso é fundamental para qualquer contraposição às mumificações neoconservadoras e neoliberais, cujo interesse é o de reduzir a riqueza das expressividades humanas e suas distintas eficiências psíquicas, emocionais, corpóreas, simbólicas etc. a uma plataforma de homogeneização valorativa e de eficiência demandadas conforme às conveniências dos donos do etnoestado.
Em segundo lugar, a inclusão é fundamental para se desfazer dessa subjetivação modelada pelo arcaísmo, para resistir às formas de sujeição, para se afirmar a diferença, possibilitando o encontro dos sujeitos com novas formas de vida. Na inclusão, a aula é experimentação com os alunos, quer dizer, os estudantes colocam os desafios capazes de suscitar a elaboração de novas estratégias com o estudo, o aprender, o ensinar e toda relação dialógica aí suposta, impactando diretamente na feitura ética do docente.
Finalmente, os gradientes mutantes das singularidades subjetivas por intermédio da inclusão escolar são imprescindíveis para toda luta contra todo e qualquer autoritarismo expresso no neoconservadorismo e neoliberalismo. Pois, por seus intermédios, também se produzem novas formas de se valorar a vida, notadamente com
uma alteridade apreendida em sua posição de emergência – não-xenófoba, não-racista, não-falocrática –, devires intensos e processuais, um novo amor pelo desconhecido. Enfim, uma política de uma ética da singularidade, em ruptura com os consensos, os “lenitivos” infantis [como são os arcaísmos] destilados pela subjetividade dominante (GUATTARI, 1992, p. 147).
Referências
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Notas
1 Hosang e Lowndes (2019), curiosamente, não mencionam a chave analítica foucaultiana da biopolítica. Não adentramos nesse debate pelo fato de julgarmos que, seja com for, o Ocidente foi mesmo marcado pelo coeficiente colonizador White power, talvez, uma das matrizes fundamentais de nossa experiência de governamentalização. E é pela ênfase no White Power que os autores concebem a marca fundante do etnoestado. Mantivemos esta noção por julgá-la conveniente ao que vem adiante como grade analítica.
2 Esta concepção salta aos olhos em Tchau, querida. O diário do impeachment (CUNHA; CUNHA, 2021). Peça-chave no processo, o então deputado federal Eduardo Cunha, responsável pela condução do impeachment, não poupa verbo para mostrar que o processo foi todo respaldado a partir de insatisfações políticas, sobretudo aquelas representadas pelo conservadorismo, o tráfico de influência e o acesso às verbas públicas.
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